Entrevista

Recepción: 27 Enero 2021
Aprobación: 30 Marzo 2021
DOI: https://doi.org/10.30612/frh.v23i41.15006
Resumo: Muito se tem discutido sobre a importância de pesquisas que considerem epistemologias plurais; este trabalho busca caminhar nesta direção. A ideia é visibilizar universos culturais negros na cidade de Florianópolis, em especial, as dinâmicas atreladas ao conceito de interseccionalidades, decolonialidade de corpos, tradição oral, oralidades e ancestralidades – questões basilares do campo dos estudos pós-coloniais e decoloniais. Para isso, após a proposição de atividade da disciplina História do Tempo Presente: Teoria e Historiografia, ministrada pelo Professor Rogério Rosa Rodrigues no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC), realizei uma entrevista, em dezembro de 2020, com a Professora Jeruse Romão: mulher, negra, pedagoga, mestre em Educação e intelectual potente. A escolha está atrelada ao fato da sua presença e protagonismo na luta do movimento negro. Ela é referência no campo da Educação das Relações Étnico Raciais (ERER) nas formações de professoras/es e na implementação da Lei Federal 10.639/03 numa perspectiva que visibiliza as histórias locais e os modos de ser, ver e sentir o mundo das populações africanas e afro-brasileiras. Trajetória de grande relevância para refletir sobre a potência das mulheres em Florianópolis. A entrevista foi intitulada "Teoria e prática na construção da história: Uma conversa com Jeruse Romão" e buscou evidenciar a importância de reconhecer epistemologias plurais, vinculadas à não dissociação entre teoria e prática, assim como os desafios enfrentados pelas mulheres negras no tempo presente e as relações com narrativas de mulheres negras no carnaval das escolas de samba da cidade de Florianópolis. Por fim, uma discussão em torno também do movimento negro, movimento de mulheres negras e as intersecções entre gênero, classe e raça.
Palavras-chave: Mulheres negras, Florianópolis, Epistemologias plurais.
Abstract: Much has been discussed about the importance of research that considers plural epistemologies, this work seeks to move in this direction. The idea is to make black cultural universes visible in the city of Florianópolis, in particular, the dynamics linked to the concept of intersectionality, decoloniality of bodies, oral tradition, oralities and ancestry, fundamental issues in the field of post-colonial and decolonial studies. For this, after proposing the activity of the History of the Present Time: Theory and Historiography taught by Professor Rogério Rosa Rodrigues in the doctoral course of the Postgraduate Program in History at the State University of Santa Catarina (PPGH / UDESC) I conducted a interview in December 2020 with Professor Jeruse Romão, woman, black, pedagogue, master in Education and powerful intellectual. The choice is linked to the fact of its presence and protagonism in the struggle of the black movement, it is a reference in the field of Education of Ethnic Racial Relations (ERER) in the training of teachers and in the implementation of Federal Law 10.639 / 03 in a perspective that makes visible local histories and ways of being, seeing, feeling the world of African and Afro-Brazilian populations. Trajectory of great relevance to reflect on the power of women in Florianópolis. Interview was entitled "Theory and practice in the construction of history: A conversation with Jeruse Romão" sought to highlight the importance of recognizing plural epistemologies, linked to the non-dissociation between theory and practice, as well as the challenges faced by black women in the present time and relationships with narratives of black women at the carnival of the samba schools in the city of Florianópolis. Finally, a discussion around the black movement, the black women's movement and the intersections between gender, class and race.
Keywords: Black women, Florianópolis, Plural epistemologies.
Resumen: Mucho se ha discutido sobre la importancia de la investigación que considere epistemologías plurales, este trabajo busca avanzar en esta dirección. La idea es visibilizar los universos culturales negros en la ciudad de Florianópolis, en particular, las dinámicas vinculadas al concepto de interseccionalidad, descolonialidad de cuerpos, tradición oral, oralidades y ascendencia, cuestiones fundamentales en el campo de los estudios poscoloniales y decoloniales. Para ello, luego de proponer la actividad de Historia de la Actualidad: Teoría e Historiografía impartida por el profesor Rogério Rosa Rodrigues en el curso de doctorado del Programa de Posgrado en Historia de la Universidad Estadual de Santa Catarina (PPGH / UDESC) realicé una entrevista en diciembre de 2020 con la profesora Jeruse Romão, mujer, negra, pedagoga, maestra en Educación y poderosa intelectual. La elección está ligada al hecho de su presencia y protagonismo en la lucha del movimiento negro, es un referente en el campo de la Educación de Relaciones Étnicas Raciales (ERER) en la formación de docentes y en la implementación de la Ley Federal 10.639 / 03 en una perspectiva que visibiliza historias locales y formas de ser, ver, sentir el mundo de las poblaciones africanas y afrobrasileñas. Trayectoria de gran relevancia para reflexionar sobre el poder de la mujer en Florianópolis. La entrevista se tituló "Teoría y práctica en la construcción de la historia: una conversación con Jeruse Romão" buscó resaltar la importancia de reconocer epistemologías plurales, vinculadas a la no disociación entre teoría y práctica, así como los desafíos que enfrentan las mujeres negras en la actualidad y las relaciones. con narrativas de mujeres negras en el carnaval de las escuelas de samba de la ciudad de Florianópolis. Finalmente, una discusión en torno al movimiento negro, el movimiento de mujeres negras y las intersecciones entre género, clase y raza.
Palabras clave: Mujeres negras, Florianópolis, Epistemologías plurales.
Apresentação da Entrevista
Os escritos que seguem foram construídos a partir de uma entrevista com a professora Jeruse Romão. A atividade está vinculada à disciplina História do Tempo Presente: Teoria e Historiografia, ministrada pelo professor Rogério Rosa Rodrigues no curso de doutorado em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). A proposta foi que cada discente tivesse a oportunidade de dialogar com um/a pesquisador/a sobre seu tema de pesquisa.
Cabe destacar que minha pesquisa pretende analisar a participação e o protagonismo de mulheres negras no carnaval das escolas de samba de Florianópolis, considerando atravessamentos das dinâmicas sociais, culturais e políticas em suas trajetórias de vida. O trabalho consiste na busca de visibilizar as histórias, narrativas e memórias das mulheres negras no carnaval da cidade (1970 a 2019). Diante disso, resolvi realizar o primeiro contato com a professora Jeruse Romão em outubro de 2020 via WhatsApp. O retorno foi imediato e a professora se colocou à disposição para realizar a entrevista por videoconferência; além disso, enviei um e-mail oficializando o convite realizado e detalhando a proposta da conversa.
O roteiro foi construído a partir da perspectiva de que a professora Jeruse Romão possui graduação em Pedagogia pela UDESC (1983) e mestrado em Educação pela UFSC (2000). Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos estudos sobre educação, estudos sobre teatro experimental do negro, ensino profissional, currículos e políticas educacionais. Além disso, ela vem desenvolvendo um trabalho potente enquanto mulher, negra e intelectual. É marcante sua presença e seu protagonismo na luta do movimento negro, além de ser referência no campo da Educação das Relações Étnico Raciais (ERER) nas formações de professoras/es e na implementação da Lei Federal 10.639/03 numa perspectiva que visibiliza as histórias locais e os modos de ser, ver e sentir o mundo das populações africanas e afro-brasileiras. Entrei em contato com a professora Jeruse principalmente por essa sua trajetória de grande relevância para refletir sobre a potência das mulheres em Florianópolis. Também a escolhi por ser grande referência para mim, não apenas academicamente, mas em todos os âmbitos de minha vida.
Dito isto, após algumas complicações no meu âmbito pessoal nos meses de outubro e novembro, apenas consegui realizar a entrevista em dezembro. Então, nossa conversa teve início às 10h08min do dia 01 de dezembro de 2020 via plataforma Zoom com apoio do AYA – Laboratório de Estudos Pós-coloniais e decoloniais da UDESC – coordenado pela minha orientadora, professora Claudia Mortari, a quem agradeço imensamente por todo apoio e disponibilidade.
