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POR VOZES PLURAIS: HISTÓRIA, DIVERSIDADE E DEMOCRACIA BRASILEIRA
Fernando Perli
Fernando Perli
POR VOZES PLURAIS: HISTÓRIA, DIVERSIDADE E DEMOCRACIA BRASILEIRA
For plural voices: history, diversity and brazilian democracy
Por voces plurales: historia, diversidad y democracia brasileña
Fronteiras: Revista de História, vol. 24, núm. 43, pp. 1-8, 2022
Universidade Federal da Grande Dourados
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EDITORIAL

POR VOZES PLURAIS: HISTÓRIA, DIVERSIDADE E DEMOCRACIA BRASILEIRA

For plural voices: history, diversity and brazilian democracy

Por voces plurales: historia, diversidad y democracia brasileña

Fernando Perli
Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil
Fronteiras: Revista de História, vol. 24, núm. 43, pp. 1-8, 2022
Universidade Federal da Grande Dourados

Na efeméride dos 200 anos de independência do Brasil, atividades que trataram do tema diluíram-se em meio às expectativas de uma tensa eleição presidencial. Nela, os significados tecidos sobre o bicentenário e os protocolos que deveriam ser de Estado se misturaram com as apropriações, os usos políticos da bandeira e do hino nacional, das instituições republicanas, da máquina pública, do dia 7 de setembro, da camisa da seleção brasileira de futebol e até do coração de D. Pedro I.

Embora nos passe a impressão de que estamos tratando da independência em um momento específico da história do Brasil, situações como essas reforçam que a reflexão sobre o tema não pode se desvincular do oitocentos, século de construção de um Estado Nacional com estrutura escravista. Nas décadas que o finalizou, a lei de 1888 e o golpe militar de 1889 não sucumbiram os ideários da monarquia, mantendo relações de poder que conciliaram interesses de proprietários de terras e de forças militares autorrotuladas de defensoras, fundadoras e “donas” da República.

Não à toa, com a abolição da escravidão, o regime instaurado optou pela indenização de proprietários que deixaram de ter escravizados ao invés de indenizar alforriados dos cativeiros. O resultado foi a construção de uma República que manteve a cor para discriminar pessoas, numa simbiose que permitiu conviver aspirações escravistas, saudosismos monarquistas, autorizações para intervenções autoritárias, ingredientes que permaneceram e fizeram ebulir um conservadorismo dos mais reacionários nos últimos anos.

No atual contexto de desconstrução da democracia brasileira, as discussões sobre a independência, ou as independências, estão permeadas por dois vieses que não podem ser compreendidos separadamente e em condições opostas. Um, observa a construção do Estado Nacional relevando a unificação territorial através do poder centralizador da monarquia. Outro, trata das peculiaridades, condições locais e provinciais que possibilitaram estudos sobre a participação popular.

Apesar das questões empíricas e teóricas que envolvem a produção historiográfica, quando o tema da independência ou das independências do Brasil foi pautado no ambiente eleitoral de 2022, “projetos nacionais” foram evidenciados por práticas que silenciam a diversidade em defesa de uma nação nos moldes do século XIX e, em contraposição, pela representatividade de vozes plurais que fazem a democracia brasileira e delineiam um país em sua pluralidade.

Nunca é demais observar que, em tempos de efemérides, os enfrentamentos de problemas pela historiografia se fazem em múltiplas relações com as demandas sociais, em que se relevam implicações, alcances e autoridades compartilhadas entre a história acadêmica e o público amplo e diverso de história, potencializando discussões sobre a cultura histórica brasileira. Disso, é possível lembrar os anos em torno de 1972, quando nas comemorações dos 150 anos da independência do Brasil, em plena ditadura militar, muitas foram as publicações de divulgação histórica direcionadas ao público amplo, como fascículos, coleções e revistas (FONSECA, 2016, p. 189).

Também naquele ano, a publicação do livro 1822: Dimensões, organizado por Carlos Guilherme Mota, agrupou ensaios que trataram a independência pelos significados de 1822 em um processo de macro transformações do Antigo Sistema Colonial, que culminou num sistema mundial de “dependências”, e pelas “independências” a partir de movimentos ocorridos em diversas regiões e províncias do Brasil (MOTA, 1972).

