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A Pobreza do Liberalismo Anti-economicista: os casos de Barros e Merquior
Fabio Barbieri
Fabio Barbieri
A Pobreza do Liberalismo Anti-economicista: os casos de Barros e Merquior
The Poverty of Anti-economicist liberalism: the cases of Barros and Merquior
La miseria del liberalismo antieconomicista: los casos de Barros y Merquior
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, vol. 10, e2022101440, 2022
Instituto Ludwig von Mises - Brasil
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Resumo: Este artigo examina, compara e critica dois livros sobre a história do liberalismo, escritos por Roque Spencer Maciel de Barros e José Guilherme Merquior. Essas obras são utilizadas como estudos de caso sobre as consequências da redução da política à moral. Argumentamos que, ao rejeitar as contribuições dos economistas ao liberalismo, os dois autores oferecem versões esvaziadas do liberalismo, pois ignoram elementos crucias da doutrina liberal, a saber, o estudo das consequências não intencionais da ação humana e o modelo falibilista sobre o crescimento do conhecimento.

Palavras-chave: Barros, Merquior, liberalismo..

Abstract: This article examines, compares and criticizes two books on the history of classical liberalism, written by two Brazilian intellectuals, Roque Spencer Maciel de Barros and José Guilherme Merquior. These works are used as case studies of the consequences of reducing politics to morals. We argue that, by rejecting the contributions of economists to liberalism, the two authors offer emptied versions of liberalism, as they ignore crucial elements of liberal doctrine, namely, the study of the unintended consequences of human action and the fallibilist model on the growth of knowledge.

Keywords: Barros, Mequior, classical liberalism..

Resumen: Este artículo examina, compara y critica dos libros sobre la historia del liberalismo, escritos por Roque Spencer Maciel de Barros y José Guilherme Merquior. Estos trabajos se utilizan como estudios de caso sobre las consecuencias de reducir la política a la moral. Argumentamos que, al rechazar las contribuciones de los economistas al liberalismo, los dos autores ofrecen versiones vacías del liberalismo, ya que ignoran elementos cruciales de la doctrina liberal, a saber, el estudio de las consecuencias no deseadas de la acción humana y el modelo falibilista sobre el crecimiento de la población. conocimiento.

Palabras clave: Barros, Merquior, liberalismo..

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Artigo Original

A Pobreza do Liberalismo Anti-economicista: os casos de Barros e Merquior

The Poverty of Anti-economicist liberalism: the cases of Barros and Merquior

La miseria del liberalismo antieconomicista: los casos de Barros y Merquior

Fabio Barbieri
Universidade de São Paulo, Brasil
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, vol. 10, e2022101440, 2022
Instituto Ludwig von Mises - Brasil

Recepção: 10 Janeiro 2022

Aprovação: 17 Janeiro 2022

Introdução

O estudo dos fenômenos sociais requer multidisciplinariedade. Não é possível abordar a fundo o tema sem considerar, por exemplo, o debate nature versus nurture e o que a biologia evolucionária e a psicologia têm a dizer a respeito. Se essa discussão revela que o homem não é totalmente moldado pelo ambiente, uma análise comparativa de arranjos institucionais deve considerar regras compatíveis com a natureza humana. Recomendações de reformas, por sua vez, não podem ignorar o estudo do direito e das filosofias políticas nas quais se baseiam. Sem lógica ou matemática não é possível entender parte da teoria econômica e ciência política moderna. Estatística e história são importantes para corroborar, criticar ou ilustrar essas explanações. Precisamos da filosofia para contrastar teorias rivais e apreciar o desenvolvimento de cada uma delas. Não é possível ainda, sem conhecer história da ciência, verdadeiramente entender uma teoria e os problemas que a motivaram, como observou Popper (1969, p.184).

Não é de surpreender, portanto, a opinião de Hayek (1967, p. 123) segundo a qual um economista que só conhece economia não pode ser um bom economista, constituindo ainda um verdadeiro perigo. Na nossa era de especialização, o economista formado apenas por livros-textos e artigos empíricos tende a ser arrogante e dogmático, desconhecendo seja explanações rivais, debates teóricos cruciais da disciplina ou mesmo as hipóteses não articuladas presentes nas teorias que estudou. Esse tipo de analista age como um tecnocrata que acredita que suas opiniões seriam “baseadas em evidências”, enquanto as demais seriam mera ideologia, como se fosse possível se abster de usar hipóteses gerais, próprias da visão de mundo de cada um. Ignorando a crítica ao positivismo, esse especialista ignora que a escolha não é entre empregar ou não pressupostos “metafísicos”, mas sim explicitá-los e discuti-los criticamente ou usá-los implicitamente de forma vaga e, portanto, acrítica, esta última fonte certa de dogmatismo.

Um estudante de fenômenos sociais que ignora a teoria econômica, por sua vez, sofre de problema similar, como pode ser inferido a partir do reconhecimento do caráter indisciplinar desse estudo. No que se refere ao tema específico deste artigo, o liberalismo, afirmamos que pior do que uma teoria econômica isolada de disciplinas correlatas é uma doutrina liberal hostil à economia, que relega a segundo plano considerações dessa última disciplina em favor de pressupostos éticos. Essa alegação, por sua vez, é justificada pela importância central que o estudo das consequências não intencionais da ação humana ocupa na teoria econômica.

A economia é uma ciência de meios, não de fins. Sejam quais forem as intenções dos agentes, investiga se estes atingem seus propósitos sob diversos arranjos institucionais. Mostra como a desconsideração das regularidades no seu campo de estudo faz com que planos fracassem, a despeito dos princípios e boas intenções de seus proponentes. Estas últimas não bastam: grandes atrocidades foram cometidas por indivíduos firmemente convictos da correção moral de seus atos.

Confinar o estudo do liberalismo à esfera das aspirações e valores carrega consigo importantes consequências. Além de incompletude, implica em pobreza de análise, pois é incompatível com uma característica inegociável do liberalismo, a saber, a valorização do debate e respeito àqueles que nutrem opiniões diferentes. Esse respeito, embora inclua entre seus fundamentos a valoração ética do ser humano, se perde se as disputas políticas forem vistas em essência como lutas entre valores opostos, facilmente reduzidas ao conflito entre o bem e o mal. Mas, se contemplarmos as consequências não intencionais das escolhas, as ações que defendemos podem pelo menos em parte ser equivocadas e o debate se torna instrumento indispensável para a correção de erros, sugerindo assim a existência de outros fundamentos complementares para a liberdade. Conforme a política moderna progressivamente substitui a discussão de diagnósticos rivais sobre como lidar com problemas pelo embate moral entre valores irreconciliáveis (SOWELL, 2021), a discussão da natureza do liberalismo ganha importância.

Neste artigo, ilustraremos a tese de que a filosofia política liberal despida de elementos “economicistas” tende a se tornar vazio, devido à ausência de elementos cruciais dessa filosofia comumente enfatizados pelos economistas. Essa ilustração consiste no exame de duas obras que tratam da história do liberalismo, publicadas por autores brasileiros: a Introdução à Filosofia Liberal de Roque Spencer Maciel de Barros e o Liberalismo: antigo e moderno de José Guilherme Merquior.

Maciel de Barros, preocupado com o fenômeno totalitário, busca as bases filosóficas de doutrinas políticas que tratam cada indivíduo como um valor em si mesmo, em contraste com teses que dissolvem esse indivíduo em alguma noção coletivista, transformando-o em mera ferramenta política. Merquior, por sua vez, pretendendo conciliar liberdade e um papel ativo para o estado, trata das contribuições de filósofos políticos que classifica como liberais.