A proposta estava em torno de contemplar alguns aspectos, como por exemplo, a potência de Jeruse Romão para pensarmos a teoria-prática sobre a produção de conhecimento acerca das populações negras catarinenses, considerando as histórias, memórias e narrativas plurais. Nesse sentido, importa evidenciar sua atuação no Núcleo de Estudos Negros (NEN), que possibilitou viabilizar em âmbito nacional as narrativas da população negra catarinense. Também é importante destacar sua trajetória permeada pela presença e protagonismo no movimento negro, assim como a forte atuação nas discussões e proposições de legislações educacionais voltadas para a Educação das Relações Étnico Raciais (ERER). Pensar os desafios e perspectivas a respeito da contribuição de epistemologias de e sobre mulheres negras em Florianópolis no tempo presente. E, por fim, pensar os estudos sobre universos culturais negros, interseccionalidades, decolonialidade de corpos, tradição oral, oralidades e ancestralidades, questões basilares do campo dos estudos pós-coloniais e decoloniais.
Início da entrevista
Entrevistadora: Quem é Jeruse Romão? E como você prefere ser denominada?
Entrevistada: Eu prefiro ser denominada como Professora Jeruse Romão nos espaços acadêmicos. Tenho nome civil que é Jeruse Maria Romão, aboli o “Maria” em algum momento da história, deixei minha mãe muito indignada com isso, mas me senti bem, eu sou Jeruse Romão, e nos espaços da educação eu sou Professora Jeruse Romão. Mas eu tenho outras relações, também posso ser Jeruse de Iansã, que também é meu nome nos espaços que eu frequento nos terreiros de Umbanda de Almas e Angola como Ialorixá. Ou eu posso ser “Coruja” nos espaços da capoeira, porque capoeiristas têm nomes; embora eu não seja a pessoa do jogo, mas milito no movimento da capoeira desde anos 80, então fui honrada em ter um apelido. Como eu não jogo e falo sobre, meu apelido é Coruja. Então assim, neste espaço que estou agora, eu sou Professora Jeruse Romão. Nascida no dia 24 de dezembro de 1960, primeira filha de um casal composto por uma mãe professora normalista, oriunda do [bairro] Mont Serrat – hoje Mont Serrat; naquela época, Morro da Caixa – e de um pai militar, músico da banda da polícia militar, oriundo de uma região chamada Alto do Biguaçu, no município de Biguaçu, mas que também se deslocava; é daquele grupo que migrou para os morros de Florianópolis nas décadas de 40/50/60 – quando eles se conheceram. Tenho mais 5 irmãos, 3 irmãos vivos. Duas irmãs e um irmão, e dois não mais entre nós. Minha mãe é professora, aposentou-se como professora e impactou na trajetória de muita gente no município de Florianópolis; e meu pai aposentou como tenente da banda da Polícia Militar de Florianópolis. Então eu sigo a trajetória da minha mãe, assim como também tenho uma irmã que seguiu trajetória militar policial do meu pai e por aí vai. Acho que sou isso, sou mãe da Azânia Mahin e do Kaiodê Nogueira, e também milito no movimento LGBT.
Entrevistadora: Professora Jeruse Romão, a primeira pergunta desta entrevista envolverá aspectos da sua trajetória de vida enquanto mulher negra em Florianópolis, no sul do Brasil e a sua produção acadêmica. Como esta experiência está articulada e influenciou os caminhos percorridos enquanto mestra, professora e militante do movimento negro? Dito de outra forma, como é o processo de articular experiência prática e construção de teoria/conhecimento?
Entrevistada: Bom, eu sou pedagoga, não sou da área da História, então peço para que vocês me deem licença porque tenho um percurso de analisar não como vocês historiadores. Me formei em Pedagogia pela UDESC em 1982, o mais aproximado que eu cheguei foi da história da educação dos brancos, que em 2005 eu consegui manifestar um desconforto que me acompanhava desde a formação em Pedagogia na UDESC, na Faculdade de Educação na rua Saldanha Marinho. A disciplina que eu mais gostava era exatamente a História da Educação e sem ainda ter recursos teóricos suficientes, mas ficava me questionando por que só se falavam dos brancos. Porque toda aquela história da educação que eu aprendi, em momento nenhum me dava visibilidade para a trajetória educacional que eu tive de criança até chegar ali, eu não me via naquele espaço. Eu fui alfabetizada no colégio José Boiteux1, no [bairro] Estreito, mas no ano seguinte fui concluir o primário lá no Mont Serrat. Tenho meu certificado de conclusão de primário assinado pela professora Uda Gonzaga2, diretora no Morro da Caixa D’água – e era uma dinâmica de estudar numa escola do morro que eu acho que me constituiu para a toda vida. Porque ela não havia essa intencionalidade, era do viver mesmo, mas a gente vivia entre a igreja e o terreiro, entre a escola de samba e o boi de mamão do Gentil, entre as práticas de benzeduras e de curas na comunidade. As roupas eram feitas nas costureiras, os mercados eram por ali mesmo, a gente brincava de bola, de pipa, a gente sabia dos processos da escola, porque ela era descentralizada, não era num prédio só, naquela época o governo alugava casas do morro e cada série era num lugar, o que possibilitava nossa mobilidade. Então, quando me formei em pedagogia, percebi que aquilo que estava sendo dado não era aquilo que eu tinha vivido, já sabia que desde criança sofria racismo, inclusive por parte dos professores, porque eu era filha de professora. Fui alfabetizada em casa, nunca tive dificuldade de aprendizado no primário e secundário, mas nunca fui valorizada, naquela época se premiava alunos com lápis, borracha, os professores estimulavam nesse sentido. Me lembro que a única vez que fui premiada com lápis foi porque eu levantei a mão depois de sucessivas vezes e disse que também mereço, não com essas palavras, mas lembro perfeitamente que aos nove anos de idade eu fiz isso. Então, a articulação da minha vida depois disso foi focada em falar sobre negros que eu conheço de fora, mas que eu também conheço de dentro, e aí eu articulo a militância no dia em que eu coordenava pedagogicamente uma escola particular pequenininha em Capoeiras. O dono era um homem negro, casado com uma mulher branca, casamento inter-racial, Colégio São Francisco, e eles me chamaram – eu recém-formada no curso de Pedagogia e eles disseram que precisavam de uma ajuda pedagógica. Eu topei o desafio, primeiro trabalho, um dia eu estava em casa e minha mãe disse: olha te ligaram pra tu ir urgente na escola. Eu fui, cheguei lá, estava uma mãe negra e esse diretor, a mãe disse: minha filha Maria José chegou em casa dizendo que a amiguinha dela disse que não vai mais [se] sentar ao lado dela porque ela é negra, branco não tem que [se] sentar perto de negro. Isso está relatado no jornal Estado, depois se tu quiseres pesquisar, porque a família da Maria José é a família do Clube Novo Horizonte3, então já havia neles uma consciência de pertencimento racial e eles tomaram providências: procuraram o jornal. A Maria José é afilhada de batismo de um ex-governador do estado de Santa Catarina também, que contribuiu na parte jurídica e isso acabou indo para o jornal e eu me vi pela primeira vez falando, com 25 pra 26 anos, nos jornais sobre quais eram as perspectivas de educação que eu entendia com aquele caso que, seguramente, se não foi o primeiro a ser denunciado (eu acredito que tenha sido) foi um dos primeiros casos de racismo denunciado dentro do sistema educacional catarinense. E aí depois disso eu vou tocar minha vida inteira, sem nenhum desvio, para pensar em políticas públicas pra população negra na educação, assessorando parlamentares, assessorando o movimento negro, assessorando sistemas de ensino. Comecei com a primeira lei no mandato do Professor Márcio de Souza4: é a lei5 que institui o ensino de culturas e histórias africanas e afro-brasileiras no município de Florianópolis. Na década de 90, vamos relacionando com o município de Itajaí, Criciúma e onde há território para isso. Quando falamos da Lei 10.639, essa lei em Florianópolis foi em 1994, olha a distância de 2003, da Lei Nacional para as experiências nossas aqui. Depois, fui participando de outros projetos que são a construção de Matriz Curricular nos municípios, Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina, Plano Municipal de Educação e nesse momento estamos concluindo a terceira Matriz Curricular. A primeira foi em Florianópolis6. Fora isso, o sujeito que escolhi trabalhar prioritariamente foi o professor e a professora, porque eu percebia que quando nós éramos chamados jovens, quando fundamos o Núcleo de Estudos Negros (NEN)7, em 1986, e as pessoas batiam na porta, nós tínhamos uma sede para pedir ajuda pra trabalhar com esses conteúdos na escola. Nós percebíamos que os professores queriam que nós fossemos nas turmas falar com os alunos, mas a gente disse que não, não iríamos fazer isso porque isso era um trabalho sem fim. Queríamos que os professores se sentissem preparados para tratar sobre isso. Então o NEN definiu, a partir de 1986, que o nosso sujeito seria o professor, e não o aluno. Toda nossa ação que desenvolvemos e que eu participo é voltada para atender prioritariamente o professor, que é o sujeito da implementação da política.
