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DECOLONIALIDADE E RESISTÊNCIA NOS PROCESSOS CULTURAIS, DE FÉ E DE CURA NA REGIÃO DAS MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL
Juliani Borchardt da Silva; Ivo dos Santos Canabarro
Juliani Borchardt da Silva; Ivo dos Santos Canabarro
DECOLONIALIDADE E RESISTÊNCIA NOS PROCESSOS CULTURAIS, DE FÉ E DE CURA NA REGIÃO DAS MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL
Decoloniality and resistance in cultural, faith and healing processes in the Missões region of Rio Grande do Sul
Descolonialidad y resistencia a los procesos culturales, de fe y de sanación en la región de Missões de Rio Grande do Sul
Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 42, pp. 41-60, 2021
Universidade Federal da Grande Dourados
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Resumo: O presente artigo aborda numa perspectiva decolonial e intercultural as tradições culturais e religiosas na comunidade miguelina - Região das Missões no estado do Rio Grande do Sul. Num primeiro momento é apresentada uma discussão teórica contemplando os conceitos chaves de decolonidade e interculturalidade. Em um momento posterior esses conceitos são aplicados a um estudo empírico na localidade supracitada, trazendo dados pesquisados a partir de depoimentos e imagens fotográficas coletadas no respectivo contexto. Como resultado podemos constatar a importância dos estudos que procuram resgatar dados culturais significativos das comunidades originais. A metodologia utilizada é a crítico histórica, pois analisou-se os conceitos empregados e os dados empíricos para a construção do artigo.

Palavras-chave: Religiosidade, São Miguel das Missões – RS, Cultura, Decolonialidade.

Abstract: This article approaches, in a decolonial and intercultural perspective, the cultural and religious traditions in the São Miguel community – Missionary region in the state of Rio Grande do Sul. Firstly, a theoretical discussion is presented, contemplating the key concepts of decoloniality and interculturality. Eventually, these concepts are applied to an empirical study in the aforementioned locality, bringing researched data from testimonies and photographic images collected in the respective context. As a result, we can see the importance of studies that seek to rescue significant cultural data from the original communities. The methodology used is historical criticism, as the concepts used and empirical data for the construction of the article were analyzed.

Keywords: Religiosity, São Miguel das Missões - RS, Culture, Decoloniality.

Resumen: Este artículo aborda nuestra perspectiva decolonial e intercultural como tradiciones culturales y religiosas en La comunidad Miguel – Región de las Misiones en el estado de Rio Grande do Sul. En un primer momento, se presentó una discusión teórica, contemplando los principales conceptos de descolonialidad e interculturalidad. Posteriormente, estos conceptos se aplican a un estudio empírico en ese lugar, rastreando los datos investigados a partir de imágenes fotográficas depositadas y recogidas en el contexto respectivo. De ahí la importancia de los estudios que buscan rescatar datos culturales significativos de las comunidades de origen. La metodología utilizada es histórico crítica, ya que se analizaron los conceptos empleados y los datos empíricos para construir el artículo.

Palabras clave: Religiosidad, São Miguel das Missões - RS, Cultura, Descolonialidad.

Carátula del artículo

DOSSIÊ 18: HISTÓRIAS MARGINAIS, ALTERIDADES E CRÍTICAS EPISTÊMICAS

DECOLONIALIDADE E RESISTÊNCIA NOS PROCESSOS CULTURAIS, DE FÉ E DE CURA NA REGIÃO DAS MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL

Decoloniality and resistance in cultural, faith and healing processes in the Missões region of Rio Grande do Sul

Descolonialidad y resistencia a los procesos culturales, de fe y de sanación en la región de Missões de Rio Grande do Sul

Juliani Borchardt da Silva
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Brasil
Ivo dos Santos Canabarro
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), Brasil
Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 42, pp. 41-60, 2021
Universidade Federal da Grande Dourados

Recepción: 30 Octubre 2021

Aprobación: 14 Diciembre 2021

Introdução

As discussões sobre uma perspectiva decolonial na América Latina é uma realidade muito contemporânea. Observamos que recém estamos adentrando nas possibilidades de pensarmos as nossas identidades, que foram por muitos séculos negadas por todo um processo de colonidade. O trabalho foi muito longo de perpassar pela colonidade, não apenas como expressão econômica, mas, sobretudo, pela dominação cultural dos povos americanos, principalmente, os indígenas, os quais nem eram considerados humanos, inclusive pela perspectiva da religiosidade em um contexto marcado pelo pensamento colonial. Consideramos importante ressaltar a presença de múltiplas formas de resistências, embora o genocídio indígena foi uma prática constante do colonialismo.

A longa trajetória percorrida pelos povos da América foi de dominação e colonialismo, os fazendo forjar uma nova perspectiva de reconhecimento de suas identidades e das práticas culturais. Práticas culturais e religiosas que foram condenadas e proibidas de manifestação são atualmente ressignificadas, ou seja, encontraram condições e meios de se reproduzirem. Todo um conjunto de identidades e práticas culturais caminham ao encontro de uma perspectiva decolonial, que as ressignificam e as reestabelecem nas diferentes comunidades, no nosso caso específico, nas comunidades indígenas. Locais da ancestralidade com crenças e práticas muito singulares que concedem significados a sua razão de existência. O sagrado no cotidiano percorre dimensões conjuntas numa vida marcada pela perseguição e condenação pelo fato de serem diferentes, e não reproduzirem atividades meramente capitalistas.

