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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ESTRUTURA SOCIAL DA RÚSSIA TSARISTA

CONSIDERACIONES SOBRE LA ESTRUCTURA SOCIAL DE LA RUSIA ZARISTA

CONSIDERATIONS REGARDING TSARIST RUSSIA’S SOCIAL STRUCTURE

Luis Henrique de Freitas Calabresi
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Brasil

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ESTRUTURA SOCIAL DA RÚSSIA TSARISTA

Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 41, pp. 101-123, 2021

Universidade Federal da Grande Dourados

Fronteiras: Revista de História 2021

Recepción: 27 Enero 2021

Aprobación: 02 Junio 2021

Resumo: O presente artigo trata de aspectos da estrutura social da Rússia tsarista como as relações de servidão, o poder autocrático, a nobreza e os camponeses, estendendo-se ao processo de abolição da servidão em 1861. Este estudo foi realizado por meio de uma pesquisa bibliográfica. Concluiu-se que as relações de servidão constituíam uma pesada opressão sobre os camponeses russos, dentro de uma estrutura econômica baseada em uma agricultura atrasada. A autocracia e a nobreza concentravam o poder, que tendeu a se expandir ao longo do século XIX. Apesar de a servidão ter sido objeto de contestação por grupos progressistas e revolucionários durante o século XIX, a emancipação dos servos em 1861 foi conduzida de modo bastante limitado e visando a minimizar os prejuízos da nobreza, o que causou grande frustração aos camponeses.

Palavras-chave: Rússia tsarista, Estrutura social, Autocracia, Servidão.

Resumen: Este artículo aborda aspectos de la estructura social de la Rusia zarista, como las relaciones de servimdumbre, el poder autocrático, la nobleza y los campesinos, extendiéndose al proceso de abolición de la servimdumbre em 1861. Este estúdio se realizó a través de uma investigación bibliográfica. Se concluyó que las relaciones de servimdumbre constituian una fuerte opresión contra los campesinos rusos, dentro de una estructura económica basada en la agricultura atrasada. La autocracia y la nobleza concentraron el poder, que tendió a expandirse a lo largo del siglo XIX. Aunque la servimdumbre fue impugnada por grupos progressistas y revolucionarios durante el siglo XIX, la emancipación de los siervos em 1861 se llevó a cabo de manera muy limitada y tuvo como objetivo minimizar el daño a la nobleza, lo que provocó uma grande furstración em los campesinos.

Palabras clave: Rusia zarista, Estructura social, Autocracia, Servimdumbre.

Abstract: This paper addresses aspects of the social structure of Tsarist Russia, such as servile relations, the autocratic power, the nobility, the peasants, extending to the abolition of serfdom in 1861. This study was carried out through bibliographical research. It was concluded that servile relations constituted a heavy oppression against Russian peasants, within an economic structure based on a backward agriculture. Autocracy and nobility concentrated power, which tended to expand throughout the 19th century. Although serfdom had been contested by progressive and revolutionary groups during the 19th century, the emancipation of the serfs in 1861 was conducted in a very restricted way, aiming at reducing the nobility’s losses, which caused great frustration among peasants.

Keywords: Tsarist Russia, Social Structure, Autocracy, Serfdom.

Introdução

As origens da Rússia remontam à Rússia de Kiev, formada no século VIII, originada a partir de povos eslavos, asiáticos e escandinavos, que se organizava em cidades-estados ao longo do Rio Dniepre, praticando a agricultura e o comércio como atividades econômicas. Dos séculos XI ao XIII, a Rússia de Kiev sucumbiu ao domínio mongol, o que desencadeou um processo lento de deslocamento do centro do Estado russo da região de Kiev para Moscou, com o fortalecimento dos príncipes moscovitas. Após o domínio mongol, os grandes príncipes de Moscou foram gradualmente concentrando poder, ocorrendo o surgimento da figura do primeiro tsar com Ivan IV, chamado o Terrível. Esta concentração de poder culminou com o reinado de Pedro o Grande, em fins do século XVII, em um momento em que o poder autocrático se consolidou e teve início o período da Rússia Imperial, que permaneceu até a Revolução de 1917 (BUCHER, 2008).

A respeito da servidão, Blum (1961) considera que esta relação de dominação tem como marca distintiva os laços que prendem o camponês à terra de seu senhor. Entretanto, o autor pontua que diversos graus de intensidade podem ser observados, de modo que em momentos de exploração mais rigorosa, servos eram vendidos independentemente das terras às quais eram vinculados. Adicione-se também a existência de servos com status muito semelhante a escravos ou a homens praticamente livres, devendo a seus senhores o pagamento de obrigações de ordem bastante variável.

Quanto à Rússia, especificamente, este autor descreve um longo processo de formação e consolidação da servidão, que se inicia no século IX, estendendo-se até a segunda metade do século XVII, que estava vinculado à história econômica e política do país, especialmente em relação à instituição do poder central absoluto e às demandas deste sobre as classes proprietárias. A opressão sobre as massas de trabalhadores rurais russos não se reduziu somente a seu vínculo compulsório à terra em que trabalhava, mas também

[…] à pessoa de seu seignor, e sujeitos à sua vontade. Nas palavras do Svod Zakonov, o código de leis do século XIX, o camponês estava sujeito ao ‘poder privado e domínio’ de seu mestre. Para todos os efeitos e propósitos, os únicos direitos disponíveis a ele eram aqueles que seu senhor se dispusesse a lhe permitir. (BLUM, 1961, p. 276, tradução nossa)1

Para que se possa compreender, então, as relações de opressão entre senhores e servos faz-se necessário atentar para a centralização do poder estatal e seu impacto sobre as outras classes sociais. A este respeito Black e Seton-Watson (1969) afirmam que durante os séculos XVIII e XIX a Rússia tinha um poder centralizado no qual o Estado detinha uma autoridade e influência mais determinantes se comparada às outras grandes sociedades do período. Os autores prosseguem indicando que o Estado russo no século XIX era responsável pela administração direta ou pela regulamentação da maior parte dos setores de atividades sociais.

Black e Seton-Watson denominam o Estado centralizado russo como uma autocracia, tendo em vista que o poder político era investido na pessoa do autocrata, e aponta suas origens deste modo de governo no império bizantino, que posteriormente recebeu influências a partir das invasões tártaras e otomanas, atingindo uma formulação mais definida com os príncipes de Moscou durante os séculos XV e XVI, concluindo seu processo de consolidação autocrática e racionalização com Pedro, o Grande.2 Em linhas gerais, este modelo de Estado manter-se-ia até 1917.

Em relação ao papel exercido pelo Estado na sociedade russa, este tinha sob seu domínio direto dois quintos dos milhões de camponeses da Rússia ocidental e administrava muitas atividades econômicas. Dados estatísticos indicam que em 1794 a população de camponeses na Rússia era de 20 milhões, de um total de 36 milhões de habitantes em 1796 (BLUM, 1961; MOON, 2006). Para exemplificar a onipresença do Estado, pode-se considerar o fato de que estavam sob seu controle o Sínodo Sagrado, a Academia de Ciências, todas as instituições de ensino superior e a maiorias das instituições de níveis primário e secundário. Considerando a administração destas instâncias e um rígido exercício de censura, a influência exercida pela autocracia sobre a vida intelectual do império era extremamente abrangente. Mesmo ao se considerar os movimentos de mudança que ocorreram após a emancipação dos servos, o Estado concentrou para si um papel de liderança nestes acontecimentos. Para Black, esta onipresença do Estado teve como um de seus principais resultados uma forte influência sobre o modo como se constituiu a estratificação social, tendo em vista que a autocracia criou um sistema de cobrança de obrigações de serviço que se estendia aos diferentes grupos sociais que garantia a sua manutenção e o apoio proveniente das elites, em um contexto de uma economia agrária atrasada (BLACK; SETON-WATSON, 1969).