Entrevistadora: A professora ocupou, e ainda ocupa, múltiplos espaços na cidade, além de protagonizar grandes acontecimentos, como por exemplo, a fundação do Núcleo de Estudos Negros (NEN) – uma das organizações do Movimento Negro de Santa Catarina, fundado no ano de 1986 por pessoas comprometidas no combate ao racismo e todas as formas de discriminações. Qual foi o impacto da atuação do NEN em projetos/ações no contexto catarinense? E qual o papel das mulheres dentro do NEN? Além disso, a luta do Movimento Negro e do próprio NEN não dissocia a questão da raça e da classe. Você poderia falar um pouco mais sobre isso?
Entrevistada: O NEN foi fundado em novembro de 1986. Quando nós nos encontramos, éramos de diferentes organizações ou pessoas como eu, digo, afro solo, que era meu caso. A partir dessa denúncia da escola, eu comecei a buscar mais conteúdos sobre as questões étnicos raciais na educação, mas nós estamos falando de 1986: a gente não tinha internet como a gente tem hoje, a gente não tinha acesso, as livrarias tinham livros sobre a questão racial muito distante, não dava pra dizer que tinha, era preciso pedir, encomendar, muitos amigos de outros estados mandavam pelo correios coisas pra gente, jornais do movimento negro, boletins, porque nós não tínhamos acesso, a verdade é bem essa. E também não tínhamos uma academia que oferecia muita coisa para a gente, mas o interessante é que quando nós nos reunimos nesse grupo de dissidências, uma parte do grupo do NEN veio do Grupo União e Consciência Negra da Igreja Católica, porque entendeu que aquela organização já não acomodava mais as perspectivas políticas daquele grupo de jovens que queriam outro enfrentamento pro projeto de sociedade que a gente queria consolidar. Muitos saíram da universidade recentemente, eu, Ivan8 e mais dois ou três graduandos; Aluízio José dos Reis ([do movimento] negros em Laguna) ainda fazia Sociologia na época. Enfim, eram jovens, todos jovens, tinha dois ou três com mais idade, o Lino Peres9 é o fundador do NEN. Dora Lucia Lima Bertúlio10, o NEN reuniu-se muito na casa dela nas primeiras organizações. A gente então era uma confluência de muitas perspectivas, mas com uma unidade, nós queríamos o movimento negro de um tipo novo, porque nós éramos jovens e estávamos vendo um movimento negro muito culturalista na perspectiva de assimilação de projetos da sociedade branca burguesa e que não atacava as pessoas estruturantes, e o NEN, então, vai se dividir a partir das áreas de formação das pessoas, o que é uma coisa incrível. Então eu era Pedagoga, eu fiquei com a área da Educação, o Lino e Ivan eram arquitetos, foram provocados a pensar em habitação e moradia, professora Elisabete Farias da área da História, foi provocada a discutir a conjuntura histórica do negro em Santa Catarina, e a Dora Lucia, do Direito é a segunda mulher a defender o mestrado sobre Direito e relações raciais – veio dali também essas questões que a gente vinha trazendo. E essa entidade do movimento negro, quando se constituiu, já recebeu a peste de ser comunista porque era muito diferente do que os mais velhos pensavam. Nós fomos muito incomodativos nesse aspecto, e eu, da área da educação, trouxe para o debate que tínhamos que discutir a estrutura da educação, muito centrada naquilo que o autor Althusser trazia da escola como aparelho ideológico do estado. Essa foi a premissa que atravessou pelo menos a primeira década do NEN, de debater a escola como aparelho ideológico do estado também nas relações raciais, porque só aparecia como classe. E o que a gente trouxe, Carol, foi desassociar a percepção de raça e classe para as desigualdades no Brasil. A gente era muito confrontado, inclusive pelos movimentos de esquerda, porque nós éramos de esquerda ou centro esquerda, e éramos confrontados. Nós incomodávamos muito. Chegamos incomodando, quando eles diziam que estávamos discutindo classe, nós estávamos passando por isso por causa da classe, dizíamos que não. Então começamos a tematizar a raça, raça e educação, raça e gênero, raça e cultura, raça e religião, começamos a tematizar. É palpável, dá para ver isso pelos materiais que o NEN11 produziu, jornais, vídeos, cadernos e memória. Tem algumas dissertações sobre isso e ele vai impactar também na medida em que é a primeira organização de Santa Catarina que passa a ser reconhecida no contexto do movimento negro nacional. Então a gente projeta Santa Catarina: “ah, tem negro aí?”; “tem negro militante aí?”; “como assim vocês estão discutindo isso?”... Assim, é importante dizer que os cadernos e publicações do NEN passaram a ser reconhecidos nacionalmente como uma experiência de tipo único, assim como essas políticas, eleger um vereador que era do NEN, Márcio de Souza, algumas experiências que só nós tivemos e passaram a ser referenciadas depois no contexto nacional. O NEN ainda atua, não faço mais parte dele, deixei o NEN em 2000 exatamente por conta de algumas tensões no debate sobre gênero. Não dá para falar que tudo deu certo, algumas coisas não deram, então eu comecei a projetar um outro campo que era trabalhar as relações das mulheres negras, e eu saí porque nós não fomos compreendidas no espaço interno. Então escrevi uma cartinha e saí da organização. Mas aí, Carol, é importante também dizer que quando a Fundação Carlos Chagas organizou um seminário sobre raça negra e educação em 1980, só pra voltar um pouquinho, porque isso tem a ver com o NEN, eu fui participar desse seminário e escrevi sobre um pouco sobre a experiência no Colégio São Francisco, porque depois que aconteceu o caso de racismo, como coordenadora pedagógica desenvolvi um trabalho com a escola, questionários, livros, textos, enfim; e eu sistematizei o trabalho nesse artigo que apresentei no seminário e que depois saiu no caderno. Quando eu fui apresentar no seminário, estava lá a Fundação Ford – uma das organizadoras desse seminário, eu já era membro do NEN (fundação Ford era uma fundação norte americana) – me chamou e perguntou “o que é esse estado? O que é Santa Catarina?”. E eu comecei a dizer o que era, ela disse “manda um projeto para gente”, então é importante dizer que a partir dessas relações, a fundação Ford apoiou o NEN por 10 anos, talvez um dos apoios mais longos que ela teve no Brasil, apoiou programa de educação, apoiou todas as ações que nós fizemos durante 10 anos.