Trinta e poucos anos depois, Jurandir Malerba lembrou a coletânea organizada por Mota e constatou que a historiografia da independência produziu trabalhos relevantes desde os anos de 1970. Numa ampliação de objetos de investigação verificada entre historiadores oriundos da virada cultural, novas abordagens trouxeram a “participação popular e inflexões de cor e raça; a difusão da cultura impressa, as formas espetaculares do poder” (MALERBA, 2005, p. 121), dentre tantas abordagens.

Não se pode negar que, a redemocratização do Brasil e, mais recentemente, as polêmicas que envolveram o bicentenário, contribuíram para se repensar posturas interpretativas através de diversas abordagens sobre as independências. Outras dimensões e perspectivas trouxeram a participação popular e dão conta de que tais debates ainda se manterão nos próximos anos, como o do significado do festejo de 2 de julho na Bahia em comemoração à evacuação das tropas portuguesas que, em 2023, terá seu bicentenário (KRAAY, 2001, p. 67).

Ponderações teóricas e especificidades à parte, ao se vislumbrar a diversidade de estudos sobre as independências, os anos de 1972 e 2022 se contaminaram pelo assombramento da ditadura militar em nossas vidas. No início da década de 1970 vivíamos os anos de chumbo. Hoje, estamos em uma encruzilhada entre afirmar ou colapsar o Estado Democrático de Direito.

De um lado, apresenta-se um projeto político conservador, que constitui a extrema direita brasileira, articulada em dimensões internacionais e fomentada pelo uso de novas tecnologias de comunicação, espraiando fantasmas da política nacional, alimentando o medo em crentes sobre o retorno do comunismo, fomentando o ódio e legitimando práticas fascistas de perseguição e violência contra os que pensam e manifestam diferente. De outro, delineiam-se forças democráticas construídas em um árduo processo de redemocratização, antes confluídas no movimento das Diretas-já, depois dissidentes pelo amadurecimento do processo democrático, agora, propensas a se aproximar contra vislumbres autoritários que teimam em não passar.

A escolha não é difícil para quem defende a democracia brasileira. Contra rompimentos evidenciados em 2013, 2014 e 2016, que se potencializaram desde 2018 pelos arroubos autoritários em defesa do retorno da ditadura militar, serão necessários engajamentos nos próximos anos, nas próximas décadas, seja nas eleições de 2022, que não terminará com os seus resultados, seja nas lutas cotidianas para fortalecer as instituições democráticas.

Instâncias de discussão que alicerçavam nossa democracia, criticadas pelos extremistas de direita como um Estado aparelhado pela esquerda, foram desmanteladas em meio a momentos bizarros e trágicos de centralização abusiva, de assédios de poder, de ataques à educação, à saúde, ao meio ambiente, dentre tantos. Nomeações de agentes públicos tenderam a defender não um projeto político de nação, mas um projeto pessoal, de aparelhamento e de proteção de um presidente que representa setores descontentes com as políticas públicas inclusivas que escancararam privilégios de classe, patriarcalismo, racismo, misoginia, machismo e necropolítica, alguns dos arcabouços de ondas conservadoras, reacionárias, autoritárias e negacionistas.

Esses estonteantes desqualificativos da gestão pública justificam um olhar ainda mais crítico à ditadura militar brasileira. A repercussão da Comissão Nacional da Verdade (CNV) visibilizou militares receosos de terem que encarar a história de violações contra os direitos humanos no regime autoritário. A prova cabal, além do apoio de militares da ativa e da reserva ao atual governo federal, insuflado por mensagens com ares golpistas em aplicativos, plataformas de vídeos e redes sociais, está na mentalidade arraigada de que a “questão social é um caso de polícia”, com uma pitada de maldade em que se defende a meritocracia.

Setores conservadores, apoiadores e divulgadores de representações e ações repressivas insistem na defesa de que a “salvação da pátria” se faz com a figura de um líder, colocado na condição de “mito”, “messias”, “histórico de atleta”, detentor de uma fala que tenta silenciar vozes plurais, dentre outros atributos que compõe as bandeiras defendidas pelos que estampam o lema “Deus-Pátria-Família-Liberdade”, sem saber ou conscientemente sabendo, que na história as expressões em seu conjunto representou um flerte, uma aproximação, um apoio, uma diluição às ideologias totalitárias nazifascistas do entreguerras e à ditadura militar brasileira.