Uma proposta de divisão de grupos sociais para se compreender da estratificação social da sociedade russa se refere a dois grupos amplos, os privilegiados e não privilegiados. Em linhas gerais, os primeiros, formados pelos nobres e pelos cidadãos notáveis, que representavam entre um e dois por cento da população – composta por 36 milhões de habitantes em 1796 e por 74 milhões em 1858 –, estavam isentos de pagamento de impostos diretos, de punições corporais, tinham liberdade para viajar dentro do país, tiveram o direito de possuir servos até 1861, além da prerrogativa de participação na vida política russa.

O grupo dos não privilegiados:

[...] carregavam o fardo de sustentar os privilegiados e a pesada superestrutura do Estado. Os não privilegiados estavam sujeitos às restrições severas como a de movimento, além de outras formas de disciplina pessoal e social, e não tiveram nenhum acesso às posições dos privilegiados antes do meio do século XIX. (BLACK; SETON-WATSON, 1969, p. 482, tradução nossa).3

A respeito da consolidação do poder autocrático, Blum afirma que, no reinado do tsar Pedro I – 1682-1725 –, teve início uma série de grandes reformas que transformaram o tsarismo de Moscou em um império moderno. O aperfeiçoamento e ampliação do exército e da marinha, a expansão de territórios e de sua população, o aumento das relações comerciais internas e externas, e a importação de modelos educacionais e culturais europeus de vanguarda, fizeram que a Rússia se tornasse, a partir de Pedro I, uma grande potência europeia.

No entanto, todas estas reformas modernizadoras não afetaram as estruturas básicas desta sociedade, que permanecia feudal, e nem se estenderam ao campesinato. De modo contrário ao progresso que estava ocorrendo entre certos setores sociais, o caráter opressor das relações servis foi ainda mais intensificado durante este período, e estendeu-se a milhões de outros trabalhadores que haviam sido livres até então. Desta maneira, o campesinato servil firmou-se rigidamente como a base econômica e social do império, mais do que havia sido ao longo dos governos dos tsares anteriores. Do início do período imperial até a emancipação dos servos, a agricultura constituiu a principal atividade econômica, de modo que a Rússia era dependente desta atividade (BLUM, 1961).

Durante o período imperial a população russa era composta majoritariamente por camponeses, e a atividade agrícola era a atividade econômica primordial (MOON, 2006). Dados estatísticos mostram que às vésperas da emancipação dos servos, em 1861, dentro de uma população total do império de 74 milhões de habitantes, menos de oito por cento vivia em cidades, e uma quantidade de habitantes menor do que um milhão se ocupava em atividades fabris. Em relação ao restante da população, quase todos se ocupavam da agricultura (BLUM, 1961). De acordo com Moon,

O Estado autocrático russo fora muito bem-sucedido na exploração de sua população camponesa e da economia agrícola para gerar recursos, em particular a arrecadação de impostos e recrutas militares, para consolidar e manter seu poder internamente e construir um vasto império que dominou a Europa oriental e o norte da Ásia. Os camponeses da Rússia Imperial estavam, portanto, na base de uma ordem social exploradora. (MOON, 2006, p. 369, tradução nossa)4

A despeito dos diversos avanços ocorridos em outras áreas econômicas no período inaugurado por Pedro I, as atividades agrárias permaneceram praticamente as mesmas adotadas ao longo de vários séculos (BLUM, 1961). A vastidão do império russo era enganosa, visto que apenas uma pequena parte de seu território era composta por terras férteis, sendo o restante, em linhas gerais, acometido por terras inférteis e climas pouco propícios à agricultura. (BLACK; SETON-WATSON, 1969).

Além das dificuldades advindas da exiguidade dos recursos naturais, a atitude dos proprietários de terras e as técnicas agrícolas empregadas também foram fatores que contribuíram para o atraso da economia russa desse período, visto que muitos deles somente preocupava-se com o recebimento das rendas de suas terras. Acrescente-se que uma parte muito representativa destes senhores vivia distante de suas propriedades, em cidades e em ocupações de serviço estatal, sem tempo nem interesse na administração direta de suas fazendas (BLUM, 1961).

O sistema de comunicações do império caracterizava-se como um fator adicional que contribuía para o atraso do desenvolvimento da economia agrária, considerando-se que os produtos rurais encontravam inúmeros obstáculos para chegarem até as áreas de mercados. Estas dificuldades e riscos desencorajavam o aperfeiçoamento do cultivo ou mesmo a ampliação da produção.

Ascensão e consolidação do poder da nobreza

Durante o século XVIII ocorreu em toda a Europa um fenômeno de ascensão dos grupos pertencentes à nobreza, em uma espécie de reação feudal, na qual os nobres reivindicavam antigos privilégios e a extensão de seus poderes políticos e econômicos. Contudo, é importante ressaltar particularidades da manifestação deste fenômeno na Rússia. Enquanto em outros países este reavivamento da nobreza durou relativamente pouco tempo, devido a revoluções, centralizações, burocratizações e reformas parlamentares, na Rússia os nobres consolidaram seu poder de modo mais duradouro, por meio da afirmação de sua liberdade perante as imposições de serviço estatal, conseguindo pela primeira vez ter seus privilégios de classe reconhecidos em estatutos. Os nobres russos alcançaram exclusividade sobre o direito de possuir terras e servos e de tratar estes últimos como suas propriedades, além influenciarem da derrubada de tsares e assumirem as administrações provinciais (BLUM, 1961).

É importante destacar também que na Rússia, anteriormente ao reinado do tsar Pedro I, a nobreza não tinha uma definição clara e formal de seu estatuto enquanto grupo social. Seus privilégios, ao invés, advinham majoritariamente de critérios de ancestralidade das famílias. Somente a partir das reformas implementadas por Pedro I, a nobreza adquiriu uma coesão de classe. Dentre as iniciativas de modernização introduzidas por este tsar estava o conceito segundo o qual o prestígio social estava atrelado ao serviço prestado ao Estado, e não à ancestralidade. As medidas petrinas de vinculação do privilégio dos nobres ao serviço ao Estado tiveram origem nas enormes demandas por oficiais para servir as forças armadas e por administradores para a burocracia em expansão. Deste modo, somente teriam acesso aos privilégios exclusivos da nobreza aqueles que se colocassem a serviço do tsar, excluindo-se o enobrecimento obtido via ancestralidade e linhagem.

Pedro I criou, em 1722, a sua notória Tabela de Graduações, que ordenava o serviço imperial em 14 graduações, coexistentes paralelamente para o serviço civil, militar e para as cortes imperiais. De acordo com esta Tabela, todos os servidores do império deveriam iniciar seu serviço a partir da primeira graduação, mesmo que pertencessem a famílias aristocráticas, e subir para os níveis seguintes segundo critérios de mérito e de tempo de trabalho. A obtenção da nobreza hereditária de acordo com este sistema, ocorria ao se atingir a décima quarta graduação - a mais baixa – na carreira militar, ou a oitava no serviço civil, de assessor colegiado.

