ARTIGOS LIVRES

Recepción: 30 Octubre 2021
Aprobación: 28 Diciembre 2021
DOI: https://doi.org/10.30612/frh.v23i42.15814
Resumo: O principal foco desse artigo é apresentar o conceito de adultocentrismo como fundamental para a criação de uma abordagem histórica sobre as crianças e adolescentes. Um conceito surgido na sociologia da infância, o adultocentrismo se baseia na ideia de que a sociedade em suas diversas dimensões se organiza a partir da figura do adulto. A perspectiva adultocêntrica tem sido um “presente/ausente” na historiografia infanto-adolescente. A proposta é oferecer possíveis conceituações acerca do tema adultocentrismo, que tratem das várias dimensões que ele possui, como fenômeno social e histórico. Partindo dessas explicações a expectativa é identificar na produção historiográfica mais relevante acerca das infâncias o modo como foram sendo construídas percepções sobre as crianças e os adolescentes. A proposta final é oferecer a noção de agência cidadã de crianças e adolescentes como uma chave interpretativa adequada para se contrapor ao paradigma adultocêntrico dominante.
Palavras-chave: Adultocentrismo, Infâncias, Adolescências, Agência cidadã, História.
Abstract: The focus of this article is to present the concept of adultcentrism as fundamental to the creation of a historical approach to children and teenagers. A concept that emerged in the sociology of childhood, adultcentrism is based on the idea that society in its various dimensions is organized around the figure of the adult. The adult-centric perspective has been a "present/absent" in child-adolescent historiography. The proposal is to offer possible conceptualizations about the adultcentrism theme, which deal with the various dimensions it has, as a social and historical phenomenon. Based on these explanations, the expectation is to identify, in the most relevant historiographic production about childhoods, the way in which perceptions about children and adolescents were built. The final proposal is to offer the notion of citizen agency of children and adolescents as an adequate interpretive key to counteract the dominant adultcentrism paradigm.
Keywords: Adultcentrism, Childhoods, Adolescence, Citizen agency, History.
Resumen: El enfoque principal de este artículo es presentar el concepto de adultocentrismo como fundamental para la creación de un enfoque histórico de los niños y adolescentes. Concepto surgido de la sociología de la infancia, el adultocentrismo se basa en la idea de que la sociedad, en sus distintas dimensiones, se organiza en torno a la figura del adulto. La perspectiva adultocéntrica ha sido un "presente/ausente" en la historiografía infantil-adolescente. La propuesta es ofrecer posibles conceptualizaciones sobre el tema del adultocentrismo, que abordan las diversas dimensiones que tiene, como fenómeno social e histórico. A partir de estas explicaciones, se espera identificar, en la producción historiográfica más relevante sobre la niñez, la forma en que se construyeron las percepciones sobre la niñez y la adolescencia. La propuesta final es ofrecer la noción de agencia ciudadana de la niñez y la adolescencia como clave interpretativa adecuada para contrarrestar el paradigma adultocéntrico dominante.
Palabras clave: Adultocentrismo, La infancia, La adolescencia, Agencia ciudadana, Historia.
Introdução
O objetivo central deste artigo é apresentar o conceito de adultocentrismo como referencial para o desenvolvimento de uma abordagem histórica acerca das crianças e adolescentes. Um conceito oriundo da sociologia da infância, o adultocentrismo tem por base a ideia de que a sociedade em suas diversas dimensões se organiza a partir da figura do adulto.
A perspectiva adultocêntrica tem sido um presente/ausente na historiografia infanto-adolescente. Nossa proposta é oferecer um conjunto de reflexões acerca do conceito de adultocentrismo, que possa minimamente dar conta de suas múltiplas facetas como fenômeno social e histórico. Nesse sentido, um viés a ser explorado é o das relações entre adultocentrismo e a constituição do poder, a produção do capital e o processo da colonialidade das Américas pelo paradigma ocidental, racista e eurocêntrico.
Após discutir o conceito, passaremos a descrever as concepções de infância e de adolescência, que são produzidas a partir dessa normatividade adultocentrada. Por isso, convém fazer uma breve análise acerca do modo como a historiografia vem narrando as identidades infanto-adolescentes.
Para concluir será oferecida uma reflexão que almeja se constituir num horizonte de expectativas de cunho teórico e propositivo. A ideia é visibilizar a partir de uma crítica ao modelo adultocêntrico a capacidade de ação social e histórica de crianças e adolescentes. Em que pese o fato de a historiografia tradicional não ter se ocupado da temática relacionada com as infâncias e adolescências, o objetivo deste trabalho é apresentar uma chave interpretativa apta a ampliar a compreensão acerca do papel desempenhado por esses sujeitos. Trata-se de olhar para os meninos e meninas como agentes da história, como atores que de fato produzem cultura e não como meros consumidores de princípios e determinações vindas do universo adulto. Nesse sentido será determinante aprender a sintonizar o entendimento e direcioná-lo para além das perspectivas ortodoxas que encaram as decisões políticas e econômicas como as únicas capazes de produzir rupturas no curso da história.