Essas obras, a despeito da erudição de seus autores, retratam a evolução da filosofia liberal como empreitada virtualmente ortogonal ao pensamento econômico liberal, raramente indo além da discussão de valores e intenções. Como consequência, o liberalismo nelas representado é de fato esvaziado. A sua leitura deixa a impressão de que quase qualquer doutrina além de algo explicitamente ditatorial poderia ser incluída, já que poucos autores rejeitariam a liberdade como valor abstrato. Se por um lado a liberdade dita econômica é rejeitada ou isolada e diminuída, podemos encontrar com razoável frequência nesses livros discussões estranhas ao pensamento liberal, além da repetição de várias críticas equivocadas ao liberalismo “economicista” emprestadas de conservadores e socialistas. Embora rejeitem o liberalismo economicista, não é propriamente a economia que rejeitam, mas o próprio liberalismo, pois não deixam de defender teses econômicas criticadas por economistas liberais.

A expressão máxima desse esvaziamento do liberalismo se manifesta na classificação de Keynes como um liberal, naturalmente baseada nos valores esposados por esse autor, não no exame dos fundamentos filosóficos ou das consequências das políticas e instituições que favorece. Argumentaremos que o descaso pelo exame das consequências não intencionais da ação é responsável, nas obras desses dois autores, pela profusão de liberalismos iliberais nelas retratados.

Para discutirmos o liberalismo anti-economicista expresso nos dois livros citados, será necessário antes examinaremos mais de perto alguns fundamentos da liberdade neles ignorados, que servirão como base para a crítica subsequente.

Alguns Fundamentos da Liberdade

A importância das consequências não intencionais das ações se relaciona ao reconhecimento da existência de regularidades no que diz respeito aos fenômenos sociais. Na política, em particular, isso implica em não redução à moral, pois a desconsiderações das leis pertencentes às ciências sociais pode levar ao fracasso das medidas propostas, cujos defensores recuariam diante das consequências do que defende, ainda que estes sejam guiados por valores aceitos.

Essa conclusão, por sua vez, se choca com a arraigada crença na relação entre intenções e resultados. A dominância dessa crença é atestada em toda parte, desde os ditadores que não reconhecem regularidades econômicas que restrinjam sua vontade política e atribuem o fracasso de seus planos à ação de sabotadores até os roteiros de filmes nos quais os sofrimentos dos povos são associados a reis malignos, substituídos por heróis bem-intencionados, que restauram a harmonia. Raramente a arte retrata idealistas arruinando a sociedade, como seria possível se separarmos intenções de resultados. Como nota Hayek (1982, p. 20), pelo menos desde a antiguidade clássica nos acostumamos de forma equivocada a opor o natural ao artificial, este último definido como fruto da mente consciente. Essa dicotomia pré-evolucionária exclui, por definição, os “frutos da ação, mas não da intenção humana” estudados por Adam Ferguson e demais iluministas escoceses e que constituem o material básico das ciências sociais.

Na política, a negligência das consequências não intencionais se manifesta na crença de que o poder seria uma ferramenta neutra, à espera de manipulação por indivíduos ou classes corretas, que mudariam o histórico de fracassos que marcam a ação estatal. Os males da política, na concepção rival, são por sua vez explicados em termos da própria “lógica da ação coletiva”, se tomarmos emprestado uma expressão oriunda do imperialismo economicista. Sem o exame dessa lógica, no entanto, não é possível avaliar em que grau algo é compatível com o liberalismo apenas pelo exame de intenções.

Considerando esse conflito de visões, o progresso das ciências sociais foi de fato marcado pela oposição por parte daqueles que explicam os fenômenos sociais a partir da moral. Nesta seção, exporemos e criticaremos algumas manifestações do moralismo que informa o liberalismo anti-economicista, tal como ocorreram ao longo do desenvolvimento da ciência econômica, para na sequência argumentar que, além do estudo das relações entre meios e fins, o liberalismo bem fundamentado também se apoia em uma concepção falibilista sobre o conhecimento humano.

A evolução do pensamento econômico pode ser resumida como uma longa marcha de libertação do moralismo. Da história da disciplina, mencionemos apenas três tópicos, relevantes para nossa discussão: valor, auto-interesse e sistemas econômicos. O primeiro, a teoria do valor, revela uma lenta transformação: de uma noção relativa à natureza dos bens e justiça das trocas, o valor passou a se referir à importância que diferentes pessoas em diferentes circunstâncias atribuem a porções concretas dos mesmos bens para a realização dos seus objetivos. Tomando um exemplo concreto, embora no primeiro sentido a água tenha um valor abstrato para a humanidade maior do que um diamante, no segundo sentido uma garrafa de água no deserto pode tem valor maior do que às margens do Amazonas. O não entendimento deste último sentido atrasa até hoje a compreensão sobre os efeitos de diferentes políticas alternativas. Na área de saúde, alguém que afirma que “a vida não tem preço” e, portanto, não está sujeita a considerações econômicas naturalmente não gasta a totalidade de seu salário em remédios e consultas médicas, mas compara usos alternativos dos recursos, como implicado pela noção que rejeita. No entanto, ignorar os custos de oportunidade das políticas, comumente arcados por outros, de alguma forma escapa ao seu radar moral.

As confusões geradas pela mistura desses dois sentidos do valor são antigas. A noção aristotélica de que trocas envolveriam a igualdade entre valores atrasou o desenvolvimento da teoria econômica por dois milênios. Esse erro se manifestou tanto na teoria de Bastiat (1864 [1849]) sobre a justiça envolvida na igualdade entre serviços prestados quanto na teoria do valor trabalho empregada por Marx (1909 [1867]) para fundamentar sua teoria da exploração. A distinção presente em Platão entre os usos legítimo (troca de bens) e ilegítimo (geração de dinheiro pelo dinheiro) da moeda, por sua vez, ecoou tanto nos esquemas de circulação de mercadoria de Marx quanto na condenação medieval do empréstimo a juros como um ato pecaminoso.

Mas, conforme a civilização se desenvolveu e o papel crucial da taxa de juros para a coordenação das decisões descentralizadas de poupança e investimento se tornou mais evidente, o antigo instinto moral que associa comércio com trapaça se tornou disfuncional. Afinal, o defensor da imoralidade da usura teria que conviver com a conclusão de que seguir sua moral implicaria na morte da maioria da população, pois esta só pode se manter graças a produtividade proporcionada pela complexidade crescente da estrutura do capital, coordenada no mercado de fundos emprestáveis através da taxa de juros, que se altera conforme mudam os fundamentos da demanda e oferta de fundos emprestáveis. A mesma coisa ocorre, de modo generalizado, quando consideramos a repulsa moral suscitada pelo lucro e a contrastamos com a função coordenadora exercida pela detecção de diferenças entre valor e custo de oportunidade dos recursos. Nenhuma forma mais concreta e visível de ação faria tanto pelo bem-estar da população menos favorecida do que a abstrata e desprezada arbitragem de uma diferença de preços de um bem em diferentes localidades, a despeito do escasso entendimento desse fato.

