Resumo: No Rio de Janeiro, de início do século XX, africanos da nação mina, minoria na cidade, eram conhecidos por professarem tanto o Candomblé quanto a fé muçulmana. Este artigo segue os passos de uma figura central para o grupo mina da cidade, Emanuel Ojô, que liderava e financiava as viagens de seus conterrâneos da cidade de Lagos para o Rio de Janeiro, capital da República brasileira do período, ensinando a religião muçulmana e a inserção no mercado de “feitiços”, levando em consideração as questões políticas tanto de Lagos, que passava pelo chamado “Renascimento/Nacionalismo Yorubá”, quanto do Rio de Janeiro com as transformações sociais da Belle Époque e a perseguição às religiosidades de origem africanas.
Palavras-chave: Lagos, Rio de Janeiro, Islamismo, Candomblé.
Abstract: In Rio de Janeiro, at the beginning of the 20th century, Africans from the mina Nation, a minority in the city, were known for professing both Candomblé and the Muslim faith. This article follows in the footsteps of a central figure for the city's Minas group, Emanuel Ojô, who led and financed the trips of his countrymen from the city of Lagos to Rio de Janeiro, capital of the Brazilian Republic at the time, teaching the Muslim religion and the insertion in the market of “spells”, taking into account the political issues of both Lagos, which went through the so-called “Renascence/Yorubá Nationalism”, and Rio de Janeiro with the social transformations of the Belle Époque and the persecution of religiosities of African origin.
Keywords: Lagos, Rio de Janeiro, Islam, Candomblé.
Resumen: En Rio de Janeiro, a principios del siglo XX, los africanos de la Nación mina, minoría en la ciudad, eran conocidos por profesar tanto el Candomblé como la fe musulmana. Este artículo sigue los pasos de una figura central del grupo Minas de la ciudad, Emanuel Ojô, quien lideró y financió los viajes de sus compatriotas desde la ciudad de Lagos a Rio de Janeiro, entonces capital de la República Brasileña, enseñando a los musulmanes la religión y la inserción en el mercado de los “hechizos”, teniendo en cuenta las cuestiones políticas tanto de Lagos, que pasó por el llamado “Renacimiento/Nacionalismo Yorubá”, como de Río de Janeiro con las transformaciones sociales de la Belle Époque y la persecución de religiosidades de origen africano.
Palabras clave: Lagos, Rio de Janeiro, Islam, Candomblé.
DOSSIÊ 19: HISTÓRIA, MEMÓRIA E PRÁTICAS DAS PERIFERIAS BRASILEIRAS, AFRICANAS E LATINO-AMERICANAS: CIDADANIA, INVISIBILIDADE SOCIAL E SILÊNCIO
EM NOME DE ALLAH E DE ORIXÁ: CONEXÕES ENTRE LAGOS E RIO DE JANEIRO NOS ANOS DE 1890-1930
In the name of Allah and Orixá: connections between Lagos and Rio de Janeiro in the years 1890-1930
En el nombre de Allah y Orixá: conexiones entre Lagos y Rio de Janeiro en los años 1890-1930

Recepción: 28 Abril 2022
Aprobación: 16 Junio 2022
O Rio de Janeiro de início do século XX era recheado de diferentes práticas religiosas africanas que ocorriam pelas ruas da região central da cidade. Aqui destacarei o Candomblé de origem Yorùbá (nagô/ketu) e o Islamismo, ambas religiões praticadas pelo grupo de procedência mina, também conhecido por nagô na Bahia. Os minas do Rio de Janeiro eram minoria dentre os demais grupos étnicos de origem africana, mesmo assim, se consolidaram como um grupo extremamente articulado e de ajuda mútua entre os seus, principalmente em suas práticas religiosas e de mercado.
Embora, de antemão, pareçam ser dois grupos distintos, os praticantes de Candomblé e os muçulmanos dialogavam entre si a todo momento. Mesmo com etnias diferentes se viram pertencentes ao grupo mina no Brasil, nome pelo qual africanos que teriam sido embarcados na Costa da Mina, ficaram conhecidos. Com as trocas de experiências em comum as fronteiras étnicas existentes anteriormente foram dissolvidas (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 152). A Costa da Mina era a nomenclatura utilizada pelos comerciantes negreiros para identificar os africanos embarcados nessa área, ao mesmo tempo em que os próprios escravizados incorporaram esse nome como forma de autodesignação. Marisa Soares (2019) enxerga a identidade mina como diaspórica, resultado da violenta dispersão das populações africanas pelo mundo atlântico durante os séculos de escravidão.