Desde a obra pioneira de Philippe Áries1(1981), que crianças e adolescentes vêm sendo incluídas nas investigações históricas, rompendo com um silêncio incômodo que marcou a preocupação dos investigadores ligados à ortodoxia histórica.2 Essa inserção tem se dado, costumeiramente, no lugar de objeto de estudo, já que na maioria das vezes em que meninos e meninas aparecem como temas da pesquisa histórica o espaço que ocupam é de passividade, como elementos a serem compreendidos e explicados no processo histórico. Tal perspectiva se reflete no modo como eles são apreendidos numa teia de ações e motivações que geralmente se originam e se destinam aos adultos.
Atualmente é possível verificar um avanço na busca por uma maior visibilidade das agências3 sociais e históricas das crianças e adolescentes. Mary del Priore (2018) chama a atenção para a urgência do tema, partindo de problemas concretos vividos atualmente pela sociedade. A patente insensibilidade que a maioria das pessoas demonstra em relação a questões sociais candentes e que se relacionam com as infâncias, como a condição dos meninos e das meninas que vivem em situação de rua, as ainda altas taxas de mortalidade infantil e de vulnerabilidade alimentar a que são submetidas crianças e adolescentes, pedem para que se constitua um esforço investigativo de viés histórico acerca dos motivos dessa forma de se relacionar com as infâncias.
É nesse contexto que atualmente emergem movimentos de pesquisa voltados para a história das infâncias que se propõem a responder inquietações como essas. Nesse meio, destacamos pesquisadores como Ailton Morelli (2005), Silvia Fávero Arend (2011) e Humberto Miranda (2015), que tem privilegiado um diálogo sobre as infâncias e adolescências a partir de um recorte bastante característico e que torna possível dimensionar tais identidades partindo de um lugar de mobilização pela conquista e garantia dos direitos humanos. Os avanços nesse sentido podem ser identificados com vários aspectos da prática investigativa, que vão desde o trato com as fontes, que são ampliadas para os processos jurídicos, incluindo material processual do juizado de menores (AREND, 2011), até o foco nas infâncias subalternizadas e incluídas em sistemas de privação de liberdade (MIRANDA, 2005).
Quando falamos em agência de crianças e adolescentes, partimos de um pressuposto bem consolidado no campo das investigações sobre as infâncias, que é o de compreender crianças e adolescentes como produtores de cultura e sujeitos de direitos. Entretanto, a proposta desse artigo é delimitar o âmbito semântico do termo agência, para que ele não seja confundido com conceitos desconectados com a realidade social. Concebemos agência a partir do pano de fundo das participações coletivas e da inserção de meninos e meninas em movimentos sociais. Portanto, nosso modo de ver está bem distante de um suposto protagonismo ligado ao individualismo, onde a competição e a busca de sucesso se tornam um discurso que reforça a ótica do capitalismo.
As discussões acerca do conceito de agência remontam aos debates sobre a possibilidade de os sujeitos históricos atuarem de forma livre sobre as circunstâncias sociais econômicas e políticas nas quais se encontram inseridos. Nosso posicionamento se apoia nas discussões feitas por Pierre Bourdieu (2002), que através do conceito de teoria da prática, nos permite vislumbrar a possibilidade dos indivíduos, mesmo que localizados em uma estrutura econômica e social específica, agirem de acordo com suas próprias escolhas, motivadas por seus próprios interesses. De acordo com Bourdieu (2002), é no espaço do habitus, entendido como práticas sociais adquiridas e vivenciadas, que o sujeito pode se mover, produzindo a cultura. Estrutura e indivíduo não são partes isoladas do conjunto social e se relacionam de modo dinâmico, transformando-se mutuamente.
Essa compreensão se torna mais necessária ainda quando o foco recai sobre as crianças e adolescentes, tradicionalmente elas são excluídas da capacidade de agir por conta própria e são compreendidas apenas como consumidoras de cultura. Para romper com essa perspectiva e adensar nossa compreensão sobre a agência cidadã de crianças e adolescentes, nos apoiamos nas contribuições da sociologia da infância (CORSARO, 2011), que entende meninos e meninas como sujeitos das ações de produção cultural que elaboram e efetivam em meio às relações desenvolvidas em conjunto com outras crianças e com os adultos.
Nossa ênfase em destacar o conceito de agência cidadã se dá por uma perspectiva de comprometimento político, que se apoia em um horizonte de direitos humanos contra hegemônico (SANTOS, 2003). Insistimos no uso do termo como uma alternativa à expressão protagonismo, tão usada nos meios empresariais intensamente influenciados pela ideologia neoliberal. A capacidade de agir que percebemos e destacamos nas crianças e adolescentes não se limita à possibilidade de empreender e de prosperar financeiramente. Entendemos que esse ponto de vista é limitador, por isso, adotamos o termo agência cidadã, que compreende meninos e meninas como autores da própria história em um âmbito de coletividade social ampliado.
O Adultocentrismo
Podemos definir adultocentrismo como um processo que invisibiliza crianças e adolescentes enquanto sujeitos históricos de lutas e transformações sociais, que promove o apagamento da especificidade de suas vidas, na medida em que as concebe como “protótipos de adultos” numa perspectiva do vir a ser e não do já é. Nesse contexto, as crianças e adolescentes tem o seu presente negado em função de um futuro que elas não escolheram e do qual não desejam participar (FARIA; SANTIAGO, 2015).