A transição de um pensamento colonial para um decolonial exigiu todo um conjunto de reflexões e teorizações, pois nessa perspectiva o projeto é uma construção. Sendo uma construção exige quase que uma nova epistemologia, mais voltada às realidades dos povos dominados por um pensamento e perspectiva colonial. Entendemos que uma perspectiva e epistemologia decolonial é muito mais adequada às sociedades americanas, pois ainda somos compostos por populações de diferentes etnias, com singularidades marcantes e permanências que vem até o tempo presente. A construção de uma perspectiva decolonial também leva em consideração a questão da interculturalidade, como uma forma de resgate de valores e elementos culturais presentes nas diferentes culturas. Sendo assim, é preciso criar condições e perspectiva para adotar uma nova postura que vai do simples fato de valorização das identidades locais até a formulação de leis e tratados para positivar os direitos das comunidades, com ênfase para as indígenas que são as mais atingidas pelos projetos governamentais.

O artigo está organizado em duas partes complementares, nas quais utilizamos o método de investigação denominado de crítico-histórico. Para dar conta dessa perspectiva, com esse método investiga-se os conceitos e categorias e a seguir a aplicabilidade desses num trabalho empírico de pesquisa. Na primeira parte do artigo discutimos algumas perspectivas do pensamento latino-americano que perpassa de uma modalidade colonial até chegar ao decolonial. São tratados conceitos de colonialismo, decolonial e decolonidade e interculturalidade, todos esses aplicados a um determinado contexto histórico onde se localizam as comunidades indígenas. Essas comunidades e suas práticas são o objeto central em discussão na proposta do trabalho.

Na segunda parte do artigo, as questões trabalhadas vão ao encontro de uma perspectiva decolonial que procura resgatar as singularidades das práticas culturais e religiosas das comunidades indígenas na Região das Missões no Rio Grande do Sul. Toda a pesquisa empírica utilizada é decorrente de um projeto de pesquisa de um dos autores do artigo, portanto, consiste num trabalho que já tem uma trajetória de pesquisa. Nesta parte, utilizamos dados inéditos, tanto de depoimentos, quanto de imagens, que marcam as permanências das práticas religiosas dos indígenas até o tempo presente. Sendo assim, consideramos que as duas partes são complementares e propiciam o desenvolvimento pleno do objeto de pesquisa.

A questão decolonial na perspectiva de afirmar identidades e práticas indígenas

A questão decolonial na América Latina numa perspectiva analítica é ainda muito contemporânea. Os estudos e propostas visam a preservação de uma identidade que é formada num espaço livre de uma perspectiva colonial no tempo presente. Como a questão colonial foi muito ampla e decorrente de todo um processo colonizador que se iniciou no século XVI, seus traços foram perpetuados na cultura, deixando vestígios visíveis nas sociedades latinas. São traços tão imponentes que perpassam praticamente esses últimos cinco séculos. O colonialismo foi um sistema de relações dominadoras sobre as populações latinas que anularam suas identidades e, consequentemente, impondo as identidades dos colonizadores. Portanto, anulando as identidades dos povos nativos.

Ao pensarmos o colonialismo na América Latina, devemos nos recorrer ao século XVI, ao início do processo de ocupação e/ou invasão do europeu no continente americano. Segundo Novais (1994), o sentido da colonização está inserido ainda no Antigo Regime, ou seja, no contexto da política mercantilista do capitalismo comercial executada pelo Estado Absolutista. Segue o autor esclarecendo que a colonização da época moderna revela traços essenciais do mercantilismo, e do próprio capitalismo comercial aplicados nos contextos coloniais. Nesse sentido, observa-se que os aspectos econômicos da colonização estão ligados diretamente a expropriação das populações latinas e, consequentemente, a aniquilação de seus modos de vida primitivos.

A partir da colonização foi implantado todo um sistema colonial como matrizes econômicas, sociais, políticas, culturais e religiosas, interferindo na vida das populações que aqui na América já habitavam e os que aqui chegaram para colonizar. O processo de colonização foi tão intenso que colocou os povos nativos como totalmente subalternos em relação aos colonizadores. Os nativos foram denominados de índios e foram os que mais sofreram com a dominação dos brancos. Segundo Quijano (2005), o índio foi denominado como desumano e sem alma, tirando suas características de pessoa humana, pois não se enquadravam como cristãos numa perspectiva europeia de cristianismo. Deveriam ser catequizados e condenados a servidão. Como foram considerados sem alma por não serem cristãos, portanto, foram desprovidos de sua dignidade e integridade. Por isso, o genocídio indígena na América colonial foi tão intenso.

O processo de colonização na América Latina foi tão intenso e longo que ocasionou a extinção e subjugação de grande parte da população indígena no continente. Toda a construção de um pensamento colonial repercutiu nas formas de subjugação dos índios, pois eram considerados como seres humanos inferiores e meros pagãos. A situação de inferioridade dos indígenas pelos colonizadores os condicionou a viverem cada vez mais isolados da civilização, pois essa mesma os condenava a servidão e a extinção. Se analisarmos o número de indígenas no começo da colonização e a atual população que restou destes podemos entender o grande genocídio que houve na América Latina. Era a dominação de um pensamento e forma de vida eurocêntrica. O que não pertencia a esse pensamento era considerado como inferior, portanto, plausível de dominação.

Todo o processo de colonização no Brasil também foi marcado pela violência e subjugação dos nativos, e, ainda apoiado pelo caminho religioso. Nesse sentido, Schwarcz (2015) aponta que essa questão foi determinante ao enfatizar que existiu uma justificativa religiosa afirmando que essas populações eram os “servos dos servos”, dessa forma, as justificativas da escravização, não só de índios como também de africanos, ambos considerados descendentes da maldição de Cam. A subjugação dessas populações foi considerada como naturais, implicando diretamente na violência que marcou todo o período colonial americano ainda presente nas relações sociais do Brasil contemporâneo, permanências de colonização que vem até o tempo presente.

