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Recepción: 12 Abril 2020
Aprobación: 17 Junio 2021
DOI: https://doi.org/10.30612/frh.v23i41.15003
Resumo: O artigo proposto apresenta uma discussão sobre a problemática da identidade regional tocantinense e como tal debate encontra na literatura formas simbólicas de conformação. Para tanto, nos apoiamos no estudo da obra “Tipos de Rua”, de Juarez Moreira Filho tratando de compreender como a manifestação da identidade regional tocantinense compõe o ambiente narrativo do autor. Além disso, nos dedicamos a contextualizar os movimentos autonomistas regionais, sobretudo na década de 1950-1960, a fim de reconhecer na literatura regional elementos discursivos de tais movimentos de emancipação politica e administrativa do até então “norte goiano”.
Palavras-chave: Estado do Tocantins, Literatura Regional, Identidade Regional.
Abstract: This article explores the issues around Tocantins regional identity and how this discussion finds symbolic forms of conformation in literature. To this purpose, we have analyzed the collection of stories by Juarez Moreira Filho entitled “Tipos de Rua” (Types of Street) to understand how Tocantins regional identity is manifested in the author's environmental narrative. Moreover, we have contextualized the work in the regional autonomist movements, particularly in the 1950s-1960s, to elucidate the regional literary discursive elements of such movements for political and administrative emancipation of the former “northern Goiás.”
Keywords: State of Tocantins, Regional Literature, Regional Identity.
Resumen: El artículo propuesto presenta una discusión sobre la problemática de la identidad regional de Tocantins y cómo tal debate encuentra en la literatura formas simbólicas de conformación. Para ello, nos apoyamos en el estudio de la obra Tipos de Rua (Tipos de Calle), de Juarez Moreira Filho tratando de comprender cómo la manifestación de la identidad regional de Tocantins compone el ambiente narrativo del autor. Además de esto, nos dedicamos a contextualizar los movimientos autonomistas regionales, sobre todo en la década de 1950-1960, a fin de reconocer en la literatura regional elementos discursivos de tales movimientos de emancipación política y administrativa del hasta entonces “norte de Goiás”.
Palabras clave: Estado de Tocantins, Literatura Regional, Identidad Regional.
Introdução
A literatura, como forma simbólica cassireriana, conforma a vida atribuindo sentidos e significados à existência, tanto de pessoas como de lugares. Na literatura, tratamos do ser e da elaboração de narrativas desse ser-que-está-no-mundo. Dessa forma, a literatura cria mundos e lugares narrativos cujas representações abordam experiências e vivências de personagens, ao mesmo tempo que manifestam geograficidades acerca do universo representado nas narrativas literárias. Conforme Cosgrove (2000, p. 48), atribuímos significados ao mundo movido, sobretudo, pela imaginação que “constrói narrativas que juntam passado e o futuro numa forma de síntese”.
A literatura regional de Juarez Moreira Filho, sobretudo na obra “Tipos de Rua” (2011) exerce exatamente essa função: tal literatura aborda a narrativa sobre treze “tipos de rua” de Dueré (TO), que se apresentam como personagens que vivenciaram as mais diversas experiências que, de certa maneira, conformaram suas existências ao mesmo tempo que significavam seus lugares em um tempo em que o dinamismo econômico da região se estruturava a partir da exploração do garimpo de cristal de rocha. Mas se trata de uma produção artística que, enquanto forma simbólica, não imita, mas é “(...) uma descoberta da realidade” (CASSIRER, 2005, p. 234), um fazer-aparecer do mundo em uma narrativa literária simbólica.
Para Marandola Jr e Gratão (2010, p. 07), “o drama humano, a história de uma cidade, os detalhes de um conflito não se limitam à trama de significados e sentidos que estão encetados em si próprios. Sua força reside no que aquelas narrativas específicas carregam do sentido universal de seus temas, conflitos e entendimentos”. São com essas palavras que apresentamos este estudo que tem como norte o debate sobre a identidade regional tocantinense vista pela literatura regional que se apresenta sob a narrativa literária que significa não apenas o mundo, mas os sentidos de pertencimento ao mundo norte goiano que, no fim da década de 1980 se ressignifica como tocantinense.