Essa posição de menoridade da criança e do adolescente é historicamente construída e se identifica com a forma de produção de cultura ocidental. A sociedade estruturada dentro de um ponto de vista ocidental olha através da criança para um modelo de adulto idealisticamente construído e pautado a partir de teorias biológicas ou psicologizantes que servem de referência para a constituição de um paradigma de infância único (FARIA; SANTIAGO, 2015).
Segundo Vasquez (2013), o adultocentrismo pode ser percebido como um entretecer de saberes e práticas, que promovem a exclusão através da diferença geracional. Para além das diferenças biológicas que podem ser evocadas de forma óbvia, a questão central é o alcance e a intencionalidade dessa classificação, que claramente hierarquiza e submete crianças e adolescentes a um universo decisório, dominado pelos adultos.
Os marcadores utilizados por esse sistema de classificação são identificados com as ideias de imaturidade psicológica, dependência das crianças e adolescentes em relação aos adultos, inocência e alheamento diante do mundo social. O objetivo da classificação a partir desses marcadores é destacar uma condição de déficit e incompletude, que clama por orientação e tutela (ATEM; ROCHA, 2019). Percebemos, a partir dessas reflexões, que o adultocentrismo se estabelece como um movimento de construção de um discurso verdade (FOUCAULT, 2003) no qual elementos variados contribuíram para a constituição desse paradigma.
Mesmo que a historiografia tradicional ainda não tenha se detido em mapear seus contextos causais, pensamos que é possível identificar múltiplos momentos históricos, de constituição, desde o período colonial, como no caso específico do Brasil, onde meninos e meninas já nasciam com seus lugares sociais definidos de acordo com as perspectivas culturais dos colonizadores (MIRANDA, 2021), passando pelo advento da contemporaneidade, quando discursos racionalistas foram se constituindo ao mesmo tempo em que apagavam e excluíam as crianças e adolescentes, como é o caso de posições científicas trazidas pela psicologia e medicina, inseridas num quadro epistemológico típico da racionalidade ocidental, que definem um lugar de esquecimento e subalternidade para crianças e adolescentes.
Uma questão importante a ser considerada é o movimento a partir do qual essa compreensão adultocêntrica se consolida. Nesse sentido, é possível entender que as idades têm sido consideradas como portadoras de características essenciais e definidoras de identidades (QUAPPER, 2015). Tal crença serve como elemento de naturalização do processo de hierarquização e subordinação infanto-adolescente. De acordo com esse ponto de vista essencialista e biologizante, não é possível problematizar tais hierarquias uma vez que sua origem é supostamente inatingível e imutável, pois se liga diretamente à dimensão da natureza.
O pesquisador Cláudio Duarte Quapper (2015), pensando sobre as formas de constituição do adultocentrismo, afirma que existe uma íntima relação entre o paradigma adultocêntrico e o patriarcado.4 Na sua percepção, a origem de um modo de olhar centrado no adulto, bem como sua reprodução e manutenção, podem ser explicados como originados e sustentados em uma estrutura social e cultural marcada pela presença do patriarcalismo. O autor aponta que apesar de existirem boas análises sobre sociedades antigas do ponto de vista histórico e de como elas se estruturavam em torno dos interesses masculinos-adultos, tais análises não incluem investigações sistemáticas acerca do lugar da criança e do adolescente em contextos históricos específicos. No máximo é relatado como eles viviam e eram dependentes da estrutura adulta, mas em nenhum momento os fundamentos do olhar adultocêntrico são questionados, tão pouco suas especificidades são abordadas metodologicamente na investigação, o que poderia ocorrer, a despeito das limitações das fontes através de uma mudança de foco epistemológico, que resultaria na introdução de questionamentos sobre os motivos dessas limitações e ausências.
Por outro lado, não é possível minimizar o impacto do capitalismo na forma de estruturação do adultocentrismo, o deslocamento de meninos e meninas para uma posição de inferioridade e de ausência de protagonismo não é um evento acessório dentro de uma sociedade dominada pelo capital. Podemos afirmar que adultocentrismo e capital atuam em simbiose, uma vez que a educação é encarada como uma necessidade básica para prover subsídios a uma realidade social e econômica marcada pela exploração (FARIA, SANTIAGO, 2015).
Observamos ainda que a ligação entre capitalismo e adultocentrismo não é uma exclusividade desse sistema, ao contrário:
A partir de este planteamiento, sostengo que el adultocentrismo está directamente vinculado con los modos de producción en cada momento histórico y que estos refuerzan la condición adultocéntrica, para su mutua reproducción. (QUAPPER, 2015, p. 91).
Entretanto é preciso notar que no caso específico do capitalismo, existe uma relação mais intensa, pois a dinâmica capitalista se “nutre” do adultocentrismo que se agudiza através das ideias e práticas neoliberais.
Ainda no contexto da relação entre capitalismo e adultocentrismo, é possível perceber que um elemento constitutivo do olhar adultocêntrico é a imposição às crianças e adolescentes de um determinado lugar na estrutura de produção, reprodução e institucionalização do capital. A força do adultocentrismo é, ao mesmo tempo, simbólica, pois define um lugar no imaginário para meninos e meninas, e material, pois os distribui legal ou ilegalmente no movimento de produtividade de riquezas.