Segundo Wirtschafter (2006), as graduações inferiores no serviço civil, que iam da décima quarta até a nona, conferiam nobreza pessoal, título que garantia todos os direitos e privilégios da nobreza hereditária, com a única diferença de não ser transmitida à próxima geração. De acordo com Blum (1961), este sistema, que forçava os jovens aristocratas a conquistar a nobreza hereditária por meio do merecimento e do serviço, permitia, por outro lado, que servidores dedicados de nascimento não nobre também se enobrecessem. Lieven (2006) acrescenta que esta legislação petrina atribuiu contornos definidos acerca da nobreza hereditária, determinando quem seriam seus membros e quais seus direitos e deveres.

Com apenas pequenas alterações, esta lei permaneceu em vigor e teve grande impacto na organização do serviço estatal, e, por conseguinte, na composição da nobreza, até 1917. Foi, portanto, esta relação entre serviço estatal e privilégios que consolidou a nobreza como um grupo social coeso, ligado por interesses em comum, embora sempre permanecendo submetido ao Estado (BLUM, 1961).

Durante os séculos XVIII e XIX, porém, o número de membros da nobreza cresceu consistentemente, considerando que indivíduos não pertencentes às antigas famílias aristocráticas encontravam possibilidades de enobrecimento pela ascensão na Tabela de Graduações. A este respeito, observa Lieven (2006) que inicialmente a nobreza hereditária era composta, pelos membros das famílias mais tradicionais, que já carregavam consigo uma grande ancestralidade, títulos, riqueza, e haviam sido nobres por muitas gerações. Estas famílias eram proprietárias de vastas extensões de terras e formavam o que este autor denominou como o núcleo da aristocracia. No entanto, o processo de modernização pelo qual a Rússia passou, especialmente no século XIX, demandava funcionários para a burocracia civil e para os postos militares em números de homens que iam muito além do que a aristocracia poderia suprir. Devido a uma enorme necessidade de preencher os quadros demandados pelo Estado, houve um vultoso número de enobrecimento via serviço estatal, especialmente para alimentar a burocracia crescente.

Por este motivo, havia grande divisões dentro deste grupo. Os nobres aristocráticos, “de sangue”, julgavam-se superiores, e tinham maiores prerrogativas e privilégios em relação aos funcionários que enobrecerem-se por meio de serviço estatal, estes últimos considerados arrivistas, de segunda categoria.

Quanto mais alta a posição que se ocupava na sociedade russa, maior era a orientação em direção à cultura europeia ocidental. Considerando-se a alta valorização de modelos ocidentais, “[...] desde a cultura literária às vestimentas da moda e modernização administrativa” (LIEVEN, 2006, p. 237, tradução nossa),5 observou-se que várias línguas europeias, além do francês, também alcançaram um alto grau de prestígio entre as elites russas, e em termos culturais, a Rússia era muito mais próxima da Europa do que da Ásia. Este autor chega a afirmar, talvez com um certo exagero, que as elites educadas russas eram mais europeias do que os próprios países europeus ocidentais e centrais, tais como Inglaterra, França e Alemanha.

Entretanto, ainda que ocorressem diferenciações internas, a partir do reinado de Pedro I, a nobreza adquiriu um senso de coesão, de corporação, e passou a articular suas demandas para a garantia e expansão de seus interesses segundo este espírito de unidade. Ao longo do século XVIII, com a sucessão de tsares menos severos, ocorreu uma enorme extensão do poder dos nobres, que assumiram papéis decisivos no governo, tanto central quanto provincial e alcançaram um relativo afrouxamento em suas obrigações de serviço estatal. Contudo, esta expansão dos poderes dos nobres não implicava uma retração da autoridade autocrática do Estado, que se sobrepunha à aristocracia (BLUM, 1961).

Contudo, Lieven (2006) observa que, mesmo após o relaxamento do serviço estatal compulsório aos nobres, uma ética de serviço permanecera, considerando-se o caso de muitos jovens pertencentes a famílias muito abastadas que serviam ao Estado por alguns anos, preferencialmente nos postos militares, e em alguns casos na burocracia, antes de retirarem-se para uma vida de tranquilidade em suas propriedades rurais.

De modo diverso ao que ocorria em outros países da Europa ocidental, a riqueza de um nobre na Rússia não era avaliada majoritariamente em termos de quantidade de posses de terras, mas em relação ao número de servos do sexo masculino, ou almas, que este possuía. No fim do século XVIII e durante o século XIX, de modo geral, os proprietários mais abastados possuíam milhares de camponeses em suas propriedades, e os de riqueza moderada possuíam por volta de quinhentas almas, considerando-se, especialmente, as vultosas doações recebidas dos tsares e o aumento populacional pelo qual passava o império. Blum, entretanto, pondera que os abastados e moderadamente ricos compunham uma minoria dentro da nobreza. Dados deste período indicam que a maior parte dos proprietários possuía menos do que cem servos, e que estes eram distribuídos de modo bastante irregular entre os senhores.

Os camponeses na Rússia tsarista

O recrudescimento da opressão sobre os camponeses pode ser compreendido em um contexto em que Pedro I e seus sucessores necessitavam de homens para formar quadros governamentais e importantes funções estatais no império russo em expansão, e a nobreza foi escolhida para tal. Para que os nobres tivessem melhores condições de cumprir suas atribuições perante o Estado, seus direitos sobre os servos foram expandidos. O resultado destas medidas foi o acirramento contínuo da exploração senhorial exercida sobre seus camponeses com o fito de extrair deles o máximo de vantagens. Os poderes dos proprietários sobre seus servos eram, por lei, quase ilimitados, e, na prática, os senhores dispunham sobre a vida de seus trabalhadores como bem entendessem, exercendo sobre eles os poderes de justiça e de polícia (BLUM, 1961).

Dificilmente o Estado interviria na relação senhores e servos, salvo em alguns casos de extrema brutalidade, até mesmo pelo fato de que estes últimos eram submetidos de modo mais severo a seus senhores do que aos próprios soberanos. Isto fez com que os servos recebessem, de modo geral, tratamento muito semelhante ao reservado a escravos, e, ainda que contrariando a lei, fossem vendidos separadamente da terra à qual eram vinculados. Acrescente-se a este contexto o fato de que os servos eram proibidos legalmente de prestar queixas oficiais contra seus senhores visto que a lei determinava que eles se mantivessem em obediência silenciosa. Caso testemunhassem contra seus proprietários, as cortes e a polícia, compostas por membros da nobreza, praticamente anulariam as chances de que os camponeses ganhassem suas demandas. Possivelmente, tais processos fomentariam represálias posteriores.

A partir das prerrogativas do exercício dos poderes de justiça e de polícia, a autoridade senhorial se estendia também ao controle da vida privada de seus servos. Os proprietários incentivavam, e frequentemente forçavam, mesmo em desacordo com a lei, casamentos entre servos de sua propriedade, com a finalidade de aumentar seu número de almas. Da mesma forma, as servas eram proibidas de se casarem com servos de outras propriedades, e somente poderiam fazê-lo com o consentimento expresso de seu senhor, o que incluía o pagamento de uma alta compensação. Alguns aristocratas consideravam que a geração de filhos era parte das obrigações de seus servos (BLUM, 1961).

