DOSSIÊ 18: HISTÓRIAS MARGINAIS, ALTERIDADES E CRÍTICAS EPISTÊMICAS

Recepción: 03 Noviembre 2021
Aprobación: 14 Diciembre 2021
DOI: https://doi.org/10.30612/frh.v23i42.15744
Resumo: Este artigo destina-se apresentar os suportes teóricos e metodológicos na compreensão do puxirão dos caboclos do interior do estado do Paraná, Brasil em meados do século XX. A base interpretativa está pautada na corrente historiográfica denominada nova história cultural a partir de Lynn Hunt, Carlo Ginzburg e Roger Chartier, autores que se dedicam abordar a cultura na História. Destaca-se a micro-história, no sentido de adentrar nas relações entre os sujeitos históricos que praticavam o puxirão, e o diálogo com acontecimentos macro, relacionando as particularidades com as estruturas daquele contexto. Na sequência, a problematização de abordagens acerca da etimologia e dos significados do termo puxirão e suas variantes, descrições e nominações das práticas coletivas, desde os indígenas, registradas durante o período colonial, até as investigações e observações próximas do contexto das organizações coletivas de caboclos no estado do Paraná.
Palavras-chave: Cultura, Semântica, Posseiros, Oeste do Paraná.
Abstract: This article aims to present the theoretical and methodological support in understanding the puxirão of caboclos in the interior of the State of Paraná – Brazil in the mid-twentieth century. The interpretive basis is based on the historiographic current called new cultural history from Lynn Hunt, Carlo Ginzburg and Roger Chartier – authors who are dedicated to approaching culture in history. The micro-history stands out, in the sense of entering into the relationships between the historical subjects who practiced the puxirão, and the dialogue with macro events, relating the particularities with the structures of that context. Then, the problematization of approaches about the etymology and meanings of the term puxirão and its variants, descriptions and nominations of collective practices - from the indigenous people, recorded during the colonial period, to investigations and observations close to the context of collective caboclo organizations in the State of Paraná.
Keywords: Culture, Semantics, Squatters, West of Paraná.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar el soporte teórico y metodológico para comprender el puxirão de caboclos en el interior del Estado de Paraná - Brasil a mediados del siglo XX. La base interpretativa se basa en la corriente historiográfica denominada nueva historia cultural de Lynn Hunt, Carlo Ginzburg y Roger Chartier, autores que se dedican a abordar la cultura en la historia. Se destaca la microhistoria, en el sentido de entrar en las relaciones entre los sujetos históricos que practicaron el puxirão, y el diálogo con macroeventos, relacionando las particularidades con las estructuras de ese contexto. Luego, la problematización de enfoques sobre la etimología y significados del término puxirão y sus variantes, descripciones y nominaciones de prácticas colectivas - desde lo indígena, registrados durante el período colonial, hasta investigaciones y observaciones cercanas al contexto de las organizaciones colectivas caboclo en el estado de Paraná.
Palabras clave: Cultura, Semántica, Ocupantes, Oeste de Paraná.
Introdução
Este artigo refere-se aos trabalhos coletivos e festas puxirão, realizados entre as décadas de 1930 e 1970 no Oeste do Paraná. A partir de pesquisas nos municípios de Diamante do Sul, Guaraniaçu, Ibema, Campo Bonito, Catanduvas e Três Barras do Paraná, o puxirão despontou como uma constante nas memórias dos moradores locais.1
Tratava-se de uma mobilização coletiva e voluntária de posseiros que auxiliavam um vizinho na extração de vegetação rasteira das posses para a posterior produção extensiva de suínos, nominada de safra de porco. Em contrapartida, a família do posseiro ficava responsável de prover a alimentação durante as atividades de roça, bem como a realização de uma festa para celebrarem a parceria. A prática do puxirão reunia trabalho, lazer, identidade e interação social de homens e mulheres no interior do estado do Paraná em um a manifestação de uma só vez socioeconômica e cultural.
Para a compreensão das relações de reciprocidade entre os praticantes do puxirão, este trabalho versará inicialmente sobre os procedimentos teórico-metodológicos e recursos epistemológicos no âmbito da nova história cultural. Destacam-se Lynn Hunt, quanto aos métodos e observações da cultura no estudo da história; Carlo Ginzburg, com os conceitos de cultura popular, circularidade cultural e os paradigmas indiciários; e Roger Chartier, com teorias dedicadas à prática, apropriação e representação.
O tópico que segue está situado no propósito de conhecer pesquisas dedicadas ao Oeste do Paraná, Sudoeste do Paraná e Oeste de Santa Catarina, e como seus respectivos autores conduziram reflexões sobre ações coletivas de trabalho/festa no meio rural. Destacam-se as diferenciações dos termos, desde os Jesuítas do período colonial até as abordagens mais recentes, observando como as práticas se manifestam de forma semelhante nas múltiplas representações concedidas aos trabalhos coletivos.
A discussão norteia contribuições da historiografia para a compreensão do processo histórico transcorrido nos locais em que os trabalhos/festas foram analisados.
A nova história cultural e a micro-história
A relevância da nova história cultural, para dissertar sobre as vivências e convivências no puxirão dos caboclos do estado do Paraná no século XX, é marcada pela explanação dos costumes para além de concepções tradicionais da historiografia. Difundida a partir do final da década de 1980, com a historiadora norte-americana Lynn Hunt, a coletânea de artigos A nova história cultural, priorizou a abordagem da história e dos historiadores, antropólogos, críticos literários, filósofos que compartilhavam das relações econômicas e sociais como processos de produções culturais. Nas palavras de Hunt:
As relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural e produção cultural – o que não pode ser dedutivamente explicado por referência a uma dimensão extracultural da experiência. (HUNT, 1995, p. 9).
Leva-se em consideração o caráter simbólico dos sujeitos históricos que produziram os documentos, pesquisadores que passam a inserir a cultura na historiografia. Dessa forma, Hunt contextualiza a concepção historiográfica e os seus problemas:
(...) uma vez que a ascensão da nova história cultural foi marcada por um declínio dos intensos debates acerca do papel da teoria sociológica no âmbito da história (...). Em lugar da sociologia, as disciplinas influentes hoje em dia são a antropologia e a teoria da literatura, campos nos quais a explicação social não é tratada como ponto pacífico; não obstante, a história cultural deve defrontar-se com novas tensões não só dentro dos modelos que oferece, mas também entre eles. (HUNT, 1995, p. 14).
Devido às limitações encontradas nas ciências sociais com relação à cultura, passaram a serem valorizados trabalhos com incursões, ou diálogos, na antropologia. De modo semelhante, a nova história cultural despontou nesse cenário de vertentes historiográficas que até então era composta de correntes que priorizavam as investigações políticas e sociais, chamando atenção para a relevância que as ações humanas, influenciadas, mas não determinadas pela economia, têm para a compreensão dos sujeitos e a construção da história.
Na perspectiva da nova história cultural, para o estudo dos caboclos do Paraná, a diversão e o entretenimento existem também como instâncias culturais atreladas ao campo econômico e político, social e simbólico, sobretudo nos eventos de trabalho/festa puxirão. Ou seja, ampliam-se nessas manifestações culturais de grupos as outras dinâmicas que perpassam o cotidiano, refletindo significativamente esses vínculos no processo histórico.