Uma ilustração dessa distribuição produtiva passa pela autorização do trabalho na condição de “menor aprendiz”, função que normalmente é preenchida pelos filhos das classes populares. Outra forma de hierarquização é a oferta de itinerários educativos. O sistema educacional, na maioria dos casos, oferece um percurso regular caracterizado pelo ensino médio com foco nos exames externos, como o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e os vestibulares. Normalmente, o ensino médio é entendido como um preparatório para os estudantes que darão continuidade aos seus estudos nas universidades, atingindo o nível superior. O outro itinerário ofertado é o do ensino técnico e profissionalizante, que na maioria das vezes é ocupado por adolescentes e jovens que pretendem suprir através de um emprego rápido carências financeiras e de sobrevivência. De uma maneira em geral, o foco desses cursos é o preparo e a oferta de mão de obra, adequada aos interesses do mercado.
A infância produzida pela perspectiva adultocêntrica é universal, padronizada, deficitária e carente de tutela. Essa ecologia de saber produz um conhecimento empobrecido sobre as crianças e os adolescentes, por isso consideramos ser importante abrir a compreensão para clivagens outras. Perceber que as crianças mais atingidas pelo adultocentrismo são meninos e meninas pobres, e que o sistema capitalista na medida em que enfraquece o Estado produz uma desistência das instituições em relação aos meninos e meninas mais fragilizados financeiramente, é o ponto inicial para demarcar a ligação entre capital e o paradigma adultocêntrico (POGGI; SERRA; CARRERAS, 2011).
Ao aprofundar o entendimento acerca do adultocentrismo, caminhamos para a percepção de que a forma mais eficaz de investigar essa realidade é partindo de um ponto de vista descolonizador, inicialmente de uma descolonização das próprias pesquisas com crianças e adolescentes (ABRAMOWICZ; RODRIGUES, 2014). Nesse procedimento, essencial é a criação de novas ferramentas teóricas distintas do modelo racional positivista, que incorporem às análises conceitos sensíveis aos afetos e às sensibilidades infantis.
Compreender que contestar o adultocentrismo é se pôr em oposição a um dispositivo de poder que apaga singularidades com o apoio de toda uma estrutura pedagógica que pensa com foco na ideia de uma infância única, daí que não é tarefa fácil propor um novo olhar sobre as pesquisas das infâncias e adolescências.
Nesse movimento entendemos ser vital reconhecer um potencial contestador em meninos e meninas e pensar como as crianças podem, elas mesmas, integrar seu auto entendimento do que é ser criança e a partir de que formas elas podem resistir ao poder que as pressiona e pretende dominar. Por esse ponto de vista emerge a concepção de que são as próprias crianças e adolescentes que resistem à formatação imposta pelo paradigma adultocentrado (ABRAMOWICZ; RODRIGUES, 2014). Exemplos dessas resistências podem ser detectados pelos procedimentos metodológicos da história, tanto numa escala menor, como é o caso das resistências e estratégias particulares de se negar a fazer coisas ou de ressignificar os princípios dominantes pela brincadeira, quanto numa escala mais ampliada, como é possível verificar nos casos de organização e mobilização das crianças e adolescentes por seus direitos. A trajetória de constituição do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e de sua luta pela promulgação de leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são alguns desses exemplos (CAVALCANTE, 2018).
Portanto, partir dessas reflexões é apenas o passo inicial na complexificação sobre o conceito de adultocentrismo. Esse movimento de análise nos incentiva à percepção da importância de construir pedagogias descolonizadoras que permitam a emergência de singularidades antes obliteradas pelas estruturas do capital. Pedagogias que se posicionem para além do capital e da colonialidade, mas que sejam capazes de reconhecer o processo de constituição dessas opressões (FARIA, SANTIAGO, 2015).
As Infâncias forjadas por uma cultura adultocêntrica
Foi em um universo cultural marcado pelo adultocentrismo que se produziu representações e práticas relacionadas com as crianças e adolescentes. Essas representações começaram a ser captadas pela historiografia a partir do trabalho inovador do historiador francês Philippe Áries (1981). No livro História social da criança e da família, Áries promove as infâncias ao status de objeto de estudo do historiador, por meio de um apurado trabalho de consulta às fontes, como iconografia religiosa, diários de família, dossiês familiares, cartas, registros de batismo e inscrições tumulares. O autor enfileira uma série de descobertas que podem ser resumidas na ideia de que o sentimento de infância não existia até mais ou menos o início do século XVII.
Foi através da pesquisa de Áries (1981) que a historiografia pôde ampliar a discussão sobre a infância, que até então estava circunscrita a uma abordagem dominada pela psicologia e pelas perspectivas essencialistas, notadamente a-históricas. Foi a partir do seu ponto de vista de história social da criança e da família que a dimensão processual e construtiva das infâncias, como elemento a se constituir no tempo através de um imbricado de interpelações sociais, econômicas e simbólicas, se estabeleceu intelectualmente.