Entrevistadora: A educação foi, e ainda é considerada pelo movimento negro um dos caminhos de combate ao racismo, evidenciado na promulgação dos dispositivos legais para a Educação das Relações Étnicos Raciais (ERER). A sua trajetória é marcada por esse processo de luta pela efetivação de organizações negras do sul do país que tem a educação como lugar de mudança e deslocamentos nas produções de conhecimentos. Qual a importância de considerar as epistemologias plurais na educação no âmbito nacional e local?
Entrevistada: Nós nascemos plurais, Carol, no sentido de buscar exatamente outras posições que não aquelas muito dadas, especialmente aquelas para ler a história de Santa Catarina. Nós aprendemos muito cedo, na origem do NEN, que aquilo que tinha sido ensinado sobre o negro em Santa Catarina não dava conta absolutamente de dizer quem nós éramos; e respeitando a extensão do legado dos historiadores tradicionais e clássicos, os mais renomados, não vou citá-los aqui, mas a gente vê muito racismo, não direta, mas de forma indireta nas obras deles, porque eles foram educados como homens brancos numa sociedade brancocentrada e brancocentrista. Então, a educação do pesquisador também influencia a obra dele. E no campo das relações raciais, o que eu tenho entendido é que pesquisadores brancos formados também têm se apresentado. Isso tem sido muito importante, o quanto eles estão refazendo sua formação, porque ela também foi influenciada pela educação, e aí “educação” em todos os sentidos que a gente possa entendê-la. Tanto aquela no sentido mais amplo e filosófico, como aquela no sentido mais do rito, que é da escolarização mesmo. Então nós tentamos, a partir das nossas organizações iniciais, trazer pensamentos libertadores e emancipadores. Primeiro que a gente achava que tinha que trazer nessa dimensão o que nos emancipa, o que nos liberta e o que nos dá autonomia para pensar, porque não basta dizer “vou ser um ativista do movimento negro”, ou uma professora, uma pesquisadora negra, não basta. Isso que eu passei pela academia e o meu conflito todo, embora eu tenha entrado por mérito no processo do mestrado, naquela época só existiam quatro vagas, eu não tinha liberdade de pensamento, ainda não, na perspectiva étnico racial. Então entrei com um trabalho sobre negro, que é uma coisa muito interessante, teatro experimental do negro12, mas não havia isso. Hoje nós temos, sim, um conjunto de expressões plurais em todos os sentidos, algumas eu adoto e outras não. Quero dizer que eu adoto uma perspectiva afro-centrada, entendo de muitos conceitos contemporâneos importantes, mas eu ainda não os utilizo. Eu assisto muitos acadêmicos, jovens especialmente, fazendo coisas novas, em muitos universos. Mas eu quero cumprir minha tarefa na minha existência, que ainda é destrinchar aqueles conceitos e trazer aquelas categorias que me desafiaram. Eu, por exemplo, não sou do tempo da categoria relação étnico racial, não sou dessa categoria da educação como promoção da igualdade racial. A categoria que nós cunhamos no NEN é a educação como espaço de combate ao racismo, porque se o racismo não for ainda a categoria central para chegarmos naquele lugar utópico de uma escola igualitária, essas coisas de promover, você não pode promover passando um verniz naquilo que na estrutura não foi resolvido, que é o racismo. Então, eu trago esse desafio desde quando o NEN se constituiu – e olha que falar sobre racismo na escola sempre foi muito desconfortável, hoje menos, mas sempre foi muito desconfortável. Enfrentar a barreira, acho que a maior que precisamos ter enfrentado, e nós enfrentamos, foi a escola reconhecer que existia racismo nela. Na minha geração, não que não se diga isso hoje, mas se dizia muito antes: “para que falar sobre isso, aqui não tem racismo” e aí você se aproxima das lentes teóricas que você tem – como Professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva , Professor Kabenguele Munanga, Professor Henrique Cunha, Azoiuda Loureto, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Clovis Moura – e vamos pegando todos esses teóricos, alguns inclusive que as pessoas nem falam sobre eles, mas que foram importantes. Quem fala hoje de autores como Skidmore, Carl Degler que ainda são conceitos que nós não superamos, Octavio Ianni, nós também não superamos, e os desafios que ele trouxe para a gente sobre relações raciais no Brasil... Então eu acho que a gente precisaria organizar um mapa sobre como se distribuiu na história do movimento negro, da luta antirracista, esses teóricos e esses conceitos: quem ainda é permanente, quem chegou e ficou e quem fez a ligação das gerações. Eu gosto muito do autor Stuart Hall, porque ele faz uma ligação entre as duas gerações. Quem faz a leitura atenta, vai perceber que sim, eu fui muito influenciada pelos pensamentos de Antônio Gramsci. Ele me influencia quando consigo entender o que significa a categoria intelectual orgânica; então quando ele me trouxe essa categoria, eu “me senti” pra caramba, ele me empoderou, porque eu disse: “então está aqui, esse sujeito existe, ele está aqui”. Depois, muito mais tarde, começou a aparecer história oral. Não era tanto uma metodologia fechada e eurocêntrica, e eu comecei a perceber como é que eu poderia transitar nos pensamentos e propor reflexões para os sistemas educacionais fazendo essa junção de muitos campos plurais, teóricos plurais, sem perder a perspectiva de ser uma professora, pesquisadora afrocentrada. Eu me coloco nesse lugar, não afrocentrista, mas afrocentrada. Entendo que a gente precisa prestar atenção no que compõe os valores civilizatórios da sociedade brasileira, porque eles são muito caros. Os brancos estão estruturados a partir de seus valores civilizatórios, não é nada congelado. Estou trazendo só uma questão muito pontual – os indígenas nos valores deles e os africanos nos deles. De início, como uma introdução de pensamento; depois, a gente vai ver que fica uma salada, mas só para dizer que felizmente eu ainda vejo sociedades indígenas defendendo seus valores civilizatórios; isso é uma questão muito importante! Quando eu trabalhei no MEC para a UNESCO, o meu projeto era mapear, conhecer e analisar experiências de pré-vestibulares ou projetos que fortaleciam o ingresso de jovens negros e indígenas na Universidade, isso em 2001. Estava em Brasília. Fazendo isso, tive oportunidade de viajar para aldeias indígenas, para quilombos, para experiências em Igrejas, com as populações em situação de rua, vendo que o que estava sendo colocado na formação desse fortalecimento do ingresso dos jovens nas universidades era também o fortalecimento dos seus valores civilizatórios. E penso que, quando vamos pensar os projetos na educação, não adianta misturar tudo, porque não terá efeito. Ainda é preciso dizer para professoras e professores o que são os valores civilizatórios dos negros, aqueles que estão no campo filosófico, antropológico, histórico, político, religioso, cultural, enfim, todos os outros que estão; quais são os elementos que estruturam para que eles consigam conectar diante de teorias e projetos que eles vão escolher; precisa identificar isso. Essa é uma perspectiva que eu estou sempre procurando oferecer para professores e para professoras.
Entrevistadora: A professora escreveu recentemente um livro sobre Antonieta de Barros13. Na sua percepção, quais os desafios, os avanços e as perspectivas em dialogar e viabilizar as histórias, memórias e narrativas sobre ela? Como foi este processo para a senhora? E mais: o que significa para a história das mulheres negras em Florianópolis e Santa Catarina a luta por representatividade política em 2020?