A reação moralista ao desenvolvimento da teoria econômica se manifesta de forma mais explícita na discussão de seus pressupostos comportamentais. Como ciência de meios, a economia apenas supõe que, devido a existência de recursos limitados, os agentes sempre se deparam com necessidades insatisfeitas, ou que o ser humano sempre tem objetivos na vida, sejam quais forem eles, ou tecnicamente, o axioma de não-saciedade: é sempre possível imaginar alguma alternativa preferível à situação presente. Entretanto, os detratores moralistas da teoria, originalmente conservadores e mais tarde socialistas, insistem no mito do Homo economicus, sugerindo defesa do egoísmo em Smith, apego materialista ao vil metal e adesão da chamada pig-philosogy à filosofia moral utilitarista, interpretada como defesa hedônica de prazeres imediatos.

Embora na metade do século XIX J. S. Mill tenha associado a dismal science ao impulso de obtenção de riqueza material, sem porém jamais negar a existência de outro tipo de atividade ou defender qualquer ideia parecida com a caricatura descrita acima, afinal os economistas lideraram praticamente sozinhos o combate a imoralismos como a escravidão ou exploração colonial, desde o final do mesmo século, a teoria econômica explicitamente reafirma que nada tem a dizer a respeito da natureza dos fins, nem supõe qualquer doutrina psicológica ou ética. Mas, mesmo se admitirmos a caricatura usual do utilitarismo, apenas alguns economistas, em especial na Inglaterra, foram influenciados por Bentham. De toda forma, a teoria trata da adequação de meios a fins, não do valor moral destes últimos.

Uma das consequências da evolução da teoria é tornar sem sentido a distinção usual entre fins econômicos e não econômicos. Como a economia deixou de se referir a objetos particulares para tratar da escolha quando existe escassez, não existem fins estritamente econômicos, mas aspectos econômicos de qualquer fim, caso ocorra escassez. Atividades artísticas têm aspecto econômico, se o músico tiver que alocar tempo entre o estudo de escalas e peças musicais. O mesmo ocorre com atividades religiosas, se o monge tem que escolher entre rezar ou cuidar das hortaliças do monastério. Nos dois exemplos, existem aspectos econômicos de atividades classificadas como não econômicas. Afastado os equívocos derivados da divisão errônea entre fins econômicos e não econômicos, o próprio isolamento do “liberalismo economicista” perde seu sentido.

A hipótese de auto-interesse na economia antiga, por sua vez, não deve ser interpretada como uma apologia ao egoísmo. Buchanan e Brennan (2000) notam que na economia institucional de Smith (1980) buscam-se instituições compatíveis com a natureza humana, esta nem angelical, nem demoníaca. Prosperidade ou pobreza são explicadas em termos da atuação de um mesmo indivíduo imperfeito sob instituições que incentivam atividades produtivas ou predatórias. O referencial smithiano convida o leitor a um teste de robustez institucional, que indaga em que medida as normas de uma sociedade resistem a invasão de uma mutação, gerando um equilíbrio evolutivamente estável, se tomarmos emprestado o conceito da teoria dos jogos evolucionários. No caso, um lobo entre cordeiros prosperaria ou seria contido? Um arranjo institucional viável dependeria da inexistência de lobos? Para Smith, Say e Bastiat, instituições liberais aumentam o ganho esperado da atividade produtiva, alterando em equilíbrio a proporção entre produção e predação.

O terceiro e último elemento do ataque moralista ao modo de pensar do economista que mencionaremos fornece um contraste nítido com o programa descrito acima: em vez de comparar arranjos institucionais rivais, encontramos a prática de identificação da realidade com o sistema ideal defendido pelos advogados de sistemas rivais. Se o mundo real - e os males que o acompanham - puderem ser identificados automaticamente com o sistema ideal proposto pelo oponente, a mera denúncia desses males dispensa a discussão de hipóteses alternativas sobre quais seriam suas causas. Afinal, o mundo real perde para qualquer modelo idealizado. O valor retórico dessa estratégica é testemunhado pela grande quantidade de suas manifestações. A caracterização do laissez-faire como inação, a distinção esquerda-direita definida pela distância da opinião do analista, os conceitos de capitalismo, globalização e neoliberalismo são algumas variações desse tema. Se antes de Marx os economistas contrastavam liberalismo, intervencionismo e socialismo segundo diversos critérios, como o grau de descentralização ou de respeito à propriedade privada, a substituição desses tipos abstratos pela identificação da realidade com a noção de modo de produção capitalista impulsionou o declínio da abordagem comparativa. Usuários do termo globalização atribuem a pobreza dos países mais fechados ao comércio exterior e ao mal desempenho de estados mais interventores ao neoliberalismo.

Comparar teórica, histórica, estatística e filosoficamente o desempenho de sistemas institucionais rivais é a tarefa diária dos cientistas sociais, mas, sob o olhar daqueles para os quais basta se apiedar dos males do mundo, esse trabalho é confundido com indiferença. Exemplo dessa confusão entre ciência e sentimento é a frequente afirmação de que Hayek não teria nada a dizer sobre pobreza. Contudo, a obra de Smith poderia ser renomeada “Investigação sobre a Natureza e as Causas da Pobreza das Nações” praticamente sem alteração alguma em seu conteúdo. Identificar a sensibilidade diante da pobreza com posturas políticas baseadas em transferências diretas comandadas pelo estado bloqueia por definição a comparação institucional.

Um liberalismo que não ignora os resultados das ciências sociais deve, por fim, considerar outro fundamento central dessa doutrina, o falibilismo. Uma longa tradição de economistas, como Turgot, Smith, Dunoyer, Bastiat, Courcelle-Seneuil, J. S. Mill e Hayek, bem como filósofos ingleses, baseiam seu liberalismo na ideia de que o progresso na ciência, educação, debate político, inovação e coordenação das atividades requer competição entre pontos de vista rivais, devido ao caráter falível de qualquer opinião em particular. Hayek (1978, p. 29), por exemplo, afirma que o argumento em favor da “liberdade individual repousa principalmente no reconhecimento da ignorância inevitável de todos nós a respeito de muitos dos fatores dos quais dependem as realizações de nossos fins e bem-estar.” Todo o seu programa de pesquisa é construído em torno do conceito de conhecimento limitado e falível (HAYEK, 1978).

Até os anos trinta do século vinte, o falibilismo estava no centro da concepção de mundo do economista, que identificava na ausência de barreiras legais à entrada a essência da competição: se não podemos ter certeza sob qual é a melhor forma de prestar um serviço, devemos sempre permitir que outras pessoas discordem das práticas presentes e tentem algo diverso, potencialmente melhor.

No século vinte, o falibilismo constitui a mensagem central da filosofia de Popper, segundo o qual a racionalidade não depende da capacidade de estabelecer resultados científicos definitivos, mas da disposição de aprender com os erros. Como na teoria econômica, a visão de Popper requer livre entrada no mercado das ideias, ou liberdade de pensamento, além da competição fornecida pela crítica, como ingredientes conjuntamente necessários para um ambiente institucional favorável ao progresso da ciência. Esse modelo comum, que envolve conjecturas e refutações, ou livre entrada empresarial e correção de erros pela obtenção de lucros e prejuízos, foi generalizado como um modelo evolucionário de aprendizado por tentativas e erros ou variação e seleção1.

A expressão evolucionária desse modelo de aprendizado, no entanto, enfrenta resistência em diversas frentes, do conservadorismo ao socialismo. A história do liberalismo é de fato marcada por uma concepção falibilista ou evolucionária da racionalidade e enfrenta resistência de duas fontes, novamente identificadas por Hayek (1988): o instinto e a razão.

Tanto a moral tribal, que se rebela contra as normas impessoais próprias de uma ordem abstrata e que possibilitam o florescimento da humanidade por processos descentralizados de aprendizado, quanto uma concepção ingênua de racionalidade, que dispensa esses processos descentralizados em favor da crença de posse de conhecimento incontroverso, dão suporte a crenças políticas coletivistas.