Para estabelecer esse diálogo entre historiografia e cultura empregam-se aqui, como principais autores, os historiadores Carlo Ginzburg e Roger Chartier.
Do italiano Carlo Ginzburg objetiva-se captar a noção do autor frente à cultura popular e à circularidade cultural, o método investigativo do paradigma do saber indiciário e da micro-história. Na sua obra intitulada O queijo e os vermes, Ginzburg desenvolve de forma metodológica a abordagem denominada cultura popular. No prefácio da edição italiana do livro, o autor expressa a questão da cultura popular e seus propósitos:
A escassez de testemunhos sobre o comportamento e as atitudes das classes subalternas do passado é com certeza o primeiro – mas não o único – obstáculo contra o qual as pesquisas históricas do gênero se chocam. Porém, é uma regra que admite exceções. (...) o que temos em mãos já nos permite reconstruir um fragmento do que se costuma denominar “cultura das classes subalternas” ou ainda “cultura popular”. (GINZBURG, 2006, p. 11).
Para o objeto deste artigo, no Paraná, tem-se a possibilidade do contato, no presente, com os sujeitos históricos que vivenciaram o contexto de meados do século XX no interior do estado. Porém, esse acesso supostamente “direto” não diminui a responsabilidade de se tentar perceber, na subjetividade dos depoimentos orais, a cultura que lhes é particular.
Para Ginzburg uma das limitações de fontes em sua pesquisa foi a de não encontrar documentos produzidos por agentes históricos das classes populares do século XVI, e a decorrente impossibilidade do contato com os mesmos. Considera-se que, no contexto de realização do puxirão na fração Oeste do Paraná, o acesso aos antigos posseiros e caboclos constitui-se como um dos problemas da investigação. Isso porque o trabalho com as memórias das pessoas que vivenciam o presente, também carece de cautela na análise das suas formas de representações.
Se para Ginzburg a ausência é o problema, aqui, a presença não é menos complexa, já que os coadjuvantes continuam atuando ativamente na sociedade e construindo as suas memórias. O que queremos esclarecer é que sobre os homens e mulheres do passado, Ginzburg desenvolveu problematizações com bases textuais, sujeito às críticas de outros pesquisadores sobre as produções historiográficas. Quanto aos sujeitos históricos do presente, além das críticas acadêmicas, podem surgir também sentimentos favoráveis ou contrários às análises construídas, partindo dos próprios sujeitos que contribuíram com suas memórias. Isso, porém, deve ser considerado como algo significativo, demonstrando preocupação da parte dos entrevistados, com a composição da história.
Não significa que o historiador deva agradar seus interlocutores e satisfazer as expectativas dos colegas de ofício trabalhando de modo que passem a consentir com tudo o que está escrito – algo praticamente impossível, já que a história, como todas as outras ciências, está em constante construção. Atenta-se em observar que o trabalho exige simultaneamente a responsabilidade do pesquisador com o passado e com o presente dos entrevistados. A teoria de Ginzburg vem acrescentar elementos nessa observação que permite o acesso às pessoas sem as limitações documentais, oportunizando conhecer essas expressões da cultura popular.
A formulação que Ginzburg encontrou para contrabalançar as dicotomias numa mesma investigação, para melhor visualizar os sujeitos históricos, reflete na organização do conceito de circularidade cultural:
(...) é possível resumir no termo ‘circularidade’: entre a cultura de classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (...) (GINZBURG, 2006, p. 10).
Ou seja, o autor estabelece que a relação entre as classes não existe apenas como dominação das elites. O que ocorre são relações permeadas ora por pressões promovidas pelas manifestações populares sobre as camadas mais abastadas, ora pelas formas legitimadas de repressão pelas elites e as concessões às reivindicações das massas para a manutenção do poder. “Portanto, temos a dicotomia cultural, e a circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica (...)” (GINZBURG, 2006, p. 15).
A relevância do conceito de circularidade cultural está presente na compreensão de que há outras relações peculiares entre as elites e as classes subalternas, além da dicotomia “dominante” e “dominada”. Busca-se perceber, na circularidade cultural, que as relações entre posseiros, proprietários e migrantes não se davam somente através de trabalhos pautados por meios comerciais, de exploração e de disputa de terras, mas também de relações sociais que influenciavam reciprocamente um grupo e outro.
As definições de quem é elite e quem é classe popular são arriscadas na medida em que, na suposta segregação social, havia variantes que, muitas vezes, misturavam um extremo e outro a ponto de gerar confusão nos parâmetros. Por exemplo, seria o posseiro que encomendava o puxirão o patrão, pelo fato de o serviço de roça ser realizado na sua propriedade ou posse? Ou estava subordinado à solidariedade do grupo, já que a empreita era retribuída com alimentação e festa e não com a remuneração em dinheiro? Nem uma coisa nem outra, pois o posseiro tanto dependia dos vizinhos para atingir seus objetivos quando contribuía para a perpetuação da unidade do grupo.
Objetivando perceber a atuação das classes populares no período moderno, o autor perscruta nos detalhes pormenorizados dos registros as pequenas fendas que podem ampliar o campo de visão do universo dos camponeses daquele momento. Pautado numa metodologia de pesquisa a partir de vestígios, definida pelo autor como paradigma do saber indiciário, que essa relação investigador/sujeitos históricos faz-se possível.
Em suma, pode-se falar de paradigma indiciário ou divinatório, dirigido, segundo as formas de saber, para o passado, o presente e o futuro. Para o futuro – e tinha-se a arte divinatória em sentido próprio -; para o passado, o presente e o futuro - e tinha-se a semiótica médica na sua dupla face, diagnóstica e prognóstica -; para o passado – e tinha-se a jurisprudência. Mas, por detrás desse paradigma indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa. (GINZBURG, 2002, p.154).
Aliado aos anseios metodológicos, Ginzburg apoia-se nessa teoria em defesa da própria cientificidade da história. Para o autor, o paradigma indiciário eleva ao grau de ciência às modalidades de pesquisa impossibilitadas de serem testadas sempre que se queira confirmar ou formular uma hipótese. Na impossibilidade de repetir as experiências da história se chega aos acontecimentos por meio das provas, entendidas como indícios. Num momento temos os sintomas observados no contexto presente, seja pela interferência do passado na vida atual, ou seja, pelo encontro presente com as fontes e a formulação de questões ainda não elucidadas. Em seguida busca conhecer e entender as enfermidades dos acontecimentos ao longo do tempo por meio dos indícios e, por fim, prescrever abordagens de observação e de críticas que proporcionem caminhos de convivência dos homens e dos contextos históricos.
Dessa forma, as experiências adquiridas por meio das técnicas para aprender a caçar, os saberes populares e especulações decorrentes da observação dos acontecimentos, a percepção de pistas, as provas na junção das peças do quebra-cabeça investigativo e os valores agregados aos materiais na composição e transformação de símbolos, formam essa constelação das disciplinas.