Consideramos que problemática da identidade regional tocantinense se manifesta sob diversos aspectos, sendo um deles a literatura. Diversos trabalhos já foram publicados abordando essa discussão. Na intenção de participar deste debate, nos dedicamos neste estudo a analisar a obra de Juarez Moreira Filho intitulada “Tipos de Rua” (2011), assim como Motter (2013) o fizera sobre as obras do mesmo literato. Consideramos que nesta publicação o autor apresenta elementos que colaboram com o debate sobre a identidade regional tocantinense.
O livro de Juarez Moreira Filho é um conjunto de treze contos que retrata os “tipos de rua” ambientados em Dueré (TO) na época de sua infância, ainda quando a cidade pertencia ao norte goiano, portanto, antes da emancipação regional que resultou na criação do Estado do Tocantins, em 1989. Nestes contos estão presentes as formas de vivenciar o espaço e o modo como as relações se estabeleciam naquele contexto que ainda retratava o norte goiano e os garimpos de cristais de rocha.
Isso evidencia o modo como a literatura regional se coloca como forma de falar-do-mundo, das espacialidades vivenciadas e compartilhadas em lugares cujas tramas de relações se estabelecem a partir da convivência e da partilha entre seus moradores que, nos escritos do autor, se tornam personagens. Trata-se de se “estabelecer um entrelaçamento de saberes que se tecem também pelos fios de entendimento da espacialidade e da geograficidade” (MARANDOLA JR; GRATÃO, 2010, p. 09) do lugar.
Neste artigo, abordamos a questão da identidade regional tocantinense, o modo de percepção dos processos de emancipação e as vivencias dos tipos de ruas no antigo norte goiano a partir da obra “Tipos de Rua”, de Juarez Moreira Filho. Para tal, nos apoiamos em uma literatura geográfica-histórica de pesquisas sobre a criação do Estado do Tocantins, bem como em estudos que abordam a relação entre literatura, geografia e história com a objetivo de compreendermos a literatura regional de Juarez moreira Filho em seu contexto espaço-temporal, sem perder de vista que a mesma se manifesta enquanto uma representação do espaço capaz de significar o mundo e as identidades regionais.
Tal abordagem se manifesta como importante para compreendermos o modo de significar o espaço de ação que a sociedade elabora na dimensão cultural de cada lugar e de cada tempo, demonstrando, assim, que a literatura, compreendida como forma-de-falar e forma-de-significar o mundo, tem a competência de narrar em seus textos o modus operandi que a sociedade experimenta e vivencia seu próprio estar-no-mundo, elaborando narrativas que conforma a existência de pessoas e comunidades.
Literatura, espaço e a problemática da identidade regional tocantinense
O Estado do Tocantins foi a última unidade federativa estadual emancipada no Brasil. Ele foi criado pelo artigo 13 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federativa do Brasil de 1988 e sua instalação aconteceu em 01 de janeiro de 1989. O território tocantinense, munido de autonomia política e administrativa, constituía até 1988 o antigo norte goiano. Na época da emancipação, o Estado do Tocantins “herdou” aproximadamente 70 municípios goianos e, atualmente, possui 139 municípios, muitos dos quais antigos distritos e vilas de municípios já existentes, que a partir de 1991, e anos posteriores, alcançaram suas respectivas emancipações por atos do poder executivo estadual. O único município genuinamente tocantinense é Palmas, a capital.
Mas a criação do Estado do Tocantins não foi apenas um ato político, foi também cultural. E isto está diretamente relacionado com a manifestação de uma identidade regional tocantinense que encontra na cultura formas de expressão que possam atribuir sentidos e significados a esta construção. Esta problemática é antiga e remonta aos tempos em que a criação do Estado do Tocantins ainda era um projeto manifestado em movimentos emancipacionistas do século XIX (CAVALCANTE, 2003) que além de políticos, também eram culturais. Em Rodrigues (2012) verifica-se que tais movimentos emancipacionistas na década de 1950 adquirem um forte tom identitário quando faixas eram levantadas com a expressão “o tocantinense não é goiano”.
Em seu estudo, Cavalcante (2003) elabora uma abordagem sobre os movimentos autonomistas do norte goiano em três fases distintas: 1821-1823; 196-1960; e 1985-1988. Cada movimento possui uma face espaço-tempo característica e revela que diferentes contextos produziram diferentes movimentos mobilizados por atores políticas de cada momento, mas que almejam alcançar a condição de autonomia política para a região do norte goiano fazendo dela uma unidade político-administrativa autônoma. Interessante reconhecer que a literatura de Juarez Moreira Filho faz aflorar tal desejo de autonomia, mas pelo olhar dos tipos de ruas, daqueles que não tem mandato político, mas que vivenciam cotidianamente os dramas do lugar marcado pelo abandono regional.