Uma história do liberalismo, em conclusão, deveria incluir o estudo das teorias a respeito do funcionamento dos mercados e governos e dos pressupostos sobre a evolução do conhecimento supostos por essas teorias. Boa parte das ideias encontradas nas duas obras que estamos prestes a examinar, por ignorarem as contribuições dos economistas ao liberalismo, não apenas deixam de discutir aspectos centrais dessa doutrina como também repetem várias das reações iliberais a ela que mencionamos nesta seção.

O Liberalismo segundo Roque Spencer Maciel de Barros

Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), filósofo e jornalista, escreveu sobre liberalismo e educação pública. Como pesquisador, atuou como professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e da Faculdade de Educação, ambas na Universidade de São Paulo. Como jornalista, contribuiu para O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde2.

Sua história do liberalismo (BARROS, 1971) se concentra nas bases filosóficas que informam o pensamento liberal ocidental. Esse livro, por sua vez, deve ser considerado em conjunto com uma coletânea de ensaios sobre o mesmo tema (BARROS, 1993) e seu livro mais importante, sobre o fenômeno totalitário (BARROS, 1990).

Descrente na existência de uma doutrina liberal geral, Barros lista uma sucessão histórica de liberalismos. Da primeira fase do desenvolvimento dessa doutrina, dita clássica, o autor lista quatro etapas formativas. Da primeira, o liberalismo religioso, Barros trata de Lutero e Calvino. Da segunda, o liberalismo político, Locke e Montesquieu ocupam papel de destaque. Da terceira, o liberalismo econômico, temos algumas observações sobre conciliação entre egoísmo e bem comum em Mandeville e Smith. Da última, o liberalismo ético, encontramos discussões sobre Kant e Rousseau.

A obra inteira, na verdade, trata dessa última etapa, ponto culminante e essência mesma do liberalismo, na opinião do autor. Nos termos do próprio Barros (1971, p. 243), “...para uma visão liberal, o homem é sagrado, seja essa sacralidade função de sua origem divina, seja decorrência de sua própria liberdade, que o transforma num ser original no mundo e em fundamento dele”.

A identificação do indivíduo como um fim em si mesmo assume papel central devido ao próprio programa de pesquisa de Barros - o estudo do fenômeno totalitário, fenômeno que nega o indivíduo em favor de noções coletivistas. Em sua história do liberalismo, esse contraste marca sua segunda fase, rotulada de liberalismo romântico. A valorização do indivíduo e da expressão dessa individualidade é explorada nas obras de Rousseau e Fichte, liberais no sentido ético, mas hostis a instituições políticas liberais. Ainda sob o rótulo liberalismo romântico, Barros trata de ideias políticas de Burke, Humboldt, Constant e Tocqueville, revelando simpatia pela tese de necessidade de elites aristocráticas como salvaguarda da liberdade.

Na sequência, o utilitarismo de J. S. Mill e a sociologia evolucionária de Spencer são criticadas e associadas a uma terceira fase, cientificista, do liberalismo. Como não reconhece nenhum fundamento do liberalismo que não seja ético, esse cientificismo não é contrastado com alguma concepção alternativa de ciência que o autor favoreça. Sobre a quarta e última etapa, o liberalismo moderno, o autor discute a crítica de Popper ao historicismo (mas não seu falibilismo) e contrasta o “neo-liberalismo” de Mises e Hayek com as idéias de Keynes, comparação que revela a rejeição moral ao laissez-faire e preferência por um sistema dirigido que garanta o respeito aos indivíduos.

Ao restringir o liberalismo à dimensão ética, Roque Spencer Maciel de Barros incorre nos erros apontados na seção anterior: incompreensão sobre os demais fundamentos da liberdade, exame de meras intenções em substituição à análise das consequências de diferentes políticas e instituições, identificação caricata dessa última análise ao hedonismo, identificação do mundo real e seus males com o sistema ideal do liberalismo e preferência por perspectivas cujas consequências implicam em coletivismo. Como resultado, temos um liberalismo esvaziado de conteúdo. Nesta seção, depois de documentar a rejeição do liberalismo dito economicista, selecionaremos três pontos para ilustrar esse esvaziamento: socialismo, intervencionismo e liberdade de opinião.

A concepção de liberalismo do autor é detalhada em seus Estudos Liberais. Para Barros (1992, p. 92), o liberalismo não seria uma ideologia justamente por não se basear em teorias, mas em valores. Essa postura, como mostraremos, será responsável pelo esvaziamento de seu liberalismo, pois não existe análise sem teoria e a rejeição de teorias econômicas de cunho liberal implica apenas em adoção de teorias rivais. Ao incorrer na armadilha colocada pela distinção de Berlin (1978) entre ouriços que explicam tudo em termos de um único princípio e raposas ecléticas, nosso autor se filia a uma postura filosófica pragmática, paralela àquela adotada por Keynes: para Barros (1992, p. 103), o compromisso do liberalismo seria apenas com valores éticos, não com princípios teóricos. Sendo assim, a adesão ao “capitalismo”, por exemplo, seria de natureza pragmática e empírica, ao passo que o respeito ético ao indivíduo demandaria um capitalismo “humanizado e corrigido”.

Desse modo, a ausência de compromisso com explanações teóricas de cunho liberal se faz acompanhar de rejeição a mercados livres. Isso nos leva a um ponto central do liberalismo de Barros e Merquior: a rejeição da tese de indivisibilidade das liberdades, tese essa que afirma que existem relações de dependência entre liberdade dita econômica e liberdades de pensamento e participação política. Assim como mais tarde fará Merquior, Barros (1992, p. 102), invoca a distinção de Croce entre o liberalismo autêntico e o mero “liberismo”, afirmando que “não há uma vinculação histórica entre o liberalismo, como concepção de vida, e o liberalismo econômico ou o sistema que se convencionou chamar de capitalismo e que nem há uma vinculação lógica necessária entre ambos, como se um estivesse analiticamente contido no outro)”.

Embora essa tese seja central para Barros e Merquior, infelizmente eles a adotam sem dedicar espaço para discuti-la, pois isso exigiria discutir as teorias econômicas que rejeitam. Sendo assim, trataremos aqui apenas da sua identificação em seus livros e das consequências de sua adoção para a doutrina liberal.

A falta de familiaridade com teorias econômicas liberais afeta a própria análise do totalitarismo do autor. Sua avaliação do debate sobre o cálculo econômico socialista é bastante superficial. Para Barros (1971, p. 262), o planejamento central socialista seria perfeitamente factível. Contra o argumento de Mises (2017), Barros (p. 161) utiliza, no plano histórico a própria existência da União Soviética e estimativas do PIB soviético na década de cinquenta e no plano teórico invoca a autoridade das opiniões de Schumpeter e Barone sobre o tema3.

