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“E CORUMBÁ SURGIU POR SOBRE A TERRA BRANCA”: AS GRAÇAS DE UMA CIDADE E A JORNADA DE UM AUTOR

"THEN CORUMBÁ EMERGED OVER THE WHITE LAND”: THE BEAUTIES OF A CITY AND THE JOURNEY OF AN AUTHOR

“Y CORUMBÁ VINO SOBRE LA TIERRA BLANCA”: LAS GRACIAS DE UNA CIUDAD Y EL VIAJE DE UN AUTOR

Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil

“E CORUMBÁ SURGIU POR SOBRE A TERRA BRANCA”: AS GRAÇAS DE UMA CIDADE E A JORNADA DE UM AUTOR

Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 41, pp. 147-163, 2021

Universidade Federal da Grande Dourados

Fronteiras: Revista de História 2021

Recepción: 15 Enero 2021

Aprobación: 16 Junio 2021

Resumo: Este artigo trata principalmente da relação entre a história e a literatura, tomando por base a escritura do autor pantaneiro, Augusto César Proença. No âmbito da história cultural, a análise do livro “Corumbá de Todas as Graças” permite perceber a construção da representação literária do autor na direção de exaltar a cidade, com destaque para a ação do religioso salesiano, Padre Ernesto Sassida, criador e gestor de um projeto de assistência social em Corumbá, estado de Mato Grosso do Sul. O processo de forja literária realizado pelo escritor, conforme mostra o artigo, resulta da combinação das decisões afetivas presentes na reunião de fenômenos históricos requisitados para conferir forma a uma cidade representada, resultando em um escrito em que a história e a literatura flertam com a memória.

Palavras-chave: Corumbá-MS, Cidade Dom Bosco, História e Literatura, Augusto Proença, Padre Ernesto Sassida.

Abstract: This article deals mainly with the relationship between history and literature, based on the writing of the Pantanal author, Augusto César Proença. In the context of cultural history, the analysis of the book “Corumbá de todas as graças” allows us to perceive the construction of the author’s literary representation in the direction of extolling the city, highlighting the action of the Salesian religious, Father ErnestoSassida, creator and manager of a social assistance project in Corumbá, state of Mato Grosso do Sul. The literary forging process carried out by the writer, as shown in the article, results from the combination os affective decisions present in the meeting of historical phenomena required to give shape to a represented city, resulting in a writing in which history and literature flirt with memory.

Keywords: Corumbá-MS, Don Bosco City, History and Literature, Augusto Proença, Father Ernesto Sassida.

Resumen: Este artículo trata principalmente de la relación entre historia y literatura, a partir de la escritura del autor del Pantanal Augusto César Proença. En el contexto de la historia cultural, el análisis del libro “Corumbá de Todas as Graças” permite percibir la construcción de la representación literaria del autor en la dirección de ensalzar la ciudad, con énfasis en la acción del religioso salesiano, Padre Ernesto Sassida, creador y gestor de un proyecto de asistencia social en Corumbá, estado de Mato Grosso do Sul. El proceso de forja literaria llevado a cabo por el escritor, como se muestra en el artículo, resulta de la combinación de decisiones afectivas presentes en el encuentro de fenómenos históricos necesarios para dar forma a una ciudad representada, dando como resultado una escritura en la que la historia y la literatura coquetean con la memoria.

Palabras clave: Corumbá-MS, Ciudad Don Bosco, Historia y Literatura, Augusto Proença, Padre Ernesto Sassida.



O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade.
(Italo Calvino, “As cidades Invisíveis”).

As relações entre a história e a literatura sempre foram complexas e motivadoras de discussões acerca do estatuto de cada uma das duas áreas, sobremaneira quando a História passou a reivindicar para si um lugar entre as ciências, distanciando-se progressivamente das artes. Da mesma forma as ligações entre a memória, o autor e a história explicitam a complexidade existente na produção do sentido que o texto, independentemente de sua filiação, apresenta enquanto configuração de um sentido supostamente apreendido (White, 1992). Mas talvez seja importante considerar que todo texto é antes de tudo um ato de memória, motivado por alguma afetividade produzida no ato da experiência vital do autor ou de outrem. E um texto escrito reivindica um locus para si e para seu conteúdo, insinuando sua superioridade civilizacional sobre o dito, sobre o oral, apresentando-se como um ator indutor ou possuidor de um saber e, consequentemente situando-se no mercado das relações de poder.

Escritor e formulador de representações literárias, Augusto César Proença se inscreve no grupo de intelectuais que desde as duas últimas décadas do século XIX produzem escritos cuja essência diz respeito ao processo de colonização da região pantaneira, no período pós-guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), especialmente daquela parte hoje localizada no estado de Mato Grosso do Sul. Neste texto a análise recai sobre um dos livros publicados por Proença, cujo título é “Corumbá de todas as graças”; um conjunto de artigos nos quais o autor se dedica a palmilhar a cidade que nomeia a publicação, pontuando aspectos históricos de sua formação entremeados a sua memória individual. Nesse sentido, discute-se também as estratégias utilizadas pelo autor para enfatizar um projeto social conduzido por religiosos na cidade. O livro aqui tomado para análise e discussão marca com mais intensidade uma modificação no curso da escrita de Augusto Proença na medida em que suas preocupações contemplavam principalmente o Pantanal rural. Com a publicação de “Corumbá de todas as graças”, o autor introduz o ambiente urbano corumbaense, marcando certa mudança no cenário predileto até então.