Isso fica nítido no conto O Lelé da Cuca: nesse texto Juarez Moreira Filho narra a chegada na cidade de Dueré do Deputado Souza que, desejando se reeleger, dizia que iria apoiar a cidade na área de saúde e educação. Prometeu “um colégio grande”, “um colégio modelo” com quadra de futebol e instrumentos para uma pequena fanfarra. E diz o autor: “e pra ser franco, como o 7 de setembro antecedia a data marcada para as eleições daquele ano, a fanfarra chegou mesmo, de verdade!” (MOREIRA FILHO, 2011, p. 117). Os cuidados da fanfarra ficaram sob responsabilidade do Lelé da Cuca, por indicação do próprio deputado.
Entretanto, como o abandono também era cultural, e não apenas estrutural, narra o autor a seguinte situação:
O dia da eleição chegou. E o Deputado Souza embora sendo muito bem votado no colégio eleitoral de Dueré, não conseguiu se reeleger.
Foi nada não! ...
No outro dia cedo, ele baixou de avião bimotor em Dueré, e levou a bandinha nossa: as duas cornetas, o bumbo, os dois pratos e as duas caixas de taróis.
Todos nós, os alunos do grupinho escolar e o lelé da Cuca ficamos indignados!... Desolados!... Chupando o dedo!... Um absurdo nunca visto!... (MOREIRA FILHO, 2011, p. 119)
Para um grupo escolar “acanhado e erguido em beiço de cata de garimpagem suja de crista-de-rocha” (MOREIRA FILHO, 2011, p. 117), as promessas do candidato à reeleição pareceram muito vantajosas. Se situarmos tal contexto àquele vivenciado de abandono regional, seria muito significante um colégio modelo que pudesse melhor atender as demandas dos moradores de Dueré. Tanto que com a chegada da fanfarra e os ensaios promovidos sob a coordenação de lelé da Cuca fizeram aquele 7 de setembro a melhor comemoração “(...) que aquela gente garimpeira assistiu em toda a sua história”. Mas com os resultados da eleição, as promessas se foram junto com os instrumentos da fanfarra tomados de volta. Esse conto carrega consigo uma carga simbólica significativa que nos ajuda a compreender os sentidos de abandono do norte goiano que se manifestam nos movimentos autonomistas, os quais denotam que a região somente era lembrada em tempos de eleições.
Entretanto, mesmo com movimentos e vivencias mobilizados, o ato efetivo que resultou na criação e implantação do Estado do Tocantins se concretizou apenas no fim da década de 1980. Entretanto, o mesmo não pode ser dito dos movimentos emancipacionistas que, em diferentes tempos e espaços, almejavam tal acontecimento desde antes. Nesse sentido, ao tratarmos do Estado do Tocantins, é necessário recorrermos às diferentes representações do mesmo elaboradas e manifestadas em diferentes contextos históricos e espaciais que atuam atualmente no sentido de consolidar uma identidade regional que a todo momento se movimenta. Para Motter (2013, p. 01), na “(...) criação do Estado, em 1989 e sua posterior consolidação, nas décadas subsequentes, houve, por parte dos vários discursos que permeavam a sociedade em questão, a afirmação de uma identidade político-administrativa nova”.
Nesse interim, devemos atentar para a questão da literatura regional como forma de representar os diferentes contextos que atuam sobre a formação de uma identidade regional tocantinense. Esta literatura “está associada desde o início aos trabalhos sobre o espaço vivido, campo que tem dado lugar a inúmeras investigações” (BROSSEAU, 2007, p. 21). Quando se trata da literatura de Juarez Moreira Filho no contexto dos garimpos de cristais de rochas do antigo norte goiano, significa dizer que as rugosidades garimpeiras permanecem na paisagem literária tocantinense como testemunhas de um passado que convive, em maior ou menor conflito, com os novos campos de referências culturais em um território que deixou de ser goiano há várias décadas.
