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CIRCULAÇÃO DA CIÊNCIA E MOBILIZAÇÃO DE OLHARES: O NATURALISMO FRANCÊS MOBILIZADO PELA SOCIEDADE AÇUCAREIRA NO BRASIL DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
CIRCULATION OF SCIENCE AND MOBILIZATION OF VIEWS: FRENCH NATURALISM MOBILIZED BY THE SUGAR SOCIETY IN BRAZIL FROM THE FIRST HALF OF THE XIX CENTURY
CIRCULACIÓN DE LA CIENCIA Y MOVILIZACIÓN DE VISTAS: EL NATURALISMO FRANCÉS MOVILIZADO POR LA SOCIEDAD DEL AZÚCAR EN BRASIL DESDE LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XIX
Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 41, pp. 44-70, 2021
Universidade Federal da Grande Dourados

Artigos livres

Fronteiras: Revista de História 2021

Recepción: 30 Mayo 2019

Aprobación: 30 Junio 2021

DOI: https://doi.org/10.30612/frh.v23i41.14998

Resumo: O presente trabalho busca investigar as características da mobilização da história natural pela literatura do açúcar de autoria da sociedade açucareira no Brasil no século XIX. Apropriando-se da história global das ciências, procuramos nos afastar dos autores pertencentes a uma história nacional (“nacionalismo metodológico”) que atribuiu à elite proprietária de terras no Brasil uma mentalidade antirreformas durante um período de quase três séculos de história. Indo na contramão desta interpretação, conseguimos identificar que a transição entre o século XVIII e o XIX presenciou um esforço coletivo para entender cientificamente a cana-de-açúcar e aprimorar a sua produção no Brasil. Através de livros e de memórias por atores como o botânico Frei Veloso, assim como por comerciantes e lavradores, e das suas citações a naturalistas, ponderamos que estas referências simbolizavam o compartilhamento não só das ideias científicas, mas também de visões de mundo, como o conservadorismo e o pragmatismo. Neste ínterim, concluímos que as referências à história natural francesa implicaram não apenas em uma apropriação de dados empíricos pela literatura do açúcar no Brasil, mas também de uma mobilização de aspectos político-sociais.

Palavras-chave: História natural, Sociedade do açúcar, Circulação da ciência, História global das ciências.

Abstract: The present work seeks to investigate the characteristics of the mobilization of natural history by the sugar literature authored by the sugar society in Brazil in the 19th century. Appropriating the global history of the sciences, we tried to distance ourselves from authors belonging to a national history (“methodological nationalism”) that attributed an anti-reform mentality to the elite landowners in Brazil during a period of almost three centuries of history. Going against this interpretation, we were able to identify that the transition between the 18th and 19th centuries saw a collective effort to scientifically understand sugarcane and improve its production in Brazil. Through books and memoirs by actors such as the botanist Frei Veloso, as well as by traders and farmers, and their quotes to naturalists, we consider that these references symbolized the sharing not only of scientific ideas, but also of world views, such as conservatism and pragmatism. In the meantime, we conclude that the references to French natural history implied not only an appropriation of empirical data by the sugar literature in Brazil, but also a mobilization of political and social aspects.

Keywords: Natural history, Sugar Society, Science circulation, Global history of science.

Resumen: El presente trabajo busca investigar las características de la movilización de la historia natural por la literatura azucarera de la sociedad azucarera en Brasil en el siglo XIX. Apropiándonos de la historia global de las ciencias, intentamos distanciarnos de autores pertenecientes a una historia nacional (“nacionalismo metodológico”) que atribuían una mentalidad anti-reforma a la élite terrateniente en Brasil durante un período de casi tres siglos de historia. En contra de esta interpretación, pudimos identificar que la transición entre los siglos XVIII y XIX vio un esfuerzo colectivo para entender científicamente la caña de azúcar y mejorar su producción en Brasil. A través de libros y memorias de actores como el botánico Frei Veloso, así como de comerciantes y agricultores, y sus citas a los naturalistas, consideramos que estas referencias simbolizan el compartir no solo de ideas científicas, sino también de visiones del mundo, como el conservadurismo. y pragmatismo. Mientras tanto, concluimos que las referencias a la historia natural francesa implicaron no solo una apropiación de datos empíricos por parte de la literatura azucarera en Brasil, sino también una movilización de aspectos políticos y sociales.

Palabras clave: Historia natural, Sociedad azucarera, Circulación de la ciencia, Historia global de la ciencia.

Introdução

Buscando aprimorar a produção de açúcar no Brasil do século XIX, a elite açucareira (negociantes, lavradores e outros) apropriou-se da história natural para fundamentar as suas propostas de reformas para o feitio do produto. Esta apropriação, pretendemos demonstrar, não implicou apenas em uma mobilização de ideias científicas, mas também de posições político-sociais caracterizadas por um pragmatismo e um conservadorismo. Em memórias e livros publicados no século XIX, que se pode caracterizar por constituir uma literatura do açúcar, essa elite defendia ideias que iam desde a melhoria na lavra do solo, passando pela resolução de problemas no plantio da cana, até a adoção de técnicas para o fabrico de açúcar. Todas uniam teoria e prática, adotando ao mesmo tempo uma “ciência útil” e ideias conservadoras desde as suas referências, sobretudo a história natural francesa.

Memórias como a de José Silvestre Rebello (1833), negociante de açúcar, membro sócio-efetivo da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional (SAIN) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que alertava para a necessidade da elite açucareira de apropriar-se da ciência para o aprimoramento da sua produção, eram bastante comuns naquele período. A memória de Rebello (1833), publicada no periódico da SAIN, não estava isolada, pois fazia parte de um esforço coletivo de unir os homens ligados àquela produção em prol de avanços técnico-científicos. Nela, o autor cita o naturalista francês e proprietário de terras no Caribe Jean-Pierre Labat (1722). Essa citação, em nossa leitura, implicava em uma referência de ciência e de visão de mundo para os ilustrados luso-brasileiros.

A despeito destas fontes, que nos apontam para a existência de atores pertencentes à elite açucareira (comerciantes, lavradores) envolvida com a ciência e que ficou por muito tempo desconhecida, a afirmação de que a elite proprietária de terras no Brasil do século XIX possuía uma “racionalidade” antirreformas, conservadora e rotineira foi muito propagada pelas ciências sociais (HOLANDA, 2014; PRADO JR, 2011; EISENBERG, 1977; ANDRADE, 2001). A compreensão de que os proprietários de terras do Brasil possuíam uma única mentalidade foi extensivamente defendida por esta literatura. O século XX, período em que os autores desta tese desenvolveram os seus trabalhos, foi permeado pela discussão que buscava identificar as causas do atraso do país. A partir disso, abriu-se espaço para se responsabilizar justamente a elite proprietária de terras por não ter avançado e modificado as estruturas sociais nem técnico-científicas em comparação com as elites de outros países.

Só recentemente, no raiar do século XXI, críticas foram feitas a esta tese. Buscou-se, por exemplo, demonstrar a existência de teorias do governo dos escravos, no qual se fez uma distinção entre a teoria religiosa e a teoria ilustrada, ambas existentes na América colonial e conectadas entre si (MARQUESE, 2004). Bem como constata-se também um esforço de evidenciar o exercício de atividades científicas de grupos mais variados mesmo em tempos mais recuados, como na medicina e na botânica (SCHWARTZ, 1988; DIAS, 2005; MEIRELLES, 2017; FLECK, 2020). Só então começamos a aceitar a ideia de que estes homens do XIX, e mesmo de gerações anteriores, estavam abertos a mudanças, mas ainda assim dentro do contexto do sistema colonial/imperial.