Augusto César Proença, nome literário, ou reconhecimento de seu alter ego, adotado por Augusto César Gomes da Silva poderia facilmente ser inscrito como um escritor que transita com habilidade pelos campos formativos de textos da lavra dos memorialistas locais, mas também pode ser lido como um cronista das histórias da cidade de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, e do Pantanal localizado nesse mesmo estado. (Segatel, 2009; Leite, 2011). Responsável por vários textos publicados, majoritariamente livros, Augusto Proença parece não ter despertado a devida atenção para sua produção de caráter literário, em forma de romances, contos, crônicas e memórias e em cujo interior é possível reconhecer a relação de pertencimento a um lugar considerado paradisíaco que é o Pantanal. Exceto por algumas incursões realizadas por Segatel (2009) e por este autor (Leite, 2011 e 2012), a produção escrita do autor em tela não foi tomada de forma mais aprofundada, especialmente nos seus aspectos estéticos e figurativos.

Proença é herdeiro de uma tradição, a saber, a de escritores que desde o final do século XIX inseriram a região pantaneira, na sua porção sul localizada próxima à cidade de Corumbá-MS, no roteiro de seus escritos. Até onde foi possível checar, a narrativa de colonização e de características endógenas teve início com o livro-diário “Lembranças para meus filhos e descendentes” de José de Barros, cuja elaboração ocorreu a partir de 1910, publicado em 1959 e republicado em 1987 pela Gráfica do Senado. O livro de Barros inaugurou uma trajetória profícua de escritos de variada natureza, os quais trazem referências ao protagonismo histórico das famílias Gomes da Silva e Barros no processo de instalação de fazendas no Pantanal – hoje conhecido como Nhecolândia – construindo de forma bem-sucedida um conjunto memorativo que procura explicar a presença das duas famílias na região após término da Guerra da Tríplice Aliança (Leite, 2012). O pequeno livro escrito por José de Barros registra com riqueza de detalhes o longo processo de implantação de fazendas de gado no Pantanal da Nhecolândia, cujo marco inicial se deu na década de 1880, logo após o término do conflito. Sem dúvida, José de Barros semeou a arvore primeira que transformaria a si e aos seus descendentes nos principais protagonistas no processo de fundação de fazendas na região pantaneira, nos entornos da cidade Corumbá, estruturando em vários textos uma narrativa que para a memória local atesta o pioneirismo dos Barros na “domesticação” daquela porção do “Mar de Xarayés”.

Proença1 escreve desde o final da década de 19702 e seus textos transitam entre o urbano e o rural, embora seja o segundo o lócus sobre o qual encontramos uma escrita de maior densidade analítica e estética. Em seus escritos iniciais, a trama se desenvolvia em ambientes urbanos e sem vínculos com a cidade de Corumbá ou o Pantanal, característica que foi alterada como a publicação do livro em análise, assim como as personagens eram partes desse palco em que os dilemas enfrentados pareciam decorrer de experiências existenciais ainda em fase de solidificação. Seu Snack Bar, livro de estreia e publicado em 1979 dialoga com o mundo urbano metropolitano dos anos 1980, revelando os conflitos existenciais – e de classe – experimentados por personagens excêntricos, mas igualmente colados aos seus dilemas citadinos.

Quanto ao autor, sua inserção no ambiente universitário em uma pequena cidade fluminense (Santa Maria Madalena), marcou definitivamente a imersão no mundo das letras, oportunizando ao mesmo tempo a integração ao universo de escritores participes de sua ascendência familiar. De acordo com sua própria análise, a escrita tem origem no berço e chega até ele pela veia:

É, olha eu costumo dizer que eu sou escritor bem antes de eu nascer sabe! É, eu sou descendente da família Proença, que é uma família de escritores, poetas aqui de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso vem do estado de Mato Grosso, né! São todos lá de Cuiabá, Poconé, Livramento, então eu sou, a minha mãe [...] é se não tivesse falecido muito cedo era, tenho certeza que ela se tornaria uma escritora; principalmente de literatura infanto-juvenil, eu sou parente aqui em Corumbá do Clio Proença daquele poeta, sou parente do Manuel Cavalcante Proença do Rio de Janeiro, Ivan Cavalcante Proença. [...] Então eu costumo dizer que eu sou escritor e trouxe essa veia do berço! (ENTREVISTA. Augusto César Proença)

É esse escritor que aparentemente já fizera sua transição temática do universo urbano pouco preciso para a planície pantaneira e as experiências históricas ali verificadas, sob o ato performático de seus ancestrais, que decide escrever sobre a cidade de Corumbá, realizando outra breve alteração em seu ambiente-objeto de escrita. Cidade essa que foi uma das primeiras urbes planejadas no Brasil; planejamento resultado da decisão do Marquês de Olinda quem encarregou o engenheiro e almirante Joaquim Raimundo Delamare de preparar o povoado para o progresso vindouro (Aquino, 2003). Desse planejamento, resultou uma cidade em formato de tabuleiro, com ruas largas às margens do Rio Paraguai, sobre a parte mais elevada da barranca do rio.