Mas, se o socialismo fosse viável economicamente, de modo que a escolha entre liberdade e segurança fosse real e não o abandono de liberdade por mera promessa de segurança, não seria possível explicar de maneira convincente a violência que acompanha um regime totalitário. Se houver demanda pronunciada por segurança e o planejamento central for viável, seria bastante concebível o apoio popular a regimes centralizados. Mas quando uma ideologia implica em apego a objetivos inalcançáveis, como no regime soviético, caracterizado por Malia (1994) como uma “partocracia ideocrática”, a violência se torna parte integrante do regime, como consequência não intencional do apego as teses ideológicas refutadas pelos fatos e atribuídas a sabotadores que devem ser eliminados. A alternância descrita por Malia no regime soviético, entre fases que repetem a economia de guerra e a NEP, isto é, entre iniciativas de coletivização seguidas de fracasso e tentativas de reformas que tentam relaxar o controle central, é explicada por Boettke (2001) em termos do próprio argumento de Mises (2017), argumento este baseado na compreensão da complexidade do problema alocativo. Sem levar a sério as teses que explicam por que planos quinquenais não contemplam essa complexidade e o que levou ao declínio soviético no período, resta a Barros reduzir, de forma pouco convincente, a violência totalitária a falta de adesão a princípios morais liberais.

A redução de debates ao contraste entre o bem e o mal também marca a análise do papel do estado na economia. É marcante no livro de Barros o estratagema salientado na seção anterior de identificação da realidade com o sistema rival, seguido pela acusação de indiferença aos males do mundo por parte de seus defensores. No caso, ao escolher entre “liberismo” e intervencionismo, Barros repete a estratégia de Keynes (2010) de reduzir o primeiro ao laissez-faire interpretado como inação, independente da matriz institucional vigente. Para um liberal, pelo contrário, laissez-faire significa rejeição das instituições intervencionistas vigentes, que impedem a iniciativa individual e que constituem a razão última dos problemas econômicos. No seu emprego retórico mais comum, porém, é transformado em seu oposto: inação e justificativa das instituições presentes.

No texto de Barros (1971, p. 223), a tentativa de identificar liberalismo econômico e inação e por conseguinte indiferença se inicia com a caracterização da sociologia evolucionista de Spencer como defesa de um “darwinismo social”. Para Barros (1971, p. 248), “Entregues ao laissez-faire, os fortes tenderiam, na verdade, a devorar os fracos, o que poderia justificar-se nos quadros de uma teoria do ‘darwinismo social’, mas nunca nos de uma filosofia liberal preocupada em definir o homem como um fim em si mesmo”. Ainda segundo Barros (1971, p. 229), o “liberalismo cientificista” de Mill e Spencer, ao longo da evolução do “capitalismo”, teria passado a servir como justificativa do statu quo ao restringir a presença do estado a tarefa de guardião da justiça, inibindo sua ação nos assuntos econômicos4. A associação entre mundo real e laissez-faire é ainda reforçada pela afirmação (p. 249) de que Grande Depressão de 1929 teria mostrado aos liberais que seu ideal não funcionaria, não havendo mecanismo automático capaz de reequilibrar a economia. Novamente, o argumento supõe tacitamente que antes da crise não haveria intervenções na economia, ignorando os diagnósticos liberais sobre o tema.

Preso ao plano das intenções, o autor não fornece nenhuma indicação sobre o que seria concretamente uma sociedade liberal “humanizada e corrigida”. Esse problema é composto pelo reconhecimento, algo incoerente por parte de alguém que isola o liberalismo da ciência, de que Keynes seria ingênuo ao supor que intervenção política não afetaria a natureza da atividade econômica (p. 97) e de que na verdade o poder apresenta tendência à expansão (p. 253). O estudo desses fenômenos, amplamente estudados pela teoria econômica liberal que menospreza, inevitavelmente modificaria os limites que o autor pretende impor à doutrina liberal. Independente de acreditar na viabilidade do planejamento central às vésperas da dissolução do império soviético e na capacidade de administrar demanda agregada às vésperas do declínio do keynesianismo, o autor inibe a discussão de questões substantivas sobre a comparação entre regimes dirigidos e descentralizados ao reduzir à moral tais questões. Em contraste com o debate liberal entre doutrinas rivais, temos um contraste maniqueísta entre o bem e o mal que o liberalismo pleno tantas vezes denunciou.

A recusa em considerar as consequências das ideias, e não apenas intenções, pode ser ilustrada ainda pela atitude do autor em relação à defesa da liberdade de opinião feita por John Stuart Mill (2000). A base do argumento milliano é o falibilismo. Se o mundo for complexo, de modo que é possível que nossas crenças sejam errôneas ou incompletas, a única forma de avançar o conhecimento seria por meio livre expressão de opiniões opostas e diálogo crítico.

Barros, em contraste, repete a usual manobra de reduzir o argumento ao utilitarismo e este a uma defesa de prazeres inferiores, ignorando o uso dessa filosofia como uma das inspirações ao desenvolvimento de um modelo de ciência social fundada na ação humana. Desse modo, o autor não é capaz de compreender o argumento de Mill de que opiniões verdadeiras, parcialmente verdadeiras e até mesmo falsas não deveriam ser sujeitas à censura. Levado pela sua repulsa moral ao utilitarismo, Barros (1971, p. 203) classifica o argumento de Mill como trivial e justificativa tosca (p. 209), sem ser capaz de replicar o argumento ou oferecer alguma crítica a ele. Para Barros (1971, p. 210), “... Mill é pouco convincente quando argumenta, altamente sugestivo quando enuncia os seus princípios: é que a força e elevação destes não vêm de sua eventual utilidade, mas de seu conteúdo ético, do qual o utilitarismo algum pode dar conta.”

Tampouco o falibilismo de Popper, crucial para a análise política desse autor, é discutido no texto de Barros. Mas, novamente, a menos que não tenha importância alguma a possibilidade de que governantes em geral e ditadores totalitários em particular possam nutrir falsas crenças, o liberalismo não pode prescindir da discussão filosófica sobre o crescimento do conhecimento. Aqui também o desprezo pelos fundamentos da liberdade gera um liberalismo que pode acomodar sua antítese.

O Liberalismo segundo José Guilherme Merquior

José Guilherme Merquior (1941-1991) foi um intelectual com formação em Direito, Filosofia, Diplomacia, Letras e Sociologia, sendo esta última uma das áreas nas quais obteve doutorado, na London School of Economics. Trabalhou como diplomata em vários países e publicou trabalhos sobre diversos assuntos, entre os quais o liberalismo.

Vinte anos depois da história do liberalismo que estudamos na seção anterior, Merquior publica um livro sobre o mesmo tema, seu O Liberalismo: antigo e moderno. Como também propõe um liberalismo sem “liberismo”, o texto de Merquior apresenta muitas características em comum com o texto de Roque Spencer Maciel de Barros, a despeito das diferenças ideológicas entre ambos. De fato, Barros (1992, p. 128) recomenda o estudo da obra, “ainda que a atitude do autor nos pareça, sob alguns aspectos, mais social-democrática do que liberal.” A desconsideração das contribuições dos economistas ao liberalismo, com efeito, é responsável pela recorrência dos problemas que indicamos na seção anterior, algo que reforça a tese deste artigo sobre o liberalismo anti-economicista.

O livro é estruturado da seguinte maneira. Depois de apresentar os conceitos negativo e positivo de liberdade, o texto procede com uma análise histórica da doutrina liberal. Inicia com raízes no Iluminismo, destacando Montesquieu e Rousseau e procede com a identificação de um período clássico, cuja discussão gira em torno de três temas: direitos humanos, constitucionalismo e teoria do crescimento econômico, tal como historiado pelos iluministas escoceses e teorizado pelos economistas clássicos britânicos. Nesse período, são comentados autores como Locke, Constant, Guizot, Tocqueville, J. S. Mill, Mazzini e Herzen. Na sequência, o liberalismo passa por um período de reação contra a expansão da representação democrática. Dessa era conservadora, entre outros autores, são mencionadas idéias de Bagehot e Spencer na Inglaterra, Sarmiento e Alberdi na Argentina e Max Weber na Alemanha. O liberalismo novo, por fim, depois do desafio ao laissez-faire proposto por Keynes, é caracterizado pelo contraste entre o “neoliberalismo” de Mises e Hayek e o liberalismo social defendido por diversos autores e com o qual Merquior se identifica5.