Em síntese, o que estes pesquisadores, em suas áreas mais diversas – história das ciências, história intelectual e história social – vêm buscando evidenciar, é a existência de uma mentalidade pró-reformas por parte da elite brasileira. Este artigo vai ao encontro destes esforços, na medida em que busca contribuir para a caracterização das ideias de parte desta elite, no caso, a elite açucareira. Para tal, busca-se mapear e definir as ideias que foram por eles mobilizadas através de seus textos.

Neste artigo, analisaremos o livro “O Fazendeiro do Brazil” de Frei Mariano da Conceição Veloso (1799), mais especificamente o volume que trata sobre o açúcar, e duas memórias publicadas no periódico O Auxiliador da Industria Nacional: “Memória sobre a cultura da Cana, e a elaboração do Assucar [...]” de José Silvestre Rebello (1833), e “Memoria sobre o methodo economico de transportar a agoa-ardente do Brasil para portugal”, de João Manso Pereira (1845). Por meio delas, buscaremos investigar os livros referenciados e as suas características dentro de um contexto social e científico específico. Além disso, iremos mapear as instituições (Universidade de Coimbra, Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional) e os atores que proporcionaram a esta elite um veículo para divulgação e formação de suas ideias, meio pelo qual eles acessaram os autores de que fizeram referência.

Analisando as formas desta apropriação, chegamos à conclusão de que não apenas a elite ilustrada luso-brasileira era conservadora e pragmática, mas a própria história natural francesa já compartilhava destas características. Assim, buscamos não repor a narrativa do “nacionalismo metodológico” que buscou conferir um perfil antirreformas à elite brasileira, mas sim objetivamos observar como, através da circulação da ciência por meio de seus textos (GRUZINSKI, 2014; RAJ, 2015), formas de ver o mundo e de apropriar-se dele estavam entrelaçadas entre homens para além das fronteiras do Estado-nação. Em outras palavras, entendemos que a referência a um campo científico como a história natural implicou, ao mesmo tempo, na mobilização de valores sociais e políticos oriundos do contexto de elaboração destas referências.

Além da introdução e das considerações finais, o artigo está estruturado em outros quatro tópicos. No primeiro tópico iremos analisar a bibliografia do que aqui chamamos de “nacionalização do atavismo”, ou seja, os autores que trataram de construir um quadro mental antirreforma da elite proprietária de terras. No segundo, apresentamos os indícios de atividades técnico-científicas no século XIX por parte da historiografia mais recente. No terceiro, descrevemos a contribuição da História Global para a desnacionalização do nosso objeto de pesquisa. No último, analisaremos as fontes primárias caracterizadas por constituírem a literatura do açúcar de autoria da elite e as relações desta com a história natural francesa.

A elite atrasada: a nacionalização do atavismo

Considerado um texto central para a história da América portuguesa, “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda (2014), originalmente lançado em 1936, é essencial para o entendimento das relações entre os dois países. As raízes ibéricas do Brasil foram destacadas no livro que nos fez refletir sobre a conexão intrínseca entre a metrópole e a colônia. Nele, entre outras coisas, a elite luso-brasileira foi lançada em frente a um espelho que a definiu como “aventureira” em contraposição às elites “trabalhadoras”. Para o autor, enquanto os ibéricos tinham uma tendência ao conservadorismo, ao atraso técnico e à persistência, as demais elites de origem inglesa e francesa, por exemplo, eram abertas à mudança, ao avanço e ao progresso, como diz ele no trecho seguinte: “O que, com segurança, se pode afirmar dos portugueses e seus descendentes é que jamais se sentiram eficazmente estimulados a essa energia” (HOLANDA, 2014, p. 59).

De Sérgio Buarque de Holanda (2014), passando por Caio Prado Jr (2011), até chegar em Peter Eisenberg (1977) e Manuel Correia de Andrade (2001), a narrativa nacionalista sobre os processos agrários no Brasil se solidificou em suas mais variadas vertentes, de modo a levar estes pesquisadores a afirmarem, em tom de crítica, que a elite nunca quis avanços para o país. “A rotina e a ignorância” foram os adjetivos utilizados por Caio Prado Júnior (2011, p. 145) para definir o cenário de formação da mentalidade da elite brasileira. A causa do atraso, segundo o autor, era a natureza do colono português que forçou o isolamento do Brasil com relação aos outros países (PRADO JR, 2011, p. 146). O autor até chega a citar exemplos de iniciativas de reformas, como no algodão com Manuel de Arruda Câmara, mas acreditava que, em comparação com outros países, como os Estados Unidos, o Brasil era sempre atrasado e, quando avançava, esse avanço era pouco (PRADO JR, 2011, p. 144).

Mais especificamente na cultura do açúcar, Eisenberg (1977) e Andrade (2001) seguiram na mesma direção desta literatura clássica. Ambos trataram do período de industrialização da produção com os engenhos centrais e com as usinas, processo que ocorreu em fins do século XIX. Todavia, ao contrapor este momento de avanços em direção ao rompimento das tradicionais relações de trabalho, os dois impuseram um limite que é o fato de que, como antes dos engenhos centrais não havia divisão do trabalho, nem um desejo mínimo de alteração nos usos da terra, não havia, consequentemente, interesse em modernização técnico-científica e, portanto, ela não havia existido.

Em “Modernização sem Mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910”, o brasilianista Peter Eisenberg (1977) tratou da industrialização dos engenhos centrais e das usinas, especificamente em Pernambuco. Neste mesmo livro, Eisenberg (1977) dedicou um capítulo sobre o período anterior ao da implantação dos engenhos centrais. Neste texto, o historiador cita exemplos de iniciativas de senhores de engenho com invenções. O autor chega até a sustentar a tese de que não foi o atraso tecnológico que causou a crise da produção no século XIX, mas sim fatores externos. Experiências com a reprodução genética da cana, por exemplo, são citadas de modo a evidenciar a existência de iniciativas (EISENBERG, 1977, p. 60).

Todavia, em sua conclusão sobre essas experiências, o autor aponta que: “A combinação de terra barata com trabalho barato e não educado produziu uma atitude conservadora, rotineira em relação à inovação tecnológica” (EISENBERG, 1977, p. 65). É importante notar a associação, feita por ele, entre o conservadorismo e a não divisão do trabalho, como aspectos definidores daqueles homens e, portanto, associados a um espírito “rotineiro” frente a avanços técnico-científicos. É neste sentido que o historiador estabelece a inexistência de reformas técnico-científicas, exatamente por entender que elas só existem se acompanhadas de reformas sociais.

Manuel Correia de Andrade (2001), por sua vez, afirma que de duas alternativas, a modernização agrícola e a modernização industrial, os senhores de engenho que passaram a adotar os engenhos centrais decidiram pela última, sem a realização do que o autor entendia como modernização agrícola, ou seja, a divisão do poder, constatada devido a desigualdade que se manteve (ANDRADE, 2001, p. 18). Todavia, para o autor, antes disso nada de substantivo pode ser dito sobre interesse dessa elite para inovações.

Em síntese, o que estes autores buscaram demonstrar é a existência de uma característica comum à elite brasileira, do começo da colonização até fins do século XIX, o “século decisivo” nos termos de Caio Prado (2011): seja nas mentalidades, seja nas práticas, a elite proprietária de terras no Brasil até aquele momento era atrasada e possuidora de um atavismo não visto em outras nações. Só mais recentemente que esta visão começou a ser revista, como veremos abaixo, por campos diversos da historiografia, como a história das ciências e a história social.