A legislação governamental não priorizava normas relacionadas ao bem-estar e à proteção dos servos. Isso não necessariamente implicava que todos os senhores tratavam seus trabalhadores barbaramente, considerando-se que um número considerável deles utilizava uma certa moderação, até mesmo por razões econômicas. No entanto, é possível ponderar que:

[...] o controle quase ilimitado que o senhor tinha sobre suas pessoas, o fato de que os servos não tinham meios legais para protegerem-se contra seus excessos, e, talvez mais importante, a ausência de desaprovação social entre seus pares proprietários de servos se ele maltratasse seus camponeses, abria as portas para a insensibilidade, e frequentemente para a brutalidade. Estrangeiros chocavam-se quando ouviam pessoas elegantes e proeminentes conversarem sobre chicotadas que eles aplicaram em seus servos, ou um nobre, em seu clube, orgulhar-se diante de uma plateia favorável por haver sentenciado três de seus servos a quase o triplo do número golpes com bastão permitidos por lei. O servo vivia sempre à mercê dos caprichos, dos apetites e do temperamento de seu proprietário. (BLUM, 1961, p. 437, tradução nossa)6

Os camponeses que serviam dentro das casas de seus senhores estavam mais expostos à tirania destes. Dentre os chamados servos domésticos, as mulheres não tinham recursos para se defender da violência sexual de seus proprietários, que por vezes chegavam a montar haréns. Um visitante estrangeiro na Rússia neste período, de nacionalidade francesa, exprimiu sua perplexidade diante da opressão exercida pelos senhores sobre os servos, que julgava ser mais acentuada “do que a de qualquer soberano do mundo” (BLUM, 1961, p. 440, tradução nossa).7 A despeito do caráter hiperbólico desta afirmação, a comparação entre a posição de autocratas de outros países, notadamente da Europa ocidental, e da classe senhorial russa, é bastante significativa. Segundo este viajante: “[...]a autoridade de um monarca déspota era limitada pela lei, pelo costume e pela opinião pública, mas na Rússia estas forças forneciam suporte e ampliavam as prerrogativas dos senhores” (BLUM, 1961, p. 440-441, tradução nossa).8

Tendo a seu favor a lei e o costume, previamente citados, e estando os proprietários livres para dispor de seus servos como melhor lhes aprouvesse, foi criada uma imensa diversidade de trabalhos servis. No entanto, há, de modo geral, duas características principais, que funcionavam como eixos articuladores das obrigações de serviço impostas aos camponeses e eram comuns na maior parte do território russo. Estas eram, expressas em termos da língua russa, barchtchina e obrok.

Segundo Blum, a barchtchina, considerada mais rigorosa, referia-se a tributos pagos em forma de trabalho, especialmente trabalho exercido em fazendas. Este tipo de trabalho não se restringia a ocupações da agricultura, mas também ao corte de madeira, a serviços de construção, manutenção, vigilância e costura. Por não haver regulamentação oficial acerca de um número de dias de trabalho semanais, era possível que proprietários demandassem cinco, seis ou até sete dias por semana de barchtchina nas terras senhoriais. Neste caso, aos camponeses só restavam as noites, domingos e feriados para trabalhar para si em seus lotes dentro das comunas camponesas. Porém, como regra geral, a barchtchina era constituída por três dias de trabalho semanais nas terras dos proprietários.

O obrok, por outro lado, era visto como mais leve, e, inicialmente, consistia no pagamento de obrigações em espécie, de gêneros provenientes das colheitas a pequenos itens produzidos por meio de práticas artesanais tradicionais. A partir dos séculos XVI e XVII, devido à ampliação da circulação monetária, do crescente apetite da nobreza pelo consumo de artigos da última moda ocidentais, e do consequente endividamento desta classe, este tributo passou a ser cobrado com mais frequência em dinheiro. As vantagens do obrok para os camponeses referiam-se, devido à própria natureza deste tributo, à menor supervisão direta por parte dos nobres ou de seus administradores, o que os tornava menos sujeitos aos caprichos e brutalidades senhoriais. Além disso, os servos submetidos a este tipo de obrigação conseguiam autorização para deixar suas vilas e desempenhar outros trabalhos, tais como operários nas poucas fábricas existentes, em transportes, em pequenos comércios ou em artesanato, o que os permitia manter a posse de seus ganhos que excediam os valores cobrados pela obrigação do obrok.

Os servos submetidos às obrigações de barchtchina e de obrok, sofriam grande opressão e cumpriam suas obrigações com grandes dificuldades. No entanto, estes camponeses tinham pequenos lotes dentro das comunas camponesas reservados para seu próprio cultivo, além de suas ferramentas, e dedicavam-se a trabalhar para si mesmos nos intervalos das obrigações senhoriais. Os servos domésticos, citados anteriormente, viviam em piores situações. Estes não contavam com nenhum tipo de posse, de qualquer natureza, e nem dispunham de uma parte de seu tempo para trabalhar para si, pois deveriam dedicar toda a sua vida servindo a seu senhor, normalmente habitando a própria residência senhorial ou cabanas próximas.

Em relação às funções a serem exercidas pelos camponeses domésticos, também não havia determinações e limitações definidas por lei, ocorrendo uma grande variação de trabalhos a serem realizados. Dentre estes, as ocupações consideradas mais comuns à maioria dos servos domésticos eram as de mordomos, cozinheiros, criadas, costureiras e enfermeiras. Outros afazeres referiam-se à jardinagem, carpintaria, alfaiataria e ao trabalho nos estábulos. Proprietários mais abastados e excêntricos mantinham orquestras inteiras compostas somente por seus camponeses, além de servos cantores, compositores e autores literários. Estes refinamentos artísticos eram exibidos pelos proprietários como motivo de ostentação diante de visitantes estrangeiros.

Visitantes de países da Europa ocidental se impressionavam com a quantidade abundante de camponeses que serviam seus senhores mais ricos no interior de suas suntuosas casas com modos polidos, exagerados e teatrais. Blum afirma que o número médio de servos de um proprietário russo ultrapassava de três a cinco vezes este mesmo número de um proprietário de posição econômica semelhante em outros países europeus.

Esta situação de grande opressão foi caracterizada por Blum como dependência completa, o que causava um altíssimo grau de deterioração moral. Em suas palavras:

Sua completa dependência e seu desamparo parecem ter aniquilado a vitalidade e o respeito próprio de muitos dos dvorovye liudi – servos domésticos. O acúmulo de serviçais em muitas casas tornava a situação ainda pior, pois não havia trabalho suficiente para mantê-los ocupados, e as horas vagas de inatividade desmoralizavam-nos ainda mais. Eles brigavam entre si, furtavam a despensa e os celeiros e as despensas de seus mestres e julgava-se que eram geralmente infelizes. (BLUM, 1961, p. 458, tradução nossa)9

Além das obrigações que os servos prestavam aos seus senhores, havia também os deveres impostos pelo Estado, que ampliavam o peso de sua exploração. As duas exigências estatais mais impactantes na vida do campesinato eram o imposto por alma e o recrutamento para o serviço militar. Devido à necessidade de aumento de arrecadação do Estado em modernização e a subsequente expansão das forças armadas russas no início do século XVIII, a cobrança de imposto passou a ser por alma, ou seja, taxado sobre cada indivíduo do sexo masculino e não mais conforme a prática anterior, que usava como critério a unidade familiar. Estavam isentos deste imposto os homens pertencentes à nobreza, ao clero, e a outros grupos minoritários pouco representativos (BLUM, 1961).