Considerando os pormenores nas ciências humanas, percebe-se que os métodos indiciários não têm a pretensão de serem exatos. Já que cada pesquisa persegue os acontecimentos e as fontes, que podem ser reproduzidas por outros meios, e são constituídas como únicas na sua composição, necessitando assim de um tratamento diferenciado, sem deixar de ser ciência. Na contramão, as ciências exatas assemelham-se às humanas a partir dos pressupostos já conhecidos anteriormente, pela observação e por fenômenos subjetivos.
Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição. (GINZBURG, 2002, p.179).
Diante do puxirão, o paradigma do saber indiciário contribui para a elucidação dos acontecimentos a partir de indícios presentes nas memórias dos sujeitos históricos que vivenciaram as práticas e nos materiais encontrados. Frente às memórias, fotografias, vídeos, documentos, e outros, esse conceito é perceptível nos materiais como fragmentos do tempo – seja do passado ou do presente – que, embora não seja o passado enquanto tal, passa a ser utilizado como vértices de ligação pelos quais é possível visualizar os acontecimentos.
Para empregar os saberes indiciários na pesquisa, Ginzburg pondera a concentração e delimitação do recorte espaço-temporal. Pautado numa metodologia que prioriza o detalhe, aparentemente imperceptível na apresentação de um todo, o autor adentra numa abordagem bastante peculiar e amplamente discutida na micro-história:
A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula. (...) Entre a forma e a substância há um hiato, que compete à ciência preencher. (Se a realidade fosse transparente e, portanto, imediatamente cognoscível, dizia Marx, a análise crítica seria supérflua.) Por isto propomos definir a micro-história, e a história em geral, ciência do vivido: uma definição que procura compreender as razões tanto dos adeptos como dos adversários da integração da história nas ciências sociais – e assim irá desagradar a ambos. (GINZBURG, 1989, p. 177-178).
Diferentemente da história das mentalidades, que priorizava a longa duração e as concepções que aderiram às estruturas, Ginzburg marca nas suas pesquisas as delimitações de espaço e tempo. Busca perceber no singular as eminências que podem passar despercebidas na compreensão mais abrangente. Porém, tais eminências são influenciadas e influem simultaneamente na abordagem macro. Em uma observação superficial poderíamos supor que a micro-história limita-se apenas ao específico, ao particular; porém, é necessário esclarecer o diálogo desta abordagem com as referências da macro-história complementando, dessa forma, as pesquisas de escala reduzida com a contribuição para compreender as estruturas.
Em nenhum caso a micro-história poderá limitar-se a verificar, na escala que lhe é própria, regras macro-históricas (ou macroantropológicas) elaboradas noutro campo. Uma das primeiras experiências do estudioso da micro-história diz realmente respeito à escassa e por vezes nula relevância das mutações de ritmo (a começar pela cronológica) elaboradas em escala macro-histórica. Daí a importância decisiva que assume a comparação. (GINZBURG, 1989, p. 178).
Assim, com o método da micro-história acrescenta-se o infinitesimal na composição da história macro, dialogando também com os outros campos disciplinares. Atuando no peculiar intervém sob os segmentos da cronologia na ânsia de preencher as lacunas que as abordagens estruturais não conseguiram ou não deram conta de alcançar.
O puxirão, com início na década de 1930 e término na década de 1970 no Oeste do Paraná, possibilita ser abordado com base na micro-história debatida por Ginzburg. Tanto o recorte temporal como as atividades particulares do homem rural consolidam-se numa visualização mais específica. Porém, o puxirão foi permeado e permeou outras dinâmicas de modo a complementar a discussão propalada sobre a história do Paraná do século XX, permitindo perscrutar e problematizar as ausências de tal abordagem nas produções do contexto.
Ainda nos recursos teóricos consideramos, a seguir, as ponderações do historiador Roger Chartier. Frente à história cultural, o diálogo desse autor destaca-se nas práticas e nos conceitos de representação e apropriação.
Chartier sintetiza sua concepção teórica da cultura na história ao escrever que: “A história cultural tal como a entendemos, tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada dada a ler.” (CHARTIER, 2002, p. 16-17). O autor concebe a história cultural como a preocupação em compreender como os sujeitos históricos em diferentes contextos de tempo e de espaço compõem, refletem e exteriorizam o universo em que vivem. Essa exteriorização diz respeito às representações realizadas pelos homens na história, que acarretam disputas pela imposição das formas de representação sobre as outras para consolidar as mesmas em legitimação. Por outro lado, Chartier adverte cautela aos historiadores para que haja uma distinção clara entre história cultural e o conceito de representação.
Chartier conceitua as dimensões da representação a partir de Louis Marin, os deslocamentos da teoria que acabaram por priorizar a cultura, sua função para a pesquisa e definição particular:
(...) retornar ao conceito de representação de dupla dimensão tal como expresso por Louis Marin: “dimensão ‘transitiva’ ou transparência de enunciado, toda representação representa alguma coisa; dimensão ‘reflexiva’ ou opacidade enunciativa, toda representação se apresenta representando alguma coisa”. Ao longo dos anos e dos trabalhos, a noção de representação quase chegou a identificar-se com o procedimento de história cultural (...). A constatação é pertinente, mas ela deve evitar mal-entendidos. Tal como a entendo, a noção não distancia nem do real nem do social. Ela ajuda os historiadores a se desligarem de sua “bem fraca ideia do real” como escrevia Foucault, colocando em destaque a força das representações, sejam elas interiorizadas ou objetivas. Elas não são simples imagens, verídicas ou enganosas de uma realidade que lhe seria exterior. Possuem uma energia própria que convence que o mundo, ou o passado, é realmente o que elas dizem que é. Produzidas em suas diferenças pelas desigualdades que fraturam as sociedades, as representações, por sua vez, as produzem ou as reproduzem. (ROCHA, 2011, p. 281).
Diante das pesquisas em história que trabalham com a cultura, a noção de representação assume a inclusão de outros valores além da materialidade, o campo discursivo e simbólico, que influenciam diretamente no real.
Objetivando inserir a ciência da história no rol das disciplinas que passaram a desenvolver pesquisas, sem se limitar às abordagens mais estruturais da economia e da sociedade – porém sem abandoná-las de todo –, a noção de representação é uma das alternativas empregadas para assumir essa função. A exploração do conceito nas investigações, ao abordar o específico, apresenta-se como possível complemento na compreensão da constituição das estruturas.
A relevância das teorias de Chartier, para as práticas coletivas de trabalho e de lazer dos posseiros do interior do Paraná em meados da primeira metade do século XX, pauta-se nas representações expressas pela organização rural nesse contexto. Visualizando as relações sociais, essas particularidades não se eximem das estruturas, pois são influenciadas pelos acontecimentos da política nacional e estadual e pelas dinâmicas da economia da época.
O que se pretende acrescentar é que tais mobilizações culturais contêm especificidades que não se limitam exclusivamente às questões políticas e econômicas. De modo diverso, promovem rearranjos para superar as lacunas das estruturas, influenciando-as.