A elite ilustrada: a ciência útil e as suas práticas

Ainda em 1988, Stuart Schwartz, lançou o livro “Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835”. O livro apresenta uma interpretação nova sobre aquilo que o autor denominou de Sociedade do Açúcar, algo que vai muito além dos senhores de engenho, ou mesmo das relações destes com os escravos, mas sim que abarca a sociedade global em torno e partícipe da produção açucareira. Percebe-se desde já uma contraposição à ideia de civilização do açúcar de Gilberto Freyre, noção que, como afirmou Roberto Da Matta (2004), está circunscrita à dialética entre senhor de engenho e escravos e ignora, portanto, os níveis intermediários e da estrutura político-social exterior à estrutura interna da casa grande e da senzala.

Em seu exame histórico da origem da sociedade baiana através da produção açucareira, Schwartz (1988) analisa o papel dos lavradores de cana e dos assalariados, além de apresentar o ambiente político e cultural que movimentou alguns senhores de engenho a defenderem ideias para a reforma técnico-científica da produção, utilizando-se dos meios que à época eram fornecidos – e, inclusive, que fomentaram este desenvolvimento, numa espécie de retroalimentação –, como periódicos, livros e instituições. Este ambiente foi caracterizado pelos reflexos das modificações de caráter ilustrado realizadas pelo ministro português Marquês de Pombal ainda em meados do século XVIII, modificações que visavam tornar a agricultura brasileira competitiva no mercado externo. Como reflexo desta política, anos depois, Rodrigo de Sousa Coutinho, dando continuidade às iniciativas de Pombal, enviou missões científicas às capitais europeias para que o aprendizado da agronomia moderna fosse útil aos agricultores brasileiros (SCHWARTZ, 1988, p. 348).

Todavia, Schwartz (1988) conclui que, apesar de, de fato, não serem totalmente avessos aos avanços científicos, dos quais se podem citar as tentativas de Manoel Jacinto de Sampaio e Mello, Ferreira da Câmara, estes e outros somente na Bahia, essas sugestões de incrementos não tiveram um papel de alterar qualquer lógica da produção que seja. Segundo o autor:

Conquanto numerosas sugestões para melhoramentos tecnológicos, experiências com novos tipos de cana-de-açúcar e outras reformas surgissem nesse período, o crescimento da economia açucareira [no século XIX] deu-se essencialmente através da expansão do número de unidades produtivas e da intensificação do sistema escravista existente. (SCHWARTZ, 1988, p. 346)

Este parece ser, portanto, o consenso em parte da historiografia sobre o período de que trata Stuart Schwartz (1988), a saber, os séculos XVIII e XIX. Esta historiografia dedicou-se então a chamar a atenção para a figura do “agricultor ilustrado”, destacando que este processo, de circulação de ideias no mundo Ibero-brasileiro, teve como característica principal justamente a defesa de um perfil de homem de ciência alinhado aos valores de uma ciência útil (DIAS, 2005; MEIRELLES, 2017). O exercício da prática científica, nesse sentido, não entrava em contradição com perspectivas mais diversas, seja com o exercício da própria atividade que interessava à esta ciência, como a agricultura, seja atividades religiosas. O próprio Frei Veloso constitui um exemplo de religioso ativamente envolvido com a pesquisa, algo bastante comum como pesquisadores vêm demonstrando recentemente, especialmente sobre a atuação dos jesuítas (FLECK, 2020).

Aliás, observa-se que, em seu desenvolvimento no Brasil, a ciência serviu na verdade para conter o “espírito” de mudança que rondava o mundo entre os séculos XVIII e XIX. Dois importantes movimentos deste período foram especialmente temidos pela elite brasileira: a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Haitiana de 1791. Sobre isso, Robert Wegner (2004) argumenta que “Nesse projeto iluminista de Estado, a ciência ocupava um papel central, como se - exagerando um pouco - todos os dilemas do Império pudessem ser resolvidos por meio da pesquisa de gêneros da natureza economicamente exploráveis [...]” (WEGNER, 2004, p. 132).

Observa-se com isso duas afirmações importantes: uma é a de que uma parte bastante considerável da elite agrária do Brasil não era desinteressada em avanços técnico-científicos. A segunda é a de que este interesse não implicou, portanto, em igual interesse na divisão do trabalho, nem muito menos em modificar o uso dos recursos naturais.

Rafael Marquese (1997) defende justamente que o desenvolvimento técnico-científico não pode ser entendido apenas do ponto de vista econômico, mas trata-se de perscrutar as convenções intelectuais em seu contexto sócio-histórico, no caso dessa pesquisa o mundo dos engenhos de açúcar no século XIX. Em “Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860”, Marquese (2004), ao citar a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, instituição que publicou as memórias por nós analisadas, afirma o seguinte: “Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: expressão de um período em que as ideias já estavam circulando entre os proprietários rurais escravistas” (MARQUESE, 2004, p. 267). Nesse ínterim, compreendemos que este período marcou justamente o momento em que a elite proprietária de terras saiu de seu isolamento e houve uma inversão de uma mentalidade antirreformas para uma mentalidade pró-reformas, inversão que não foi abrupta, mas que vinha se desenvolvendo desde o começo do século por atores como o próprio Frei Veloso.

Todavia, acreditamos, como o próprio Marquese (2004), que não se trata de atribuir caracteres específicos à esta elite, como se ela estivesse isolada. Ao contrário, trata-se de observar as intersecções e as mobilizações por ela realizadas. Isto só pode ser feito na medida em que nos desprendemos de um nacionalismo metodológico e nos apropriamos de uma perspectiva global, perspectiva essa que iremos descrever sucintamente a seguir.

História global e História global das ciências: desnacionalizando histórias

Se os historiadores do século XX estavam ligados em sua maioria à história nacional, no século XXI é a narrativa relacional que vem ganhando cada vez mais espaço na historiografia. Em suas várias vertentes, como a história global, a história transcontinental, a história conectada e a história cruzada, a abordagem relacional se contrapõe, de maneira geral, à metodologia comparada bastante famosa por ter sido defendida por Marc Bloch (BARROS, 2014, p. 278). Engana-se, no entanto, quem imagina que a nação, ou o local, seja algo desprivilegiado pela história global. Antes de adentrarmos nessa discussão, precisamos definir os dois campos de que nos apropriamos nesta pesquisa: trata-se da História Global de Serge Gruzinski (2014) e a História Global das Ciências de Kapil Raj (2015).

O historiador Serge Gruzinski (2001) está preocupado com as mesclas e com as misturas, aquilo que ele chamou de pensamento mestiço. Para tal, ele busca realizar dois processos simultâneos: primeiro, trata-se de mapear as circulações, sejam elas de ideias, de livros, de objetos, ou de ciências, e, no segundo momento, busca-se mapear as mobilizações destas ideias. Assim, parte-se do pressuposto de que circular implica em mobilizar, concomitantemente.

Para tornar mais clara a noção de circular/mobilizar, podemos utilizar o exemplo dos experts desenvolvido por Gruzinski (2014). Os experts equivaleriam aos cientistas, ou aos homens de ciência. Na sua atividade, eles fazem referências a autores antigos, buscando, dessa maneira, ler o mundo através do olhar das categorias desenvolvidas por estes antigos. Estas referências são, portanto, as evidências das misturas, algo fundamental a todo homem de ciência, na medida em que “Em nenhum lugar os experts se interrogam sobre o estatuto, a história e o devir das novas terras sem recorrer a uma bagagem clássica que organize a estrutura do pensamento e a nutra de múltiplas referências (GRUZINSKI, 2014, p. 237).