A base de sua argumentação repousa na análise feita nas fontes, notadamente na iconografia. Aliada a inexistência de referências, o autor aponta que, naquele momento, a família era compreendida mais como uma unidade de interesses sociais do que de relações afetivas. Nesse sentido, meninos e meninas eram entendidos enquanto possibilidades, na medida em que poderiam se encaixar como elementos colaborativos da dinâmica social familiar.
O pragmatismo era dominante e a passagem da criança pela família era, na maioria das vezes, muito curta e insuficiente para demandar representações e afetar sensibilidades. Por isso, apenas aos sete anos, quando a barreira da mortalidade era superada e a criança "vingava” é que ela era recebida na família. Mesmo assim essa ascensão não trazia, de acordo com Áries, uma identidade bem estabelecida e particular. É muito famosa a expressão de que as crianças eram entendidas pela Europa medieval como “adultos em miniatura” (ÁRIES, 1981).
Com relação a transição desse estágio de pré-sentimento de infância para uma fase em que crianças passaram a ser reconhecidas e incluídas no convívio social, o autor destaca a importância da educação e da perspectiva religiosa como elementos decisivos para a consolidação. Os reformadores religiosos passaram a identificar nas crianças um campo fértil para o aprendizado e para a formação de adultos tidos como ideais. Ao mesmo tempo em que avançava as preocupações e discussões pedagógicas se consolidava a ideia de criança em meio a sociedade moderna.
Por seu lado, a Igreja Católica, a partir do final do período medieval, se pôs como defensora de uma infância bem específica, condenava a prática do infanticídio e através do aprofundamento de seus princípios religiosos elevou a consciência geral sobre a infância, garantindo um aspecto de dignidade as crianças pequenas de uma maneira geral (ROCHA; GOUVEIA, 2010).
Entretanto, a perspectiva defendida por Áries, apesar de muito significativa, não passou incólume às críticas. Kuhlmann Jr. (1998) denuncia a tese de Áries acerca da infância como generalizante e linear, uma vez que as fontes com as quais o autor lidou se restringiam às famílias ricas, daí sua dedução de que foi nessa classe social que surgiu o sentimento de infância.
Ainda, segundo Kuhlmann Jr. (1998), é possível identificar a existência da infância pobre e localizá-la nos filhos das classes populares, de camponeses e artesãos, que com seu modo de vida livre, se confundiam com os adultos em meio aos jogos e brincadeiras de rua.
A infância pobre era exótica e perigosa para as classes economicamente abastadas, principalmente porque ela não se encaixava no seu padrão de moralidade e nos seus modelos pré-estabelecidos. Entretanto, isso não significa que não existia um “sentimento de infância” presente nas camadas populares da sociedade.
Outro pesquisador que teceu críticas ao modelo de Áries foi Jacques Gélis (1992), para quem o processo de individualização da criança aponta para um refinamento da perspectiva inaugurada pela obra História Social da criança e da família (ÁRIES, 1981). Gélis se contrapõe a afirmação de que a ideia de infância emergiu no imaginário social apenas com a modernidade. Nas palavras do próprio autor:
é difícil acreditar que a um período de indiferença com relação à criança teria sucedido outro durante o qual, com a ajuda do “progresso” e da “civilização”, teria prevalecido o interesse... O interesse ou a indiferença com relação à criança não são realmente a característica desse ou daquele período da história. As duas atitudes coexistem no seio de uma mesma sociedade, uma prevalecendo sobre a outra em determinado momento por motivos culturais e sociais que nem sempre é fácil distinguir. A indiferença medieval pela criança é uma fábula... (GÉLIS, 1992, p. 328, apud ROCHA; GOUVEIA, 2010, p.188)
Um flanco também bastante criticado é a perspectiva universalizante da explicação proposta por Áries, que para funcionar pressupõe um movimento progressivo e evolutivo na história, indo de um passado “brutal” e insensível para a modernidade onde as concepções de infância afloraram.
Heywood (2004), também se reúne aos que criticam o modelo explicativo criado por Áries. Na sua opinião, a ideia de uma ausência do sentimento de infância em um determinado período da história é basicamente simplista e não corresponde a uma investigação criteriosa dos documentos. De acordo com o seu ponto de vista, é mais eficaz buscar diferentes “concepções” e não um sentimento padrão de infância. Essas concepções teriam a particularidade de aparecer em diferentes épocas e lugares e de se relacionar de modo dinâmico com o ambiente cultural, vivenciado.
O que as pesquisas mais recentes no campo da história das infâncias vêm demonstrando é que não se pode falar em uma essência natural e universal para atribuir às crianças e aos adolescentes. Ao contrário, a pluralidade de fontes e de vozes ouvidas através dos testemunhos dos documentos indicam que faz mais sentido falar em infâncias, no plural mesmo, pois representa melhor os recortes culturais, de classe, gênero e raça através dos quais se pretende analisar os sujeitos. Não consideramos provável que exista um padrão de infância, pronto a se desenvolver em uma espiral da história, predeterminado a acontecer por meio de um modelo bem definido e adequado especificamente à sensibilidade europeia.