Para Brosseau (2007, p. 25), na literatura literal o romancista pode ser “(...) um porta-voz das populações cujos gêneros de vida descreve. Ele nos mergulharia nas atitudes, nos valores, nos conflitos das pessoas de uma região determinada, face ao seu meio ambiente”. Na literatura regional de Juarez Moreira Filho, sua ficção assume esse papel descrito por Brosseau (2007) nos personagens que representam a rugosidade garimpeira de um território que já foi goiano, mas que hoje problematiza os laços culturais tocantinenses de identidade e pertencimento regional.
Para Juarez Moreira Filho (2011, p. 33), toda cidade brasileira possui seus tipos de rua característicos, como Dueré (TO). Para o autor, “o tipo de rua em si não é um palhaço, mas tem um pouco de palhaço. É um sujeito engraçado por natureza. Às vezes ele pode ser um camarada sério, enraivecido, triste, mas todos riem dele, o porquê ninguém sabe – é o charme do tipo!”. Os tipos de rua abordados por Juarez Moreira Filho viveram na cidade de Dueré (TO) na época do garimpo de cristal de rocha. Nesse sentido, a literatura regional aborda experiências de “tipos” de pessoas que tem no espaço da ação da vida a conformação de suas existências.
Mas não se pode perder a perspectiva de que a literatura apresenta uma narrativa dos acontecimentos, uma representação simbólica do mundo vivenciado e experimentado. Segundo Bastos (1998, p. 55), “a representação pode ser considerada a imagem do mundo em que cada aspecto do real passa a ser expresso simbolicamente. Representar seria a construção que os indivíduos fazem na apropriação dos objetos”. Mas não só: essa apropriação pode ocorrer também dos significados e sentidos reconhecidos/percebidos/identificados dos acontecimentos tornados narrativas literárias, conforme alertado por Marandola Jr. e Gratão (2010).
Esta relação entre literatura e espaço, sobretudo acerca da experiência do homem com o espaço, adquire dimensão, sobretudo, entre os geógrafos humanistas. Brosseau (2007, p. 31) afirma que “preocupados em ver como o homem interioriza ou representa a sua experiência do espaço, os geógrafos humanistas privilegiam o romance na medida em que ele parece lhes propiciar a ocasião ideal de um encontro entre o mundo objetivo e a subjetividade humana”. No estudo que apresentamos neste artigo a literatura representa as formas dos personagens em (con)viver no espaço do antigo norte goiano, a geograficidade que aflora conforme a proposta de Dardel (2015) quando disse que
conhecer o desconhecido, atingir o inacessível, a inquietude geográfica precede e sustenta a ciência objetiva. Amor ao solo natal ou busca por novos ambientes, uma relação concreta liga o homem à Terra, uma geograficidade (géographicité) do homem como modo de sua existência e de seu destino. (DARDEL, 2015, p. 01-02)
Nesta perspectiva, consideramos o que Brosseau (2007, p. 31) afirma sobre os romances: para o autor “(...) o romance, ao avocar de maneira eloquente o ressonante interior de uma experiência dos lugares, pode servir para enriquecer as teses sobre a identidade espacial, o enraizamento do homem, o sentido que este atribui aos lugares”. Neste sentido, existe uma sintonia muito significativa entre a literatura e espaço, que evidencia as geograficidades dos homens ao tecer suas relações com seu mundo, com seu lugar, e com as referências culturais e identitárias que ele estabelece com o espaço a partir de suas experiências vividas. Ou seja, não se trata de abordar na literatura tão somente as características do lugar, mas a experiência que o homem vivencia com esse lugar (BROSSEAU, 2007, p. 32).
O Estado do Tocantins e as representações da identidade regional na literatura de Juarez Moreira Filho
O período compreendido entre 1940 e 1960 é de grande relevância para a economia do norte goiano e para o movimento de emancipação tocantinense. Do ponto de vista econômico, foi a partir de 1940 que, conforme apontam Motter e Aragão (2015, p. 160) “a extração do cristal de rocha dinamizou a economia do então Norte de Goiás, hoje Tocantins”. Segundo as autoras, com base em Silveira (1997), esse movimento perdurou até o final da década de 1960.