Como Barros, também Merquior utiliza Croce para isolar a filosofia liberal de doutrinas econômicas liberais. Ao rejeitar a análise das relações entre meios e fins em favor de declarações de intenções, encontramos mais uma vez o hábito pouco liberal de substituir a análise comparativa de teorias pela denúncia moral de espantalhos, como as associações entre anti-intervencionismo e darwinismo social e entre teoria econômica e hedonismo. De fato, para Merquior (1991, p. 141), “Croce salientou que, enquanto o liberalismo é um princípio ético, o liberismo não passa de um preceito econômico que, tomado equivocadamente por uma ética liberal, degrada o liberalismo a um baixo hedonismo utilitário”.

Embora no prefácio da obra (p. 11) Roberto Campos tenha afirmado que Merquior tenha se tornado cada vez mais liberista, o exame do livro claramente revela sua rejeição das contribuições dos economistas ao liberalismo (FELIPE, 2015). Como consequência, encontramos também na obra de Merquior grande espaço dedicado a apresentar, como se fossem liberais, autores estranhos a essa filosofia política. É comum encontrar na obra expressões como “liberalismo autoritário antidemocrático” (p. 92), “liberalismo de esquerda” (p. 96; p. 155), “liberalismo social” (p. 101; 152; 161), “liberalismo conservador” (p. 118) e “socialismo liberal” (p. 159). Ao mesmo tempo, boa parte dos autores propriamente liberais não são sequer mencionados ou suas ideias são distorcidas pela repetição de críticas emprestadas do pensamento conservador e socialista, como por exemplo (p. 91) a menção a “exaltação liberista do homo oeconomicus professada por economistas como Say e Bastiat”.

De modo coerente com seu liberalismo moral, centrado em intenções, o autor inicia sua obra rejeitando a existência de fundamentos da liberdade. O estudo do liberalismo deveria, portanto, ser uma empreitada histórica, diríamos quase historicista, revelando os diferentes “discursos” liberais ou formas concretas de manifestações da liberdade. Em um resumo feito pelo próprio Merquior (1991, p. 148-9)

O liberalismo clássico desdobrou-se numa série de discursos conceituais. Os teóricos liberais falaram as línguas dos direitos naturais (Locke e Paine), do humanismo cívico (Jefferson e Mazzini), da história por estágios (Smith e Constant), do utilitarismo (Bentham e Mill), e da sociologia histórica (Tocqueville). Com mais discursos, o liberalismo clássico progrediu do whiguismo - a mera exigência de liberdade religiosa e governo constitucional - para a democracia, ou autonomia com uma ampla base social.

Inicialmente, o discurso liberal se identifica com ausência de coerção, mas, depois, se refere a materialização de aspirações ou liberdade de realização pessoal. Sendo assim, a distinção entre liberdade positiva e negativa é apresentada, mas, na sequência, minimizada (p. 26), pois a intenção do autor ao longo do livro é defender a tese de que um liberalismo renovado deveria centrar sua atenção na participação democrática e intervenção estatal para corrigir problemas atribuídos à realidade interpretada como capitalismo laissaz-faire.

É interessante notar que o subtítulo da obra revela a intenção de inverter a clássica distinção de Benjamin Constant entre liberdade dos antigos e dos modernos. Para o autor francês, a liberdade antiga, entre os gregos, significava participação nas decisões da polis, ainda que tais decisões pudessem transformar os cidadãos em escravos no que diz respeito a qualquer outra atividade, em contraste com o conceito moderno, que diz respeito à proteção dos indivíduos da coerção. O autor brasileiro, por outro lado, pretende inverter essa ordem, incorporando no futuro do liberalismo a “liberdade para” por meio de ação estatal fundada em expansão da democracia, sem abdicar da “liberdade de” que marca seu passado.

Minimizar a diferença entre as definições positiva e negativa de liberdade, porém, equivale de fato à evasão da discussão do conteúdo da tese central do autor. Como comenta Machlup (1969, p. 126):

Uma definição de liberdade que nega a diferença entre não interferência e poder efetivo (ou bem-estar ou satisfação de necessidades) destrói o significado essencial da palavra “liberdade”. Se for definida como a capacidade ou oportunidade de conseguir o que se deseja, estamos impedidos de analisar a importante questão de saber se o desenvolvimento dessa capacidade ou oportunidade é melhor servida pelo restricionismo ou pela não interferência, pelo controle coletivo ou pela liberdade individual.

Para defender a viabilidade de seu projeto, compatibilizando as duas definições, o autor deveria, portanto, ir além de seu liberalismo ético e comentar as teses que estabelecem relações entre liberdade econômica, política e intelectual, tarefa bloqueada pela sua abordagem ou ainda dar alguma indicação concreta dos meios que imagina que podem ser utilizados para atingir seus objetivos. Mas, assim como Barros, Merquior identifica e adota a tese favorável à separabilidade entre liberdades, sem argumentar em seu favor.

Adotada tal tese, resta a Merquior, assim como a Barros, reduzir o debate político a um conflito moral. Como consequência, nos deparamos novamente com as mesmas objeções que socialistas e conservadores historicamente fizeram ao pensamento liberal. Como já listamos essas reações na obra de Barros, basta aqui mencioná-las brevemente para enfatizarmos uma delas, a comparação entre Keynes e Hayek.

Merquior restringe o pensamento econômico clássico a autores britânicos e ao estudo do fenômeno do crescimento, salientando a antiga definição materialista da disciplina que prevalecia até Marx, reforçando o mito do Homo economicus que sugere egoísmo e preocupação exclusiva com ganhos materiais, bem como uma relação necessária entre modelo de escolha da teoria econômica e ética utilitarista (MARX, 1909)6, interpretada como desprezo por valores mais elevados.

O vulgar liberismo pode então ser isolado como um “discurso” acessório pouco importante do liberalismo. Sendo assim, nada é dito no livro sobre a teoria econômica moderna, que explicitamente se define como uma ciência de meios, que tornou ociosa essa crítica moralista ou sobre as contribuições dos economistas liberais franceses dos séculos dezoito e dezenove, que sistematicamente exploraram a lógica do funcionamento da ação coletiva ou mesmo a própria análise comparativa de instituições ou sistemas econômicos feita pelos autores britânicos, análises essas que tornariam mais complicada a tarefa de isolar a política de considerações econômicas.

Considere, como exemplo, a relação entre centralização e violência política apontada por Adam Smith (2015) em sua crítica aos planos centrais do “homem de sistema”, que ignoram a complexidade dos fenômenos sociais e o caráter falível do conhecimento.

Considere ainda alguns exemplos das inúmeras análises que contrariam a compartimentalização das liberdades efetuadas pelos economistas liberais franceses. Turgot e Say desenvolvem uma análise do estado em termos da lógica da ação coletiva, que explica por que planos governamentais geram resultados opostos ao pretendidos. Destutt de Tracy, ao incorporar essa análise em seu trabalho multidisciplinar, transforma o despotismo em consequência não intencional das demais formas de governo listadas por Montesquieu. Dunoyer, Charles Comte e Bastiat constroem uma teoria liberal da exploração, derivada da natureza humana e da lógica do poder não restrito, oferecendo uma interpretação da evolução histórica das instituições que nega boa parte das categorias analíticas marxistas até hoje predominantes. Storch constrói uma teoria interacionista e, portanto, não reducionista sobre a coevolução entre crescimento econômico e civilização. Courcelle-Seneuil e Molinari (2019) estudam as relações entre centralização de decisões políticas e desempenho econômico via o estudo da transmissão de conhecimento disperso. Os desdobramentos no século vinte dessa tradição liberal também são desprezados no texto de Merquior: Mises e sua crítica ao planejamento central e Buchanan e a análise da escolha pública merecem, cada um, um único parágrafo.