O adultocentrismo e a constituição das várias adolescências
O modelo adultocêntrico não se limitou a moldar formas de entender e de se relacionar com as infâncias. Ao mesmo tempo em que constitui a separação entre o mundo dos adultos e o mundo dos incompletos, imaturos e sem fala, os “infans”, a cultura adultocentrada começou a instituir um espaço cada vez mais significativo entre esse mundo (o das crianças) e o dos supostos adultos ainda não completamente formados. Nesse contexto é que se localiza o esboço do que se tornaria uma identidade adolescente.
Particularmente acreditamos que é importante como elemento identitário constitutivo designar com um termo específico as pessoas que se encontram nesse espaço, uma vez que meninos e meninas não se entendem mais como crianças, mas ainda não se reconhecem, nem são reconhecidos como jovens adultos. Esse é o lugar do adolescente, e se pretendemos produzir um conhecimento a partir da análise das ciências humanas que torne legível a agência infanto-adolescente é fundamental começar a refletir sobre a constituição desse conceito
É possível perceber muita variação dos modos de viver na adolescência. Fazendo um recorte histórico, meramente ilustrativo, percebemos que eram diferentes as adolescências, a dos meninos pobres, dos aristocratas e dos filhos da burguesia. Enquanto os primeiros viviam sua adolescência longe de casa e da família, movidos pelas atribuições da vida de aprendizes, quer fosse no seminário, na oficina, no exército ou no convento, a adolescência era uma experiência de separação auto sustentada.
Para os filhos da aristocracia, ser adolescente era basicamente esperar e aprender, pela observação com mais ênfase em esperar do que aprender, já que a condição de nobre não era algo apreendido ou fruto de uma conquista meritória, bastava ao garoto ou garota ser aquilo que era em “potência” para ter seu destino manifesto.
Os filhos da burguesia que precisavam estar preparados para um ambiente competitivo, representado pelo comércio e pela produção manufatureira, precisavam ser instruídos e a adolescência era esse momento do aprendizado para a vida (ISAMBERT-JAMATI, 1996).
Desse contexto, segue a percepção da existência de várias formas de enxergar e viver a adolescência, daí o porquê de não podermos entendê-la como um fenômeno meramente biológico ou de desenvolvimento cognitivo. A importância dos fatores sociais, econômicos e culturais nos modos de compreender e viver a adolescência se destacam (ISAMBERT-JAMATI, 1993). É possível através dessas reflexões, compreender a importância da interseccionalidade para o entendimento da adolescência enquanto fenômeno híbrido, entre o biológico, o social e o cultural. Vale destacar que o período cronológico hoje atribuído a adolescência era compreendida como uma ruptura na infância e ingresso nas responsabilidades de uma vida adulta. A possibilidade de retardar essa dedicação às responsabilidades, era encarada como sinal de condições financeiras elevadas (ISAMBERT-JAMATI, 1980).
A variação das idades limites para o exercício de alguns direitos ou deveres no Brasil, não ajuda a pensar uma cronologia rígida para definir quando, oficialmente, termina a infância e começa a adolescência. O direito ao voto se dá a partir dos 16. A possibilidade de conduzir veículos aos 18, de responder criminalmente como adulto aos 18, para casar-se sem autorização aos 21. Essa discrepância também ocorre entre as instituições e dispositivos legais que procuram circunscrever cronologicamente a adolescência: para a Organização Mundial de Saúde (OMS), ela vai dos 15 aos 19, para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vai dos 12 aos 18.
A adolescência é entendida como um fenômeno da ordem biopsicossocial de acordo com a OMS, e se estende pelo período que vai da primeira década de vida até os 20 anos.
As mudanças biológicas da puberdade são universais e visíveis, modificando as crianças, dando-lhes altura, forma e sexualidade de adultos. À primeira vista, a adolescência apresenta-se vinculada à idade, portanto, referindo-se à biologia – ao estado e à capacidade do corpo (Santos, 2005). Essas mudanças, entretanto, não transformam, por si só, a pessoa em um adulto. São necessárias outras, mais variadas e menos visíveis, para alcançar a verdadeira maturidade (Berger & Thompson, 1997) – mudanças e adaptações que dirigem o indivíduo para a vida adulta (Bianculli, 1997). Essas incluem as alterações cognitivas, sociais e de perspectiva sobre a vida (Martins, Trindade, Almeida, 2003; Santos, 2005). A adolescência é uma época de grandes transformações, as quais repercutem não só no indivíduo, mas em sua família e comunidade (SCHOEN-FERREIRA; AZNAR-FARIAS; SILVARES, 2010, p. 227).
Apesar de um evidente fundamento biológico, percebido nas alterações físicas como o crescimento e a maturação dos órgãos sexuais, as mudanças vividas na adolescência não se limitam aos aspectos deterministas. As capacidades cognitivas também se desenvolvem e, de modo mais intenso e transformador, a subjetividade de meninos e meninas passa por um processo de dinamismo e tensão.
A ideia de distinguir entre puberdade e adolescência surge como uma baliza nesse contexto. Enquanto a primeira estaria ligada aos processos de maturação biológica, a segunda se relacionaria com as vivências da construção identitária, relacionamentos sociais e consolidação de uma localização no mundo social e cultural. A adolescência está sujeita a uma gama de relações que escapam do mero determinismo bioquímico, possuindo uma dimensão cultural e histórica (FARIA; FERREIRA, 2010). A adolescência é percebida como uma vivência universal, mas que se manifesta a partir de idiossincrasias culturais e históricas.