Entrevistada: Primeiro eu gostaria de dizer que ontem nós tivemos um evento da Associação dos Professores/as negros/as em torno desse livro Africanidades Catarinenses14, que é um livro didático elaborado por pesquisadores e pesquisadoras negras do estado de Santa Catarina e que traz uma história que tento dizer que é afrocentrada para professores/as e estudantes das redes públicas e particulares do estado. Acho interessante que, nesse conjunto que estás trazendo (do pensamento), é importante pensar as publicações de negros e negras em Santa Catarina, especialmente aqueles que se pretende também dialogar com a escola. Assim como também a gente observou nesse processo de elaboração o quanto se produziu sobre o samba e escolas de samba; inclusive, no livro a gente está trazendo essa perspectiva e acho importantíssimo falar dessas mulheres nesse lugar e que essas mulheres ocupam tanto o lugar do samba, como da educação. Elas têm a dupla pertença como lugares fortes da vida delas, como é o caso da dona Uda, uma professora que chegou ao Conselho Estadual de Educação. Também é o caso da professora Valdeonira, as duas como mulheres da educação e do samba. Valdeonira15 é minha tia – eu tenho uma foto, que infelizmente não está aqui, mas eu vou te passar que é uma foto da reunião do Conselho da Copa Lord em que ela é a única mulher da foto; no meio são todos homens, também não era um espaço tão dado, mas já lincando com a Antonieta de Barros, as mulheres negras professoras, elas tiveram esse protagonismo de serem as primeiras em alguns lugares, assim como as mulheres que chegaram a ser votadas. Então quer dizer, uma boa parte do movimento feminista brasileiro na década de 30 era composto por professoras. Quando você vai lendo a biografia das mulheres de São Paulo e Rio de Janeiro sobretudo; uma parte na região do nordeste e norte; e Antonieta de Barros em Santa Catarina, a Maura de Sena Pereira também, ou seja, duas mulheres que tiveram mais protagonismo nessa pauta das mulheres na política, mulheres na sociedade, esse movimento era constituído por professoras. Então, quando eu olho a minha mãe – nascida em 1930, que se tornou normalista – e quando eu observo a trajetória dela na escola, nos outros lugares que ela frequentou, professora do Mobral ou aos dezessete anos ingressando na Associação da Irmandade dos Homens Pretos de Florianópolis16, quando você vai ser esse movimento de andar, você vai vendo como elas vão lincando os espaços sociais, elas juntam muitos pedaços. A maioria delas, filhas de lavadeiras, que é uma coisa muito interessante que o livro da Antonieta suscita – não que eu não soubesse, mas ela me chama para olhar de novo para esse lugar, e então leio de novo o livro Filhas das Lavadeiras17 da Maria Helena Soares, e de novo estão elas lá: professora Uda Gonzaga, professora e minha mãe, Zulma Romão, professora Valdeonira, Professora Neli Góes18, todas filhas de lavadeiras. Ou seja, há uma relação de mulheres “no braço”, atuando para que as filhas delas estivessem num outro espaço, que era o espaço do pensamento. Assim, é muito importante dizer que a primeira chamada que o livro traz é desse processo; é inclusive revisitar, a partir de Antonieta, as histórias de mulheres muito importantes – da mãe do Cruz e Sousa, que também foi lavadeira –, e começou a aparecer uma lista desses lugares que vão lincando educação e as mulheres negras. Escrever sobre Antonieta não é só escrever sobre ela. Eu queria, de início, escrever um artigo sobre Antonieta e suas relações familiares, porque me incomoda essa imagem sisuda, dura, estática de uma mulher que parece não ter movimento. Para as pessoas brancas talvez isso não fosse tão importante, mesmo porque é a representação do modelo branco: estátua, fotos oficiais, isso é muito o mundo branco; mas isso não é o nosso mundo. Sempre me incomodei com as fotos congeladas da Antonieta, sempre da cintura para cima...Eu queria o que tinha embaixo, queria saber como era ela, como eram os gestos dela e queria saber o que essa mulher fazia. Queria escrever uma Antonieta em movimento com ela mesma, e que pudesse nos ajudar. Não era sobre a deputada, porque eu acho que o conteúdo está dado, não era sobre a educação também... Foi muito interessante, eu cheguei a 30 páginas para falar sobre a família. A mãe aparece, mas quem aparece muito também é o irmão, o Cristalino. A gente não sabia quase nada sobre ele; fui vendo que ele era ativista na Irmandade, Centro Cívico Cruz e Sousa, movimento sindical... Antonieta tem outra irmã que é professora, Leonor de Barros, que também aparece, e após morte da irmã vai levando um legado. E aparece Antonieta com uma sociabilidade que eu não conhecia, uma mulher que tinha “estofo” muito maior que aquelas fotos congeladas. Então esse foi o primeiro desafio de escrever sobre Antonieta. Também surgiram histórias cruzadas que eu não trago para o livro, mas estão todas anotadas para um “pós”. Vão aparecendo, não tinha como. Eu lembro que tinha uma tia chamada Esmeralda, ela sumiu, só fui conhecê-la aos 19 anos. Minha mãe dizia que ela morava no Rio de Janeiro e que não via ela desde quando elas tinham 8 anos de idade. Eu não entendia o motivo da tia Esmeralda não morar em Florianópolis, depois descobri que ela insistia em passar na rua do Clube 12 de Agosto, fundado em 1872 – negros não podiam passar por ali, ela ia para a escola, estudava na escola Antonieta de Barros, passava por ali, tinha que atravessar a calçada da Hercílio Luz, mas tia Esmeralda não fazia isso. A queixa chegava na minha avó, que dava uma surra na filha, mas esta não mudava. Esmeralda foi dada para uma família de militares. Eu queria entender tudo isso, e quando estou pesquisando sobre Antonieta de Barros, encontro esses elementos. Lendo um anúncio: “precisa-se de uma senhora de meia idade para serviço em uma casa sem filhos ou de uma menina de até 10 anos órfã para seguir para o Rio de Janeiro, pode apresentar-se até sexta feira na rua ‘tal’, com ‘fulano de tal’, Florianópolis 24 de março de 1933”. Minha tia esteve nesse grupo de órfãos que as famílias pediam para levar embora, para tratar como filhas ou como empregadas, ou seja, a Lei do Ventre Livre nunca de fato deu certo. Assim eu percebo as histórias cruzadas: muitas dessas crianças que foram mandadas embora eram negras. Antonieta me traz o quanto ela foi protagonista desde jovem. Parece que ela sempre foi deputada...Não. Antonieta de Barros foi presidente do Grêmio Estudantil do Colégio dela quando fazia o [curso] Normal; então assim, essa coisa de tentarem uma justificativa no mundo branco para ela ter sido bem-sucedida, já estava nela. Quando você está com dezoito anos e já preside o Grêmio da sua escola, já está ali. Antonieta escreveu na escola, com dezenove anos, o seu primeiro jornal manuscrito junto com duas amigas; a questão da imprensa já estava nela. Fazendo o curso Normal, ela escreve um jornalzinho estudantil e atua à frente do Grêmio Estudantil do curso. Já estavam ali as três personalidades que acompanharam ela pelo resto da vida. Sem precisar pedir licença para ninguém no mundo branco, porque também a gente sempre lidou com o “se não”, “ah, mas ela era apadrinhada por Nereu Ramos”, “ah, mas ela era isso, aquilo”, sempre tinha o “mas”. Óbvio que tinha o “mas”, não tenho dúvidas sobre isso, se ela foi a primeira mulher negra na Assembleia Legislativa, enfrentou uma sociedade racista e uma sociedade que se opunha de uma forma radical contra as mulheres na política, e se fala muito pouco sobre isso. Eu li discursos, textos e publicações anônimas de homens e mulheres conservadoras dizendo que eram contra [a atuação de Antonieta]; o jornalista dizia que o homem que aceitasse isso era marica. E para Antonieta, imagina quantas camadas de opressão de gênero, raça e social que ela teve que enfrentar para galgar esse espaço. Então, isso também foi um desafio, entender um pouco isso. Depois, eu vejo uma Antonieta cuja vida foi toda atravessada pela educação. Me vejo muito nela, quanto consigo ver também dona Uda, dona Valdeonira e minha mãe em Antonieta. A Escola de samba Dascuia19, esse ano, homenageou a professora Valdeonira, e o refrão que levava a escola para cima era: [cantando] “a educação faz um mundo melhor”, e a Consulado20 saía com Antonieta de Barros. Eu saí nas duas escolas, uma que homenageava Antonieta e a outra, Valdeonira. Não só saí, mas participei do convite, da preparação...