Dividido em quatro capítulos, “Corumbá de todas as Graças” é um livro que parece reunir os principais estilos ou características de seu autor: memória, crônica e jornalismo. O primeiro capítulo foi escrito com a finalidade de oferecer ao leitor uma visada histórica sobre a cidade de Corumbá, o que já é evidente em seu título: “A sua história”. O segundo capítulo relaciona a cidade ao Rio Paraguai e a navegação fluvial. No terceiro capítulo, o autor busca garantir a importância do local, dotando-o de uma historicidade e para tanto, Proença seleciona eventos que são entendidos como relevantes, denominando essa parte de “As crônicas de sua história”. No capítulo quarto ocorre uma espécie de desvio no curso do livro, pois ali se encontram informações pontuais sobre a instalação da Cidade Dom Bosco, projeto salesiano que se tornaria significativo na história da educação das camadas pobres da cidade; Proença vincula essa cidade-escola à figura de seu maior expoente e denomina o capítulo de “A cidade Dom Bosco e o Pe. Ernesto Sassida”. Integram ainda o livro, a introdução, referências bibliográficas e o curriculum vitae do autor.

Ao mencionar o livro, Augusto Proença explica:

O “Corumbá de Todas as Graças”, a gente saiu um pouco do Pantanal, portal da entrada que é Corumbá né, e a história da cidade, e seria mais texto que eu escrevi, a primeira parte eu procurei dar uma noção de uma atividade que impulsionou o progresso de Corumbá durante o início do século XIX que foi a navegação fluvial. Então eu procuro fazer um panorama histórico sobre o Caminho das Águas, os vapores que chegavam, as companhias de navegação que se abriram por aqui, armazéns no porto que foram construídos todos para dar embasamento à essa atividade mercantil. Levou Corumbá muito, recebeu progresso e influências principalmente culturais dos países platinos e a segunda parte eu procuro escrever crônicas histórias sobre Corumbá, contar certos fatos históricos através de crônicas históricas literárias: “As Crônicas da sua História”. E a terceira parte passou para a Cidade Dom Bosco, sobre a obra do Padre Ernesto Sassida, uma obra social muito relevante e feita pelos salesianos em Corumbá, mas vem idealizada pelo Padre Ernesto Sassida. Ai, fechei o livro! (ENTREVISTA 2007. Augusto César Proença)

Ao optar por associar história e literatura como estratégia para tratar de parte da região do Pantanal, especificamente, o núcleo urbano de Corumbá, Proença aposta numa espécie de síntese em que se fariam presentes outros escritos de sua autoria. Assim, é perceptível a presença de referências à “Pantanal, Gente, Tradição e História” e “Raízes do Pantanal”, bem como é possível identificar a sombra de outros textos dispersos em artigos e crônicas. Essa marca sinaliza a força dos dois textos referidos; o espectro desses escritos parece recusar o afastamento da escrita de Proença, rondando tal qual eguns o escritor e sua narrativa. A reunião da história e da literatura, conforme revela o autor, seria responsável por reunir no interior do livro elementos da história de Corumbá, mas que ganham sentido na narrativa do autor.

O autor ainda consultou obras de historiadores, cronistas e memorialistas buscando oferecer mais segurança ao seu escrito. Dessa maneira, a estrutura de “Corumbá de Todas as Graças” estabelece uma representação para cidade de Corumbá que ganha um duplo significado: é o palco de fenômenos históricos, lembrados à luz de informações selecionadas para relevar o lugar e também é personagem destacável ao longo do texto. A cidade apresentada é distinguida pela sua própria história, um marco urbano instalado nas lonjuras do Oeste colonial do século XVIII e, por isso, adquire loquacidade nas leituras realizadas por Proença, interessado em sobrelevar a importância da urbe numa conexão direta e em comparação com a planície pantaneira. “A cidade Branca” está integrada à paisagem no interior da qual a morraria azul a envolve até as margens do Rio Paraguai, marco fluvial do Pantanal (Proença, 2003).

De um local histórico, cujas referências são positivadas, a cidade para Proença adquire a condição de participe da história, dotada de características que constrangem as ações de outras personagens nela residentes. Aqui é fácil enxergar a sombra de “Raízes do Pantanal”, escrito encharcado pela representação do Pantanal, personagem principal do romance, segundo o próprio Augusto Proença. A partir desses aspectos, é indispensável narrar um pouco a história da cidade de Corumbá, a título de mostrar o palco e o enredo que formam o conteúdo do livro.

De Albuquerque à Corumbá: o trajeto de um monumento

Ao se enfocar um dos capítulos do livro, o protagonismo da cidade pode ser mais bem percebido. A historicidade recuperada no capítulo “A sua história” cumpre a função propedêutica de dotar a urbe de importância; a história é tomada em seu sentido pedagógico, qual seja o de fornecer subsídios para destacar a importância da cidade no seu presente. Corumbá inicialmente denominada Nossa Senhora da Conceição de Albuquerque (1778), surgiu no âmbito das disputas e ações pela manutenção da fronteira Oeste (e meridional) pelos portugueses. O lugarejo adquirira importância estratégica e por isso se transformava numa pequena praça militar de pouca expressão, senão aquelas inerentes à tática de manter a posse dos territórios conquistados pelos portugueses no espectro do uti possidetis.