Outro conceito que complementa os usos da cultura, característico de Chartier, diz respeito às apropriações, assim apresentado:
Esta noção parece central para a história cultural, desde que seja reformulada. Esta reformulação, que enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensões e a liberdade criadora – mesmo regulada – dos agentes que não obrigam nem os textos nem as normas (...). A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas e suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem. (CHARTIER, 1991, p. 179).
As reformulações necessárias para que o conceito tenha significado à história cultural, para Chartier, competem em entender apropriação de modo diferente do que a imposição de uma dada cultura concedida pelas elites às classes subalternas. O conceito descaracteriza como o favorecimento das elites retendo e explorando das classes subalternas apenas aquilo que lhes cabem. Apropriação dá-se também no sentido inverso, quando as classes populares se utilizam das suas próprias criações e/ou das criações das elites como recurso para reivindicar direitos e favorecer os seus interesses.
Nota-se na apropriação a influência recíproca entre os sujeitos históricos do contexto em pauta no Paraná com os acontecimentos da época. Por exemplo, a configuração da Marcha para o Oeste promovendo a ampliação e manutenção das fronteiras do estado do Paraná com estratégias de povoamento da região na concessão de terras e a abertura de posses.
Se por um lado havia a política nacional e estadual apropriando-se dos posseiros e migrantes para atingir seus propósitos, por outro lado a população rural encontrava formas de se organizar dentro dessa conjuntura. De modo semelhante, os posseiros também se muniam de estratégias para apropriar-se das decisões de uma minoria elitizada. Aproveitavam-se das brechas percebidas no sistema, que aparentemente se apresentaria apenas como uma relação de “cima” para “baixo”.
A abertura de posses feita de forma coletiva em prol de um vizinho, a derrubada da mata, a extração e a comercialização de madeira, a produção extensiva de suínos, entre outras, são maneiras encontradas para a manutenção da existência na utilização de caminhos que não estão de todo sob o “controle social”.
Conectando a representação aos conceitos prática e apropriação, Chartier resume em uma mesma explanação ao citar que:
(...) inicialmente, o conceito de representação, que possibilita articular, de acordo com a sociologia de Durkheim e Mauss, as representações coletivas e as formas de exibição da identidade social ou os signos do poder (o que Pascal chama de montre – “mostra”); em seguida a categoria de prática, que designa a irredutibilidade das maneiras de fazer aos discursos que as prescrevem ou as proscrevem, as descrevem ou as organizam; enfim, o conceito de apropriação, entendida ao mesmo tempo como controle e uso, como vontade de possessão exclusiva pelas autoridades e como invenção pelos consumidores comuns. (ROCHA, 2011, p. 26).
Ou seja, pode-se atribuir analogicamente que a prática é a forma material, que não se limita à ordem já configurada, a representação o sentido e a apropriação o que se retém do outro para construir e/ou fortalecer suas próprias questões. Nesse caso, a prática dos caboclos no puxirão escapa nas suas particularidades aos atributos convencionais, transforma-se nas relações que engendra. Apesar de ir ao encontro das pretensões do Estado quanto à exploração e povoamento territorial no interior do Paraná, os grupos criavam e mantinham suas próprias “normas” de condutas sociais.
Etimologia e semântica cabocla na construção do puxirão
Este tópico versará sobre alguns estudos de caráter histórico, etimológico e etnológico acerca dos trabalhos coletivos no desmatamento e a subsequente realização de festas. O propósito é apresentar e discutir as diferentes abordagens a respeito das múltiplas maneiras de nominar as ações de trabalho coletivo que, todavia, manifestam características semelhantes, demonstrando a indissolubilidade do lazer nas atividades de roça.
Desde os primeiros contatos entre os europeus e os habitantes das Américas, nos séculos XV e XVI, as vivências e o cotidiano dos naturais eram observados e registrados pelos recém-chegados. A documentação colonial, como crônicas e cartas, muitas vezes motivada pelo estranhamento em relação aos costumes indígenas, registrou importantes aspectos sobre as formas de trabalho praticadas na América naquele contexto. Charles Gibson em As relações de trabalho no México durante o domínio espanhol destaca:
O que impressionou o ouvidor espanhol, Alonso de Zorita, sobre o trabalho indígena em princípios do século XVI foi o sentido de contribuição, a alegria e o grande júbilo que os acompanhava. (...) Acostumados a prover seu próprio sustento e aos serviços locais e distantes sem pagamento algum, os indígenas pareciam dispostos a realizar e inclusive a encontrar satisfação em ocupações que eram monótonas ou degradantes para os europeus. Na Europa, o trabalho coletivo não qualificado tinha implicações de coação ou escravidão. Na tradição indígena, o mesmo trabalho de massas, se não fosse demasiado oneroso, podia ser considerado gratificante, como experiência compartilhada e agradável. (GIBSON, 1979, p. 39).
Revisando a bibliografia, de autores que em distintos momentos desenvolveram trabalhos entre grupos indígenas guarani falantes, aqui entendidos como os que falavam o guarani, da América do Sul, frequentemente encontramos termos semelhantes atribuídos às práticas de trabalho/festa. Durante o período colonial, os jesuítas que atuavam em missões religiosas, tais como no Guayrá, Itatin e Tape, registraram algumas descrições envolvendo a realização de trabalhos/festas.
O antropólogo e etnolinguísta Bartomeu Melià pesquisando grupos indígenas guarani falantes do Paraguai e do Sul do Brasil, dentre as muitas formas de conceituar o trabalho/lazer, cita também a palavra potyrõ:
La etnografia actual del potyrõ y del pepy tal como se da en sociedades guaraní contemporáneas y en sociedades rurales paraguayas y brasileñas, por ejemplo, viene a confirmar y revivir la generalidad de las locuciones del diccionario. “La institución del trabajo coletivo y festivo no remunerado, mba'e pepy, es expresión de la solidaridad comunal y se basa en el principio de reciprocidad. Su equivalente criollo de origen guaraní es la minga (denominación quechua); en el Brasil conocido como puxirão o mutirão, puxiro. (MELIÀ, S/D, p. 319-320).
A citação de Melià traz para a reflexão as características de união, entre os integrantes de determinados convívios sociais, para fins de trabalho. Os encontros eram mediados pelo convite – o ato de chamar alguém para estar presente na realização de um evento.
En estrecha relación con esta forma de cooperación, que es mucho más que una conjunción de fuerzas físicas, está la noción de convite, designado con la palabra pepy. (…) Algunos hechos registrados en las crónicas jesuíticas aluden directamente a esta relación entre trabajo en común y convite. (MELIÀ, S/D, p.319).
Nesse caso o chamado é para promover a participação de pessoas conhecidas, ou com identidades em comum, para atuarem numa ação coletiva de auxílio a um dos integrantes do grupo e, simultaneamente, de confraternização. O autor cita também a obra Tesoro de la lengua Guarani, desenvolvida durante o período colonial (1639) pelo padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya. A partir dessa obra, Melià estabelece vínculos dos costumes guarani ancestrais com dados linguísticos e etnológicos contemporâneos.