A outra grande obrigação dos servos perante o Estado era o serviço militar. Sua introdução de maneira sistemática ocorreu no reinado de Pedro I, por ocasião de guerras contra a Suécia, e passou a integrar a vida russa a partir de então, e incidiam especialmente sobre os camponeses. Moon (2006) afirma que as convocações militares constituíam um fardo muito pesado para os camponeses, e cita, como exemplo, que entre os anos de 1720 e 1867 foram convocados mais de sete milhões de homens, a grande maioria destes composta por camponeses.

Todavia, em relação aos camponeses enquanto grupo, é possível afirmar que nem todos eles eram propriedade de senhores particulares. Uma quantidade considerável deles pertencia ao Estado. Os camponeses estatais, também chamado de não-senhoriais, representavam um pouco mais do que a metade de todos os camponeses do império na metade do século XIX. De modo geral, eles tinham um pouco mais de controle sobre suas vidas e suas ações do que os servos privados. Entretanto, os camponeses do Estado não tinham garantias da continuidade de sua condição, pois, ao serem considerados propriedades particulares dos tsares, juntamente com as terras em que trabalhavam, poderiam ser doados a senhores a qualquer momento (BLUM, 1961).

Críticas à servidão

Ao longo do período imperial, surgiram críticas à servidão, que propunham questionamentos acerca da viabilidade deste sistema, chegando mesmo a apontar para a sua possível autodestruição. Para que isso não ocorresse, foram elaboradas várias alternativas em torno da modificação da principal instituição da ordem imperial russa, ou seja, da servidão. Este tema é bastante complexo, impregnado por interesses conflitantes. De acordo com Blum, começaram a surgir posições, notadamente entre intelectuais, segundo as quais a abolição das relações de trabalho servis deveria ser realizada para se evitar o colapso do império.

O ponto de vista dos intelectuais teve, de acordo com Blum (1961), uma contribuição para a abolição da servidão difícil de se mensurar devido à forte censura estatal e ao altamente reduzido círculo de leitores da Rússia imperial. Todavia, este grupo composto por literatos, acadêmicos, jornalistas e pensadores políticos e sociais exerceu grande influência na crítica à servidão, especialmente por meio da divulgação de ideias e da formação ideológica de indivíduos que ocupariam posições de poder.

As primeiras críticas dos intelectuais à servidão tiveram início ainda no final do século XVIII e foram o produto da entrada das ideias liberais iluministas na alta sociedade russa. Discutia-se, à época, a chamada questão camponesa, e alguns membros da nobreza assumiram posições críticas por iniciativas de imprensa satírica. Uma das críticas mais audazes deste período foi desferida por Radichtchev, um jovem nobre oriundo de uma família muito abastada, que estudara em Leipzig, na atual Alemanha. Burlando a censura, ele publicou uma obra intitulada Viagem de São Petersburgo a Moscou, influenciada pelo romance Viagem Sentimental, do então muito prestigiado autor irlandês Laurence Sterne, por meio da qual ele expunha as agruras vividas por camponeses.

A tsarina Catarina II – cujo reinado estendeu-se de 1762 a 1796 –, que se orgulhava de seu esclarecimento e de suas conexões com Voltaire, ficou horrorizada com esta publicação e ordenou a condenação de Radichtchev ao cumprimento de pena na Sibéria.

Durante o primeiro quartel do século XIX, no reinado do tsar Alexandre I – 1801-1825 –, os posicionamentos críticos dos intelectuais restringiram-se a ideias e publicações, em sua maioria acadêmicas. Isto ocorreu até o ano de 1825, por ocasião do falecimento de Alexandre I, quando aconteceu a primeira revolta armada de intelectuais contra o tsarismo. A chamada Revolução Dezembrista ocorreu durante a transição sucessória, antes que o tsar Nicolau I pudesse assumir o poder. Os revoltosos eram intelectuais nobres, parte deles originários das famílias mais abastadas e poderosas, que haviam recebido sua formação intelectual a partir das matrizes de pensamento ocidentais, com teorias políticas ilustradas, adquiridas via cursos de educação formal, viagens para o estrangeiro, leituras e correspondências. O objetivo dos dezembristas, que haviam se preparado sua ação revolucionária por meio de reuniões secretas, era o estabelecimento de uma monarquia constitucional e o reinado de um tsar mais liberal. Embora a finalidade principal desta revolta fosse política, a questão da servidão, ainda que em segundo plano, também constava em seu programa de ação.

Em virtude de vários fatores, tais como a falta de preparo e de estratégia dos dezembristas e de seu pequeno número, esta revolta foi reprimida com muita facilidade pelas forças oficiais. Blum (1961) pondera, contudo, que apesar do fracasso deste levante, não se pode diminuir sua importância no movimento mais amplo dos protestos contra a autocracia. Segundo este autor, alguns fatores atribuem a esta revolução contra a autocracia uma grande notoriedade, como, por exemplo, o fato de seus membros serem nobres que fizeram uso de armas e que estavam lutando por liberdade para além de sua própria classe, considerando-se que a supressão da servidão integrava seu programa de reformas – ainda que houvesse uma multiplicidade de propostas e não houvesse unanimidade acerca da questão da abolição da servidão.

Uma consequência que se fez sentir imediatamente à repressão aos dezembristas e à ascensão do tsar Nicolau I foi uma grande apreensão do governo em relação a protestos e descontentamentos por parte das elites intelectuais, o que levou ao estabelecimento, por parte da autocracia, de um sistema de vigilância ideológica e repressão implacáveis. Ironicamente, justamente nas décadas seguintes a 1825 ocorreu uma elevação na quantidade de intelectuais dotados de posicionamentos críticos, dentre os quais destacaram-se Alexandre Herzen e Vissarion Bielínski. Esta época é conhecida como a era de ouro da cultura russa.

Neste período aconteceu um imenso florescimento intelectual na Rússia, no qual se testemunhou o surgimento de pensadores e artistas extremamente sofisticados, que criticavam duramente vários elementos da ordem tsarista, entre eles a servidão, e que exerceram um grande impacto sobre o reduzido número de leitores da época. Devido à truculência da censura, especialmente dirigida a obras impressas, estes intelectuais tiveram que lançar mão de alguns recursos para difundir suas ideias, como, por exemplo, a circulação de textos, copiados ou impressos no exterior e enviados ilegalmente, que também poderiam ser divulgados boca a boca, e em discussões realizadas em grupos secretos. Um aspecto ideológico contraditório destas manifestações era perceptível devido ao grande número de intelectuais críticos dos anos 1820, membros da elite, dentre eles alguns donos de servos, que denunciavam com veemência a crueldade e imoralidade das relações de trabalho servis.