A psicologia das adolescências tem um longo passado e uma curta história, na medida em que as transformações do ponto de vista psicobiofísico sempre ocorreram nos indivíduos, entretanto, não existia o reconhecimento cultural dessas vivências. A representação do fenômeno psicobiofísico no conjunto do imaginário social só se dá a partir dos séculos XIX e XX (FARIA; FERREIRA, 2010).
Historicamente se atribuiu ao que hoje classificamos como adolescentes uma série de características que se destacam pelo aspecto de negatividade. Platão e Aristóteles ressaltaram sua impetuosidade e irascibilidade, atribuindo-lhes a imaturidade e a necessidade de preparo e contenção através da educação. Posteriormente, Rousseau destacou o caráter de instabilidade e conflito emocional, bem como uma abertura à aprendizagem dos adolescentes, ideias que continuam a influenciar muitas percepções até os dias de hoje (SCHOEN-FERREIRA; AZNAR-FARIAS; SILVARES, 2010).
A adolescência na idade média não existia enquanto uma realidade cultural presente no imaginário comum da sociedade. Meninos e meninas eram compreendidos como adultos em miniatura e viviam “misturados” com os adultos aprendendo o modo de vida pela observação e pela participação.
Foi na modernidade que ocorreu a consolidação de algumas instituições decisivas para a percepção acerca das adolescências. Entre elas, a escola se destacou como um espaço consagrado à educação das crianças, o que consolidou um corpo de especialistas responsáveis por esses trabalhos e significou a necessidade de definir mais precisamente quem deveria ser educado. A resposta a essa pergunta ajudou a solidificar o conceito de infâncias. Os modernos ignoravam as especificidades das mudanças biológicas relacionadas com a puberdade. Para Áries (1981), essa indiferença teria contribuído para que eles ampliassem a duração da infância e apagassem a identidade adolescente.
Entretanto, é necessário pensar um paradigma novo para as adolescências e entendemos que essa nova percepção deve caminhar no sentido contrário ao assumido até agora pelo sistema adultocentrado. Adolescentes não devem ser compreendidos como objetos de falta ou como espaços a serem preenchidos. Precisamos pensá-los como sujeitos de suas próprias vidas e coletividades:
Las nuevas corrientes teóricas sobre la juventud proponen superar la noción clásica de la adolescencia; en esta línea de pensamiento Niremberg (2006) retoma, desde el enfoque de los derechos, una definición superadora de la visión puramente transicional y problemática de la adolescencia, identificando a las y los jóvenes como actores no solo de sus propias vidas, sino también protagonistas estratégicos y fundamentales del desarrollo colectivo. (POGGI; SERRA; CARRERAS, 2011, p. 61).
A agência cidadã de crianças e adolescentes
Das discussões problemáticas e multifacetadas acerca do adultocentrismo, passando pelas concepções de infância e adolescência, produzidas a partir desse paradigma presente/ausente e captadas pela historiografia, chegamos ao ponto de introduzir o conceito de agência cidadã infanto-adolescente. Para além de ser o inverso do adultocentrismo, que notadamente apaga o protagonismo desses sujeitos, a categoria de agência cidadã procura dar conta dos modos como eles operam na sociedade em busca de garantir seus interesses e defender seus direitos.
Para perceber as nuances desses movimentos é necessário estar atento aos significados das ações e estratégias constituídas pelas classes tradicionalmente subalternizadas nas entrelinhas de sua resistência e afirmação simbólica. Muito mais do que uma história de aspecto social, é preciso desenvolver uma sensibilidade para essa trajetória, que se concretiza à sombra de um esquema onipresente de adultocentrismo.
Não se trata de estar atento apenas a movimentos sociais, revoltas, caminhadas ou grandes eventos em que crianças e adolescentes estiveram diretamente envolvidos e exercendo uma cidadania ativa. É necessário operar com a interpretação dos silêncios e buscar preencher os não ditos a partir de um quadro cultural mais amplo e condizente com as fontes (THOMPSON, 1998).
Apesar de o tema da agência das crianças e adolescentes ser atualmente muito pautado, percebemos alguns equívocos e posicionamentos teóricos problemáticos. Um exemplo disso é o entendimento da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança,5 de 1989, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que mesmo atribuindo uma centralidade aos direitos e a participação infantil, o faz em um modelo individualista e ligado aos espaços consagrados como institucionais, dentre os quais, escola e família.
Um aspecto especialmente controverso é a presunção de que a participação infanto-adolescente deve ocorrer referenciada pelas experiências originais do hemisfério norte. Segundo Accardo, Colares e Gouveia (2021), esse modo de entender a agência de meninos e meninas é marcado pela condução do adulto, que orienta e define os temas a serem debatidos pelas crianças e adolescentes. Uma perspectiva crítica às ideias oriundas do paradigma racionalista-ocidental pode ampliar as possibilidades de vivenciar os direitos humanos e as identidades infanto-adolescentes para além da lógica exclusivista e limitadora do capital.