La descripción de los trabajos del Guaraní resultaría parcial e incoherente si se dejara de lado las formas de cooperación con que son realizados la mayoría de estos trabajos. Para el Guaraní ciertas actividades son casi impensables si no es en la forma de colaboración común. Montoya rescata, con importantes detalles, la palabra que significa esta forma: potyrõ, poner manos a la obra. Derivado de po, su etimología sería “todas las manos”. (MELIÀ, S/D, p. 319).
Além da elucidação dos significados encontrados por Montoya, para a construção da palavra potyrõ, Melià acrescenta que o trabalho dos indígenas guarani era comumente realizado em caráter coletivo. Assim, estabelecia-se como uma relação presente no cotidiano dos grupos. Já o trabalho individual existia como uma rara exceção.
Melià, agregando elementos à raiz etimológica do trabalho em grupo dos guarani, destaca ainda outra palavra, também registrada por Montoya: “Hay que notar que en Montoya el rozar se designa también como apotyrõ, que significa una forma de colaboración de varios hombres que se juntaban para trabajar en común, forma habitual con que se hacía las rozas (…).” (MELIÀ, S/D, p. 316).
A partir disso, podemos notar que as variações das palavras que definiam trabalho/festa remetem a um período pré-colonial, e foram percebidas e registradas já no século XVII. Embora se referindo às mesmas práticas, ao longo dos séculos, a começar por Montoya, surgiram nomenclaturas distintas que, todavia, remetem a um mesmo fenômeno.
Nas regiões Oeste e Sudoeste do estado do Paraná, no período que corresponde à primeira metade do século XX, as ações coletivas de roça também foram investigadas e conceituadas de modo distinto. A seguir serão problematizadas tanto as pesquisas que discorrem sobre algumas práticas similares de organizar os vizinhos para roçar e festejar, expressas de forma distinta, quanto investigações que apresentam outras ações com nominações aproximadas ao puxirão.
As confluências entre os costumes indígenas com os dos europeus deram sequência nas transformações dos significados concedidos às práticas. O General José Candido da Silva Muricy, no seu trabalho intitulado Viagem ao País dos Jesuítas, relata suas experiências vividas durante as incursões na Vila Rica de 1896, em uma festividade noturna realizada após um dia de trabalho:
Passamos somente uma noite nos domínios do Batista. Uma noite cheia e inesquecível... Um picherum para um serviço qualquer, reunia senão a totalidade, pelo menos a maioria dos vizinhos e, assim, o sítio estava bastante animado. O dia fôra longo todo êle dedicado ao trabalho e, por ter sido o último, todos, – homens, crianças e mulheres, – queriam folgar naquela noite. Cada um concorria com broinhas, sequilhos, pinhões, batatas doces, aipins, pipocas ou qualquer outra coisa comestível. Haveria também fervida, cerveja, café e mate chimarrão. Mas a dúvida estava na escolha do divertimento que seria um baile à gaita de fole ou um fandango à viola. (MURICY, 1975, p. 132).
Da experiência vivenciada por Muricy já podemos tratar aquele momento como de uma atividade cabocla. Apesar da ancestralidade indígena dessa prática, a mesma passa a tornar-se também cabocla pelos novos elementos que ela comporta. Podemos notar nas descrições do autor a influência indígena, mas também as interfaces com os neobrasileiros.
Independente se as práticas são indígenas ou caboclas, permanecem algumas semelhanças subsistindo tanto as expressões etimológicas quanto simbólicas dos trabalhos coletivos ao longo da história. Tanto o potyrõ e apotyrõ de 1639, indígena guarani, quanto o picherum e o puxirão, caboclo, rememorado pelos antigos posseiros entrevistados no Oeste do Paraná, são manifestações desprovidas de retribuição financeira e que associam trabalho e festa. A ação era motivada para o estabelecimento de uma atividade em conjunto que não está restrita ao ato em si, mas vinculada às representações mentais que ela agrega à prática. Para o sociólogo Pierre Bourdieu:
Mas, mais profundamente a procura dos critérios objetivos de identidade regional ou étnica não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios (por exemplo, a língua, o dialecto ou o sotaque) são objecto de representações mentais, quer dizer, de actos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações objectais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou em actos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores. (BOURDIEU, 1989, p. 112).
Ou seja, assim como a união estava presente no propósito de acrescentar braços para a ação, a festividade tinha a função de consolidar a estrutura que sustentava e perpetuava o trabalho em momentos subsequentes, contemplando os seus participantes em diferentes tempos. Esse binômio trabalho/festa, Melià denomina de solidariedade comunal e princípio de reciprocidade.
Se o autor caracteriza o potyrõ como pertencente às sociedades guarani contemporâneas e às rurais do Paraguai e do Brasil, as diferentes denominações caboclas, dentre elas o puxirão, remetem ao conceito de apropriação dessa prática pela sociedade neobrasileira. Entendemos a abordagem teórica da apropriação, nos termos de Chartier, como a captação de elementos presentes no grupo alheio, adaptados aos próprios interesses, independente da condição simbólica de “dominado”, rotulação impressa pelos europeus que se colocavam na posição de “dominadores”. Simultaneamente podemos reafirmar, também pelas práticas de trabalho, a existência de contatos e relacionamentos entre as sociedades indígenas e europeias. As atividades dos indígenas homogeneizavam-se, direta ou indiretamente, com os empreendimentos das populações que vieram da Europa. Apesar do propósito dos europeus de engendrarem a implantação de projetos de conquista, essa apropriação do trabalho guarani nos permite estimular reflexões sobre as contradições da propalada “dominação” europeia sobre os naturais do continente americano.
Sergio Buarque de Holanda, na sua obra Caminhos e Fronteiras, retrata os contatos e colaborações entre indígenas e bandeirantes ao longo dos séculos que seguiram a chegada dos portugueses na América. O objetivo do autor foi o de apresentar de forma crítica as trocas que ocorreram entre os naturais da América portuguesa e os europeus. A contribuição maior da pesquisa foi o rompimento de uma visão simplificada, há muito tempo propalada nas ciências humanas, de que houve apenas a “dominação” unilateral dos estrangeiros sobre os gentílicos. Ao contrário, o autor reforça que a cooperação entre os diferentes foi um dos fatores, se não o mais significativo, para a continuidade no processo de conquista.
O que ocorreu foi um jogo de interesses: europeus nas explorações territoriais em busca de riqueza e poder, recorrendo aos conhecimentos dos indígenas e à adoção de práticas de sobrevivência na natureza, e os indígenas prezando por somar aliados com a finalidade de se protegerem e reforçarem seus aparatos tecnológicos nas disputas com inimigos nativos: “Para o sertanista, branco ou mamaluco, o incipiente sistema de viação que aqui encontrou foi um auxiliar tão prestimoso e necessário quanto foi para o indígena.” (HOLANDA, 1994, p. 19).
Os termos demonstram que as sociedades compartilhavam de práticas culturais umas das outras. Em determinados momentos as formas alheias passavam a ser integradas às suas próprias maneiras de organização até não mais conseguirem distinguir exatamente o que foi e o que é de um ou de outro. Assim, os participantes passam a reforçar os elementos que caracterizam o passado de interesse do grupo. Se não, no decorrer do tempo, aos poucos vão elaborando um novo modo de denominar as práticas quando as misturas se fazem irreversíveis.