No âmbito das disputas pela definitiva definição da atual fronteira oeste brasileira com a coroa espanhola, os portugueses trataram de implantar às margens do rio Paraguai, em 1775, o Forte de Coimbra3. Logo no início do ano seguinte, João Leme do Prado, um sertanista, juntamente com militares do Forte fundaram um povoado na margem direita do rio Paraguai e próximo à embocadura do rio Miranda; para agradar e homenagear o então capitão-general da província Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, o lugar recebe o nome de Albuquerque. Já em novembro de 1776, o mesmo Leme do Prado encontra ao norte um lugar mais apropriado para a instalação do povoado, mas não recebeu apoio das autoridades em Cuiabá para transferir as instalações de Albuquerque para esse novo espaço. Somente em 21 de setembro de 1778, ano seguinte ao da assinatura do Tratado de Santo Idelfonso, Marcelino Camponês e outros colonos saídos de Forte de Coimbra se instalam e tomam posse do lugar que Leme do Prado escolhera para transferir Albuquerque e para tal plantou uma cruz de aroeira sinalando o sítio. Talvez com receio de criar constrangimentos ao capitão-general, Camponês atribuiu à nova localidade o nome de Albuquerque, dando início a muitas confusões que se seguiriam acerca das duas povoações (Corrêa, 2006).

Para o historiador Valmir Corrêa:

Enquanto o povoado mais ao sul era conhecido desde o começo por Albuquerque, o do norte (fundado oficialmente por Marcelino Roiz Camponês), passou a ser diferenciado pelo nome de Povoação de Albuquerque, ou simplesmente Povoação. Segundo Mello ´para afastar equívocos, a gente dali primeiro, e, depois, os documentos oficiais, sem atenção às origens de Corumbá e Albuquerque, passaram a chamar aquela – Albuquerque velha, e esta, Albuquerque Nova` (CORRÊA, 2006, p. 10-11)

Mas foi no final do século XIX que a pequena urbe adquiriu maior importância, articulando-se de forma mais intensa e se transformando em importante entreposto comercial, ligando Cuiabá ao restante do Brasil. Sua função de cidade comercial se acentuara ao longo deste período, sofrendo interrupção com a presença de tropas paraguaias durante o conflito da Tríplice Aliança. Com o final da Guerra, a cidade intensificaria sua trajetória de crescimento, garantindo relevância no cenário regional. Contudo, a superação da destruição deixada pelos dois anos de ocupação paraguaia foi custosa para a Vila e seus moradores. Nas palavras de um viajante, o médico e militar João Severiano da Fonseca, que esteve na Vila logo após o final da Guerra:

A vila, há dois anos florescente, não era agora mais do que um acampamento incendiado e devastado; poucos brasileiros ai existiam entre mulheres e crianças; os homens e algumas famílias que não foram mortas aí mesmo, Barrios fizera-os partir para Assunção. Em pouco a esses destroços acresceu uma nova e terrível calamidade, a varíola, que, propagando-se por toda a província, devorou-lhe mais de um décimo da população (FONSECA,1986 [1880], p. 312)

Como se percebe, o legado da violenta invasão e permanência das tropas paraguaias, seguida pela epidemia de varíola interditaram o crescimento da vila, e depois de dois anos, deixaram o lugar arrasado. Contudo, os anos 1870 marcaram a retomada do crescimento de Corumbá. Em termos populacionais, Fonseca (1986) informa que em 1864, a vila de Corumbá possuía cerca de 1.315 habitantes, alcançando 8.361 habitantes em 1872. Esses números parecem imprecisos, uma vez que o mesmo autor indica que em 1876, havia uma população de 5 ou 6 mil moradores; e já na metade deste mesmo ano, algo como 3 a 4 mil paraguaios acompanhando as tropas brasileiras que retornavam de Assunção chegaram à vila. A presença das tropas brasileiras e consequentemente da migração dos paraguaios estimulou a vinda de negociantes, criando uma imagem de desenvolvimento e efervescência: “O comércio dobrou e a presença da tropa chamou uma nova colônia de negociantes, ou melhor, traficantes” (FONSECA,1986 [1880], p. 317). Em relação à relevância e ao contexto histórico que proporcionou sentido à história local é possível perceber que seu desenvolvimento ocorreu em consonância com fenômenos históricos de amplos impactos no mundo ocidental. Dessa forma:

O mundo no qual Corumbá se constituiu como cidade era marcado desde inícios do século XIX, pela integração dos mercados europeus e americanos, que se acentuaria ainda mais em meados daquele mesmo século, com a chamada Segunda Revolução Industrial. O capitalismo e a sociedade burguesa se mundializavam, a economia e os saberes técnicos científicos ganhavam novos espaços. Entre os vários fenômenos desse processo, a urbanização crescente foi singularmente sentida. (SOUZA, 2008, p. 5).