Ao adentrarmos o tempo presente e percebermos que ainda resistem as permanências de todo um processo colonial é necessário pensarmos uma contraposição. É exatamente nesse sentido que surgiu o pensamento decolonial, uma verdadeira contraposição às permanências e resquícios, uma forma de reação para contrapor as ideias que devem ser superadas. Segundo Quijano (2005), foi a partir da década de 1970 que começaram a surgir as ideias de um pensamento decolonial em oposição ao pensamento eurocêntrico, uma forma clara de criação de uma identidade cultural latino-americana baseada nos elementos próprios de uma cultura de pertencimento local. Foi uma forma de vencer a subalternidade da América Latina, criando um pensamento teórico, político, cultural e, essencialmente, identitário, de uma população miscigenada, formada ao encontro de diferentes povos, carregando diversas formas de resquícios culturais decorrente desse encontro que começou com a colonização.

A perspectiva decolonial propõe todo um conjunto de reflexões que vão de uma concepção de identidade dos povos americanos, mais especificamente na América Latina, até a criação de teorias, leis, tratados e convenções para dar um novo significado às ações dos povos sul-americanos. Essencialmente, o decolonialismo para Quijano (2005) propõe romper com as velhas estruturas das organizações políticas, culturais e históricas que representam as tradições impostas pelos europeus. O mesmo autor observa que produzir um pensamento decolonial é a tarefa principal do decolonialismo, um pensamento que representa a diversidade e respeito às diferenças culturais dos povos que formam o hibridismo que, segundo Canclini (2013), marca a composição cultural dos povos coloniais. Um hibridismo que precisa ser considerado como uma mola propulsora na construção das nossas identidades.

Na perspectiva de Mignolo (2017), o pensamento decolonial e as opções decoloniais são nada menos que um esforço analítico de entender, com o intuito de superar a lógica da colonidade atrás da retórica da modernidade. Portanto, para o autor será toda uma construção de um pensamento e de práticas sociais de superação dos limites impostos pela colonidade. Seguindo os pressupostos do autor pode-se perceber que o conceito decolonial e os pressupostos de que todo o conhecimento e intersubjetividades culturais presentes nas totalidades dos povos derivam de suas próprias experiências históricas. Sendo estas concebidas por uma série de fatores internos e externos que definem a maneira como traduzimos o mundo.

Ainda segundo Mignolo (2017), a perspectiva decolonial busca resgatar conhecimentos subalternizados pelo processo de colonização como também aponta uma reorientação desse conhecimento para aplicá-lo num processo de reestruturação e reformulação das sociedades latino-americanas. Decorrente de tudo isso, esses conhecimentos e as práticas por ele estabelecidas podem ser usados para tratar as desigualdades históricas, bem como para valorizar e criar proteção para as comunidades nativas. No caso mais específico da América Latina, usados para a proteção e identificação das populações indígenas, as mais atingidas pelo colonialismo implantado há mais de cinco séculos.

Ao se tratar do decolonialismo, Mignolo (2017) aprofunda a perspectiva da necessidade de um pensamento mais autêntico que enfatiza as ações decoloniais e focam numa determinada enunciação, se desvinculando de uma matriz colonial, para poder possibilitar ações autônomas e concepções de sujeitos, novos conhecimentos e também novas instituições. Trazendo acima de tudo confrontos com hierarquias, sejam essas estabelecidas pela raça, gênero e sexualidade. Sendo assim, a questão da decolonidade pode ser perfeitamente aplicada a América Latina, e, inclusive, ao Brasil, pois somos uma sociedade decorrente de todo uma perspectiva colonial, não apenas econômica, mas, sobretudo, na nossa construção como sujeitos dominados pelo sistema colonial.

Um dos pontos centrais de toda uma concepção decolonial é pensarmos na questão da interculturalidade, na perspectiva de Mignolo (2017), uma forma de mudar os cenários latino-americanos, pois ela se origina muito mais por um movimento étnico-cultural do que pelas instituições acadêmicas, portanto, de pensamentos e de práticas efetivas dos movimentos sociais. Sendo assim, a questão social na América Latina e no Brasil, percorrem essa prerrogativa de pertencerem muito mais aos movimentos organizados por instituições da percepção teórica. Ou seja, a situação dos povos indígenas é tão grave que precisa de intervenção direta dos movimentos sociais para trazer à tona um conjunto de pressupostos de interferência nos poderes públicos. É claro que existe todo um movimento intelectual que traz à tona essas problemáticas vividas pelos índios, mas numa perspectiva decolonial precisamos de pressupostos teóricos e intervenções efetivas para salvaguardar todo um universo de vivências das populações indígenas

Para pensarmos as comunidades indígenas é fundamental dentro de uma perspectiva decolonial pensarmos uma forma e proposta de reconhecimento dos elementos culturais próprios de cada comunidade, que ao mesmo tempo são singulares, mas numa relação de alteridade são múltiplos. Mignolo (2017) salienta que a interculturalidade indica uma política cultural e um pensamento oposicional, não apenas baseado no reconhecimento e na inclusão, mas também direcionado às transformações das estruturas sócio-históricas. O mesmo autor ainda observa que é preciso construir uma política que proponha outra lógica de incorporação dos diferentes sujeitos sociais. No caso das comunidades indígenas, que as lógicas políticas incorporem esses sujeitos num projeto de país, ao contrário do que está acontecendo no Brasil, que exclui e dizima essas comunidades originais.