É fundamental destacar que, no decorrer dos trinta anos do reinado de Nicolau I – 1825 – 1855 –, ocorreu uma transformação gradual na composição social deste pequeno grupo intelectual. Formado inicialmente por jovens membros da nobreza, gradualmente passou a incorporar em seus quadros indivíduos provenientes de classes médias, como filhos de mercadores e de religiosos que tinham acesso a universidades e a outras instituições de ensino. Estes estudantes não aristocratas – também denominados como raznochintsy, indivíduos oriundos de classes variadas – iriam desempenhar um papel de destaque dentre a intelectualidade crítica, fornecendo uma relevante contribuição ao grupo da intelligentsia que seria formada nos anos posteriores. (BLUM, 1961)

Conforme mencionado anteriormente, os pensadores e artistas do século XIX que surgiram na Rússia a partir de 1825 deram corpo, com sua intensa atividade, à notória era de ouro da cultura russa. O setor que alcançou maior destaque dentro deste movimento foi a literatura, que teve entre seus mais distintos representantes artistas da estatura de Púchkin, Lermontov, Gogol, Nekrassov, Grigoróvitch, Turguéniev, Dostoievski, Gontcharov e Tolstói. Esta literatura é considerada sofisticadíssima, capaz de ombrear com todas as outras grandes produções literárias internacionais.

É sobremaneira importante destacar o fato de que, devido à situação política de forte autoritarismo e centralização da autocracia e de sua repressão política e ideológica, a literatura tornou-se o principal meio de divulgações de posicionamentos intelectuais críticos em relação à situação vigente, e, em várias ocasiões, desferiu severas críticas à servidão. Este dispositivo de crítica formou-se de modo bem-sucedido, visto que estes escritores talentosos conseguiram criar narrativas que, por expressarem suas mensagens a favor dos oprimidos e desfavoráveis aos opressores de modo não explícito, burlavam a forte censura estatal da época.

Os autores literários da época fizeram uso do realismo, por meio do qual os servos e os senhores eram representados evitando o uso de idealizações e recursos românticos. Acerca do realismo literário russo do século XIX e seus escritores, Blum afirma:

Eles não buscavam romantizar os camponeses quando escreviam sobre eles. Eles odiavam a servidão porque sabiam que era errado que um homem possuísse outro, e porque eles sabiam que tanto os senhores quanto os servos eram igualmente maculados por ela. Esta era a história que eles contavam. Era um tipo de realismo devastador. Mesmo o leitor de hoje ainda estremece diante das crueldades conscientes e inconscientes, aflige-se pelos injustiçados e é mortificado pela estupidez, rudeza e crueldade que eles narravam em seus livros e histórias. (BLUM, 1961, p. 568, tradução nossa)10

Estas produções literárias tiveram um grande impacto sobre o pequeno público leitor da época, especialmente sobre aqueles indivíduos que já traziam consigo dúvidas e questionamentos a respeito da servidão. Uma contraposição importante entre os autores literários e os pensadores políticos e sociais da era de ouro da cultura russa era que, ao contrário dos segundos, os literatos concentravam seus esforços e energias em criticar a servidão, denunciar sua opressão desumanizadora e enunciar seus efeitos deletérios, sem, no entanto, propor projetos com vistas à superação das relações servis de trabalho.

De modo bastante diverso dos grupos intelectuais, os proprietários de terras e servos não se sensibilizaram com estas críticas à servidão e não apresentaram interesse em acabar com ela, exceto por uma minoria de senhores esclarecidos que chegou a considerar a necessidade de algum tipo de reforma. Do ponto de vista dos proprietários da época, havia uma ideologia senhorial muito forte que exercia um papel legitimador em relação à servidão. Blum observa que vários senhores e indivíduos de grande proeminência manifestaram-se em defesa da servidão e cita o posicionamento de alguns deles, dentre estes um procurador geral do senado, que, a respeito de uma proposta reformista de 1803, afirmou que está “[...] ameaçaria a sociedade, provocaria distúrbios, não seria bom para senhores e para camponeses, e chamou os homens que a elaboraram de um ‘bando de jacobinos’” (BLUM, 1961, p. 569, tradução nossa),11 e o célebre historiador Nicolau Karamzim, que considerava que “[...] sem a tutela de seus senhores os camponeses iriam dedicar-se a bebedeiras, vadiagem e crimes, e ameaçar a segurança do reino. Ele considerava a servidão como a ordem natural das coisas” (BLUM, 1961, p. 569-570, tradução nossa).12

Também pode ser adicionada a estes posicionamentos conservadores a opinião do conde Uvarov, ministro da educação durante o reinado de Nicolau I – que ganhou notoriedade pela criação do lema Ortodoxia, Autocracia e Nacionalidade – segundo o qual “[...] mexer com a servidão seria desastroso ao Estado. Pois os proprietários de servos exigiriam compensações por suas perdas às custas do poder autocrático do tsar” (BLUM, 1961, p. 570, tradução nossa),13 e as preocupações de um ministro de Assuntos Estrangeiros, em 1843, que, perante propostas de emancipação, “[…] advertiu que se os camponeses recebessem sua liberdade, eles a usariam mal” (BLUM, 1961, 570, tradução nossa)14 Havia também uma crença entre grande parte das elites segundo a qual, caso a emancipação viesse a acontecer, os servos não mais obedeceriam aos senhores das terras e nem aos chefes da comunas camponesas, afastando-se do trabalho e entregando-se a vícios, à ociosidade e comportamentos completamente desregrados.

Processo de desagregação da servidão e seus desdobramentos

Durante a década de 1850, a situação da servidão mudaria dramaticamente. Além de pressões de manifestações dos intelectuais, de levantes camponeses e de membros da alta burocracia partidários das reformas, um acontecimento inesperado acelerou o processo de queda da servidão. A derrota na Guerra da Criméia, travada de 1853 a 1856, entre a Rússia, de um dos lados, e uma aliança formada pelos impérios britânico, francês, otomano e o reino da Sardenha, do outro lado.

Esta derrota humilhante expôs, de modo inequívoco, os enormes problemas estruturais do Estado russo, seu atraso e suas deficiências. No pós-guerra, os círculos letrados do país – a despeito de perspectivas diferentes, e até mesmo opostas – adotaram uma posição segundo a qual a Rússia deveria, obrigatoriamente, realizar uma série de reformas para que pudesse acompanhar as grandes potências europeias, com destaque para a emancipação do trabalho servil. Conforme Blum (1961), apesar da amarga derrota militar, o fim da Guerra da Criméia permitiu que a Rússia voltasse seu olhar e seus recursos primordialmente a assuntos internos.

O tsar Alexandre II – cujo reinado estendeu-se de 1855 a 1881 –, portanto, assumiu o trono neste contexto de necessidade de reformas, e manifestou sua posição de que a servidão deveria ser eliminada. Apesar de todas as pressões em contrário, a emancipação dos servos foi decretada em cinco de março de 1861 – 19 de fevereiro de 1861 no calendário russo. O resultado foi extremamente desfavorável e decepcionante para os servos, conferindo, por outro lado, concessões aos proprietários de terras. Os servos receberam a liberdade, mas sem direito à terra, e deveriam, a partir de então, pagar pelos lotes de terra que haviam utilizado até a emancipação. Em certos casos, os camponeses pagariam para utilizar áreas de terra menores do que as que cultivavam como servos, e, para dificultar ainda mais a situação, a liberdade não seria atribuída neste momento.

Como consequência dos termos desfavoráveis aos camponeses, e da linguagem extremamente complexa, obscura – engendrando problemas de interpretação –, e extensa – 400 páginas impressas – por meio da qual a Lei da Emancipação fora redigida, houve uma série de protestos violentos por parte dos servos. Estas manifestações, entretanto, receberam duras repressões governamentais com utilização de açoites, execuções e aprisionamentos na Sibéria em larga escala (BLUM, 1961).