De um lado temos os indígenas guarani falantes, que se tornaram contemporâneos em virtude do processo histórico. De outro lado temos os europeus e seus descendentes na América, que também passaram por transformações com as diversidades da mesma, mas que reforçam algumas das características dos modos como viviam do outro lado do Atlântico.
Devem-se acrescentar ainda os que vagavam e ainda vagueiam no hibridismo cultural (HALL, 1999), nos meandros das proximidades e das distâncias entre os dois primeiros grupos. Esses últimos desencontram-se pulverizados a ponto de assumirem na indefinição as categorias dos antepassados, estipulando para si apenas o que lhes convém e quando lhes convém. Padecem e resistem às generalizações estigmatizantes pelas características que eles não mais possuem, ou dizem não possuírem. São definidos pela sua indefinição como mestiços, mamelucos, sertanejos, caipiras, caboclos, bugres, paraguaios “pelo duro”, jeca, entre outros.
Realizando a cobertura jornalística da Campanha de Canudos de 1897 na Bahia, que resultou na obra ao mesmo tempo histórica, literária e antropológica intitulada Os Sertões, Euclides da Cunha aponta a complexidade de se estabelecer uma definição das populações do interior:
Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram-se pelos derivados, sem redução alguma, numa mestiçagem embaralhada onde se destacam como produto mais característico o mulato, o mamaluco ou curiboca, e o cafuz. As sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. O estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares, agravando-o e dificultando-o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoantes as dosagens variáveis do sangue. (CUNHA, 2012, p. 102).
Paralelo às confluências culturais e étnicas, a relevância de Melià ao fazer referência ao potyrõ está prioritariamente na percepção do trabalho como um momento de diversão em comunidade. Essa característica se aproxima com o puxirão dos caboclos do sertão do Paraná.
O geógrafo Marcos Leandro Mondardo, em Territórios Migrantes, trabalha o conceito de sertão como uma construção promovida pelas elites governamentais e por intelectuais para imprimirem os discursos de progresso. Primeiro, os locais denominados sertão inóspito são criados como algo marginal, inacessível, onde nada existe. Esses “vazios demográficos” – e tudo o que estava nesse nada: indígenas, caboclos, natureza – devem assim passar por um processo civilizador para deixarem de ser sertão. Em outras palavras, deviam ser superados e esquecidos por serem incompatíveis com os ideais desenvolvimentistas promovidos pelo Estado. Nas críticas do autor:
Assim, quando afirmamos que o sertão é uma invenção enquanto representação do espaço no Sudoeste do Paraná, não estamos considerando nem falsa nem verdadeira sua condição. O que consideramos é a sua construção política através de enunciados, através de discursos, através de “falas” que foram sendo construídas, dotando significados e, portanto, qualidades “negativas” e ou “positivas” à região; a representação da região tem a função de construir a necessidade de ocupar, com outras pessoas, aquela parcela do espaço. (MONDARDO, 2012, p. 65-66).
Nessa construção espacial, Ricardo Abramovay, em Transformações na Vida Camponesa: O Sudoeste Paranaense, faz uma referência à Barbosa Lessa sobre o fim da jornada de trabalho coletivo dos caboclos:
Ao pôr do sol, concluem com o puxirão e se dirigem ao paiol, onde os espera uma lauta ceia com bebidas alcoólicas e um caramanchão ornado de muitas moças para o fandango, acompanhado do canto em dueto de melodias melancólicas usadas pelos sertanejos... Findo este puxirão outro ervateiro fará o chamado geral, para que os companheiros venham auxiliá-lo no arroteamento do solo. (LESSA, S/D, p. 41).
Nessa citação o folclorista caracteriza de puxirão a recompensa, com a noite de festa regada à comida, bebida, músicas e interações de gêneros, denominada também de fandango, realizado na residência do beneficiado. O detalhe em chamar os participantes de ervateiros denota o cultivo da erva-mate como uma das atividades que empenhavam com a finalidade de perpetuar a sobrevivência.
Abramovay apresenta no seu trabalho outras práticas e termos semelhantes ao puxirão do Oeste do Paraná. Citando a referência História do Paraná de Rocha Pombo:
Havia, escreveu Rocha Pombo em 1929, e parece que subsiste em algumas zonas rurais, uma festa muito curiosa que se chamava muxirão ou pixirão. Tinha lugar quando um lavrador do bairro precisava de um serviço que era preciso atacar e concluir no mesmo dia. Bastava que fizesse correr na redondeza um aviso marcando o dia. Nesse dia juntava-se ali a população do bairro, e em poucas horas fazia-se a derrubada (roçado da área que vai ser semeada, depois de preparado o terreno). A função acabava com grandes comidas e festas. (POMBO, 1929, p. 104).
Nessa referência Rocha Pombo destaca o pixirão e o muxirão que se assemelha e complementa com as demais expressões, inclusive a do puxirão. A curiosidade do autor está tanto na utilização dos termos, quanto na ação concentrada e no caráter da prestatividade entre os lavradores que residem em uma unidade rural, por ele chamada de bairro. O sociólogo Antonio Candido de Mello e Souza, ao analisar uma comunidade de caipiras, no interior do estado de São Paulo no final da década de 1940 e início da de 1950, denomina e caracteriza o bairro como uma unidade rural da comunidade de parceiros do grupo de caipiras:
(...) os grupos rurais de vizinhança, que na área paulista se chamou sempre bairro. Este é uma estrutura fundamental da sociabilidade caipira, consistindo no agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas. (CANDIDO, 1979, p. 62).
A comunicação que fluía entre os vizinhos e os esforços para concluírem as atividades da derrubada da roça no mesmo dia somadas à disposição para festejarem também compõe o quadro que despertou as atenções de Rocha Pombo. A seguir, Abramovay observa que, no entendimento dos caboclos por ele entrevistados, haveria as distinções fonéticas de acordo com a origem cultural dos grupos:
O “pixirão” – expressão mais usada (“pixirão: mutirão, já é enfeitado com estrangeiro. E o caboclo da língua direita é pixirão e o mutirão já é de origem italiana”.) pelos caboclos do Sudoeste Paranaense – é uma relação de troca que aparece como uma relação de ajuda mútua manifestação de solidariedade de unidade e de comunhão do grupo, que repousa sobre a troca simples de trabalho, sobre o princípio da reciprocidade. Ele é um atributo dos “pobres”, dos “iguais”. (ABRAMOVAY, 1981, p. 29).
Quando o autor afirma que pixirão era a expressão mais utilizada no Sudoeste do Paraná, fica subentendido a existência de variações na sonoridade do termo que expressava os trabalhos com festas. Marcando as diferenças com a palavra mutirão, acentua as distâncias étnicas e culturais entre caboclos e italianos. Entendemos que a citação acima foi fomentada pelo pesquisador ao instigar seus interlocutores a fazerem distinções em elementos do processo de construção da identidade cabocla. Etimologicamente e simbolicamente ambas as palavras, mutirão e pixirão, são sinônimas. Mesmo assim, a existência de enfeites com o estrangeiro, não exclui os contatos de ambos os lados, até porque o caboclo se forma nesse entroncamento do indígena com os europeus e seus descendentes.