Do ponto de vista da emancipação política-territorial, a cidade de Porto Nacional se consolidava nesse período como o centro de um movimento autonomista tocantinense com a participação de diversas autoridades da época, conforme apontado por Rodrigues (2012). Nesse sentido, entre o econômico e o cultural, a dinâmica do espaço se mobilizava (i) tanto no sentido da perspectiva de geração de riqueza como forma de (com)viver com o abandono da região, (ii) quanto na perspectiva de alcançar a emancipação. No conto sobre “O Cabo da Venta Chata”, a região foi retratada da forma como segue:
Hoje, não! Mas antes da divisão do Estado de Goiás em duas partes desiguais com a ponta mais estreita, a do rabo, formando o Estado do Tocantins, a gente vivia a esmo, ao deus-dará, jogada a todo tipo de sorte, neste oco do mundo. Sofria pra danar com a falta de água, energia, estrada, escola, hospital e um mundão de coisas mais. (MOREIRA FILHO, 2011, p. 107)
Esse “oco do mundo” era Dueré (TO). De acordo com a biografia do autor, ele chegou à Fazenda Racho Alegre, que se distanciava por 3km de Dueré, em 1953, que naquela época ainda era um distrito e que alcançou sua emancipação política-administrativa em 1958. A família de Juarez Moreira Filho se muda, de forma definitiva, para o município de Dueré em 1961 e ali o autor permanece até o início de 1967 (MOREIRA FILHO, 2011). Portanto, o relato apresentado na citação acima de um norte goiano abandonado retrata as vivências e convivências do autor, não apenas com os tipos de rua por ele narrados, mas também com um espaço social posto de tal forma no qual as dificuldades de sobrevivência estavam sempre no cotidiano de cada morador da cidade.
Nesse sentido, por mais que a narrativa seja de um norte goiano abandonado pelas autoridades regionais nas décadas de 1950-1980, ainda assim tais experiências vivenciadas pelo escritor se conformam em representações em sua literatura. De acordo com Motter (2013, p. 04),
conforme a historiografia goiana e tocantinense, a região onde hoje se localiza o estado do Tocantins experimentou um sofrimento secular por falta de estradas que a ligasse com o Centro-Sul do País, situação só amenizada com a construção da Rodovia Belém-Brasília, iniciada na década de 1960. Escoamento de produção, deslocamento dos habitantes, locomoção para a então capital, Goiânia, tudo era extremamente difícil para o Norte, pois não havia estradas.
O mesmo discurso do abandono aparece nos movimentos emancipacionistas do mesmo período, sobretudo na cidade de Porto Nacional. De acordo com Rodrigues (2012, p. 480), “as diferenças, que formatam as identidades, são produções sociais. Elas possuem motivações políticas, econômicas ou sociais, que se manifestam de forma simbólica e discursiva”. Tais diferenciações e manifestaram em movimentos políticos emancipacionistas regionais da década de 1950, e também alcançaram as representações literárias que tratam de tal período. Como crítica à política de segurança do Estado de Goiás em relação à Dueré e ao norte goiano, Moreira Filho (2011, p. 107), diz
a própria polícia, ia me esquecendo, era uma lástima! Só mandavam para cá, na maioria das vezes, cabra criminoso, com muitas mortes nas costas! E essa trinca nojenta vinha pra perto da gente a título de punição... Muitos eram bagunceiros, maus pagadores, raparigueiros e cachaceiros inconsequentes. E não estavam nem ai pro que desse e viesse: por eles o Comando da Policia podia mandá-los até pra caixa-pregos dos infernos que eles iam!...e iam sem reclamar um pingo-de-nada!...
Esse argumento também extraído do conto “O Cabo da Venta Chata” e retrata as vivências e percepções regionais daquele período ainda de pertencimento do estado goiano no qual Dueré, e todo o norte do estado, se sentiam abandonados pelas autoridades. E estas vivências e percepções estavam presentes nos discursos autonomistas da década de 1950 como elementos que justificavam tal emancipação requerida pelas autoridades do norte de Goiás. Rodrigues (2012, p. 483) afirma que
era necessário criar o sentido da emancipação não apenas política-administrativa, mas também identitária e subjetiva, como forma da segunda legitimar a primeira. Não bastava separar Tocantins de Goiás do ponto de vista territorial; também era preciso marcar a fronteira entre tocantinenses e goianos do ponto de vista da identidade regional e do sentido existencial.
A literatura, portanto, tem um peso significativo na construção da identidade, ela é quem traz elementos, e também os cria, para que um determinado grupo ou classe, no espaço e no tempo, seja incluído ou excluído no processo de representação. O literato tem esse poder, assim como também detém o monopólio da representação desta identidade. Para Bastos (1998, p. 57), “o escritor consome experiências, emoções, linguagem, memória e produz o texto, fruto de um complexo sistema de escolhas determinado por valores que pressupõem uma ideologia que orienta a produção do discurso em dado momento”. Nesse sentido, a função do literato é imprescindível, pois é dele o discurso-fundador que aparece na paisagem literária por ele elaborada.