Um olhar mais atento para os arranjos vindos do contexto do sul global, pode ser poderoso como indicativo dos caminhos a serem seguidos para obter uma agência cidadã mais rica e complexa. Em busca desse horizonte de expectativas é que entendemos ser fundamental compreender a ação política de forma não essencialista e que tenha como referencial uma perspectiva fenomenológica (ACCARDO; COLARES; GOUVEIA, 2021). Tal ponto de vista proporciona ao investigador uma percepção contextual e atenta às dinâmicas sociais, econômicas e culturais.
Assumindo o viés do fenômeno no lugar da essência, a agência deixa de ser um atributo metafísico presente na essência das pessoas, sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Passa a ser uma práxis, que se constrói dinamicamente em meio às relações entre os sujeitos, a sociedade e as estruturas econômicas. Pensando dessa forma, não reduzimos o conceito de agência a um determinado recorte cronológico, ao contrário, sua existência se relaciona com a construção e consolidação de identidades, sejam elas infantis ou adultas.
Consideramos importante operar essa quebra no modelo metafísico de percepção acerca da agência, pois ela possibilita criticar a ideia de uma capacidade natural para agir, que está presente em algumas pessoas e em outras não, ou que está plenamente desenvolvida nos adultos, mas é imatura e deficitária nas crianças e adolescentes.
Partindo desse princípio fenomenológico não existe capacidade para agir, mas sim contexto e interesse em agir. Essa mudança de compreensão pode levar a formas mais orgânicas de investigar a participação popular de crianças e adolescentes, que são baseadas nos seguintes pressupostos:
trasciende a la niñez como sector y se vincula con la acción colectiva de los movimientos sociales, pues niños y niñas son integrantes plenos de la comunidad organizada a la que pertenece su familia; es una política que se aleja del Estado, del sistema de partidos políticos e instituciones gubernamentales; y son niños y niñas cuya conformación subjetiva está permeada por la socialización política. (TORRES VELÁZQUEZ, 2015, p. 4).
Destacar a dimensão coletiva, o envolvimento e a participação ativa em movimentos sociais são parâmetros que consideramos adequados para definir uma agência cidadã apta a visibilizar grupos subalternizados e, de modo mais especial, aqueles que se caracterizam pela predominância infanto-adolescente.
Considerações Finais
A questão que consideramos fundamental é a de dar visibilidade às estruturas adultocêntricas que permeiam a sociedade, com especial ênfase na perspectiva histórica. Destacamos como é difícil conceituar o predomínio do olhar centrado na figura dos adultos, particularmente porque ele vem se constituindo em um presente/ausente, na medida em que seus efeitos não deixaram de ser sentidos, tanto no apagamento quanto nas opressões a que foram submetidos meninos e meninas ao longo do tempo.
Mesmo num quadro conceitual tão recente é possível delimitar as relações do predomínio adulto com algumas dimensões específicas do contexto social e que podem ser entendidas como influentes para a sua configuração: o patriarcalismo, segundo Quapper (2015), o capitalismo, (FARIA; SANTIAGO, 2016) ou os marcadores psicologizantes (ATEM; ROCHA, 2019). Nossa expectativa é estabelecer a compreensão de que o fenômeno adultocêntrico é complexo, multiforme, mas que ao mesmo tempo é possível com as ferramentas conceituais adequadas delimitar um espaço de investigação para enquadrá-lo, ainda que provisoriamente.
Procuramos demonstrar a condição de ausente/presente desse paradigma nos processos de pesquisa conduzidos pela história. Mesmo sem especificar o termo adultocentrismo, historiadores como Áries (1978) e Heywood (2004), através da consulta a um acervo de fontes variadas, mostraram como as concepções de infâncias e adolescências estão intimamente ligadas aos interesses do mundo adulto.
Entretanto, nossa expectativa é de que os historiadores possam ir além dessa fase e passem a visibilizar os mecanismos que compõem o adultocentrismo. Destacar os aspectos de sua conformação, se interrogar sobre as ausências e os silêncios das fontes e, principalmente, abrir espaço para o seu oposto, que é a agência cidadã de crianças e adolescentes.
O conceito de agência cidadã de crianças e adolescentes é apresentado neste artigo como o inverso do adultocentrismo, possibilitando diálogos interdisciplinares entre a história e as ciências sociais, mais notadamente a sociologia da infância, com especial destaque para a perspectiva crítica ao modelo colonial que vem dominando os campos de estudo na área. Pensar sobre as ações políticas infanto-adolescentes é se posicionar para além do capital e do individualismo despersonalizador que ele anuncia, com vistas a uma atenção maior para as experiências de movimentos sociais latino-americanos, onde meninos e meninas são autores dos seus desejos e atitudes. Trabalhamos a partir de um horizonte de expectativa bem delimitado, formado pela crença de que os direitos humanos, quando tomados na perspectiva contra hegemônica (SANTOS, 2003), são motivos éticos e racionalmente válidos para constituir ações políticas. É assim que entendemos o movimento de uma historiografia voltada para as infâncias como uma superação do paradigma adultocentrado, até então dominante.
Referências
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Notas