Considerando já uma trajetória do pensamento decolonial numa perspectiva intercultural, as tradições e práticas culturais e religiosas das comunidades indígenas merecem um reconhecimento e consideração, sendo assim a forma de manter vivo todo o seu legado cultural. As singularidades das práticas culturais e religiosas pertencem a uma perspectiva do patrimônio imaterial brasileiro no tempo presente. O reconhecimento dessas práticas pelas diferentes sociedades é uma forma de mantermos a diversidade cultural existente na América Latina e, no caso do Brasil, um patrimônio imaterial em constante ameaça. Nesta segunda parte, a questão das práticas culturais e religiosas é abordada de uma forma analítica, mostrando dados de estudos de casos na Região das Missões no do Rio Grande do Sul.

Expressões de fé como forma de resistência cultural em São Miguel das Missões

São Miguel das Missões - RS é um município que possui sua origem nos antigos povoados missioneiros organizados por jesuítas da Companhia de Jesus junto aos índios Guarani no decorrer dos séculos XVII e XVIII, o que efetivou marcas significativas nas práticas sociais, culturais e religiosas que, apesar dos processos históricos e de constituição étnica da região, mesmo após o declínio do período missional,1 são ainda, na atualidade, direta e indiretamente, ressignificadas, manifestadas e compartilhadas socialmente junto aos sujeitos2 que habitam a região hoje caracterizada como Missões.

O processo de “conquista espiritual”, conforme destaca Meliá (1985), foi mecanismo pelo qual se efetivou o desenvolvimento das reduções que, construídas com base em um projeto de cidade trazido e introduzido pelos jesuítas, teve nos elementos religiosos do catolicismo a base de sua formação e manutenção. Isso não desconsidera, no entanto, os processos de sincretismo e de negociação das práticas de fé até então tidas e manifestadas tradicionalmente pelos Guarani em seu modo tradicional de viver e ver o mundo. Tal ideia é corroborada por Wilde (2011) ao defender que:

(...) La adopción indígena del modo de vida cristiano no conllevó el abandono completo del espacio y el tiempo de los antepasados pre-jesuíticos. Implicó más bien una superposición, una duplicidad, que presentaba múltiples ambivalencias y ambiguidades. (WILDE, 2011, p. 23).

Sabe-se então que o modo de vida tradicional dos nativos não foi abandonado por completo, o que resultou em articulações e adaptações de distintas expressões de fé e práticas espirituais, tanto no decorrer do período missional como após seu declínio. Deste modo, pensar numa anulação de culturas é menosprezar a capacidade dos sujeitos em expressarem e articularem suas identidades quando do contato com outras. Certo é que o processo reducional provocou significativas negociações no modo de efetivar a convivência de duas culturas muito distintas em um mesmo ambiente. Tal ideia, coloca a figura dos nativos como centrais no desenvolvimento missional, considerando que os mesmos já possuíam práticas, vivências e percepções que caracterizavam suas visões de mundo e de fé, o que diretamente influenciava tanto nas práticas simbólicas quanto na materialidade produzida na cidade, seja em sua arquitetura ou nas ornamentações e estatuária que compuseram a paisagem e o dia a dia de todos que neste contexto viviam.

O contato entre europeu e nativo resulta, portanto, numa experiência que constrói elementos materiais e imateriais que são, até a atualidade, significados, ressignificados e reproduzidos de modo a dar sentido às culturas e identidades vividas no que hoje se denomina de região missioneira. Exemplo disso são os vestígios arquitetônicos existentes na Região das Missões do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, os quais estão diretamente ligados à uma concepção religiosa do catolicismo que marca o período de trabalho entre europeus e nativos e que é também codificado e narrado de distintas maneiras por diferentes sujeitos que circulam ou residem em seu entorno. Tais espaços, na atualidade, evocam, também, diferentes narrativas de um processo histórico e de fé que inculca em toda uma região práticas e representações que alimentam e constituem as identidades daqueles que hoje se identificam com este local e seus remanescentes. Considera-se, portanto, como alicerces das práticas culturais e de fé manifestadas, aquilo que ao longo do tempo se efetivou e reproduziu entre os sujeitos que, desde o período missional, edificam meios simbólicos e narrativos de constituírem e legitimarem sua própria existência no local em que vivem, se utilizando para isso tanto de aspectos imateriais quanto da materialidade significada como patrimônio no presente.

Considerando tais elementos e processos é que, no período missional, Chamorro (2004, p. 108) aponta que havia, por parte dos jesuítas, uma considerável resistência em aceitar e reconhecer que os indígenas possuíssem práticas e vínculos espirituais, os quais necessitaram no decorrer do tempo serem vislumbrados como integrantes das identidades destes a fim de que os elementos introduzidos pelos padres fossem assimilados e considerados também como representativos. Deste modo que símbolos, rituais e narrativas foram introduzidos e negociados a dar condições para que o processo missional se efetivasse conforme o planejado e desejado. Tal negociação se desenvolve para que se concretizasse um cotidiano que fornecesse condições de convivência e de trabalho, os quais destaca-se, eram sempre motivados e colocados por meio de um viés religioso e de fé a fim de que também os padres pudessem ter certo controle sobre o projeto que buscavam desenvolver.