A explicação do historiador João Carlos de Souza esclarece os marcos gerais do momento em que a cidade pantaneira iniciaria sua trajetória de maior expressão, período que se estenderia do final da Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) até os anos 1940. Corumbá no pós-guerra se tornou uma cidade cosmopolita, lugar de destino de viajantes e negociantes brasileiros e estrangeiros interessados na exploração econômica da região. Certamente a expansão capitalista não se impôs de forma única e absoluta em todo o globo, mas as características do período chegam a Corumbá e ali passam a dialogar com as perspectivas econômicas que a cidade e a região ofereciam. Esse boom se expressou também no perfil socioeconômico da cidade, promovendo alterações significativas no espaço urbano, instalando uma arquitetura sofisticada em suas formas e detalhes, o que sugeria aos moradores a entrada na modernidade enquanto destino final da futura metrópole instalada às margens do impactante rio Paraguai. Modernidade neste caso se apresentava como sinônimo de progresso, condição que seria responsável pela redenção da cidade outrora destruída durante a ocupação das tropas guaranis.

De acordo com Valmir Corrêa:

Corumbá tomou novos rumos, sediando um entreposto de comércio internacional, desfrutando de marcante influência estrangeira como centro cosmopolita, com embarcações de origens diversas passando a frequentar o seu porto. Pelo rio Paraguai subiram navios com as mais diversas mercadorias, entre elas, sal, ferragens, tecidos e, em contrapartida, desciam com ipecacuanha, couros, carne-seca e outros produtos regionais. (CORRÊA, 2006, p. 89)

Mas a modernidade não foi um fenômeno pleno, no sentido de inserir todos os segmentos sociais em seu movimento. A cidade modernizada, dotada de uma arquitetura elaborada ocultava – ou tentava ocultar – as profundas distinções sociais. Corumbá se tornara expressão de cidade rica, no interior da qual também sobrevivia uma população pobre, quando não miserável. A cidade se transformara igualmente em ponto de atração para migrantes pobres ou empobrecidos pela guerra; para Corumbá também se dirigiam paraguaios – sobretudo mulheres – em busca de melhores condições de vida. Essa movimentação colaborou para a chegada de pessoas doentes de cólera, tifo e peste bubônica, enfermidades essas que grassariam pela cidade, atingindo severamente a população pobre que não era beneficiada por condições sanitárias e de saúde adequadas (Corrêa, 2006).

A arquitetura da cidade contribuiu decisivamente para a difusão de uma imagem positiva a respeito da urbe: moderna, planejada, caracterizando o que contemporaneamente é denominado de “conjunto histórico, arquitetônico e paisagístico de Corumbá”. Ressalte-se que até muito recentemente o Pantanal foi tomado como um problema, significado que só seria alterado a partir dos anos 1970 com a intensa valorização dos ambientes naturais, no contexto da emergência da pauta ambiental que se espalhou pelo mundo e alcançou o Brasil. A incorporação do Pantanal à narrativa que constrói as imagens de Corumbá é fenômeno recente e vincula-se com a mundialização das preocupações com áreas verdes, ou, ainda com a emergência das inquietações com o estresse que o mundo natural sofreu desde a intensificação da exploração dos recursos naturais (Leite, 2008). Esse movimento provocou uma curiosa emergência do Pantanal enquanto referência regional, ofuscando parcialmente a importância da cidade que se viu induzida a se integrar ao novo ambiente construído. Corumbá passa então a reivindicar sua fatia de cidade pantaneira, base de uma expressiva estrutura turística destinada a atender grupos dispostos a aventuras de pesca, principalmente no rio Paraguai.

Retomando a questão arquitetônica, Corumbá passaria a se beneficiar de seu casario, insinuando ser uma espécie de patrimônio às margens do rio Paraguai e no coração do Pantanal brasileiro. Nesse sentido, em um livreto de divulgação produzido pelo Iphan e pela Prefeitura de Corumbá, é possível encontrar a seguinte observação sobre a arquitetura local:

Genericamente, podemos relatar que o Conjunto foi sendo construído com as características arquitetônicas do seu tempo: fachadas no alinhamento ocupando toda a frente do lote e deixando aos fundos os pátios livres. As fachadas possuem coroamentos que contornam as coberturas. Esse coroamento é formado pela platibanda e pela cimalha (cornija, friso e arquitrave). As portas e janelas são estreitas e altas, combinando com os pe-direitos elevados (IPHAN, 2000, p. 10)

A trajetória histórica de Corumbá assegura seu lugar no livro de Augusto Proença, condição que explica as informações acima, acerca da cidade que serve de palco e personagem em diálogo com a presença salesiana nesse lugar. A cidade de Corumbá (re)tratada por Augusto Proença é o espaço urbano em que se criou outra cidade, um lugar totalmente voltado para a assistência social. A Cidade Dom Bosco, componente celular da histórica Corumbá de outrora é mais recente, mas transforma-se em um espaço importante por se instituir enquanto ambiente de apoio aos excluídos, o que passa a ocorrer nos anos 1950 e se estende aos dias atuais. Corumbá ocupa o lugar do Pantanal, mas essa situação ocorre para permitir a exposição da Cidade Dom Bosco e sua condição na história local. Proença, então decide pelos componentes dessa narrativa sobre o projeto salesiano vinculando definitivamente o Padre Sassida como ícone maior da cidade religiosa e de forte atuação em projetos de assistência social.