É interessante um ano com duas mulheres negras sendo homenageadas e como o refrão de uma dialogava com a outra, parecia que conversavam. Antonieta dizia isso o tempo inteiro: a educação é um direito humano, a educação faz um mundo melhor. Eu queria dizer que isso é um primeiro impacto. Acho difícil pesquisar de forma autônoma, não é um trabalho acadêmico, não é para um concurso, para ser selecionado para um título, é um trabalho que eu queria fazer. Tive que juntar agora, na última etapa, muitos apoios, porque depois você descobre que livro custa caro: editar fotos, diagramação, revisão, então agora estou numa fase de iniciar a pré-venda dele para conseguir juntar esse recurso que nós precisamos ainda para pagar a gráfica. É uma coisa bem difícil, é para todo mundo, não sei que horas que me deu essa doideira de fazer isso, mas eu fiz. Foi muito interessante que senti a presença dela. Outras pessoas que pesquisaram sobre Antonieta, a Flavia Person21, a Karla Nunes22... [Nós] sentimos muita frequência de emoções, sentimentos emocionados, choros, achar que vai desistir porque está no limite... Algumas coisas nos vêm “muito tranquilo” e outras muito fortes. Eu escrevi sobre a negação dela enquanto mulher negra a partir do discurso do Oswaldo Rodrigues Cabral, isso é importante dizer: ele era deputado em 1951. Antonieta não era mais deputada, mas era a voz da oposição. Durante todo o ano de 1951, ela escreveu o seu Farrapos de Ideias23. Contendo críticas ao governo, denunciava que estavam rompendo políticas dos Ramos e perseguindo professores aliados ao partido dela. Antonieta denunciava isso com frequência – textos bem diferentes do ano de 1937, que eram textos mais filosóficos. Então, ela vai à bíblia – era muito católica, Oswaldo vai dizer que ela está fazendo intriga e Antonieta responde (com um clássico texto seu “Intriga barata da Senzala”) que ela não está fazendo intriga, nem cara e nem barata; e ainda pergunta de onde ele tirou aquilo, se era da Alemanha de Hitler. A partir disso, ela vai debater o contexto do racismo de uma forma – não como nós debatemos hoje, em 2020, mas dentro dos recursos dela, isolada. Antonieta estava nessa pauta com Idelfonso Juvenal e Trajano Margarida como apoio naquela época, e vai falar dela mesma como uma mulher negra – uma coisa bem importante de se observar, pois muitas pessoas enfatizam que ela não se assumia. Em alguns discursos como paraninfa da Escola Normal, ela colocava nos seus textos o combate ao preconceito: todos são iguais, não tem essa coisa de cor, e assim vai se projetando.
Sobre as mulheres eleitas, é importante dizer que Antonieta foi a primeira no estado de Santa Catarina e, na segunda eleição, foi a única mulher que concorreu (mais quatro mulheres concorreram, mas só ela ficou na suplência). Depois, é interessante observar que nós teremos o José Ribeiro, na década de 40, eleito o primeiro vereador negro à Câmara Municipal de Florianópolis. Eu acompanhei durante a minha trajetória, de 1986 pra cá, especialmente esse período. Acompanho processos eleitorais. Experimentei ser assessora parlamentar por seis vezes, com dois deputados e quatro vereadores em Florianópolis, dois negros, uma mulher branca e três homens brancos. Esse lugar me possibilitou acompanhar justamente esse movimento na história das eleições. Nós sabemos que 2020 é o ano em que mais negros e negras concorreram às eleições no Brasil. Eu estou orientando um trabalho em Joinville, do Rhuan Fernandes; ele tabulou todos os dados sobre os negros concorrendo à eleição em Santa Catarina a partir do site do TRE/SC. Chegamos num momento em que tivemos que escolher; escolhemos só os pretos. Temos setecentas (quase oitocentas) pessoas que concorreram às eleições. Tecnicamente com cinquenta por cento homens e cinquenta por cento mulheres, o mapa é quase meio a meio. Fizemos análise de partido, idade, escolaridade e profissão pra dizer que nós tínhamos um conjunto de candidatadas mulheres com muito potencial na sua formação. Não eram mulheres que estavam vindo preencher cotas partidárias, que a gente já experimentou isso na nossa história – já falei sobre isso, inclusive tem conteúdos publicados. Não estamos mais cumprindo essa cota partidária. Procurei ler sites, panfletos e são discursos dos movimentos das mulheres negras globais, sobretudo brasileiras; discurso contemporâneo, que chama para si políticas para mulheres, políticas feministas ou “mulheristas” para mulheres negras em Santa Catarina. Uma defesa desse lugar, porque o que a gente entendia nos discursos das outras eleições era que mulheres negras participavam do processo com sua identidade e pertencimento, mas abraçavam uma pauta negra muito mais ampla, para um conjunto, e agora já vemos mulheres com pautas bem específicas. Duas foram eleitas com a pauta abraçada: professora Marlinda, de Brusque, pelo PT, e professora Ana Lucia Martins, em Joinville. Fui coordenadora de campanha da Ana Lucia; ela trouxe as pautas da educação, juventude negra, mulheres, sindicalismo, cultura... Então, ela trouxe a pauta abraçada. Teremos uma primeira suplência em Florianópolis, que é a candidatura coletiva Mulheres Pela Educação: teremos um sistema de rodízio de vereadores/as pelo PT. A vereadora suplente Joana Célia dos Passos24 ocupará uma vaga no rodízio representando essa coletiva. Estamos agora levantando um mapa de quantos foram os eleitos e as eleitas no estado de Santa Catarina. O objetivo é analisar quantas mulheres negras são vinculadas a esse conjunto de movimentos negros nesse âmbito grande, quantas delas foram influenciadas pelas políticas do movimento negro.
Entrevistadora: É importante destacar que as discussões feitas até aqui sobre política são para evidenciar que estar em movimento também é um ato político. Minha pesquisa emerge pela mobilidade social de minha bisavó, dona Geninha25, que fundou e presidiu uma escola de samba durante os anos de 1970 a 1989 na cidade de Florianópolis. Em sua trajetória, foi possível articular com políticos vinculados a partidos, mas também foi uma mulher em movimento, articulando a resistência do samba, das escolas de samba, da população negra e do carnaval da cidade. Por este motivo, a discussão sobre mulheres negras na política e a importância de visibilizar as histórias, memórias e narrativas negras são tão pertinentes para esta entrevista.
Entrevistada: Carol, uma coisa sobre política e tua bisavó: quando foi sancionada a política que permitia às mulheres votarem e serem votadas, Antonieta de Barros disse: “eu não entendo tanta resistência dos conservadores, porque mulher na política sempre houve” e, inclusive, foi a partir dessa frase da Antonieta que eu comecei a falar diferente de mulheres na política. Porque a gente fala “mulheres na política não tem”, precisamos adjetivar que mulheres na política partidária “não tem”, mas eu, como militante do movimento negro, sou uma mulher na política; quando estou formulando política pública, eu sou uma mulher na política. Antonieta me ensinou muito sobre isso. Mudei minha perspectiva pra não negar aquilo que existe, pra construir algo que precisa existir. Minha mãe, tua “bisa”, minhas tias, elas eram muito convocadas pelos lugares que elas frequentavam e pelos políticos da cidade, porque elas tinham muita influência. Lembro muito da dona Geninha, tua bisavó.