Essas referências podem implicar tanto em críticas aos antigos, contraposições e exposições das diferenças entre as maneiras de ver o mundo, ou podem ainda motivar mudanças na mentalidade destes atores, de modo a coadunar-se com a literatura que estão entrando em contato. Em um ou em outro caso, temos não a expansão e a assimilação de ideias de um lado para o outro do globo, mas sim a mobilização destas ideias.

Nesse ínterim, Gruzinski (2014) contrapõe à noção de expandir a noção de mobilizar:

O termo consagrado ‘expansão’ não oferece senão uma visão parcial e unidirecional, para não dizer eurocêntrica, dos deslocamentos em cadeia, impulsionados pelos espanhóis, e pelos portugueses. É uma mobilização em profundidade, pelo que provoca de movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo; ela escapa mesmo ao controle dos homens, quando espalha no mais fundo das Américas os micróbios das outras partes do mundo. (GRUZINSKI, 2014, p. 53)

Kapil Raj (2015), por sua vez, também desenvolveu os seus estudos em contraposição ao difusionismo, mas em uma área específica, a história global das ciências. Para ele, embora muitos dos estudos difusionistas tenham avançado no entendimento da natureza negociável da ciência, assim como conseguiram identificar atividades científicas mesmo fora do seu local de origem, no caso, a Europa Moderna, estes estudos ainda permanecem com a dicotomia entre centro/periferia, abordando a ciência apenas como um conjunto de teorias a serem assimiladas e não como práticas de produção de conhecimentos, de instrumentos de técnicas e de sociabilidades.

Assim, Raj (2015) deixa clara a sua contraposição com as perspectivas clássicas, em especial com a do historiador e filósofo da ciência George Basalla (1967), que criou o método de observação da ciência através de três estágios - a ciência dos viajantes nas colônias, a ciência colonial e a ciência independente -, método esse que pressupunha uma abordagem comparativa, centrada na perspectiva da ciência nacional. O difusionismo da ciência, segundo o projeto de Basalla (1967), tinha que ser observado através do método comparativo: “This model of the three phases of science needs to be developed by some comparative studies in the history and sociology of science” (BASALLA, 1967, p. 620).

Enquanto, para Basalla (1967), só se pode entender a ciência através da sua difusão e assimilação pelos povos não-europeus, para Raj (2015), só através da circulação da ciência é que poderemos observar os encontros, as resistências, as negociações e as reconfigurações das ciências em espaços para além do continente europeu, embora ainda que possivelmente em contato com ele. Trata-se, nesse sentido, de uma mudança de olhar.

No entanto, o nacional não é algo desprezado pela história global. O global não pode ser confundido com o mundial. Na perspectiva da história global das ciências, não se deve partir das fronteiras, mas sim do estudo das circulações/transformações, independentemente da escala. Como bem explicou Raj (2016) em entrevista: “Logo, a escala não é o mais importante, o principal é o movimento e a transformação, o que acontece quando as coisas se movimentam e cruzam determinadas fronteiras” (RAJ, 2016).

Nos termos da pesquisa que estamos apresentando, a história global nos oferece, portanto, estratégias teórico-metodológicas para não cairmos na tentação de atribuirmos qualquer exclusividade à elite brasileira. Na medida em que visamos responder a uma perspectiva da história nacional que conferiu um perfil específico para este grupo, o perfil anti-ciência, reproduzir esta perspectiva torna-se tentador. Convém seguirmos a advertência feita pela historiadora Lorelai Kury (2004) que afirma que “Em primeiro lugar, creio que o pragmatismo não é um atributo exclusivo das luzes luso-brasileiras” (KURY, 2004, p. 110). Assim, podemos observar a circulação da história natural e a sua mobilização pela elite açucareira no Brasil do século XIX.

A história natural francesa mobilizada pela elite açucareira

O Fazendeiro do Brazil

O naturalista mineiro e religioso franciscano Frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811) foi um dos primeiros responsáveis por introduzir no Brasil uma literatura de origem francesa para o aprimoramento da agricultura na colônia. O seu conjunto de livros “O Fazendeiro do Brazil, criador, melhorado na economia dos generos já cultivados, e de outros, que se podem introduzir; e nas fábricas, que lhe são próprias, segundo o melhor, que se tem escrito a este assunto”, lançado entre fins do século XVIII e início do século XIX, direcionava-se à elite proprietária de terras e buscava informá-la sobre as descobertas empíricas ligadas a cada tipo de cultura agrícola tratada em cada volume (açúcar, café, entre outras). Os dois primeiros volumes tinham como objeto justamente o açúcar e os caminhos para a aprimoração da sua produção.

O contato que o naturalista teve após a escrita das suas primeiras obras com botânicos e naturalistas europeus, em especial o seu trabalho na Tipografia do Arco do Cego, é que o proporcionou muito provavelmente a leitura das “Enciclopédias”, fonte de onde ele afirma ter retirado as principais informações presentes n’O Fazendeiro. Como afirmou Juliana Meirelles (2017), foi a reforma da Universidade de Cimbra que propiciou uma inversão no cenário científico (1772), passando a circular na metrópole livros ligados à medicina e a ciência de maneira geral, em especial a história natural (MEIRELLES, 2017, p. 150). O livro é, portanto, baseado na tradução de muitos dos escritos sobre temas de plantas agricultáveis que circulavam na Europa. A importância dada ao açúcar pelo Frei mineiro, constituindo as primeiras partes de sua obra, deveu-se ao fato de que este era o principal produto exportador do Brasil na época.

Surgia então, no momento em que Veloso escreveu, uma preocupação em aprimorar a sua produção. É com base neste espírito e nessa formação que Veloso dedicou as partes iniciais e mais importantes da sua obra. Esse é o sentimento que levou frei Veloso (1801) a defender as ideias desenvolvidas por homens de ciência franceses que se debruçaram em fins do século XVIII sobre o aperfeiçoamento da produção açucareira, mais especificamente sobre a sua refinação, e que ele propagava.

No caso da refinação, o frei mineiro recolheu as ideias de Henri-Louis Duhamel du Monceau, físico e botânico sócio da Economia Real das Ciências e Artes do Cabo Francez, e Jacques-François Dutrône de la Couture, doutor em medicina, agrônomo e sócio da Academia Real das Sciencias e Artes do Cabo Francez (VELOSO, 1799, p. 2). Segundo Veloso, cada um dos autores contribuiu com questões específicas para a concepção do livro. Enquanto o primeiro trata especificamente de “iluminar” a arte de fazer o açúcar para os europeus, tratando só historicamente da produção em outras regiões do mundo, o segundo focaliza o seu trabalho na descrição histórica da produção de açúcar nas Américas e une a esta descrição propostas de mudanças (VELOSO, 1799, p. iv).

Mas é sobretudo das contribuições de Dutrône que Veloso (1799) retira as principais informações, dedicando a ele a maior parte das citações e referências d’O Fazendeiro. Assim Veloso se refere à Dutrône: “Ah! Que guia mais segura que M. Dutroni (dizem os Encyclopedistas) poderíamos escolher, conforme a conta e votos dos Commissarios, nomeados pela Academia de París, para o exame desta obra [...]” (VELOSO, 1799, p. iv). É provável que o livro de Dutrône do qual Veloso tirou suas informações tenha sido “Précis sur la canne et sur les moyens d'en extraire le sucre [...]”, livro publicado no ano de 1790, no qual Dutrône dedicou-se à descrição do feitio do açúcar na colônia francesa de São Domingos, atual Haiti. O livro possuía a intenção de exaltar a colônia francesa através da sua pujança na produção de açúcar, de maneira que ao traduzir o livro do cientista francês e de privilegiar o seu trabalho com grandes frases de honra a ele, Veloso (1799) buscava também divulgar as causas do sucesso da colônia francesa, estimulando que os agricultores do Brasil seguissem tais exemplos.