A repercussão disso está na defesa de políticas de armamento, excludentes de ilicitude, operações policiais em favelas com resultados catastróficos, em que se legitima os opostos entre a cidade branca e a cidade negra, entre o Brasil rico e o Brasil pobre. A síntese míope, reduzida à versão dicotômica dos tempos políticos em que vivemos, está no que muitos dizem polarização política, que não cabe em qualquer comparação cujo parâmetro seja o extremismo de um dos lados.

Essa insistente dicotomia traz à tona a crença na “ordem” e no “progresso” através de políticas eugênicas, higienistas, autoritárias, manifestadas pela necropolítica. Tal situação empoderou figuras personificadas em chantagistas contra educadores e profissionais da saúde, youtubers vociferantes, agressores públicos de artistas e da cultura brasileira, golpistas contra as urnas eletrônicas, que engrossam manifestações com o apoio, ou o assédio, de empresários que não perderiam a oportunidade de uma ruptura institucional. Disso são revigorados preconceitos e chanceladas ações repressivas em que se tenta justificar massacres contra o povo pobre, negro, indígena, tantos que nos são cotidianos, tantos “Paralelos 11”, “Carandirus”, “Corumbiaras”, “Carajás”, “Jacarezinhos”, “Guapoys”.

A mesma década surrada de 2010 ambientou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e um giro ético-político-historiográfico. Muitas forças progressistas construídas e consolidadas ao longo da redemocratização brasileira fortaleceram a resistência e a perseverança em defesa do Estado Democrático de Direito. O material oferecido pela CNV nos permite reiterar que a democracia e a luta pelos direitos humanos são cotidianas, entre avanços e revezes, numa intrincada relação com o tempo que não pode ser vista de maneira linear ou determinista. A compreensão da história exige um debruçar sobre as especificidades. É na peculiaridade, na empiria e na sua potencialidade de diálogo com o campo teórico que se faz e se escreve a história, algo que nos remete ao quanto as décadas de 1970 e 1980, em suas descontinuidades, podem explicar tempos presentes.

No volume II do Relatório da CNV encontram-se textos temáticos em que são apresentadas violações de direitos humanos no meio militar, nas igrejas cristãs, nas universidades, contra homossexuais, trabalhadores, camponeses e povos indígenas. No texto 3, que tratou de violações de direitos humanos contra camponeses, está o relato da intervenção militar realizada, em 1981, no acampamento de trabalhadores sem-terra da Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta, Rio Grande do Sul. A operação foi liderada pelo tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido como major Curió, “responsável pela repressão do projeto Araguaia e o extermínio de todos os guerrilheiros, mesmo depois de rendidos pelo Exército” (BRASIL, 2014, p. 132).

Os relatos sobre Curió ganharam maior visibilidade quando, em maio de 2020, um dia após Jair Bolsonaro participar de manifestação em frente ao Palácio do Planalto contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), o então tenente-coronel da reserva foi recebido pelo presidente, fora da agenda. As cenas dos dois sorridentes lado a lado foram repercutidas nas inúmeras reportagens da grande imprensa, em sites de esquerda à direita, simbolizando ainda mais a aproximação do atual governo com a ditadura militar e evidenciando usos políticos do passado.

O ato nos chama a atenção para as movimentações que não são despretensiosas, mas articuladas. Depreende-se delas passados-presentes na dimensão pública brasileira sobre a ditadura militar e suas ameaças ao Estado Democrático de Direito. Além disso, explica parte do lugar ocupado pelo atual presidente contra os movimentos sociais, abrigando e representando os que defendem transformar as ocupações de terras em “ato de terrorismo”. As terras em questão são irregulares, improdutivas, passíveis de desapropriações, e ainda expressam os cativeiros, as violências, as desigualdades, as discriminações dos tempos de monarquia, tempos de oligarquias que fundamentaram a República com as forças militares que, de tempo em tempo, foram autorizadas a aplicarem golpes, intervenções.