Neste mesmo caminho, é importante lembrar que existe um ritual social para que isso ocorra: “um sujeito que fazendo parte das mesmas práticas sociais do emissor, acaba por impor coerções aos enunciados veiculados, as quais são aceitas como um tipo de regra, pois todo emissor procura ter seu discurso autorizado e reconhecido” (MOTTER, 2010, p. 54). Mas cabe aqui uma ressalva: ainda que a narrativa literária do autor esteja próxima de um contexto socioespacial vivenciado pelo mesmo, ainda assim deve-se tomá-la como uma forma de significar o mundo de maneira muito distinta, e na relação autor-leitor tais representações literárias se movimentam no campo das significações simbólicas. Para Bastos (1998, p. 57), “há um processo dialético entre o texto e a leitura, sendo, às vezes, difícil a um leitor elaborar significações próximas às imaginadas pelo escritor, dado os tipos de experiências pessoais e sociais diferenciadas”.
Esse reconhecimento pode estar nos acontecimentos trazidos nas reminiscências do grupo transbordado pelo literato, ou até mesmo nas próprias vivências em que o autor participou, como no caso do personagem Joia que era um andarilho excluído do garimpo: “conheci pessoalmente vários tipos de rua! E um deles deixou-me marcas profundas, bem profundas – foi o Jóia” (MOREIRA FILHO, 2011, p. 89). Conhecer pessoalmente significa que o autor participou e esteve no garimpo. E Joia pode ganhar outros traços através da escrita, mas a verossimilhança elenca elementos desse conhecimento, da desigualdade social daquele lugar.
Como nos explica Silva (2013) “a identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças (...) são vistas como mais importantes que outras, especialmente em lugares particulares e em momentos particulares” (SILVA, 2013, p. 11). Esses momentos de exclusão, a mais atenção de algumas atividades econômicas como a extração do cristal são seletivos e tornaram-se importantes na marca de uma identidade regional tocantinense, afinal é importante lembrar que “a diferença é sustentada pela exclusão: se você é (...) você não pode ser (...) e vice-versa” (SILVA, 2013, p. 09).
Por isso, esse espaço garimpeiro, torna-se “o espaço ‘puro’ (...) é o azul do céu, fronteira entre o visível e o invisível” (DARDEL, 2015, p. 08). É visível que mostra a cidade de Dueré com sua peculiaridade e acontecimentos juntamente com a exclusão de Joia. O garimpo é por assim um “espaço geográfico, uma realidade que oprime uma realidade que exclui”. (DARDEL, 2015, p. 08). O garimpo é um espaço:
habitável, cultivável, navegável, essas aptidões não esgotam o sentido deste “para o homem” que exprime simples e genericamente o ponto de vista do homem (...) O pitoresco de certas regiões só se concebe em um mundo onde a beleza natural está incluída como um atrativo ou uma distração (DARDEL, 2015, p. 08-09).
Esse espaço geográfico garimpeiro representado pelo autor vai gerando sentido. E por esse sentido, que “depende da relação entre as coisas no mundo - pessoas, objetos, eventos reais ou ficcionais – e do sistema conceitual, que pode funcionar como uma representação mental delas” (HALL, 2016, p. 36). Sendo assim, o sentido que é desenvolvido com relação ao garimpo entre o autor e sua realidade evocada da literatura presente, um cotidiano vivo que representa o imaginário social daquela época, e que ajudou na compreensão do que somos hoje. Segundo Bastos (1998, p. 57), “o ser humano pode ter contato com o real através dos discursos que constroem concepções deste real, segundo vivências e experiências, que nada mais são do que representações do real”.