Tais ensinamentos eram sempre contextualizados pelo autor que buscava apontar onde cada solução deveria ser aplicada. Para exemplificar isso, no Volume 2 d’O Fazendeiro, Veloso (1799) aponta uma causa para o problema na fabricação do açúcar, mais especificamente na fase da purgação. Segundo ele, havia um desafio na devida separação das substâncias insalubres no caldo da cana, e que a causa desta má separação devia-se ao descuido no seu feitio legado pelos homens responsáveis por trazer a produção de açúcar ao Brasil “Os commerciantes, que trouxerão a Cana das Indias, se descuidárão seguramente de se instruirem ácerca dos meios de apparelhar o succo [...]” (VELOSO, 1799, p. 18).

A crítica, no entanto, é logo acompanhada de uma prescrição de solução. Veloso (1799) não se satisfazia apenas em elencar os desafios, mas se esforçava para modificar tais práticas. Neste caso em específico, Veloso (1799, p. 19) recomenda, a partir das contribuições que recolheu com base no exemplo de São Domingos, o uso da cal para eliminar as impurezas do produto:

Admirados, do que a observação lhes ensinava sobre a applicação da Cal, e dos alkalis, e satisfeitos das vantagens, que elles julgarão no uso das formas, não refletirão nos vicios, annexos a estes mesmos meios; mas antes os olharão como absolutamente necessarios, ou essenciaes á laboração do Assucar, e quatrocentos annos de huma práctica céga tem consagrado os erros destes primeiros tempos. (VELOSO, 1799, p. 19)

Contido na Parte Dois do Tomo I da obra, no qual Frei Veloso trata especificamente da refinação e do processo de clarificação (também chamado de “purificação”) do açúcar, este trecho trata de exemplificar bem os problemas que deveriam ser resolvidos e o público ao qual se direcionava. Constata-se o combate a uma “prática cega” dos produtores de açúcar na colônia portuguesa. Veloso buscava não só descrever tais práticas, mas recolhia descobertas para o seu melhoramento. O uso da cal para a refinação é uma delas. Pode parecer que a cal e as suas propriedades do processo de clarificação sejam uma descoberta antiquada, mas era bastante comum o procedimento de cristalização da matéria sacarina com todas as substâncias insalubres, sem nenhum procedimento de retirada, ou mesmo a aplicação de substâncias como cinzas (que se chamava de decoada) e barro.1 Todos esses procedimentos acabavam por eliminar muito do conteúdo aproveitável do açúcar, haja vista que com a excessiva fervura para retirar os elementos insalubres muito açúcar se perdia conjuntamente.

Estas descobertas só foram possíveis através da ciência, no caso específico da história natural. O naturalista mineiro possuía essa clareza, afinal, a história natural era, naquela época, um campo privilegiado do conhecimento científico que se dedicava ao estudo dos seres de maneira geral e equivalia a um conglomerado de ciências que englobava a botânica, a agronomia, a física, e outras. Sendo a cana-de-açúcar uma planta, o seu estudo deveria seguir os seguintes passos, segundo Veloso:

A historia natural de todo o vegetal deve apresentar os fenomenos de fructificação, e da fecundação do germen; as leis que este segue em o seu desenvolvimento; as differentes revoluções, que soffre a planta, desde o seu nascimento até totalmente acabar, e os diversos accidentes entre estes dois termos. (VELOSO, 1799, p. 30-31)

Veloso possuía um projeto que era o de, através da história natural, fornecer informações úteis para os agricultores brasileiros. Este projeto foi avaliado pela historiadora Maria Odila Silva (2005) ao tratar do processo de Ilustração luso-brasileira. Na ocasião, a autora afirma a existência de um otimismo exagerado nos ilustrados e que pode ser identificado n’O Fazendeiro, no qual o seu autor acreditava que com o lançamento do seu conjunto de livros “[...] apesar das falhas de sua tradução ‘tem sido tal o efeito das soberanas e eficazes ordens de V. A. R., que os povos do Brasil se têm acoroçoado a grandes reformas nas suas práticas rurais’” (SILVA, 2005, p. 110).

Se o trabalho de Frei Veloso foi ou não bem-sucedido naquilo que objetivava alcançar é algo a ser questionado. Dannylo de Azevedo (2018) apresentou indícios de que embora O Fazendeiro do Brasil tenha sido distribuído em algumas capitanias da colônia, em especial na capitania de São Paulo, com incentivos do Estado imperial e com a defesa ativa e persistente do ministro português Rodrigo de Souza Coutinho, a sua leitura e apropriação confrontava uma população em sua maioria carente da educação mais básica. Isto dificultava, segundo o autor, até mesmo a própria leitura da obra, além do número muito reduzido de livreiros naquele momento que poderiam distribui-la aos que se interessassem (AZEVEDO, 2018, p. 177).

Todavia, não deixa de ser pertinente notar que a própria existência e a disseminação deste pensamento e das propostas “úteis” para o seu desenvolvimento foram os primeiros passos dados pela elite ilustrada a alcançar minimamente um grupo pertencente à elite proprietária de terras. Nos termos desta pesquisa, trata-se de reconhecer o importante papel prestado por Veloso para a disseminação da história natural do século XVIII no Brasil.

Memória sobre a maneira ideal de transportar agoardente

João Manso Pereira, autor da memória intitulada “Sobre a maneira ideal de transportar agoardente” publicada em 1845 no periódico O Auxiliador da Industria Nacional (OAIN), é um dos poucos entre aqueles que fizeram parte do grupo de ilustrados de sua época que conseguiu destaque enquanto homem de ciência. Mas o seu envolvimento com a ciência tinha uma ordem prática, uma vez que os seus trabalhos giravam em torno das culturas que praticava, como a cultura do açúcar e do vinho. Portanto, Pereira fazia parte da sociedade do açúcar, na medida em que ele era um produtor (muito provavelmente um lavrador), como descrito no “Diccionario bibliographico brazileiro” por Augusto Blake (1895): “Fabricou varios productos, como vinho, assucar, arguardente distillada da raiz de sapé, camafeus de barro do paiz, etc.” (BLAKE, 1895, p. 478).

As palavras respeitosas de Frei Veloso (1799) direcionadas à Pereira são um indício da circulação entre os ilustrados. Citado na obra “O Fazendeiro do Brazil”, ele é objeto de grande respeito pelo naturalista mineiro, que diz que: “Já o Professor Manso tinha advertido o abuso de se transportar a agua com o Alcokol nas aguas-ardentes, que se embarcão do Brazil, como se em Portugal não houvessem aguas? (diz este Sabio.)” (VELOSO, 1799, p. vi). É provável que tenha sido Veloso (1799) o responsável direto por indicar a leitura da história natural para Pereira, haja vista que este último não possuía formação institucional. Mesmo assim, Pereira ainda conseguiu estudar matérias importantes como as sciencias naturaes na sua própria casa, como nos informa Blake (1895):

Estudou no seminario da Lapa; conhecia o grego e o hebraico; era muito versado nas sciencias naturaes e foi pelo governo encarregado de analyse de ferro de Ipanema. Essas sciencias estudou ele em seu gabinete, tornando-se uma notabilidade, quando era possivel sel-o no Brazil, colonia peada pelo egoismo da metropole. (BLAKE, 1895, p. 478)

É preciso lembrar que a Independência do Brasil só veio a ocorrer em 1822, dois anos após a morte de Pereira. O reclame do autor do Diccionario ao afirmar a impossibilidade de Pereira de desenvolver os seus estudos em instituições (apesar da formação no Seminário da Lapa), revela dois fatores importantes: a instabilidade política vivida nos anos iniciais do século XIX, fato que impossibilitou o desenvolvimento científico e educacional institucionalizado, e a sua contraposição às décadas posteriores, sobretudo a partir da década de 1830, que foi palco da solidificação e da criação de instituições de ciência no Brasil como é o caso da própria SAIN.