A rigor, a Lei da Emancipação dos servos tornava os camponeses livres, mas ressalvava que deveria haver um período de transição até que estes pudessem desfrutar de uma liberdade plena. Durante este ínterim, os camponeses ainda eram obrigados a dedicar a mesma obediência e serviços a seus antigos senhores por um período de dois anos, e agentes governamentais desenvolveriam pesquisas acerca do impacto da emancipação sobre os diferentes tipos de propriedades existentes no período. De modo inglório, ao fim destes dois anos de transição, os camponeses ainda não estariam aptos a receber a liberdade e nem lotes de terra. Neste momento a lei declarava que eles entrariam no período obrigação temporária, durante o qual os proprietários continuavam a exercer os poderes de justiça e policiais sobre os camponeses, com autoridade sobre as comunas camponesas. Havia uma relação um tanto contraditória sobre o uso e o estatuto das terras. Os proprietários eram obrigados a permitir que os camponeses cultivassem suas terras, mas ao mesmo tempo, os aristocratas mantinham para si a posse sobre elas. Aos camponeses era imposto o pagamento de aluguel para o uso destas terras, em forma de dinheiro ou de trabalho, e não havia opção a não ser colocar-se sob a autoridade senhorial.

Para deixar a fase de obrigação temporária e alcançar, de fato, o estatuto livre e estar em posse dos lotes de terra estipulados por lei, os camponeses deveriam, de acordo com a lei, redimir as terras que cultivavam por meio de pagamentos a serem realizados durante um longo período. Entretanto, os senhores detinham a prerrogativa de dar seu consentimento pessoal para que os camponeses se tornassem livres, ou seja, mesmo que o pagamento da redenção da terra fosse realizado, o período de obrigação temporária poderia estender-se por muito tempo para grande parte dos camponeses. Por outro lado, havia outro dispositivo legal que permitia aos proprietários simplesmente consentirem a liberdade a seus camponeses, doando-lhes um quarto do lote de terra estimado, medida esta que também trazia grandes benefícios aos senhores.

Portanto, este longo período de endividamento, pago pelos camponeses com o fito de superar a obrigação temporária, poderia ainda esbarrar em uma mera negativa de seus proprietários quando as dívidas fossem plenamente quitadas. Todavia, em 1881, uma alteração na legislação tornou obrigatória a redenção da terra e o alcance da liberdade após os pagamentos. O que ocorreu então, em grande parte dos casos, foi que o governo pagava aos proprietários parte substancial da redenção de seus camponeses, que ficavam obrigados a reembolsar o Estado por um período fixado em 49 anos. Somente finda esta fase os camponeses passavam a ser os donos legais de seus lotes.

O processo de supressão da servidão na Rússia insere-se no processo de reformas de modernização realizados após a derrota na Guerra da Criméia. A propósito da modernização russa ocorrida no século XIX, Black e Seton-Watson (1969) destacam peculiaridades deste país por meio do cotejamento com a modernização na Europa ocidental. A partir da reforma protestante, ganharam força valores como o individualismo e iniciativas privadas em termos de negócios, os quais, ao disseminarem-se mais amplamente, impregnaram a burguesia emergente, que foi a classe responsável pela Revolução Industrial. Este etos burguês teve presença muito forte em países protestantes como Inglaterra, Escócia, Holanda, Estados Unidos da América, além da França, norte da Itália e oeste e sudoeste da Alemanha. Na Rússia, por outro lado, não houve este etos burguês nem a emergência de grupos médios. Black e Seton-Watson ponderam, no entanto, que a maioria dos países pouco desenvolvidos no século XIX compartilhou esta ausência de uma burguesia forte e de desenvolvimento industrial, somente encontrada no noroeste e partes do centro da Europa e na América do Norte, com algumas exceções.

Outra colocação importante a respeito desta temática apontada por estes autores refere-se ao fato de que o processo de modernização na Europa ocidental ter sido iniciado e impulsionado por desenvolvimentos sociais, e acelerados ou atrasados pela ação de monarcas ou autoridades religiosas. Todavia estas autoridades estatais ou religiosas não iniciaram a modernização em seus países de modo deliberado, enquanto na Rússia ocorreu o contrário, visto que este processo foi colocado em prática de modo intencional, via decretos dos tsares.

Conforme Black e Seton-Watson (1969), para que este modelo de modernização deliberada seja bem-sucedida, faz-se necessária uma série de outras medidas estatais, tais como um sistema educacional moderno, capaz de atenuar a imensa lacuna cultural que surgiria inevitavelmente entre uma pequena elite intelectual e as massas iletradas. Para este autor, tal lacuna, caso não fosse dirimida por políticas estatais de disseminação de educação em esfera nacional, poderia conduzir a um processo de enfraquecimento do país. Na Rússia, entretanto, devido à enorme escassez de recursos, à falta de estrutura educacionais e de professores, a opção tomada pelos autocratas de investir em um sofisticado sistema universitário que privilegiavas a formação das elites, apontou para o fato de que, em termos sociais:

[...] a lacuna permaneceu amplamente aberta, e contribuiu muito para a alienação continuada, não somente da intelligentsia em sentido mais restrito, mas do público mais amplo (obshchestvo) em relação ao regime, e ao colapso não somente do tsarismo mas também do Estado russo (BLACK; SETON-WATSON, 1969, p. 497, tradução nossa).15

Outra consequência da falta de uma classe média forte na Rússia, como também em grande parte dos países do leste europeu, na visão de Blum, foi o aumento de prestígio social e força política na nobreza, pois não havia outras classes ou grupos com os quais competir pelo poder, visto que os grupos médios urbanos russos não alcançaram força econômica e política para tal (BLUM, 1961). No entanto, após a emancipação dos servos em 1861, Lieven (2006) aponta para o início de um processo de declínio para uma grande parte dos nobres, uma vez que muitos deles não tinham condições de dar continuidade a seus negócios sem o trabalho servil.

Conclusão

Durante o período imperial da Rússia tsarista, do início do século XVIII à Revolução de Outubro de 1917, a estrutura social deste império era composta, majoritariamente, por uma nobreza proprietária de terras e de servos com inúmeros privilégios e poder, e por grande número de camponeses sob o pesado jugo de relações servis de dominação. Havia consideráveis diferenciações no interior do grupo da nobreza, com setores mais abastados, com privilégios e prerrogativas que remetiam a uma ancestralidade de vários séculos, que se consideravam superiores, e grupos que alcançaram o enobrecimento pela via do serviço estatal, composto por funcionários da burocracia de Estado. Estes últimos eram considerados nobres de segunda categoria.

Entre os camponeses também havia subdivisões e diferenciações de graus de submissão, como, por exemplo, os camponeses estatais e os camponeses pertencentes a proprietários de terras, também chamados de camponeses senhoriais. Embora os camponeses estatais estivesses sujeitos a condições de vida menos severas, estes poderiam a qualquer tempo serem doados pelos tsares a outros proprietários. Outra divisão significante era entre camponeses que trabalhavam nas terras de seus senhores e os camponeses domésticos, que exerciam as suas funções nas casas de seus senhores. Os camponeses domésticos eram submetidos às condições mais duras dentre todos os servos, vulneráveis aos abusos mais atrozes.