Entrevistadora: O livro que a senhora organizou, intitulado Africanidades Catarinenses, voltado para o reconhecimento dos modos de ser, estar, sentir e pensar o mundo das populações africanas e afrodescendentes de Santa Catarina, ele serviu de inspiração para o enredo do Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Dascuia para ano de 2021? O que este momento significou e qual a importância na construção de memórias sobre populações negras ao incluírem as trajetórias, saberes e culturas negras nos enredos e desfiles de escolas de samba?
Entrevistada: Sim, o livro influenciou a Escola Dascuia, porque eu fui convidada pelas pessoas que estavam escrevendo o enredo para revisar a proposta. A primeira versão veio com a onda das “vidas negras importam”, que influenciou os enredos das escolas de samba do Brasil inteiro. Quando vamos abrir para verificar os enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, uma boa parte do carnaval do próximo ano, o que seria o desfile de 2021, teria como tema o racismo, não sei em qual formato, mas trariam. E a Dascuia também sinalizou que iria acompanhar esse movimento; no entanto, ela me traz uma primeira versão de enredo muito contextualizada numa sociedade que não era a nossa. Eu trouxe exatamente a importância de ser uma escola de samba, no sentido de trazer um enredo que fosse educativo e que falasse do contexto de Santa Catarina. Eles poderiam escolher um personagem, um tema; mas, pela urgência, não dá para gente pensar num enredo sobre o negro em um ano, depois em outro... A gente levaria anos para conseguir falar sobre tudo. E, pela urgência, o documento que registrava a história, que apresentava de forma coletiva, mais ampla e global, tentando dar conta de muitas pluralidades, era o livro Africanidades Catarinenses. Então Jessé Cruz26 mais outros dois membros que estavam escrevendo o enredo debruçaram-se sobre o livro, estruturaram e apresentaram num evento assim ele foi escolhido, sim. E eu estou acompanhando como convidada, à distância, a estruturação desse enredo na apresentação da avenida. Mas ele [o livro] influenciou outras Escolas de samba, a Consulado, quando escreveram sobre Antonieta, por exemplo. Nós conversamos sobre isso no processo. No enredo da Consulado, tinham elementos que só iam mostrar a Antonieta de Barros que não contamos; eles atenderam, fizeram alterações no enredo. É um livro que não tem só a importância para escola de samba, mas também tem servido muito para pesquisas regionais. Eu fico muito feliz em saber, porque uma das provocações do livro era despertar a regionalidade em Santa Catarina, não contar só a partir da Antonieta de Barros, de Cruz e Sousa de Florianópolis, mas descobrir outros personagens históricos em outras localidades. Então, um dos movimentos que eu e Fábio Garcia27 pretendemos fazer é ampliar e atualizar o livro, trazendo exatamente tudo que ele provocou no despertar em Santa Catarina a partir do momento em que ele foi lançado. E sugiro que você dê uma olhada no documentário chamado Samba, escola de que? É importante porque quando a Frente Popular assumiu o governo, na década de 90, e nós compúnhamos a Frente Popular, se pensou em cortar o carnaval por uma questão de recursos financeiros; e as escolas de samba e o vereador Márcio de Souza, muito ligado às escolas de samba, lideraram um movimento de resistência na cidade, com muitas frentes, passeatas, atos, e nós construímos um roteiro, eu e Márcio. Chamamos uma videomaker, hoje professora doutora Cristiane Tramonte, que, na época, tinha uma empresa popular de trabalhar vídeos documentários, e então nós pedimos uma produção de um vídeo: Samba, escola de que? Ali você vai encontrar depoimentos de pessoas que não estão mais entre nós, como dona Didi28. E a ideia era essa: explicar que escola é essa que é a escola de samba? Por que ela é tão importante e necessária? O que é a manutenção dela? Por que ela tinha que sair daquele lugar de curso e estar num lugar de investimento da cultura, da identidade? Hoje mesmo, ainda é muito difícil as pessoas entenderem a importância das escolas de samba na cadeia da história do negro no Brasil. Como nós vivemos num estado que embranquece muito, o tempo inteiro a gente precisa fazer movimentos de resistência da não apropriação, do não branqueamento; é muito difícil você conseguir manter a história. Estava lendo um livro que é um “glossário de A a Z” sobre o carnaval e o samba. Estou ali procurando biografias de pessoas que eu sei que existiram na minha época, como dona Mariazinha, uma mulher negra do Mont Serrat que saía glamorosa de baiana no carnaval, era destaque baiana, destaque linda. Mas, durante todo o ano, era quituteira no Mont Serrat, fazia salgadinhos para as festas. Nós saímos de uma unidade da escola que ficava atrás da casa dela, ficávamos na escada da sua casa todo dia no mesmo horário; ela ia na janela, nos via ali, pegava a forma e dava um salgadinho para cada um, depois dizia: “corre para casa que a mãe de vocês está esperando”. Estava tentando procurar a figura dessas mulheres, a figura da Nega Tide29; ela era empoderamento, e eu só vou entender esse conceito a partir dela. Entendi empoderamento na minha infância e adolescência com minha mãe, minha vó, mas tem as mulheres de fora, Nega Tide é uma delas. O significado do corpo, do domínio, do ser, do gesto, da fala, dos lugares políticos que ela ocupou. Lembro de conversar com ela quando já estava doente, esses dias conversei com o filho dela, disse que precisa escrever um livro sobre ela. Tem muitas histórias que nós negros temos, e se não resistirmos por elas, elas vão morrer, vão embora; e muitas delas passam pela escola de samba. Eu gravei com as baianas da Dascuia por acaso, peguei o celular e comecei a conversar. Queria saber se as baianas tinham relação com as benzeduras ou [se isso] é representação de [um] imaginário que a gente foi criando e consolidando. As mais jovens não, mas as mais velhas, sim, me ensinaram rezas, como fazer chá, como se curavam, ou seja, está presente ali, e se a juventude só entende como alegoria de avenida, não vai entender os corpos negros ali representados. Ontem morreu Seu Osmarino, da velha guarda da Dascuia. Fui ler sua biografia, que eu não lembrava, e ele foi um dos mais importantes árbitros que teve no futebol. Eu lembrava muito remotamente, meu pai tocava na banda da polícia militar, mas também tocava na gafieira do Laudelino; mas ninguém fala. Na minha época de criança e jovem, não se falava [sobre] porque gafieira não era um conteúdo para estar em “boca de moça”, porque senão ficava mal falada. Porém, desde quando me consolido como militante que vai pesquisar sobre Santa Catarina, vou entendendo o significado da gafieira do Laudelino, do Cacumbi do Morro da caixa. Então, eu acho que a escola de samba tem uma importância, não nesse formato que está hoje, que ela foi querendo ficar muito próxima do Rio de Janeiro, muito próxima de alguns lugares enquanto formato, só que ela perdeu enquanto conteúdo. É uma escola de samba que vem para avenida para o resultado. Eu não sou contra isso; isso inclusive junta os seus membros, ninguém quer entrar na avenida para perder, é uma parte da disputa, mas eu acho que, na comunidade, a gente vê que precisa ser mais escola do que só samba.
Entrevistadora: Especificamente no que se refere a narrativas de mulheres negras em Florianópolis, na sua perspectiva, qual o papel das mulheres negras na cultura carnavalesca da cidade e do país? E quais os desafios em visibilizar suas presenças na escrita da história do carnaval?