A preocupação do autor convém para elucidar, através das palavras empregadas na definição da prática, a forma pela qual os caboclos “pobres” definiam suas ações em comum. Quando o autor destaca as diferenças em alguns termos usados por caboclos e eurobrasileiros sua intenção é também discorrer sobre as concepções socioeconômicas contrastantes desses dois grupos.
O autor contrapõe os modos de vida dos caboclos do Sudoeste do Paraná com o modo de vida do migrante camponês que almejava angariar capital com o propósito de perpetuar a sobrevivência individual e da sua prole. Para Abramovay, “O ‘pixirão’ era uma relação social própria dos caboclos. Os imigrantes descendentes de europeus na sua maior parte, não a adotaram” (ABRAMOVAY, 1981, p. 29). Assim, marca as diferenças para desenvolver a crítica ao sistema exploratório:
As formas coletivas de trabalho amplamente difundidas nesta época e excluídas da prática da população imigrante que veio a ocupar a região posteriormente, encontra aí sua raiz. Um “pixirão” é uma troca que acontece imediatamente, entre as pessoas, isto é, entre seus trabalhadores. Esta troca não é mediatizada pelas coisas. Embora seja uma troca, regulada pelo tempo de trabalho, ela aparece como uma ajuda, como prestação comunitária. (ABRAMOVAY, 1981, p. 30).
A valorização do autor frente ao sistema de parceria cabocla e a crítica da ausência de uma relação solidária entre os imigrantes são aspectos que podem ser questionados e ponderados. Segundo o historiador Valdir Gregory em Os eurobrasileiros e o espaço colonial:
Há, por outro lado, o apego familiar, o desejo de permanecer próximo do reduto da parentela e após a constituição de novas famílias. Isso ajudou para que grupos familiares adquirissem terras nas novas áreas de colonização para se deslocarem em bloco em direção das novas terras. O grupo familiar podia ser substituído e ampliado pelos laços de vizinhança e da comunidade. (...) Aqueles que migravam procuravam convencer os seus familiares e próximos a se juntarem a eles na marcha para as novas terras, onde solidariedade e ajuda mútua eram importantes. Ou seja, a vontade de manter a proximidade com os seus se constituía em causa facilitadora das migrações e da enxamagem. (...) Era a tentativa de manutenção e da busca da construção e reconstrução da identidade no espaço novo. (GREGORY, 2002, p. 61-62).
Gregory traz a reflexão para as mobilizações dos europeus, que migraram para o Brasil, constituindo e preservando as relações familiares nos deslocamentos dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para o Oeste do Paraná. Mesmo quando não fosse possível a família na sua totalidade acompanhar os fluxos migratórios, ainda assim, os eurobrasileiros almejavam, no novo espaço, se efetivarem próximo às propriedades de terra das famílias de antigos vizinhos ou que compartilhassem de identidade comum – país de origem, língua, culturas e costumes.
O geógrafo Luiz Carlos Flávio analisa as propagandas migratórias dirigidas à população do Sul do Brasil com o propósito de desenvolver o povoamento do Sudoeste do estado do Paraná, nas primeiras décadas do século XX:
(...) a estratégia do Estado de divulgação (mesmo “de boca em boca”) sobre a facilidade em conseguir terras de qualidade no Sudoeste paranaense foi elemento fundamental para motivar o deslocamento de camponeses (amiúdes pobres e sem recursos) do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para as “terras florestais” e devolutas do sudoeste paranaense (...). (FLÁVIO, 2011, p. 152).
A busca por vínculos está associada com a efetivação do grupo estrangeiro na colônia, onde um poderia auxiliar o outro em caso de necessidade, tanto para promover a migração dos que ficaram, quanto para ajudar na aquisição e manutenção da terra, no plantio, na colheita e em outras situações que os colonos poderiam contar com seus vizinhos – moradia, saúde, alimentação, educação, por exemplo.
Dessa forma, as ponderações de Abramovay quanto a uma suposta “falência” do sistema caboclo ao ceder lugar à colonização de migrantes, devem ser dirigidas às empresas colonizadoras que, juntamente com o Estado, mercantilizaram a terra na região. Os anseios políticos promoveram a transição do sistema de posse para o de propriedade. Com isso, acabaram por deslocar, para outros estados e países, as populações existentes na região, como indígenas, caboclos, paraguaios e argentinos, que não se enquadravam às normas de conduta dos processos produtivos. Esses “deslocados” foram substituídos pelos eurobrasileiros que se sujeitavam, a contento do Estado, ao contrário dos antigos habitantes locais, às pretensões da reprodução do capitalismo na expectativa de melhorar sua condição social e qualidade de vida.
Nesse sentido, as modalidades de auxílio mútuo entre grupos de imigrantes eurobrasileiros são distintas das dinâmicas de reciprocidade dos caboclos. As trocas entre os praticantes do puxirão ocorriam numa esfera de interesses que não estava mediada estritamente pelo capital, aqui entendido como trabalho para a obtenção de lucro, lucro a ser invertido em meios de produção visando à acumulação. As relações de parceria entre as famílias de posseiros eram sustentadas prezando pela sobrevivência numa unidade de grupo. Caso contrário, na impossibilidade de custear trabalho assalariado, os caboclos dificilmente continuariam mantendo o sistema de posses, pois, tornava-se inviável realizar a manutenção dos roçados apenas com a mão de obra dos integrantes da família. Abramovay segue frisando que:
A troca de trabalho é uma celebração. Ela se faz sempre em nome de algo que transcende cada homem individualmente, seja Deus, seja a própria comunidade envolvida no “pixirão”. É difícil imaginar a troca de mercadoria celebrada, comunitariamente: em primeiro lugar, ela é um ato individual onde dois proprietários se confrontam. Além disso, são as coisas que se trocam o caráter de igualdade dos trabalhos humanos não adquirem a forma de ajuda mútua, mas dissolve-se sobre a forma fetichizada do preço dos produtos. (ABRAMOVAY, 1981, p. 31).
O que Abramovay afirma é a existência de sociedades de caboclos, que embora precárias e diminuídas pelos estigmas e preconceitos, sobreviveram, até meados do século XX, no Sudoeste do Paraná, percorrendo nas margens das relações de mercado. Essas sociedades se organizavam em grupos, por vontade própria ou pelas pressões do sistema, para continuarem perpetuando seus modos de vida. Utilizando-se, principalmente, da solidariedade preservavam seus princípios familiares, suas relações de amizade e seus valores morais e religiosos.
Os que não pertenciam às organizações caboclas acabavam por sujeitar-se às competições engendradas pelo progresso, na luta pela sobrevivência. O objetivo seria a venda, compra, troca e especulação de produtos em espécie e da mão de obra, almejando o lucro, ao invés da reciprocidade.