No conto “O Ligeirinho”, diz Moreira Filho (2011, p. 53-54):
assunto puxa assunto. Da Bahia foi para Dueré uma família com um sonho besta de enriquecer nos garimpos de cristal-de-rocha das redondezas, pura ilusão, coisa de gente atrasada, besta. O garimpo é como loteria esportiva, quando um ganha e enriquece, milhares perdem
Dessa forma, o autor mobiliza um conjunto de elementos que significa as mobilizações em torno do garimpo, capazes de alimentar perspectivas e esperanças às pessoas, sobretudo aqueles que habitavam um norte goiano ausente de estruturas e serviços aos seus habitantes, elementos estes que reforçavam por uma alternativa política: a autonomia com relação ao Estado de Goiás. Nesse sentido, a representação literária do norte goiano abandonado que vislumbra na autonomia política-administrativa da região como uma expectativa de “escapar” de tal condição, atua como uma legitimação de tal acontecimento político-regional. Desta forma, as experiências vivenciadas pelo autor, narradas em sua literatura regional, “representa (...) um espaço privilegiado de expressão da temática dos conflitos sociais e ideológicos de uma dada cultura (...) a partir dos conflitos existentes no seu horizonte de experiências, vivência e expectativas sociais” (BASTOS, 1998, p. 57).
Nesse sentido, compreender a dinâmica do garimpo de cristal de rocha, as ausências de infraestrutura que possibilitassem um deslocamento de pessoas e mercadorias de forma mais acessível bem como o contexto dos movimentos de emancipação politica-regional do norte goiano do período de 1960-1980 é imprescindível para se compreender o discurso literário do autor. De acordo com Bastos (1998, p. 58), “(...) é preponderante entender a localização do romancista no campo literário e no campo das questões sociais do seu tempo. Assim, qualquer texto precisa ser investigado dentro da organização social e cultural e do contexto histórico em que foi concebido”.
Considerações finais
A obra “Tipos de Rua” de Juarez Moreira Filho aborda aspectos importantes referentes à elaboração de uma representação sobre Dueré, o norte goiano e o Estado do Tocantins. Por meio da literatura regional temos acesso a formas-de-ser-no-mundo de personagens que, em muitos casos, se aproximam muito das experiências vivenciadas por muitas pessoas e pela própria comunidade. Mas a obra, em si, adquire um papel político relevante para o contexto regional quando verificamos que em seus contos e personagens, a problemática da identidade se manifesta.
Nesse sentido, mais do que se situar na história da literatura regional tocantinense, a obra “Tipos de Rua” se consolida também como um manifesto político que corrobora os argumentos dos movimentos emancipacionistas da região, sobretudo aqueles vivenciados na década de 1950-1960, mas que encontram respaldo nos movimentos do fim do século XIX. A partir deste ponto, encontramos na literatura ecos que dão vozes ao desejo de ser-tocantinense, o que vem a ocorrer apenas no final da década de 1980.
Não apenas ser-tocantinense: mas a denúncia de abandono da região que aparece nas históricas dos tipos de rua de Dueré narrados pelo autor Juarez Moreira Filho: cada personagem vivencia esse processo de um modo diferente e, portanto, elabora narrativas a partir de seu olhar: desde a fanfarra tomada de volta pelo deputado derrotado na eleição até a polícia enviada para a região. A representação elaborada dessas, e outras situações dos moradores do abandonado norte goiano, anima as expectativas e esperanças de um Tocantins emancipado, estruturado e autônomo.
Mas algo atravessa essas vivências e experiências: o garimpo do cristal-de-rocha. É nesse contexto de extração do mineral que se estrutura economicamente a cidade de Dueré naquela época (décadas de 1940-1960), e é desse período os acontecimentos que são narrados por Juarez Moreira Filho. A narrativa literária elabora uma representação do espaço capaz de significar o espaço de representação dos personagens. Bastos (1998, p. 60) destaca que “o espaço é representado segundo um imaginário social em que não se deve negar a materialidade, o concreto”. É dessa premissa que a obra de Juarez Moreira Filho adquire importância social e politica no processo de representação da identidade cultural tocantinense, que se manifesta antes mesmo da própria emancipação.
O movimento autonomista da década de 1950 em Porto Nacional está em sintonia com as vivências dos tipos de rua que narradas na literatura de Juarez Moreira Filho no mesmo período, mas em Dueré. De repente, Dueré e Porto Nacional experimentam as mesmas expectativas de autonomia do norte goiano, mas com narrativas diferentes: enquanto o movimento de Porto Nacional tem como portadores dos discursos autonomistas autoridades políticas e do judiciário; os porta-vozes do desejo da emancipação de Dueré são os tipos de rua que, em suas formas existenciais manifestam os dramas da existência e o sonho da autonomia.
Referências
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