Isto não significa dizer que ele não tenha alcançado uma boa posição na sociedade, mas tão somente que o autor não conseguiu ver, quando do seu lançamento, a sua obra ser divulgada para uma parcela maior de agricultores, assim como também lhe faltou a instrução necessária para o aperfeiçoamento do seu trabalho. Isso fica bastante claro no trecho que dá prosseguimento à citação anterior, quando se lê as seguintes informações:

[João Manso] Offereceu ao vice-rei Luiz de Vasconcellos uma mesa, só por elle trabalhada, onde se viam representados, em ouro e em diversas côres a bahia do Rio de Janeiro e suas ilhas, e a d. João VI offereceu um apparelho e uma caixa para sabão de barba, de fina porcellana, como a da India, que elle sabia imitar, assim como o chorão, feita com argilla da Ilha do Governador. Fez tambem os bustos de dona Maria I e de seu esposo, os quaes foram enviados para Lisboa e ahi admirados. Na phrase do dr. Macedo ‘fou uma guia, à que faltou espaço; foi um genio, á que faltaram recursos e condições favoraveis para elevar-se á altura de suas faculdades. (BLAKE, 1895, p. 479)

A memória escrita por João Manso, publicada n’O Auxiliador, é, portanto, uma publicação póstuma, dado que na sua biografia do Diccionario afirma-se que o seu autor faleceu em 1820: “Natural de Minas Geraes, falleceu com mais de 70 annos de idade a 20 de agosto de 1820 na cidade do Rio de Janeiro, onde foi professor de grammatica latina e professor de nomeada tal, que era uma honra ser seu discipulo” (BLAKE, 1895, p. 478). A memória, no entanto, só veio a ser publicada em 1845, vinte e cinco anos depois do seu falecimento. A publicação póstuma da sua memória por parte da SAIN revela um ímpeto em salvaguardar produções de relevância para a ciência útil em anos anteriores à criação da instituição. A SAIN seria então o abrigo destas ideias.

Pereira (1845) falava aos lavradores que eram aqueles que produziam a aguardente e aos comerciantes que deveriam vender aos interessados que iriam transportá-la. Todavia, a referência aqui à história natural vem também através da resolução de um problema de ordem prática. Trata-se dos estragos causados pelas formigas na plantação das canas. “Geralmente vejo a todos queixarem-se dos horriveis estragos causados pelas formigas, e da difficuldade, que ha em destruir estes insectos, por se não ter até o presente descuberto um meio facil de os matar” (PEREIRA, 1845, p. 329).

A solução viria através de uma proposição prática. Fazendo referência a Jean-Baptiste François Rozier, ao qual denomina aqui simplesmente de “Abade Rozier”, Pereira (1845) então assegura a solução mediada por Rozier da seguinte maneira:

O Abade Rozier depois de ter tentado inutilmente um grande numero de receitas, para matar formigas, confessa que a melhor é esta. - Cubrão-se com mel muitas folhas de papel, e se lancem junto ao formigueiro, e se mergulhem n’agoa, logo que estiverem bem cobertas de formigas. Este grande homem assevera, que, por meio desta operação, que se deve repetir por alguns dias successivos, se consegue a total extinção de um formigueiro; porque cessando as provisioneiras de conduzir o mantimento, vem o resto dellas a morrer de fome. (PEREIRA, 1845, p. 229-330)

Como se percebe, a citação à Rozier não guarda qualquer referência exata de em qual obra se retirou tal afirmação. Sabe-se que Rozier era um botânico e agrônomo francês que lançou cursos de agricultura em formato de livros por “princípios teóricos e práticos” para os agricultores da Europa de fins do XVIII. A sua obra é vasta, mas uma das principais foi o conjunto de livros intitulado “Cours complet d'Agriculture Théorique, Pratique, Économique, et de Médecine Rurale et Vétérinaire; Suivi d'une Méthode pour étudier l'Agriculture par Principes: ou dictionnaire universel d'Agriculture [...]” (1783-1785). Dizia ele, na apresentação do livro: “Ainsi chacun, en partant de ces points, peut, par progression, appliquer à son pays ce qui est dit dans cet Ouvrage, fur-tout en étudiant la manière d’être du climat qu’il habite” (ROZIER, 1783-1785, p. 16). “Aplicação” é um termo recorrente na sua obra. Não à toa, um termo similar aparecia de maneira constante nas obras dos ilustrados e também na memória de Pereira: trata-se do termo “utilidade”.

A aplicação e a universalidade eram conceitos bastante presentes na obra de Rozier, como se percebe. Com esse discurso, buscava-se claramente fazer com que a história natural alcançasse outros países, propiciando assim a circulação e a aplicação destes conhecimentos nos mais diversos locais. Por isso mesmo, embora o conteúdo do livro fosse dirigido a um público de agricultores da Europa que residia entre Languedoc, Flandres e Provença, em geral Rozier falava a todos os agricultores de maneira universal. Além disso, Rozier deixava claro que o seu empenho tinha aprovação e apoio do Rei, algo que atesta mais uma vez que a ciência útil era um projeto de Estado. Em seu livro, Rozier (1783-1785) abria justamente com esta afirmação “Avec Approbation et Privilege du Roi”, demonstrando assim a relação intrínseca entre o Império e as ideias da ciência útil.


Figura I
Cours Complet d'agriculture
Fonte: Rozier (1783-1785)

Em resumo, é a “utilidade” da ciência que é prezada na obra de Rozier. Tanto Rozier como Pereira compartilhavam desse mesmo pragmatismo. Essa ciência não os impediu de compartilharem o respeito e a reverência ao rei, de participarem ativamente da sociedade de sua época e, ao mesmo tempo, de desenvolverem descobertas empíricas apropriáveis por atores em seus países e em outras partes para além da sua pátria.

Memória sobre a cultura da Cana, e elaboração do Assucar

Intitulado “Memória sobre a cultura da Cana, e elaboração do Assucar, lida na Sessão de Quinta feira 24 de Maio de 1832, da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, por José Silvestre Rebello Socio effectivo da mesma Sociedade”, o texto de Rebello (1833) tratava essencialmente de propor uma reforma na lavra do solo na plantação das canas, no qual se passasse a utilizar, com base em dados científicos, a cal como estrume. Desde já percebemos o reaparecimento da cal como importante descoberta da ciência para a produção de açúcar, algo indicado por Frei Veloso no começo do século. Porém, as conexões vão além e chegam até a citação de um mesmo autor: Padre Labat, o naturalista francês, é citado por ambos os autores de modo a informar não só dados empíricos para o açúcar, mas também mentalidades.