Retomando os conceitos, o termo puxirão é objeto de pesquisa do trabalho monográfico em história de Ana Claudia Pereira, intitulado Do “puxirão” aos palcos: o fandango de Morretes (1975-1990). Nessa pesquisa a autora investiga, nas memórias e nas identidades, as práticas culturais de um grupo de dança típica do fandango entre a população caiçara do litoral do Paraná. Embora no mesmo estado, o recorte espacial distancia-se da região Oeste, porém não se exclui a relevância e proximidade entre o conceito e as práticas. Pautada numa discussão sobre o patrimônio cultural, Pereira caracteriza o puxirão na origem do fandango:
Durante o século XIX, o fandango era praticado em diversas ocasiões, como no entrudo (antecedente do carnaval), casamento, batizados e puxirões, criado pela comunidade rural, nos quais os lavradores organizavam um verdadeiro mutirão durante o período de plantio e colheita das lavouras para que o trabalho fosse realizado mais rapidamente, com o auxílio de todos. Ao final da atividade, o dono da lavoura oferecia um baile aos trabalhadores que dançavam e bebiam a noite inteira, o que transformou o baile em um festejo de confraternização entre os moradores rurais e de baixa classe social das cidades paranaenses, pessoas estas que possuíam uma mesma identidade social, encontrando nos bailes o seu espaço de sociabilidade. (PEREIRA, 2010, p. 14).
Aqui se nota uma divisão entre o puxirão e o fandango. Para Pereira, puxirão seria o conjunto da obra mesclando trabalho voluntário e festa, enquanto para o fandango era reservado somente o baile, independente do trabalho, empregado em diversas formas de comemoração. O puxirão destaca-se, na abordagem da autora, pelo caráter voluntário dos participantes nas atividades da roça como uma relação social frequente entre a população rural e periférica das urbes com as identidades marcadas pela pobreza.
Na análise das suas fontes, Pereira expõe o fragmento de uma entrevista com o fandangueiro Leonardo Gonçalves, realizada para os redatores do trabalho cultural Museu vivo do Fandango. Nesse, o trabalho e festa aparece sob outra nomenclatura:
Naquele tempo, tudo aquele pessoal mais antigo era fandangueiro. (...). Pois o fandango começou com os puxirim antigamente. Ninguém fazia fandango sem fazer um serviço de roçado ou de cavação, ou derrubada, ou de carpida. Ninguém fazia. Mas se fizesse isso aí, já saía o fandango. (PIMENTEL, 2006, p. 40).
Embora a colocação da palavra seja expressa como puxirim, esta define os usos culturais semelhantes, por nominações próximas ou distintas, anexando mais uma palavra na tentativa de exemplificar tais costumes caboclos.
Apesar das múltiplas palavras, que foram surgindo com as variações fonéticas, apresentarem as suas particularidades para definir trabalho/festa, tanto na bibliografia e/ou nos relatos de memória que mencionam a prática no Oeste do Paraná, na área rural dos municípios de Catanduvas, Guaraniaçu e Diamante do Sul, o termo puxirão foi sendo sustentado com maior frequência na região.
Porém, o termo puxirão não representa um vício de linguagem ou uma forma incorreta de dizer mutirão, e sim uma prática presente na oralidade popular constantemente mencionada nas memórias de moradores da região Oeste do Paraná. Atribuímos aos modos de falar puxirão como uma colocação verbal que reflete o caráter de cultura popular, abordado em Ginzburg. A definição conceitual do autor, sobre a fala e a prática, é oportuna na medida em que a palavra e as descrições da ação pelos moradores locais, conhecimento de senso comum, surgiram durante o trabalho de campo. Os estranhamentos gerados no conhecimento científico estimularam inicialmente interrogações sobre o que seria “correto” ou “incorreto” na forma de falar e em seguida a de descrever a simultaneidade trabalho/festa.
Flávio (2011), sobre as identidades dos caboclos no município de Francisco Beltrão, Sudoeste do estado do Paraná, agrupa as variáveis de mutirão no mesmo argumento:
Outro aspecto relevante que integrava as atividades produtivas dos caboclos eram os mutirões, também chamados puxirões ou pixirões, que traduziam a ajuda mútua e o trabalho coletivo, base da economia cabocla. (...) É interessante perceber que, além de ser uma importante atividade produtiva, os mutirões eram pontos de reunião e festa. Neles os vizinhos, que em geral moravam longe (a cinco quilômetros ou mais) uns dos outros, encontravam-se para se ajudar na realização de tarefas nos roçados e, ao mesmo tempo, para conversar, “contar causos”, rezar, brincar, dançar, namorar. (FLÁVIO, 2011, p. 157).
Conhecer e discutir sobre as designações dessemelhantes convém para projetar no puxirão o seu aspecto dinâmico de representar os relacionamentos entre os sujeitos históricos absolvendo o termo dos julgamentos gramaticais, transformando a singularidade da palavra mutirão na pluralidade das ações das pessoas e grupos que criam, elaboram e adaptam. O que se quer dizer é que todas as variantes se alicerçam sobre uma raiz (étimo) linguística tupi-guarani, transformadas as suas formas de falar e agir no decorrer do processo histórico.
Considerações Finais
Este artigo tratou sobre a etimologia da palavra puxirão, atividades de trabalhos e festas realizadas por posseiros no Oeste do Paraná durante o século XX, e que despontaram nas falas dos entrevistados durante a realização de pesquisas nos municípios de Diamante do Sul, Guaraniaçu, Ibema, Campo Bonito, Catanduvas e Três Barras do Paraná.
A palavra puxirão, que inicialmente aparentava ser um equívoco na fala dos entrevistados, quando citada com frequência despertou a atenção como uma nominação usual para uma definição particular. Assim, substitui-se o olhar do aparentemente “incorreto” na ordem gramatical para o convencionalmente aplicado como possibilidade do termo na definição do lazer. Nas referências sobre os trabalhos e festas, práticas homônimas adotaram termos semelhantes – potyrõ, mutirão, puxiro, apotyrõ, picherum, muxirão, pixirão, mutirão e puxirim -, assim como às manifestações em contextos distintos foram atribuídas com o mesmo termo puxirão. Desta forma, buscou-se conhecer e apresentar pesquisas com o objetivo de compreender e desenvolver sobre o objeto de estudo.
Na década de 1970 o puxirão encerrou as suas atividades. No que tange o fim da prática, alguns aspectos inviabilizaram sua continuidade: a mecanização agrícola, com o advento da monocultura em grande escala; a regularização de terras promovidas pelo governo do Estado à cargo das companhias colonizadoras, na transição da posse para a propriedade; a alteração da suinocultura extensiva para o confinamento dos animais; as migrações dos posseiros para outros estados ou para as cidades próximas; entre outras questões que colocaram em crise as ações coletivas e de reciprocidade entre os praticante dos trabalhos e festas rurais no Oeste do Paraná.
Se, por um lado, o puxirão não mais existe enquanto prática, por outro lado, perpetuam-se, existência e (re)existência, nas memórias. Assim como o potyrõ guarani e outras variantes nos chegam até o presente, as mudanças sociais, políticas e econômicas não encerram definitivamente as ações culturais.
Referências
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Notas