Entrevistada: Analiso o papel a partir de alguns aspectos. Para não dizer que não falei de flores, eu sou uma pessoa que tem criticado muito as escolas de samba nos últimos tempos – até porque nesse meu lugar de estar no parlamento acompanhando políticas públicas, acompanhando como elas chegam para serem votadas e debatidas, eu sinto muita falta de alguns setores propondo políticas públicas para o município de Florianópolis, e um deles é a escola de samba. Tenho falado muito sobre isso, sobretudo no espaço da cultura, quando a gente vê a Lei Rouanet de quem está buscando esse recorte, para quê e para quem, quais projetos, quais articulações... Eu assinei algumas cartas que organizações negras pediram, como os Afoxés, bandas, afro reggae, terreiro, nenhuma escola de samba apareceu. Eu me preocupo muito de não ver as escolas de samba de Florianópolis como eu via na minha infância. Na minha adolescência no Mont Serrat, no [bairro] Mocotó, tinha presença de mulheres muito fortes pra fazer com que esse cotidiano não fosse só o carnaval, mas que fosse em outras frentes nas relações de organização de compadrio, relações com a escola Celso Ramos, escola do Mont Serrat... [Em] tudo isso nós víamos a presença de mulheres fortes, as escolas eram as extensões das escolas de samba. Esse é um desafio que eu acho importante. Deveria fortalecer, inclusive, para os programas de pesquisa das Universidades também entenderem o diagnóstico como importante quando forem oferecer linhas e temas de pesquisa. Assegurar que mulheres venham trazendo esse tema, como estás fazendo; o teu tema, uma dimensão, mas ainda tem muitas dimensões que ainda precisamos trazer. A Cauane Maia, pesquisadora, trouxe as mulheres negras no Mont Serrat, então aparece as mulheres no samba. Ao falar dos morros Mont Serrat, Mocotó, Coloninha, Morro do céu, é preciso falar das mulheres negras – todos tem uma matriarca ancestral – e aquelas que vão ocupando dentro da sua geração lugares de liderança, lugares de orientação, elas podem estar na direção de uma escola como podem estar em outro lugar. Eu vejo muito dessas mulheres nas velhas guardas hoje, porque a gente vai envelhecendo na velha guarda com outras concepções. Eu, por exemplo, já estou autorizada para ser da velha guarda da Dascuia, mas não estou preparada para isso. Seguramente, quando chegar lá, estarei preparada – e diferente das minhas ancestrais. É um lugar de sabedoria. Se for pensar na organização da sociedade africana, os griots, os sábios são a velha guarda, mas será que é isso que está sendo compreendido? Eu vejo no dia do desfile: o corpo na velha guarda não precisa me dizer, eu consigo ler que ele está ali como uma altiva/o senhora/senhor da sabedoria de que ser idoso é posto. Não é um desagrado que tem a ver com a sabedoria africana, como também são importantes as alas das crianças: elas não estão por acaso, estão para significar a continuidade, o rito de passagem. Quando você mora na comunidade, vai vendo quais alas essas crianças passaram até chegar na velha guarda, como na escola – acho que é importante dizer isso. Tem famílias inteiras que são das escolas de samba, vou citar a família Veloso, por exemplo. Tem o Celinho Veloso como compositor mais famoso. Nós éramos crianças no Mont Serrat, eu e ele. A mãe dele, dona Daura, uma jovem senhora: consigo ver as trajetórias. Hoje [Celinho] é compositor, mas consigo ver por onde ele foi passando, carregando coisas, bordando... Eu fui criança bordadeira. Nós não tínhamos férias no morro. Seu Armandino Gonzaga, esposo de dona Uda, pedia para a mãe que a gente fosse para a quadra ajudar a bordar as fantasias; a mãe deixava porque também era uma forma de estarmos ocupados, sem correr para lá e para cá. E eu me lembro das mulheres mais velhas, elas que me ensinavam a colocar a agulha na linha; a importância começa por aí também. As mulheres negras precisam disputar a não apropriação em todos os lugares, inclusive nas escolas de samba. Semana passada, dei uma bronca virtual – não disse em quem e nem qual escola de samba – numa rainha de bateria, uma mulher branca que passou pano para o assassinato daquele homem negro no Carrefour, dizendo que ele tinha contravenções, e eu disse: “vivi para ver uma rainha falar isso diante de um setor composto majoritariamente por homens e negros”. Escola de samba é igual terreiro, ninguém está preocupado com a história de vida das pessoas, eles estão na bateria, são ritmistas, estão produzindo e pronto. E uma mulher branca que ocupa o lugar de rainha daquele setor, porque é interessante, a rainha da bateria não é um lugar pra glamourizar uma mulher, é um lugar para apresentar aqueles que seguem ela, no caso a bateria. Essa glamourização começa a partir do momento em que mulheres brancas passam a ocupar esses lugares nas escolas de samba; rainha deixa de ser aquela que apresenta e [o propósito] passa a ficar focado muito nela. Eu acho que não temos apenas a importância do papel das mulheres; antes, temos desafios a serem enfrentados para estarem em lugares importantes nas escolas de samba sem serem colocadas em lugares menos importantes na hierarquia simbólica. Quando não é uma menina negra rainha de bateria, quando é uma mulher branca que não mora na comunidade – porque se ainda fosse uma mulher branca que convivesse, coabitasse aquele espaço e tivesse relação com as pessoas negras, ela é da comunidade, mas não –, é uma “pinçada” de um bairro de classe média alta para trazer glamour para a figura dela. Então eu vejo alguns desafios relacionados à apropriação, por exemplo: nós precisamos de mais mulheres que escrevam os enredos das escolas de samba. Por que a maioria dos enredos são escritos por homens? É raro uma mulher aparecer, eu procuro isso, a maioria são homens já consolidados nesse campo como compositores. Não existem mulheres compositoras de samba? Outro lugar que incomoda bastante. Os carnavalescos da escola de samba também são homens, há poucas experiências de mulheres. A importância delas também é que são históricas, ninguém fala das escolas de samba sem falar da dona Geninha, a Valdeonira, a Uda, a Lila do Roleta30, no continente...Sem falar de outras mulheres que eram dirigentes. Ainda é um ambiente muito machista, elas sempre se colocaram nos lugares iguais aos homens. Eu acho que teu trabalho é pioneiro e que, sobretudo, vai cruzar outras histórias – aquilo que aconteceu no livro Antonieta. Seguramente vão aparecer muitas informações, por exemplo, uma história cruzada que acho interessante: o Diga era um pai de santo do Mont Serrat, [desde] criança eu já percebia que o Diga tinha uma outra identidade de gênero, não tinha nome, só bastava a pessoa estar ali. Mas quando o Diga saía no carnaval, era com anágua – como uma baiana de destaque. Lembro que quando ele fez isso, causou uma certa comoção nas outras escolas; a diretoria, a presidência e a costureira sabiam que ele ia sair assim. Hoje eu penso que essa identidade de gênero também estava colocada ali, então estamos falando de mulheres... De quais mulheres? Porque se a gente olhar bem de perto, também podemos falar de mulheres trans e outras mulheres negras trans nas escolas de samba.
Para terminar com o começo, quando digo que estudei História da Educação na faculdade, o Diga não fazia parte daqueles conteúdos que apareciam relacionados; ou quando a professora trazia Durkheim, “que todas as pessoas vivem em sociedade”, eu já me perguntava, nessa época, sobre a não presença dos negros nessa sociedade que ela falava. Se todo homem nasceu para viver em sociedade, por que os negros não estão colocados ali?
A presença da tua escrita, mesmo que ela venha num ritmo acadêmico, formato e tudo, eu também vejo como um enredo, porque a tese também é isso. Eu te vejo como a figura que vai ser a carnavalesca; como uma figura que vai dirigir uma bateria porque também é isso, o ritmo é o teu. Também te vejo como a mestra dessa bateria e, também, como a rainha dela, apresentando essas mulheres e homens que irão compor o tecido teórico da tua narrativa sem esquecer dos mais velhos – serão provavelmente no teu trabalho a velha guarda – e sem esquecer dos mais novos, que serão a ala das crianças. É isso que eu imagino que vai ser.
Entrevistadora: Quero agradecer mais uma vez à professora Jeruse Romão pelas respostas e pelas reflexões suscitadas durante a entrevista. Gratidão eterna!
Notas