De origem lusa, residente na cidade do Rio de Janeiro, este homem foi definido inicialmente como “negociante” (BLAKE, 1899, p. 204). Destaca-se também a sua cooperação junto a José da Cunha Mattos, para a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e também a sua ação diplomática (BLAKE, 1899, p. 204). Com base nestes dados, percebe-se que José Rebello foi um homem de grande circulação dentro da sociedade imperial. Parte da elite luso-brasileira vitoriosa da Independência, este homem desempenhou um papel importante para o estabelecimento de instituições de ciência no Brasil no século XIX, como a própria SAIN, como ele próprio fez questão de definir a si próprio enquanto seu sócio-efetivo (REBELLO, 1889).

Tudo isso nos leva à compreensão de que, diferentemente do começo do século XIX, período em que João Manso presenciou dificuldades, de 1830 em diante, a ciência e a tecnologia ganharam um importante papel na sociedade. Chama a atenção o papel da SAIN e do seu periódico para a circulação da ciência entre a elite proprietária de terras no Brasil neste período, como afirma Rafael Marquese (2004). Leandro Malavota (2020) também compartilha desta opinião ao salientar a SAIN e a representatividade desta instituição para a elite daquela época:

Em suma, se até a primeira metade do século a agricultura, principal atividade econômica do país, pôde se expandir com base na superexploração do trabalho e dos recursos naturais, combinada à utilização de técnicas e recursos rudimentares, no contexto aqui analisado a tecnologia, antes secundária, passava a constituir um fator de produção relevante. (MALAVOTA, 2020, p. 23)

Aproveitando-se do espaço que a SAIN lhe oferecia, e de sua posição enquanto negociante e de homem ilustrado, é que Rebello (1833) se lançava à propor melhorias para a produção de açúcar, em direto diálogo com os homens dos engenhos. O autor deixava bem claro, em sua memória sobre o açúcar, que a única solução para o estado deficitário da produção é o acesso ao conhecimento científico. Rebello (1833) fez referência justamente à ancestralidade da produção açucareira no Brasil, que tinha como origem a produção das ilhas de São Tomé e nas Ilhas da Madeira, em outras palavras, de experiências portuguesas da colonização. Isso eliminaria, segundo ele, qualquer afirmação de que é a “tradição” que faz com que a produção seja aprimorada pelos homens, haja vista que nas Antilhas esta é mais recente do que no Brasil (REBELLO, 1833, p. 2). Rebello (1833) se afastava de uma posição conservadora em termos técnico-científicos:

O mesmo P. [Labat] sabia então o que nós deviamos saber hoje, isto he, que o homem deve estudar principios theoricos do ramo da industria de que vive, porque todas têem hum, e que esta applicação não o embaraça de cuidar do bom andamento da Administração Publica, antes lho facilita; e quando homens probos, e com idéas taes habitão hum paiz, não se têem certamente em vez de cousas uteis, diariamente impressas parvoices, sandices, mentiras, intrigas, vilanias, capazes de fazer arrepiar os cabellos até aos jumentos. (REBELLO, 1883, p. 2-3)

Jean-Baptiste Labat (1663-1738), ou Padre Labat, ao qual Rebello faz referência, foi um naturalista francês que, em viagem ao Havaí, desenvolveu um grandioso tratado sobre a produção de açúcar naquela região. Na ocasião, Labat além de descrever o estado da arte da produção na então colônia francesa, também propõe reformas, tendo sido ele próprio um senhor de engenho na região. A influência do naturalista francês sobre o comerciante carioca, no entanto, vai muito além do que apenas uma citação. Antes, no entanto, vejamos como o nosso autor constrói o seu texto.

A memória escrita por Rebello possui ao todo dezenove capítulos. No Capítulo I, Rebello lançou o problema a ser resolvido e que seu artigo queria lançar luz: “Se por nosso desleixo o assucar, principal producto d’este capital, fôr diminuindo de preço em consequencia da sua má qualidade, acabaremos por destruir hum tão avultado valor, que até ha poucos annos era a quarta parte das cousas com que pagavamos o que compravamos.” (REBELLO, 1833, p. 1). A questão a ser resolvida, como se percebe, era de ordem prática: tratava-se de melhorar a qualidade do açúcar.

Assim, além de se inserir como parte do problema (“nosso desleixo”), o que atesta mais uma vez a sua participação na Sociedade do Açúcar, o autor já indicava, sumariamente, aquilo que ele próprio acreditava ser a solução: “[…] que o remedio mais á mão he pelo menos a imitação do modo de trabalhar d’aqueles que vivem de identica industria; e foi por isso que ajuntei as idéas que vou expôr, as quaes são as que elles imprimem sobre a cultura da Cana, e a elaboração do assucar” (REBELLO, 1833, p. 2). Atente-se, portanto, que, na medida em que o problema era de ordem prática, as ideias “mais a mão” também deveriam ser.

No entanto, é no Capítulo III em que o tema central da memória aparece. Isto porque é nele que o comerciante irá expor ideias concretas para o aprimoramento da produção de açúcar. Esta proposta se dá em três passos. Primeiro, Rebello expõe que, somente a partir do conhecimento da quantidade exata dos compostos químicos (carbono, oxigênio e hidrogénio) do açúcar, é que, nas suas palavras, “[…] o Lavrador deve procurar no local aonde se resolve a fazer a sua plantação; os dous ultimos recebe-os, a Cana, do Céo; hum bem com o ar, e ambos juntos com as aguas; d’onde claramente se infere, que aguas da chuva ou de régas são absolutamente necessarias á Cana de assucar”. A proposta de Rebello (1833), no entanto, ganhava um aspecto mais prático na citação a seguir, em que o autor explicitava o que devia ser feito para a melhoria da plantação da cana:

[...] deve-se usar de estrume que contenha grande porção do mesmo carbonato, e como a cal contém muito, he da mesma cal que se deve fazer uso; e graça á Divina Providencia, os ingredientes, que abundão d’esta, são inexgotaveis na nossa Costa. (REBELLO, 1833, p. 6)

“Se não há terreno calcáreo, que o façamos!”. Este parece ser o lema que pode resumir bem o trecho acima exposto por Rebello. Aliás, como afirmamos, a cal é justamente um dos trunfos apresentados por Veloso (1799) e fruto de descobertas nas colônias francesas e de estudo de naturalistas, como é o caso do Dutrône. Percebe-se, portanto, que essa circulação foi adaptada a outras necessidades, como a própria plantação e a estrumação. Sobre esse tema também há uma discrepância bastante relevante com relação ao século anterior em que o senhor de engenho, após plantar as canas, sem nenhum tipo de estrumação, ficava dependente do céu (Deus) e também “o favor, ou contrariedade dos tempos” (ANTONIL, 1711, p. 38).