Cabe ainda apontar que no processo de catequização e evangelização, a minoria dos nativos se envolveu e participou de seu desenvolvimento, permanecendo a grande maioria dos indígenas em seu modo tradicional, ou seja, em pequenos aldeamentos, onde viviam basicamente da caça, da pesca e da coleta. É justamente por grande parte dos nativos terem se mantido em sua condição original de organização social que na atualidade existem ainda referências, práticas, espaços e representações que podem ser identificadas e vislumbradas junto à comunidade indígena que habita e circula pela região.

Diante disso se aponta que, na atualidade, por exemplo, as comunidades Guarani localizadas na Região das Missões do estado do Rio Grande do Sul possuem práticas e discursos voltados à espiritualidade e concepções de mundo que são divergentes daquelas práticas religiosas manifestadas em diferentes instituições que atuam neste campo na respectiva localidade. Tal ideia faz crer, e possibilita afirmar, que este grupo, apesar de todas as influências que lhe foram peculiares ao longo dos últimos séculos, mantém no tempo presente, símbolos, espaços e rituais próprios de sua cultura, a qual resistiu significativamente às influências e imposições de culturas e práticas de fé divergentes às suas. Indubitavelmente, as características e os processos históricos vividos pelos diferentes sujeitos e grupos que desenvolveram a região, resultam em múltiplas expressões que até o tempo presente são manifestadas e compartilhadas na comunidade ora estudada.

Cabe reforçar que a questão espiritual para o Guarani está também relacionada aos seus processos de cura física, não sendo os mesmos separados, estando, deste modo, correlacionados em sua cosmologia e organização social. Isso quer dizer que para o indígena as doenças físicas possuem origem em um campo espiritual, devendo assim serem vislumbradas, compreendidas e solucionadas. Esta visão justifica o fato de muitas vezes a figura do médico e o ambiente hospitalar não serem os primeiros recursos procurados pelos Guarani, pois acreditam que a doença só pode ser curada dentro de um processo espiritual e através de elementos distintos daqueles ofertados nos espaços do homem branco.

A imagem abaixo apresenta uma casa de reza dos Guarani habitantes no interior da cidade de Santo Ângelo – RS.3 Dentro dela se efetivam rituais de bênção e de cura onde a figura do pajé concretiza práticas e compartilha conhecimentos espirituais perante sua comunidade.


Figura 1
Casa de reza Guarani na Aldeia Tekoa Pyau4 Santo Ângelo RS
Fonte: Juliani Borchardt da Silva. Santo Ângelo, 2014.

Interessante apontar que a referida casa não é aberta para visitação e tampouco é acessível para que homens ou mulheres brancos e de culturas diversas ao Guarani adentrem ao espaço. Aponta-se tal característica como um meio de garantir a continuidade dos saberes e fazeres da cultura indígena, evitando, a priori, interferências que provoquem um processo de alteração e descaracterização de práticas, rituais e narrativas indispensáveis à sua cultura no presente. É, indubitavelmente, uma forma de resistência às tradições manifestadas no campo espiritual pelos indígenas desta etnia que vivem nas aldeias tanto em Santo Ângelo - RS quanto em São Miguel das Missões - RS.

Como direito, inclusive previsto em legislação federal,5 a manutenção da cosmologia dos indígenas é fundamental para que estes possam manter suas identidades e modos de vida, salvaguardando assim, por meio dos saberes e fazeres, aquelas expressões fundantes e necessárias à sua cultura. O entendimento da necessidade deste respeito e da valoração daquilo produzido e manifestado pelo Guarani na atualidade é extremamente necessário para a constituição de uma sociedade verdadeiramente diversa e plural. Isso porque, qualquer tentativa de intromissão ou até mesmo de conhecimento deste espaço, sem a intenção direta de agir sobre ele, pode produzir alterações significativas em seu meio de utilização e compreensão pelos próprios Guarani, o que diretamente o modificaria como um todo.

A casa de reza apontada é construída, geralmente, com barro, madeira, taquara e palha, de modo a ambientar, com materiais acessíveis e disponíveis na natureza, o local onde a comunidade irá produzir e perpetuar suas práticas espirituais. Para o então pajé da aldeia, em entrevista coletada no ano de 2013, 6 este espaço é fruto de:

(...) trabalhos feitos com todo o respeito com o cacique, o meu filho. Estamos sempre trabalhando e falando sobre essas coisas de manhã. Então aí essa parte de saúde em primeiro lugar nós trabalhamos a cura, as ervas tradicionais e também trabalhamos o opy né que é a casa de reza e eu sempre trabalhando na parte dos brancos juntos. Em primeiro lugar quando tinha alguma criança enferma em primeiro lugar trabalhando com o opy né pedindo pra Nhanderú e trabalhando com ele o que tinha a doença né porque é muito diferente a doença guarani, tem para o branco e tem para o guarani. Então ele tem que saber para qual doença é e qual doença tinha para o branco. Então nós sempre falamos isso. Então quando tinha alguma criança enferma sempre entrando dentro da nossa igreja e pedindo a Nhanderú, nessa parte e nessa comunidade e o branco tem essa preocupação e a lei agora quando tinha o guarani e tinha a doença mandava pro hospital, rapidamente, e morreu lá no hospital. Um guarani morreu lá né e essa não é a culpa de ninguém. Isso é por negativo nosso também. Então nós temos que respeitar a cultura e o sistema nosso. Por exemplo, um dia tu aparece aqui e tu vê uma criança enfermo, que quase não come nada e porque eu não tenho a preocupação de mandar pro hospital. Eu sei por que não mandar, porque vai ter o coração daqui né e depois do nosso atendimento aqui daí avisamos o agente de saúde pra saber como que é. Assim é o trabalho aqui. (FLORIANO ROMEU, 2013).