É importante destacar, adicionalmente, a organização das comunas camponesas rurais, ou mir, no termo russo. Esta era uma forma de organização coletiva de relações sociais e de uso da terra oriunda dos séculos de formação do Estado russo, e com características típicas e únicas deste país. O mir consistia em uma espécie de autogerenciamento social e do trabalho dos camponeses, por meio do qual eram reguladas as pesadas obrigações dos camponeses em relação a seus senhores, além de uma temporária redistribuição de lotes de terra aos camponeses que poderiam, com variações regionais, trabalhar para si mesmos a partir do momento em que cumpriam com suas obrigações senhoriais. O mir também exercia funções de regulação coletiva de diversos aspectos da vida campesina. Pensadores sociais russos do século XIX, como Alexander Herzen, consideravam as comunas camponesas, como um elemento tipicamente russo, como uma espécie organização proto-socialista, afirmando que os camponeses russos já traziam consigo uma pré-disposição ao socialismo.

O governo era exercido de maneira autocrática pelo tsar, que considerava todas as terras e habitantes do império – incluindo os nobres – como suas propriedades particulares. A base econômica deste período era a agricultura, com características bastante atrasadas se comparadas às potências europeias. A partir das primeiras décadas do século XIX começam a surgir críticas e contestações à servidão, especialmente por grupos intelectuais progressistas e revolucionários, Estes grupos eram influenciados por correntes de pensamentos originários da Europa ocidental, de influências iluministas, da Revolução Francesa e das guerras Napoleônicas.

As correntes de pensamentos crítica à servidão e que demandavam reformas modernizantes na Rússia aglutinavam uma ampla diversidade de matizes, desde posicionamentos liberais mais moderados e grupos socialistas revolucionários. É importante destacar que, para além de intelectuais expressamente políticos, defensores de programas de transformação social, destacam-se entre estas vozes críticas o papel de autores literários, que por meio de uma literatura sofisticadíssima, conseguiam desferir críticas pesadas à servidão e a outras instituições retrógradas da sociedade russa burlando a pesada censura.

Após um processo longo e contraditório, cheio de tensões, ocorre a Emancipação dos Servos em 1861, com características bastante restritas e limitadas, em um esforço de preservar os interesses dos proprietários da nobreza, buscando minimizar seus prejuízos. Apesar disto, os nobres também sofreram impactos da emancipação, apresentando problemas para manter o funcionamento de suas propriedades sem o trabalho servil, enveredando por processos de endividamento, entrando em um processo de declínio. Do ponto de vista dos camponeses, a Emancipação foi um evento causador de grandes frustrações descontentamentos, pois o acesso à posse de terras – e à própria liberdade – foi bastante dificultado e protelado, além da imposição de obrigações de indenização destinadas a seus antigos senhores.

Referências

BLACK, Cyril; SETON-WATSON, Hugh. The Nature of Imperial Russian Society. In: RIHA, Thomas. (Org.). Readings in Russian Civilization: Imperial Russia, 1700-1917. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1969.

BLUM, Jerome. Lord and Peasant in Russia: from the Ninth to the Tenth Century. Princeton: Princeton University Press, 1961.

BUCHER, Greta. Daily life in Imperial Russia. Westport, London: Greenwood Press, 2008.

LIEVEN, Dominic. The Elites. In: LIEVEN, Dominic. (Org.) The Cambridge History of Russia: Imperial Russia, 1689 – 1917. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 227-244.

MOON, David. Peasants and Agriculture. In: LIEVEN, Dominic. (Org.) The Cambridge History of Russia: Imperial Russia, 1689 – 1917. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 369-392.

WIRTSCHAFTER, Elise Kimerling. The Groups Between: Raznochintsy, Intelligentsia, Professionals. In: LIEVEN, Dominic. (Org.) The Cambridge History of Russia: Imperial Russia, 1689 – 1917. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 245-263.

Notas

1 […] to the person of their seignor and subject to his will. In the words of the Svod Zakanov, the law code of the nineteenth century, the peasant had been delivered ‘into private power and dominion’ of his master. To all intents and purposes, the only rights that had been left to him were those that his lord was willing to allow him.
2 Este importantíssimo tsar, Pedro I, notoriamente conhecido como Pedro, o Grande, nasceu no ano de 1672 e faleceu no ano de 1725. Ele assumiu o poder na Rússia em 1682, em conjunto com seu irmão, Ivan V, como co-tsares. Pedro I assumiu o poder sozinho no ano de 1696, permanecendo até 1725.
3 […] bore the burden of supporting the privileged as well as the heavy superstructure of the state. The unprivileged were subjected to severe restrictions as to movement, along with other forms of personal and social discipline, and had virtually no access to the ranks of the privileged before the middle of the nineteenth century.
4 Russia’s autocratic state had been able successfully to exploit its peasant population and agricultural economy to generate the resources, in particular tax revenues and military conscripts, to consolidate and maintain its power at home and build a vast empire that came to dominate Eastern Europe and northern Asia. Imperial Russia’s peasants were, thus, at the bottom of an exploitative social order.
5 [...] from literary culture to fashionable dress and administrative modernisation.
6 [...] the nearly unlimited control the seignior had over his people, the fact that the serfs had no legal way to protect themselves against his excesses, and perhaps most important, the absence of social disapproval among the serfowner’s peers if he did mistreat his peasants, opened the door to callousness, and often to brutality. Foreigners were shocked when they listened to people of fashion and prominence chat about whippings they had meted out to their serfs, or heard a noble at his club preen himself before an appreciative audience, because he had sentenced three of his serfs to nearly triple the legally allowed number of strokes with the cane. The serf lived always at the mercy of the whims, appetites, and temper of his owner.
7 than that of any sovereign in the world.
8 [..] the authority of a crowned despot was limited by law, custom, and public opinion, but in Russia these forces supported and furthered the prerogatives of the seigniors.
9 Their complete dependence, and their helplessness, seemed to have sapped many of the dvorovye liudi of vitality and self-respect. The redundancy of menials in many households made matters worse, for there was not enough work to keep them occupied, and empty hours of idleness demoralized them still more. They quarrelled with one another, they filched from their master’s larder and barns, and they were reputed to be generally unhappy.
10 They did not seek to romanticize the peasants when they wrote about them. They hated serfdom because they knew it was wrong for one man to own another, and because they knew that master and serf were equally sullied by it. That was the story they told. It was a shattering kind of realism. Even today’s reader shudders at the conscious and unconscious cruelties, grieves for the wronged, and is overwhelmed by the stupidity and crudeness and viciousness they told about in their books and stories.
11 [...] would endanger society, provoke disturbances, produce no good for lord and peasant, and called the men who drew it a ‘band of jacobins’.
12 […] without the guiding hand of their seignors the peasants would turn into drink and idleness and crime, and endanger the safety of the realm. He considered serfdom the natural order of things.
13 [...] to tamper with serfdom would bring disaster to the state. For the serfowners would demand compensations for their losses at the expense of the autocratic power of the tsar.
14 [...] warned that if the peasants were given their liberty they would use it badly.
15 [...] the gap remained wide open, and contributed greatly to the continued alienation, not only of the intelligentsia in the narrower sense, but of the whole public (obshchestvo) from the regime, and so to the breakdown not only of tsardom but of the Russian state.
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