Nosso autor, embora seja um defensor, como ficou bem claro, dos avanços técnico-científicos, apostava em algumas medidas conservadoras, mas não com a justificativa rasa de que seria “melhor” ou “pior”, ou, como se poderia imaginar, simplesmente por achar que o “costume” de fazer de um jeito determinaria a sua continuidade. Ao contrário, Rebello chamava para o debate justificativas racionais para tal. É o caso, por exemplo, do uso do arado. Após a aplicação do estrume, Rebello afirmou que entre o arado e a enxada era melhor esta última. A explicação, no entanto, tinha razões claras:

As terras de maçapé muito pegajosas; as que tem muitas pedras firmes; as que por serem novas tem ainda muitas raizes; as de morros empinados; as Fazendas de pouca extensão; aquelas aonde os pastos são máos, provavelmente por falta de amanho do Lavrador; em fim razões locaes poderáo fazer com que convenha ao senhor de engenho o servir-se de enchadas; como cave bem as terras, tem feito partedo que se precisa para obter boas canas. (REBELLO, 1833, p. 9)

Neste trecho aparece uma vez mais o pragmatismo de que viemos tratando, pois aqui há um entendimento de que a ciência e a técnica deveriam ser apropriadas onde houvesse necessidade, não cabendo reformas substanciais em setores que se julgasse desnecessário. Em outras palavras, não se tratava de uma posição pró-reforma de maneira literal, mas sim aplicada quando melhor servisse aos atores e, portanto, trata-se de uma posição pragmática. Retomando a citação a Labat feita por Rebello (1833), que o considera um exemplo de homem de ciência, Veloso (1799), também faz referência a ele n’O Fazendeiro, de modo que se pode dizer que foi este último quem primeiro divulgou o livro de Labat (1722) “Noveau voyage aux isles d’Amerique” no Brasil. Este livro foi fundamental para os ilustrados brasileiros interessados no açúcar, não à toa Rafael Marquese (1997) o classifica como o livro fundante da literatura açucareira caribenha (MARQUESE, 1997, p. 147).

Mas além do utilitarismo, estes homens compartilhavam também da ideia de que o trabalho nos engenhos de açúcar não era algo que impossibilitava o seu estudo, antes lhes facilitava. Labat (1722) foi senhor de engenho no Caribe, assim como Rebello (1833) era um negociante de açúcar. Veloso, que não era diretamente ligado à produção, traduzia esta posição da seguinte maneira: “He por tanto indispensavel ao Cultivador o estudo, em todas estas vistas, de huma planta entregue ao seu cuidado [...]” (VELOSO, 1799, p. 31). É importante notar que a ideia de cultivador/agricultor naquele momento expressava não apenas a atividade de cultivo das terras, mas também um conservadorismo político-social no que se refere à estrutura estamental de sua época e da relação entre senhor de engenho e escravos como uma relação necessária para eles. Ambos os autores trataram do tema da escravidão como algo naturalizado, algo que de fato fazia parte do seu cotidiano, já que Labat (1722) possuía escravos e Rebello (1833), sendo próximo de senhores de engenho, não via problemas nisso.

Considerações finais

Através de evidências, como as citações utilizadas pelos naturalistas franceses e entre os ilustrados, além da própria concepção social e histórica que estes atores compartilhavam, pode-se afirmar que os naturalistas franceses tiveram grande impacto sobre os ilustrados luso-brasileiros, em particular na elite do açúcar que aqui analisamos através de seus textos. Na falta de modelos locais para fundamentar o surgimento de uma ciência do açúcar no Brasil, buscava-se exemplos distantes, porém de grande relevância no cenário internacional, tanto econômico quanto científico, que pudessem auxiliar através do exemplo e da “teoria”. Não havia exemplo maior do que a França, país de grandes naturalistas e possuidor de colônias com grande poder lucrativo com o açúcar.

Levando em consideração a diversidade de autores citados nos trabalhos aqui analisados – Dutrôni, Rozier e Labat –, a referência à história natural francesa guardava um ponto em comum que é a visão pragmática e conservadora que ambos compartilhavam. Isto a despeito das diferenças de datas de lançamento das obras destes autores, que ia desde o começo do século XVIII, e de que as suas obras possuíam perspectivas diversas, isto é, tratavam do mesmo tema (o açúcar, a planta cana-de-açúcar) mas de maneiras e sobre locais diferentes. Ainda assim, como vimos, as influências iam além de meras citações, pois os naturalistas franceses influenciaram claramente na literatura e nas técnicas do açúcar aqui analisada.

Ainda assim, pode-se questionar se esta literatura teve algum papel prático no processo de modernização da produção agrícola no Brasil. Sobre isso, pode-se alegar que não conseguimos demonstrar que estas propostas de reformas chegaram a serem postas em prática e que, portanto, a bibliografia que negou a existência de uma mentalidade pró-reforma e de inovações até pelo menos o final do século XIX ainda estaria correta. No entanto, não foi nosso objetivo negar a existência de atores pertencentes à elite proprietária de terras, em particular da elite açucareira, com posições antirreforma, haja vista que esta é uma preocupação presente no próprio discurso do grupo que aqui apresentamos, nem tão pouco queremos deslegitimar os importantes avanços que esta bibliografia proporcionou para o conhecimento da história do Brasil e para a crítica da sua elite.

O que queremos afirmar neste trabalho é a existência de um grupo, inclusive maior do que pudemos apresentar neste trabalho, trabalhando coletivamente para proporcionar um estudo científico sobre o açúcar, chamado de literatura do açúcar, que pudesse ser instrumentalizado, daí a ideia de ciência útil. Se elas foram ou não, o que quisemos apontar foi tão-somente a existência da circulação de ideias científicas e de ideias com característica pró-reforma pela elite açucareira do século XIX, algo negado pela literatura clássica. Os desafios encontrados por estes atores para disseminarem as suas ideias já foram bastante bem tratados por alguns pesquisadores.

Tratando especificamente da obra de Frei Veloso (1799), por exemplo, o historiador Robert Wegner (2004) aponta as dificuldades da circulação da sua obra no Brasil e chega até a questionar se ela possuiu realmente um poder de modificação social em sua época. Todavia, o autor conclui o seu trabalho afirmando a necessidade do desenvolvimento de estudos que analisem as instituições que conferiram formação aos ilustrados e assevera que por maiores que tenham sido os desafios de circulação desses livros no começo do século XIX, “[...] não significa que o movimento perca com isso seu caráter transformador. Ao contrário, mostra os meandros de sua ação e sua tentativa de reformar a sociedade” (WEGNER, 2004, p. 141).

Nos termos desta pesquisa, trata-se fundamentalmente de observar as conexões entre os dois momentos aqui analisados: a disseminação do livro O Fazendeiro do Brazil, com suas referências à história natural francesa, e a elaboração de memórias de autoria da elite açucareira com base nas mesmas referências. Como observamos, estes dois momentos se relacionam intrinsecamente, haja vista que foi devido ao trabalho de Veloso (1799) que se tornou possível o acesso à literatura científica francesa, como demonstrado. Esta referência, no entanto, não implicou apenas em uma mobilização de ideias científicas, de dados empíricos ligados à produção de açúcar e ao conhecimento da espécie, mas também tinha a ver com a mobilização de valores político-sociais da sociedade francesa e da sua ciência naquela época, como o conservadorismo e o pragmatismo.

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VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brazil, Melhorado na economia rural dos generos ja cultivados, e de outros, que se podem introduzir, e nas fabricas que lhe são proprias, segundo o melhor, que se tem escrito este assumpto: debaixo dos auspicios e de ordem de Sua Alteza Real o Principe do Brazil Nosso Senhor, Colligido de Memorias Estrangeiras por Fr. José Mariano da Conceição Velloso, Menor Reformado da Provincia da Conceição do Rio de Janeiro. Tomo I, Parte 2: Da cultura das canas, e factura do açúcar. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1799.

WEGNER, R. ‘Livros do Arco do Cego no Brasil Colonial’. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 11 (suplemento 1): 131-40, 2004.

Notas

1 Em Cultura e Opulencia do Brasil, o religioso Andre João Antonil (1711) descreveu com detalhes o processo de purgação do açúcar, detalhando o local de onde se retirava o barro para realizar os procedimentos, os Apicús (porções de terra que ficavam entre o mar e a terra firme, facilmente encontradas próximo aos engenhos situados no litoral) e o passo a passo da Casa de Purgar.


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