No curso de 68 páginas do quarto capítulo, é possível identificar a opção narrativa de Proença, que em 18 subitens percorre a história da Cidade Dom Bosco, sempre subordinada à decisão e às ações do Padre Ernesto, figura presente em todos os momentos da história da Cidade dedicada a projetos sociais.4 A gênese de tudo é o Padre, chegado a Corumbá em 1935; migrante esloveno aportara na Cidade Branca aos 15 anos de idade (Proença, 2003). Proença, tal como ocorre em outros textos de sua pena, visualiza o caráter do individuo a partir da herança familiar, precisamente dos pais, como se percebe:

Da mãe, de quem herdou a sensibilidade e a humildade, até hoje o filho guarda a figura de uma mulher voltada aos afazeres domésticos, que vivia para o marido e os filhos, cumprindo com a missão de mãe e esposa extremosa, meiga e humilde. Do pai, de quem herdou a austeridade e a qualidade de líder, a imagem de um senhor austero, em tudo ponderado, cumpridor de deveres, espécie de conselheiro da família numerosa de onze filhos (cinco mulheres e seis homens) e da população de Dornderg, que o consultava quando tinha algo importante a ser resolvido e orientado. (PROENÇA, 2003, p.111)

A obra de Padre Ernesto passa a ser o fio-condutor do capítulo e os demais itens são registrados enquanto desdobramento da ação criadora e condutora realizada pelo religioso. Como é possível perceber, a história, da Cidade Dom Bosco escrita por Proença incorpora por referência momentos peculiares da escola, da cidade de Corumbá, da criação de agremiação estudantil e do sucesso do projeto educacional. E, na perspectiva de Augusto Proença a personagem mais relevante, espécie de demiurgo das práticas de consolidação da ação salesiana encontra-se o Padre Ernesto, definição mais rotineira para definir o religioso.


Capa e contracapa do livro Corumbá de Todas as Graças (2003)

A narrativa de Augusto Proença constrói um sentido para a trajetória do Padre e do projeto salesiano em Corumbá; selecionando eventos e pessoas, situações, circunstâncias e locais, o texto se transforma num misto de história de acontecimentos, crônica e memória afetiva do autor. Ou seja, nas palavras do autor: história e a literatura se unem para embasar toda nossa região pantaneira (ENTREVISTA Augusto César Proença, 2007).

Conforme antes apontado, Augusto Proença mantém o legado de familiares dedicados à escrita memorialista na cidade de Corumbá. Seu lugar nesse processo é o de alguém que procura situar os eventos preservados pela memória familiar num determinado contexto histórico. Realiza uma produção que transforma componentes da memória coletiva, especialmente a familiar, em artefatos expansíveis na direção de outros grupos. E ao realizar esse trabalho – de escrever sobre questões pertinentes à memória de familiares -, Proença reconfigura a memória pessoal e a herdada em um artefato narrativo, resultando numa compreensão do fenômeno de memória construída (Pollak, 1992).

O texto forjado, responsável pela instituição das cidades – Corumbá e Cidade Dom Bosco – é um artefato narrativo que percorre o campo da história, embora sua contribuição resulte numa narrativa fortemente ligada à memória. “Corumbá de Todas as Graças” é um texto afetivo que traz a cidade histórica como base para o enredo de um autor devotado a valorizar e expor momentos e cenas selecionadas para compor a sua crônica historiográfica. A cidade de todas as graças é síntese da cidade histórica, no interior da qual habita uma outra urbe criada pelos salesianos e destinada à assistência social. A narrativa de Augusto Proença edifica a memória por meio da trajetória do Padre e sua atuação integra a historicidade da cidade de Corumbá, o grande monumento presente nos escritos de Proença, ao lado do Pantanal.

Ao longo do livro é possível identificar a intensidade afetiva do escrito e das ligações que a história de vida do autor possui com a cidade de Corumbá. Proença dedica o livro a Renato Baez, um intelectual de profícua produção no campo da crônica corumbaense, dono de uma obra pouco conhecida por pesquisadores, mas detentora de um conteúdo importante sobre a cidade, especialmente enquanto um registro de temas do cotidiano da cidade branca.

Não é pertinente ser incisivo na constatação, mas “Corumbá de todas as Graças” está em posição de inferioridade estética e de conteúdo quando comparado a outros trabalhos de Proença, principalmente “Raízes do Pantanal” (1989), “Pantanal, gente, tradição e história” (1993) e o conto “Nessa poeira não vem mais o seu pai” (1996), esse último depois transformado em filme infanto-juvenil, a partir de roteiro produzido pelo próprio Proença. Mas se essa compreensão se instala é porque os trabalhos que antecederam “Corumbá de Todas as Graças” exalaram odores fortes e envolventes, seja em sua narrativa, seja na opção pela história enquanto fornecedora de matéria bruta para o texto. Os três escritos apontados são portadores de uma densidade narrativa marcada, na trama e na escrita, pela presença do Pantanal que, para o autor é igualmente uma personagem, aliás a personagem relevante de “Raízes do Pantanal” (Leite, 2011). São obras nas quais a narrativa possui força para se impor, instando o leitor a interagir com o texto de forma submissa ou, contrariamente, resistindo à(s) trama(s) exposta(s).

O mecanismo para compreender o “Corumbá...” é tomá-lo como um livro-reportagem em que o autor, por caminhos mais amplos e pouco presos aos rigores estéticos e de conteúdo, optou em narrar a cidade, destacando sua trajetória ao longo do tempo. Corumbá adquire a identidade de uma personagem centenária, no interior da qual habita uma história marcada por tragédias e conflitos, mas que não interditaram sua existência; ao contrário, legaram traços que forneceram subsídios para sua identidade. A cidade ou a representação de Corumbá forjada por Augusto Proença é uma invenção no interior da qual encontramos a paixão do autor associada à história do local, marcada pelas contradições do processo histórico que apresenta uma urbe demandante da ação incisiva do religioso salesiano no enfrentamento do processo de exclusão social em Corumbá.