Identifica-se na fala de Floriano alguns pontos relevantes à compreensão de seu modo de vislumbrar aspectos de fé e de cura, tais como: 1) os Guarani possuem um local específico para manifestarem sua religiosidade, a Opy, onde buscam numa conexão direta com Nhanderú a solução e a proteção para todos; 2) há, na cosmologia dos Guarani, a crença de que a origem das doenças e dos males físicos são oriundos de modo diverso se comparado com aquelas do homem branco, ou seja, as suas doenças seriam diferentes daquelas manifestadas em outras culturas, mesmo estas estarem, na atualidade, inseridas também num contexto que apresenta e oferta um sistema médico científico. Isso faz com que se necessite um trabalho de articulação e de respeito onde, principalmente, os indígenas possam deliberar sobre os métodos e sistemas que desejam se utilizar em cada contexto de necessidade médica ou espiritual, como ainda reforça o entrevistado:

Tipo é muito delicado isso daí, muito delicado. Porque a doença para levar para o hospital eu sei como é rapidamente e o guarani tem outras doenças e isso ninguém sabe, é segredo. (...) São muito diferente. Tu sabe, o branco também tem essas doenças, morreu rapidamente, um ataque né, isso também acontece com o guarani, mas isso tem outra doença daí. Isso tem cura mas é muito diferente. (...) Em primeiro lugar tem que se respeitar, tem que ver que cura tem ou quem não vai se salvar ou com o doutor, o branco. Talvez uma vez eu não posso remediar aquela doença e mando lá pro hospital daí ou se dá, se tem como aqui tem. Pode ser que Deus pediu um morto, ele não tem culpa porque chegando o tempo tem que ir embora. Essa todo mundo conhece. Isso também acontece. (FLORIANO ROMEU, 2013).

Há, na fala do interlocutor, a visível necessidade de construir uma diferença entre a sua cultura perante as demais. Este processo narrativo e de marcação do local de cada um, no campo médico e de fé, é fundamental na constituição das identidades e das práticas de cada sujeito e grupo no contexto ora analisado, sendo, ao mesmo tempo, o que torna cada narrativa, singular.

O então cacique da Aldeia, Anildo, na mesma direção do pajé, relata que:

Sim, o nosso é muito diferente (sobre os aspectos de fé e cura). Na verdade todos nós sabemos que benzimento só se faz na casa de reza opy e com os brancos é muito diferente. Nós cuidamos apenas uma pessoa na casa e não podemos mandar outra pessoa para entrar lá. A gente podemos deixar assim (pensa) como é que vou explicar, assim particularmente. (...) Diferencia porque o guarani conversa com o Nhanderú, mas o Nhanderú não deixa entrar dentro da opy, dentro da casa de reza. (ANILDO ROMEU, 2013).

Anildo justifica em sua fala os motivos que levam à restrição deste local de reza para que outros a acessem. Como já apontado, tal ação visa, mesmo que não exposta diretamente, a exclusividade dos Guarani junto à suas concepções de fé, a restringindo perante aquele que é diferente. Esta atitude resulta na proteção e na salvaguarda daquilo que sua cultura apresenta como necessário à perpetuação da identidade do povo Guarani e o compartilhamento de narrativas e técnicas que devem ser compreendidas e manifestadas apenas por aqueles que fazem parte do grupo. Isso também se deve a necessidade de marcação de uma cultura que defina e diferencie os indígenas dos brancos em seus modos de vislumbrarem também o campo das doenças e de seus processos de cura. Sobre as ações de transmissão destes saberes, Anildo comenta que:

Por exemplo, os meus pais tinham os pais deles que já morreram e o pai dele ensinou pra ele como rezar e todo mundo sabemos rezar e a partir dos nossos pais nós aprendemos a rezar com Nhanderú. Meu pai reza pra todas as pessoas, ele conversa com Deus pra todo mundo. O próprio Deus fez a nossa cultura, por exemplo, se meu pai estiver orando por mim o Deus vai iluminar a minha vida e daí pra frente eu vou sabendo e pra fazer o benzimento vou ter que conversar com o meu pai e ele me explica como. (ANILDO ROMEU, 2013).

Indubitavelmente os processos de educação informal efetivam a transmissibilidade de saberes e de práticas que os Guarani necessitam para manterem certas narrativas e expressões na atualidade. Anildo faz questão de marcar em sua fala justamente as diferenças que delimitam os aspectos de fé e de espiritualidade que separam, de maneira significativa, as duas culturas. Denota-se, portanto, que apesar de diferentes sujeitos usarem o termo “benzimento” para caracterizarem um processo de cura, o mesmo na prática é distinto.

Percebe-se que as práticas e discursos produzidos pelos Guarani na atualidade reverberam em outros espaços, discursos e expressões, como se identifica, por exemplo, no espaço denominado de “Manancial Missioneiro”, localizado na cidade de São Miguel das Missões - RS, conforme imagens a seguir:


Figura 2
Manancial Missioneiro – Reprodução de Opy. São Miguel das Missões - RS
Fonte: Juliani Borchardt da Silva. Santo Ângelo, 2021.

O espaço criado por Valter Braga, benzedor conhecido na localidade miguelina, desenvolve um ambiente no início dos anos 1990 a fim de tentar recolher e reunir objetos e elementos de diferentes períodos históricos da comunidade, os quais, sob sua tutela, compuseram um significativo acervo disponibilizado à comunidade e a turistas que passam pela cidade.