Ao ignorar a rica tradição interdisciplinar do liberalismo econômico, reduzindo-a ao moralmente desprezível liberismo, Merquior ao mesmo tempo recorre a categorias emprestadas de filosofias políticas e teorias econômicas rivais, como a interpretação marxista da história em termos de modos de produção e em particular o uso do conceito de “capitalismo”. A identificação automática de arranjos institucionais concretos ao sistema defendido por liberais, algo que já criticamos, também aparece na análise de Merquior, através do retrato do laissez-faire como defesa de inação, sem menção ao respectivo arranjo institucional ao qual a expressão se refere. Essa suposta indiferença moral à situação dos menos favorecidos, mais uma vez, é ilustrada pela sociologia de Spencer, identificada com darwinismo social.

Para o liberalismo não fragmentado, porém, questões como pobreza são interpretadas como fruto do próprio sistema econômico intervencionista (ou mercantilista), muitas vezes como consequência do uso bem-intencionado de doutrinas errôneas. Uma discussão racional dessas questões convidaria a elaboração de teorias sobre o funcionamento de arranjos institucionais diversos, que compare virtudes e vícios dos mercados e estados, acompanhada de estudos que relacionam grau de centralização existente em sociedades reais a indicadores sociais e econômicos. O liberalismo moral, em contraste, foge dessa custosa tarefa, transformando em tautologia a superioridade das posições que defende.

Quanto ao uso da teoria da evolução, a repulsa de Merquior não tem origem religiosa, embora ainda moralista, dependendo da nobreza das intenções atribuídas diferentes posturas políticas. De fato, para Merquior (1991, p. 163), um determinado autor filiado ao liberalismo social seria um “... evolucionista do ‘espírito’ - quer dizer, um evolucionista que dava ênfase à emergência de formas mais nobres de existência em vez de salientar a aspereza da sobrevivência dos mais aptos”.

Por fim, a relação entre falibilismo e a justificativa da liberdade, central em toda tradição liberal que vá além de intenções, de Turgot a Hayek, passando por Smith, Mill e Popper, também é menosprezada por Merquior. A avaliação da importância de Popper é novamente restrita à crítica ao historicismo, acompanhada da declaração (p. 180) de que a obra desse autor teria pouco a oferecer para a análise política.

A expressão máxima do esvaziamento da doutrina liberal promovida pela perspectiva moralista se revela, no entanto, na comparação entre Keynes e Hayek, sendo o primeiro eleito como o verdadeiro representante do liberalismo. Roberto Campos, restrito pelo seu papel de prefaciador da obra, observa (p. 11) que as observações de Merquior seriam “generosas demais no tocante a Keynes, e generosas de menos no tocante a Hayek”. Mas, se além das intenções democráticas de Keynes examinarmos tanto suas premissas filosóficas quanto as consequências das políticas que defende, a avaliação de Merquior não se sustenta.

Vejamos o que Merquior diz sobre os dois autores. Keynes teria dado ao “liberismo ortodoxo o golpe de morte com seu livro The End of Laissez-faire” (p. 174), salvando democracia do fascismo pela reforma do “capitalismo”. Sua teoria, centrada nos determinantes da renda7, teria refutado a lei de Say segundo a qual a oferta gera sua própria demanda, pois o dinheiro poderia ser entesourado. Por outro lado, Keynes é criticado pela desconsideração pela formação de grupos de interesse derivados da expansão estatal e pelo fato de que, no desenvolvimento do “capitalismo”, empresários não mais deixariam de gastar sua renda.

Ainda que não caiba aqui uma exposição de como o fracasso das receitas keynesianas, amplamente reconhecido a partir dos anos setenta, se relaciona com o uso de um modelo agregado não microfundamentado, crítica antecipada por Hayek nos anos vinte do século passado, precisamos fazer um comentário em relação a Say para ilustrar mais uma vez tanto a desconsideração pelas teorias liberais em uma história do liberalismo quanto a prática de identificação automática do mundo real com o sistema liberal. Logo após expor sua crítica a teses subconsumistas, Say (1841) afirma que a oferta não se transforma automaticamente em demanda se o capital não circular rapidamente. A explicação institucionalista de Say é, no entanto, muito mais próxima da teoria moderna: em uma economia intervencionista, os desequilíbrios gerados pela ação governamental geram incerteza e fazem com que ocorram incentivos para que os agentes escondam seu capital, protegendo-o de confisco e medidas arbitrárias, ao contrário de instituições liberais que induziriam transparência, para que os melhores usos empresariais do capital sejam descobertos. Curiosamente, o Brasil é dado como exemplo de oferta que não gera sua própria demanda, devido à presença de instituições iliberais.

Mas, em vez de examinar as explanações liberais de Say ocultadas pela retórica de Keynes, sobretudo aquelas que exploram as consequências econômicas (BUCHANAN, 1978) da centralização política e compará-las com as teses keynesianas, para Merquior (1991, p. 174) basta a declaração de intenções: Keynes seria um liberal por afirmar que “... o problema político da humanidade consiste em combinar três coisas: eficiência econômica, justiça social e liberdade individual”. No entanto, nenhum indício de como isso poderia ser feito é discutido na obra, além de alusões à expansão da participação política.

Dada a intenção de compatibilizar os três objetivos em uma discussão restrita à ética, não é de surpreender a antipatia de Merquior por Hayek, cuja abordagem interdisciplinar aponta inconsistências entre esses fins. Além da crítica hayekiana ao conceito de justiça social, desagrada a Merquior a crença de Hayek de nem toda iniciativa estatal possa ser justificada se for decidida de forma democrática.

Merquior não trata dos fundamentos do liberalismo presentes na obra de Hayek como um todo, mas comenta, de modo algo superficial, alguns aspectos dos últimos livros desse autor. Se para Roque Spencer Maciel de Barros a existência da União Soviética refutaria a crítica de Mises ao socialismo, para Merquior (p. 190) a existência do welfare state refutaria a tese do Caminho da Servidão, segundo a qual a expansão do estado levaria à tirania. Na mesma linha, Merquior (1991, p. 194) afirma o evolucionismo de Hayek (1978; 1982) seria inconsistente com sua defesa de mercados livres, pois instituições e práticas intervencionistas que rejeita também evoluíram.

Nos dois casos, porém, Hayek não oferece nenhuma profecia histórica, mas análise condicional sobre expansão do estado no primeiro e características de processos evolutivos, no segundo. Em nenhum lugar podemos encontrar em Hayek crença em melhorismo como consequência necessária de processos evolutivos. Se tomarmos o próprio Caminho da Servidão como exemplo, encontramos a descrição de um processo de seleção no qual os piores chegam ao poder. Uma análise apropriada das teses de Hayek de seus últimos livros deve assim considerar as características explícitas de um modelo evolucionário, como estabilidade do ambiente, natureza da variação e grau de centralização e rigor dos mecanismos seletivos. Embora Hayek tenha deixado essa análise incompleta em sua economia institucional, não se justifica de modo algum atribuir ao autor a defesa de tudo que tenha evoluído.