Augusto Proença exibe sua ligação afetiva – e de seu escrito – com a cidade quando, no terceiro capítulo, inicia o item “Um passeio secular”, como um instante em que se narra como um flâneur:

Ainda é cedo. A manhã de setembro me convida a um passeio e eu aproveito o tempo para caminhar pelas ruas da minha cidade, buscar sua identidade, cavucar suas raízes.

No céu há um prenúncio de seca. A fumaceira das queimadas invade o Pantanal e a manhã está calma, indiferente a tudo, parece não saber que há séculos Corumbá nascia diante de uma tosca cruz de madeira, sob a benção de Cristo e a inabalável fé dos homens.

Percorro a Avenida, passo por casarões históricos, praças, estátuas envelhecidas, nas ruas pouco arborizadas. Um resto de melodia dos séculos passados me carrega para um tempo em que espanhóis navegavam pelo rio Paraguai à procura de caminhos que os conduzissem às montanhas de prata do Peru.

Volto à realidade e um som de TV da padaria me dá bom dia. A manhã é alegre. Pessoas balançam de felicidade. Entro na padaria, compro uns pães e saio com a sensação de estar partindo para a guerra. Ouço nitidamente, o soar de uma clarineta chamando a brava gente. Tantos irmãos feridos, tantos irmãos mortos na guerra injusta. Mas eis que a Vila de Corumbá, num fremir de contentamento, vê chegar o tenente coronel Antônio Maria Coelho comandando a tropa que a libertará (PROENÇA, 2003, p. 69)

Eis, acima, o mais denso instante do escrito! O passeio do autor é uma ação reminiscente, um trânsito pelas veredas de sua memória afetiva devidamente articulada a acontecimentos históricos marcantes na cidade. A descrição de ruas, lugares, sons e lembranças oferece a matéria-prima para o autor, constituindo no âmbito de sua narrativa uma ligação presente-passado-presente favorecendo a escrita que marca a homenagem à cidade. Mas essa operação de memória, vertida na narrativa é seletiva porque Proença opta por nuançar muitos elementos que marcam as diferenças sociais presentes em Corumbá. A face pouco elogiável da cidade é substituída pela apologia do trabalho de assistência social salesiana e pela exposição do passado amargo da invasão e permanência das tropas guaranis durante a Guerra. A História, ou melhor, a História trágica da cidade é o ambiente do texto memorativo e de suas faces romanceadas, indicando que a experiência literária é lastreada, neste caso em especial, no passado. Essa condição transforma os fenômenos históricos da cidade: dos movimentos para sua criação, passando pela presença do invasor e alcançando o presente, em um fenômeno que garante o elo comum entre o autor e eventuais outros apaixonados por Corumbá. A história fornece a matéria-prima para a identidade local, emparelhando passado e presente, incluídos e excluídos e possibilita a construção de imagens em que as dificuldades foram superadas pela sobrevivência positivada do lugar e de suas marcas.

A afetividade é escolhida não apenas como razão da escrita, mas igualmente como ato epistemológico de onde se retira a “racionalidade” do texto que é um fenômeno portador e resultado de procedimentos literários – de decisão literária – provedores da cidade de Proença. No terceiro capítulo, em subitem denominado “Corumbá de minha emoção”, encontram-se fragmentos da memória de Proença, os quais são tomados como referências para assinalar os locais da cidade e os sentidos plasmados na identidade do autor que (d)enuncia sua afetividade com a “cidade branca” ou a “capital do Pantanal”.

Dizem que uma cidade não é apenas um lugar, um ponto no mapa, é a raiz para quem nela nasceu e viveu, é emoção, são sentimentos de aventuras e desventuras ali experimentados, é saudade e medo, ódio e amor.

Corumbá, para mim é uma tela pincelada de saudade e emoção. É a Corumbá de minha infância e adolescência que me emociona e permanece ainda presente na minha memória. A Corumbá das “uvas paraguaias” que a gente apanhava das árvores e chupava com sofreguidão. Do bar e sorveteria americana. Do La Barranca. Da escadinha. Das lavadeiras equilibrando trouxas na cabeça, descendo a ladeira para lavar roupas sobre as pedras lisas e azuladas da beira do rio. A Corumbá do ´footing´na avenida. Do primeiro beijo no Cine Santa Cruz. Da Jane, da Chita, do Tarzan do Cine Excelsior. Do Grupo escolar Luís de Albuquerque. Das paradas cívico-militares, com Artur Pé de Laje comandando o desfile. Da dona Natércia e da dona Julieta, a minha primeira professora (PROENÇA, 2003, p. 82)

O caminho percorrido por Proença é sinuoso, a exemplo do caudaloso rio Paraguai que serpenteia Pantanal adentro, tragando para seu leito um conjunto de elementos até então marginais; um rio repleto de histórias e de memórias. Decerto é que o autor não se preocupou em recolher tudo, mas optou por apropriar-se de componentes que garantissem uma representação positiva à cidade. A Corumbá proenciana é resultado de uma decisão afetiva e que foi construída sobre um interessante exercício de construção narrativa formada por elementos da memória e informações históricas da cidade e do autor. O resultado é um texto misto, em alguns momentos heroicizantes em demasia. Seu autor o define: “Corumbá de Todas as Graças, é um livro que eu acho, não posso dizer que não é literário, tem crônicas literárias, mas ao mesmo tempo tem histórias! Então a história e a literatura se unem para embasar toda nossa região pantaneira” (ENTREVISTA. Augusto César Proença).