Para além da constituição de um espaço museal e memorial, Valter Braga reproduz um ambiente que denomina de opy, local sagrado da cultura indígena. Produz e encena, à comunidade e turistas, simbologias e rituais onde se utiliza de elementos como o fogo, tacape, erva mate, mel e mais objetos que compõem o cenário e a performance desenvolvida, a fim de mostrar a todos como seria o processo de cura milenar realizado pelos nativos.

Denota-se, neste contexto, que há divergências no modo com que os espaços são tratados. No ambiente produzido pelo Guarani, o mesmo é restrito aos membros da comunidade, sendo seus rituais limitados aos seus integrantes, não sendo os mesmos publicizados e compartilhados socialmente. Já naquele efetivado por Valter, a característica identificada diz respeito mais aos aspectos turísticos e de atrativo, onde a representação e a narrativa produzida emergem de maneira mais significativa do que os aspectos de manutenção cultural da espiritualidade dos sujeitos em si.

Identifica-se, portanto, que um mesmo elemento, quer seja, espaço de manifestação de fé, é organizado, gerido e compartilhado socialmente de formas distintas num mesmo território. Enquanto não se teatraliza o tema, no outro se restringe às expressões ali efetivadas como dança, canto e rituais, fazendo destes espaços locais distintos em aplicabilidade e até mesmo de sentidos.

Valter, como um agente de memórias da localidade miguelina, busca, por meio da constituição de um local representativo de um universo sagrado, manter viva certas características que em sua percepção são necessárias a todos os sujeitos. Cria um cenário ambientado que também possui como objetivo resistir aos demais elementos que possam encobrir ou destruir referências materiais e imateriais que julga relevantes. Ambas, assim sendo, são expressões de resistência cultural e, principalmente, do medo dos sujeitos em serem esquecidos e terem suas práticas encobertas por outras que a façam sucumbir diante de um contexto que age de maneira a tornar tudo pasteurizado e efêmero.

Do mesmo modo, as referências de fé ressignificadas ao longo do tempo também são identificadas no ofício de benzer7 exercido por dezenas de pessoas na comunidade miguelina.8 Aponta-se a fala do benzedor Aureliano José Jardim, o qual narra o desenvolvimento de seu ofício como uma missão necessária ao contexto em que vivia:

(...) e comecei a lidar com medicamento pra cumprir a missão que eu tinha dentro de mim e desde lá essa intenção de fazer a caridade pro povo e daí pensei ‘vou ser benzedor, mas benzedor mesmo!’ e não plataforma só pra invocar coisas na cabeça das pessoas. Vou desimbria pras pessoas serem dentro de si, os maus pensamentos pra não correrem pro outro lugar. Fui lutando com essa luta e é a minha função até agora. (AURELIANO JOSÉ JARDIM, 2017).

A narrativa do interlocutor aponta para o desenvolvimento de um ofício que, antes de tudo, objetivava dar sentido à sua própria existência como sujeito no contexto em que vivia. O local onde está inserido, com todas as suas influências e conflitos, é, portanto, determinante para que este construa uma identidade que represente seus anseios perante os demais sujeitos com quem possui contato.


Figura 3
Benzedor Aureliano José Jardim São Miguel das Missões RS
Fonte: Juliani Borchardt da Silva. Santo Ângelo, 2013.

Aureliano, assim como os demais benzedores que atuam na localidade miguelina, é sujeito resultado de dinâmicas culturais que, desenvolvidas e negociadas no decorrer dos últimos séculos,9 possui em sua essência influências tanto do catolicismo institucional quanto de aspectos relativos à espiritualidade popular que se denota transmitida em grupos familiares que se colocam perante o restante da sociedade como sujeitos capazes de suprir tanto problemas espirituais quanto aqueles de ordem física.

Não se pode desconsiderar as dinâmicas decorrentes do contato entre diferentes indivíduos e instituições que, ao longo das últimas décadas também têm desenvolvido expressões e narrativas que acabam por produzir, indiretamente, elementos de resistência à prática e a cultura que está, a priori, no saber e no fazer de sujeitos que se constituíram num contexto marcado por elementos de fé, mas também por diversas privações e limitações de educação, afeto, recursos financeiros e de ensino formal.

O ofício de benzer, portanto, pode ser apontado, na localidade ora estudada, como uma prática de resistência diante dos processos que, direta e indiretamente, almejaram constituir meios de controlar socialmente aqueles que na Região das Missões habitavam. O campo sagrado foi, portanto, trabalhado e desenvolvido, por diferentes sujeitos, como meio de manutenção e sobrevivência de suas próprias práticas culturais e identitárias. Não é uma reprodução simbólica e cultural, mas sim um produto de inúmeros processos e assimilação, negociação e resistência daquilo que os sujeitos determinaram como centrais para suas identidades.

Conclusão

Toda a construção do pensamento decolonial e intercultural é uma perspectiva ainda recente na América Latina, pois as influências das ideias coloniais assolaram todo o imaginário e práticas efetivas dos povos nativos. É preciso construir outra perspectiva que vá ao encontro de uma realidade singular mesclada por um hibridismo cultural e étnico. Os nossos povos se constituíram no encontro de culturas muito diferentes, não se tem como recuperar a pureza da cultura, mas sim o que se formou com esse hibridismo. As nossas diversidades de práticas e culturas nos caracterizam como povos latino-americanos. Sendo assim, é necessária uma perspectiva de entendimento e análise que dê conta de explicar toda a nossa complexidade.