Enfatizar a necessidade de substituir uma rejeição meramente retórica de explanações evolucionárias em favor do exame do conteúdo concreto dessas explanações é crucial porque nos leva de volta a um importante fundamento da liberdade presente na obra de Hayek, o falibilismo. Merquior (1991, p. 194) afirma que “não espanta que Hayek tenha sido duramente criticado por causa da contradição entre o seu fideísmo evolucionista e o papel que atribui à razão crítica”. Ora, a tradição da epistemologia evolucionária que inclui o pensamento de Hayek e de Popper consiste justamente em uma crítica falibilista a um racionalismo ingênuo ou construtivista, que supõe capacidade de obtenção de conhecimento certo, independentemente da existência prévia de liberdade de opiniões (variação) e sujeição das hipóteses falíveis à crítica (seleção).

Assim como Barros não sabia o que fazer com a argumentação falibilista empregada por Mill em sua defesa da liberdade de opinião, Merquior (1991, p. 194) interpreta a necessidade de pluralismo apenas como expressão de individualismo moral. O argumento de Hayek de que uma sociedade livre requer concordância sobre regras básicas que possibilitam a convivência pacífica e não acordo sobre fins últimos é rejeitada por Merquior (1991, p. 195) como negação dos poderes da democracia para implementar políticas que reflitam valores superiores:

Quando todas as contas são feitas, a liberdade para Hayek, é no fundo, um instrumento de progresso; o mérito supremo do indivíduo “hayekiano” é contribuir (inconscientemente) para a evolução social. Essa opinião solapa o direito que assistiria a Hayek de ser um liberal na mesma liga que Locke e Humboldt. O neoliberismo, assim como o neo-evolucionismo, termina por minar o próprio âmago da ética liberal.

Para a perspectiva hayekiana, porém, seres humanos diferem em termos de conhecimento e objetivos, de modo que o aumento de assuntos que exigem a escolhas centrais uniformes implica em conflitos progressivamente mais intensos conforme cada decisão individual assume caráter político8. E a politização de cada aspecto da vida, como bem descreve Barros (1990), define o que vem a ser um regime totalitário.

O modo como Merquior trata as ideias de Keynes e Hayek reflete sua percepção sobre a compatibilidade delas com a filosofia liberal, sugerindo que a liberdade seria compatível um ativismo estatal maior. De qualquer modo, nossa discussão deixa claro que essa questão não pode ser restrita ao compromisso declarado com certos valores e objetivos, exigindo a investigação das premissas filosóficas adotadas, das teorias econômicas desenvolvidas e das consequências das políticas defendidas por cada um, tarefa que pela sua extensão foge ao objetivo deste texto.

Conclusão

A política é um fenômeno complexo, cuja análise requer a cooperação de teorias desenvolvidas por disciplinas de diversas áreas, convivência com explanações rivais e presença de elementos normativos. Embora a política envolva elementos morais ou éticos, se depara também com regularidades de natureza científica. Um recorte da área que exclua qualquer um dos elementos dessa análise resulta, portanto, em visão empobrecida. O liberalismo anti-economicista, em particular, ao rejeitar uma ciência que estuda a relação entre meios e fins, perde de vista a importância das consequências não intencionais da ação. Perde então boa parte das contribuições geradas pela própria ciência política, que estuda essas consequências na esfera das ações coletivas.

Paradoxalmente, o liberalismo anti-economicista gera, por diferentes motivos, doutrinas eminentemente anti-liberais. Em primeiro lugar, a rejeição da discussão de teorias que digam algo sobre a lógica da liberdade é inconsistente com o fundamento falibilista do liberalismo, que acredita que o crescimento do conhecimento requer liberdade e crítica tanto nos mercados de bens e serviços quanto no mercado das idéias. Como ilustram as histórias do liberalismo escritas por Barros e Merquior, grande parte do rico acervo de teorias liberais desenvolvidas nos últimos séculos é completamente ignorada. Em segundo lugar, a substituição da competição entre teorias por uma perspectiva puramente ética reduz o diálogo crítico no mercado das ideias a um conflito entre o bem e o mal. Nos dois livros que utilizamos como ilustração dessa tese, o liberalismo propriamente dito é identificado com compromisso com egoísmo e materialismo, indiferença em relação a situação dos menos favorecidos e defesa das instituições existentes. Não há nada menos liberal do que a prática de substituir a discussão de teorias pelo uso de caricaturas. No caso, caricaturas tradicionais emprestadas do pensamento político antiliberal. Em terceiro lugar, a rejeição do chamado liberismo não equivale de fato a uma rejeição da teoria econômica propriamente dita, mas apenas de teorias econômicas de cunho liberal. Assim como não existem dados sem teoria, não existe política sem economia: Barros e Merquior combinam noções marxistas e keynesianas para a defesa de um “capitalismo humanizado”. Escrevendo em uma época de declínio dessas tradições teóricas no que diz respeito à economia e ignorando as críticas liberais a essas ideias, suas análises não oferecem nada de concreto sobre a “terceira via” que gostariam de passar por liberalismo, em mais uma batalha na longa guerra de apropriação do termo liberal pela esquerda.

Neste texto, utilizamos o referencial teórico hayekiano para criticar o liberalismo anti-economicista. Não apenas por justiça, dado o tratamento desfavorável que esse autor recebe nas obras analisadas, mas principalmente pelo fato de que o economista austríaco, como verdadeiro scholar, preservou no século vinte o corpo doutrinário do liberalismo multidisciplinar dos séculos anteriores, que pode ser contrastado com o liberalismo esvaziado estudado neste texto. Roque Spencer Maciel de Barros adota postura bastante ingênua ao apelar ao sentimento de humanismo sem fornecer indicação alguma sobre o que deve ser feito, como se a eficácia de políticas centralizadoras estivesse apenas à espera do comando de indivíduos mais desenvolvidos moralmente. José Guilherme Merquior não é menos ingênuo ao depositar sua fé em expansão de decisões democráticas ao ignorar por completo os fenômenos estudados pelos austríacos e pela escola da escolha pública sobre à lógica da ação coletiva

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
2 Para referências bibliográficas, ver Orso (2013). Breve análise de suas contribuições é encontrada em Paim (2018).
3 Para um estudo do debate sobre o cálculo econômico, que examina em detalhes o artigo de Barone e argumenta que este não responde o desafio proposto por Mises (2013), veja Barbieri (2013).
4 Como a argumentação é pouco clara nesse ponto, não é possível oferecer um sumário. Por isso, remetemos o leitor à leitura completa da página 229 de seu livro.
5 Para uma descrição do “liberalismo social” esposado por Merquior e seu contraste com o pensamento de Hayek, ver Felipe (2015).
6 Marx (1909, cap. 15).
7 Na edição brasileira, income é erroneamente traduzido por receita. Devido ao grande número de problemas com a primeira edição da obra, recomendamos o uso da versão original em inglês.
8 A estatização do sistema de saúde, por exemplo, torna a decisão de comer um hamburger naquilo que os economistas denominam externalidade, na medida que todos os membros da sociedade e não o indivíduo em questão pagariam pelo tratamento cardíaco.
Autor notes
Graduado em Administração Pública pela FGV-SP, Fabio Barbieri é mestre, doutor e livre-docente em teoria econômica pela Universidade de São Paulo, onde leciona, no campus de Ribeirão Preto-SP

E-mail:fbarbieri@usp.br.

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