A cidade reivindicada pelo autor é produto de sua atuação intelectual, plenamente configurada em seu texto. Em certa medida é possível considerar que a “Corumbá de Todas as Graças” tem em seu subsolo a Corumbá histórica, a qual perdeu importância no contexto regional, sobretudo com o crescimento da atual capital do Mato Grosso do Sul, provocando uma sensação de perda e de nostalgia nos corumbaenses perceptíveis no cotidiano da cidade. A vila pensada para ser uma espécie de ponto referencial nos longínquos sertões coloniais e depois do império brasileiro se viu constrangida a trazer para sua companhia, no contexto dos variados discursos a respeito da relevância de Corumbá, a imagem edenizada e sedutora do Pantanal.

No livro em questão é perceptível a permanência de certos traços da produção de Augusto Proença, mas é também notável sua opção por dotar Corumbá de uma personalidade idealizada e importante para si. Proença lançou mão de suas habilidades de colocar a escrita literária em diálogo com o passado da cidade, forjando assim uma narrativa sincrônica no centro da qual é possível encontrar o processo histórico referido a partir da memória do autor. Nas palavras de Proença, em seu ato escriturário “A história é a base; eu estou escrevendo um texto de história! A História fala por trás!” (ENTREVISTA 2010. Augusto César Proença).

Augusto Proença construiu um diálogo entre o processo histórico no qual está presente a cidade de Corumbá e sua capacidade de construir uma imagem para a urbe, consolidando, ao centro da narrativa, a presença da atuação salesiana, liderada por um religioso que se tornou referência na assistência social. A forja escritural do autor, de forma paradoxal amalgamou elementos que afetivamente tintam Corumbá com cores graciosas sem apagar suas mazelas sociais que motivaram a construção do projeto social salesiano denominado Cidade Dom Bosco.

Referências

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ENTREVISTA. Augusto César Proença (fita Cassete). Prod. Eudes Fernando Leite & Tiago Alinor H. Benfica. Campo Grande. [UFGD]. 2010. 60 min (aprox.) Son.

ENTREVISTA. Augusto César Proença (fita Cassete). Prod. Eudes Fernando Leite. Corumbá. [UFGD]. 2007. 50 min (aprox.) Son.

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MELLO, Raul Silveira de. História do Forte Coimbra. 4º volume (X e XI Períodos – 1823 – 1870 e 1870 – 1955). SMG. Imprensa do Exército. Rio de Janeiro: 1961.

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Notas

1 Foram realizados estudos sistemáticos sobre a obra de Augusto César Proença ou, conforme o batismo, Augusto César Gomes da Silva, o que implicou no debruçar sobre aspectos da história de vida do autor. É certo que estudar obra e autor vivo implica em dificuldades de caráter metodológico e ético que não cabem ser discutidos aqui. Contudo, os êxitos superaram expressivamente os obstáculos que tal investigação encontra e gera per si, permitindo inclusive que o olhar do historiador em direção ao texto literário seja necessariamente dialógico e autocrítico (Leite, 2011).
2 De 1979 até 2009, Augusto Proença escreveu e publicou aproximadamente 15 textos. Foram romances, crônicas e contos nos quais a temática recorrente foi o Pantanal e suas características. Há que se notar que no período de 1979 até 1997, a safra literária foi altamente produtiva e constante. Entre 1997 e 2002 ocorre uma lacuna ainda não explicada, mas que indica que o primeiro período contemplou mais intensidade na produção de Proença, o que sem dúvida parece ser também o momento em que apareceram as obras centrais que caracterizam as preocupações e a própria escrita do autor.
3 A respeito da implantação do Forte Coimbra, na Fronteira com as possessões espanholas há uma volumosa obra em quatro volumes escrita pelo General Raul Silveira de Melo, publicada pela Biblioteca do Exército, entre 1958 e 1961 e, depois republicada pelo Instituto Histórico de Mato Grosso do Sul em 2014. Essa fortificação é objeto de discussões por conta de um possível erro de localização quando de sua construção.
4 O quarto capitulo está assim formatado: A CIDADE DOM BOSCO E O PE. ERNESTO SASSIDA: Padre Ernesto Sassida; Corumbá dos Anos 40 e 50; A União dos Ex-alunos de Dom Bosco; Ainda sobre a União do Ex-Alunos de Dom Bosco; A LEMAC; A Escola Profissional Alexandre de Castro; O Depoimento de Dona Catarina; O Bairro Cidade Jardim; Seguindo as Pegadas de Dom Bosco; Centro Esportivo Dom Bosco; Confidências; Declarações Históricas; Fundações e Especiais Iniciativas; Reconhecimento da Comunidade; A Cidade Dom Bosco; O CENPER; E o Sonho se fez Realidade; Janela Aberta para a Cidade.
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