No ensejo de uma perspectiva que atenda a nossa diversidade, o decolonialismo responde com propriedade essa demanda, pois o pensamento decolonial foi construído justamente para contemplar uma realidade múltipla e complexa como a latino-americana. Ser decolonial é essencialmente ir ao encontro de um conjunto de probabilidades e ideias que dizem respeito às diferenças dos povos, em muitos casos, povos e comunidades que precisam da colaboração para a sua manutenção e sustentabilidade. Deste modo, a perspectiva decolonial e intercultural responde a um postulado de questões em pauta para as comunidades exercerem suas práticas culturais e identidades de uma forma plena, pois por muito tempo foram tolhidas de sua cidadania. Nesta perspectiva, contemplamos a comunidade miguelina e suas expressões culturais e de fé, como práticas ainda permanentes no presente.

É, portanto, desta maneira, que no contexto atual, a comunidade de São Miguel das Missões - RS, habitada e vivida por diferentes sujeitos e grupos, efetiva expressões que diretamente são fruto de resistência prática e narrativa perante distintas influências e processos de alteração, controle e aniquilamento de culturas. Indubitavelmente, as manifestações de fé e de cura exercidas no presente, no contexto ora analisado, são efetivadas de modo a garantir a sobrevivência e o compartilhamento de percepções de mundo, identidades e narrativas necessárias àqueles que a exercem, sendo assim fundantes de um contexto que, apesar de fragmentado, possui de maneira significativa vivências e práticas plurais que, vislumbradas no campo da fé, representam o imaginário e os sentidos dados por estes ao mundo em que vivem.

Tanto os Guarani quanto os benzedores efetivam, cada um a seu modo, mecanismos para conseguirem, na atualidade, exercerem suas práticas e manifestações de fé e de cura de acordo com aquilo que acreditam ser o melhor e correto para seus grupos, respectivamente. De maneira dinâmica, produzem meios de viabilizar a manutenção daquilo necessário à suas identidades, atuando assim na direção a compor e negociar narrativas, espaços e expressões que corroborem esta premissa.

Conclui-se, portanto, que os elementos culturais, religiosos e de fé manifestados pela comunidade miguelina são exemplos práticos de uma decolonialidade permanente e latente neste contexto. Isso porque os sujeitos, diante de todos os processos culturais que lhe foram inseridos e impostos, mantiveram no decorrer de suas relações e práticas aquilo que desejaram e puderam manter enquanto alicerce para suas identidades, sendo então necessário que todos nós, no presente, identifiquemos e valorizemos aquilo que é posto culturalmente nesta perspectiva como resultado histórico, cultural e de memória na Região das Missões do Rio Grande do Sul.

Material suplementario
Referências
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013.
CHAMORRO, Graciela. Teología Guaraní. Quito-Ecuador: Abya Yala, 2004.
MELIÀ, Bartolomeu. El guaraní conquistado y reducido: ensayos de etnohistoria. Asunción: Universidad Católica, 1988.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF , Niterói , v. 1, n. 34, p. 287-324, 2008.
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais obscuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017.
NOVAIS, Fernando Antônio. A colonização e o sistema colonial: discussões de conceitos e perspectivas históricas. In: MARQUES, Adhemar (et.al). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 1994.
QUIJANO, Anibal. A colonialidade do poder: eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 116-142.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
WILDE, Guilhermo. Objetos, personas y Alteridade nel Espacio Misional. In: COLVERO, Ronaldo Bernardino; MAURER, Rodrigo Ferreira. Missões em Mosaico: da interpretação à prática – um conjunto de experiências. Porto Alegre: Faith, 2011, p. 15-26.
Notas
Notas
1 Declínio este efetivo em decorrência da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que troca os chamados 7 Povos das Missões por Colônia de Sacramento. A negativa e resistência dos Guarani em abandonarem seu território efetiva na Guerra Guaranítica.
2 Indivíduos que das mais diversas procedências e etnias passaram a compor, após o período de declínio das Missões, a paisagem e a nova configuração étnica que constitui, até o presente, o mosaico cultural da região.
3 São Miguel das Missões - RS pertencia à Santo Ângelo - RS até o ano de 1988, quando se emancipou.
4 Aldeia criada por indígenas dissidentes da reserva/aldeia indígena Tekoá Koenjú, localizada em São Miguel das Missões, estado do Rio Grande do Sul. A aldeia Tekoa Pyau (de 2013) deu origem ainda à Aldeia Guarani Yakã Ju (de 2015), quando seus habitantes se mudaram dentro do próprio município de Santo Ângelo, alterando o nome da comunidade.
5 Ver Artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
6 Floriano Romeu. Entrevista concedida a Juliani Borchardt da Silva no ano de 2013 na cidade de Santo Ângelo - RS.
7 Ofício este que visa abençoar e curar através da fé.
8 Em pesquisa de Doutoramento de Juliani Borchardt (UFPEL, 2021), identificou-se 21 benzedores atuantes na localidade. Este número provavelmente é muito superior, dadas as características do ofício nesta localidade, a qual se autodenomina de “cidade dos benzedores”.
9 Aponta-se como uma das heranças e influências dos benzimentos as práticas simbólicas, de cura e de uso de ervas então tradicionalmente utilizadas e manifestadas pelos nativos que historicamente ocuparam a Região das Missões.

Figura 1
Casa de reza Guarani na Aldeia Tekoa Pyau4 Santo Ângelo RS
Fonte: Juliani Borchardt da Silva. Santo Ângelo, 2014.

Figura 2
Manancial Missioneiro – Reprodução de Opy. São Miguel das Missões - RS
Fonte: Juliani Borchardt da Silva. Santo Ângelo, 2021.

Figura 3
Benzedor Aureliano José Jardim São Miguel das Missões RS
Fonte: Juliani Borchardt da Silva. Santo Ângelo, 2013.
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