A situação, como tantas outras, instiga tratar da função social de historiadores, da produção historiográfica em suas relações com as batalhas de memórias, os usos políticos do passado, a democracia e a cotidiana construção dos direitos humanos (DE BAETS, 2010). A destruição de políticas públicas inclusivas, o silenciamento de vozes plurais e periféricas, os ataques às minorias, o menosprezo à ciência e à diversidade do conhecimento histórico nos oferece um retrato do quanto os ideários de um Estado Nacional de perspectiva una, homogênea, autoritária, que esconde informações de interesse público, são anacrônicos em tempos que exigem ações em defesa da democracia através do respeito, de costuras entre falas, lugares sociais, amplos e abertos debates, de informações transparentes.

Não se pode negar que no Brasil, desde a década de 1980, ocorreu uma expansão de políticas públicas que muito fortaleceu a história, a diversidade e a democracia. A reivindicação, elaboração e visibilidade de representações de passados de grupos sociais, políticos, culturais e econômicos, repercutiram através de leis-memória, de conferências nacionais de direitos humanos, de legislações educacionais, de movimentos sociais, de investimentos em produções midiáticas, configurando e dinamizando a cultura histórica contemporânea.

Tais conquistas legitimadas num campo de disputas democráticas foram acrescidas por políticas de ações afirmativas, como as cotas raciais nas universidades públicas, e os processos judiciais, em geral, que exigiram reparações do Estado aos que sofreram com práticas de repressão e se posicionaram contra envolvidos em casos de violação dos direitos humanos nos tempos de ditadura militar (QUADRAT, 2018, p. 213-214).

Embora nas décadas que separam a derrota do nazifascismo e os tempos em que vivemos tenham sido construídas políticas de memória alinhadas às pautas dos direitos humanos e de globalização de temas sensíveis da história, como o holocausto (HUYSSEN, 2014) que, sob perspectivas éticas, decantou-se numa memória em defesa da dignidade humana, no Brasil, as incompletudes da democracia, enquanto reflexo da transição de regimes sustentada pela anistia política, tornaram a ditadura militar um campo de batalhas de memórias marcado por tensões, conflitos, negociações e consensos.

Nossos problemas e fantasmas não estão mais apenas nos horrores que fascinam o público amplo e diverso através de filmes, novelas, jornais e revistas. Estão em ambientes virtuais, ferramentas, plataformas e aplicativos de comunicação, lugares em que idealizadores e divulgadores propagam falsas ideias de liberdade de expressão para agredir, assediar, discriminar, perseguir, cometer crimes de homofobia e racismo, difundir fake news que levam a linchamentos públicos.

Isso demonstra que novos combates pela história se fazem presentes, exigindo posições de profissionais de história. A alimentação do discurso de ódio, o poder crescente de influenciadores em ambientes específicos de comunicação, onde falam para públicos cada vez mais capilarizados e que se relacionam em bolhas, criam grupos que vivem mundos paralelos e fazem crescer o número de células extremistas, defensoras de ideias nazifascistas, do supremacismo branco, masculino, misógino, de negacionismos de temas tão caros à história.

Contra essas e tantas outras concepções e crenças que corroem a democracia são necessárias políticas públicas que reforcem a inclusão social, as ações afirmativas, a educação antirracista, a equidade de gênero, o combate às desigualdades econômicas, o respeito e a defesa da diversidade cultural. Como parte do giro-ético-político, profissionais de história podem contribuir com a produção e divulgação de espaços de conhecimento para reforçar a visibilidade de vozes plurais, em defesa da história, da diversidade e da democracia, em defesa de tantas outras independências.

Material suplementario
Referências
BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos. Brasília: CNV, 2014.
DE BAETS, Antton. O impacto da Declaração Universal dos Direitos Humanos no estudo da História. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 5, p. 86-114, 2010.
FONSECA, Thais Nívea de Lima e. Ensino de história, mídia e história pública. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
KRAAY, Hendrik. Definindo nação e Estado: rituais cívicos na Bahia pós-independência (1823-1850). Topoi, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 63-90, 2001.
MALERBA, Jurandir. As independências do Brasil: ponderações teóricas em perspectiva historiográfica. História, São Paulo, v. 24, n.1, p. 99-126, 2005.
MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972.
QUADRAT, Samantha Viz. É possível uma história pública dos temas sensíveis no Brasil? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (orgs.). Que história pública queremos? / What public history do we want? São Paulo: Letra e Voz, 2018.
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