Que a população de africanos muçulmanos na Bahia era extensa muito já se sabe, todavia, ainda é preciso olhar para as comunidades muçulmanas africanas da cidade do Rio de Janeiro que passaram a crescer em fins do século XIX, motivadas pela intensa perseguição a esse grupo na província da Bahia por conta da revolta dos malês de 1835 ocorrida em Salvador. Juliana Farias, Carlos Eugênio Soares e Flávio Gomes (2005) revelam que em meados do século XIX a parcela de pretos mina na cidade era considerável, visto que dominavam o mercado de “venda de feitiços” e as atividades urbanas em geral, predominavam no trabalho ao ganho.
Segundo as pesquisas de Marisa Soares (2019), os pretos mina já eram presentes no Rio de Janeiro desde o século XVIII. Conhecidos como Makii, foram responsáveis por fundarem uma congregação na cidade que carregava o mesmo nome, instalada na Igreja de São Elesbão e Santa Efigênia, contando com 134 indivíduos. Já nessa época, os mina se organizavam em grupos de sociabilidade que absorviam aqueles que chegavam escravizados da mesma área, instruindo-os para o trabalho urbano. Além disso, Soares (2019) comenta sobre as juntas de alforria, responsáveis por financiar a alforria de muitos outros mina em cativeiro. Um caso parecido foi o de Domingos Sodré (REIS, 2006, p. 39), que chegou a liderar uma junta de alforria na Bahia no século XIX. Domingos Sodré teria vindo da cidade de Lagos escravizado e, uma vez liberto, passou a exercer as funções de sacerdote e adivinho, misturando práticas do Candomblé com práticas religiosas muçulmanas.
Lagos também é a cidade natal de alguns dos indivíduos da comunidade mina do Rio de Janeiro de início do século XX, tendo como seu principal líder Emanuel Ojô, que teve sua vida exposta nas páginas do jornal Gazeta de Notícias, em 1904, numa reportagem chamada A Galeria dos Feiticeiros, que trazia o nome de três indivíduos e um breve possível relato sobre suas vidas.
Importante ressaltar que essa nomenclatura “feiticeiros” não era aceita pelos grupos religiosos afro da cidade. Segundo Eduardo Possidônio (2015, p. 22), feiticeiro era a forma pejorativa que líderes religiosos eram chamados, aqui e em solo centro-africano. O mesmo não acontecia em relação aos fiéis seguidores desses líderes, que reconheciam os mesmos como ngangas, quibombos, tatas, pais-de-santo e, nesse caso, alufás. Evans Pritchard (2005, p. 181), em pesquisa sobre o povo Zande, habitantes da região da África Central, diz que os feiticeiros eram aqueles que faziam os outros adoecerem por meio de ritos mágicos com drogas maléficas. Para os Azande, a feitiçaria era o uso maligno e antissocial da magia, não sendo tolerado na sociedade e com risco de prisão ou morte. A feitiçaria era vista como inimiga da humanidade e da boa-magia, por conta disso, esses indivíduos, quando levados à Delegacia, afirmavam categoricamente não serem feiticeiros e negavam praticar feitiçaria.
Essa reportagem foi resultado do estrondoso sucesso do best-seller lançado anteriormente pelo jornalista João do Rio, As Religiões no Rio, em que menciona seus encontros e percepções sobre a vida da população preta da cidade, bem como seus modos de vida e religiosidades. Um olhar altamente marcado pelo darwinismo social e higienismo que imperavam na época. Vamos a referida reportagem:
EMANUEL OJÔ
É filho de um relojoeiro na África, em Lagos. Mais ou menos rico, mas perdulário, polígamo, gastando muito, andando sempre a cavalo, era preto, elegante, o príncipe de Sagan de carapina. Quando o cobre diminuiu, fez-se trabalhador de estiva e nem um seu parente, rei de uma tribo do interior, rei dos Ifé, conseguiu minorar-lhe as agruras do trabalho.
Ojô, que entre ingleses é simplesmente o Schmidt, não acreditava muito em feitiço, temendo-o, entretanto. Nesse estado do ceticismo, o negro comprava os feitiços novos, todas as inovações da alquimia africana.
Um dia, cansado de trabalhar, veio para o Brasil, onde aprendeu o “alicuri dos alufás”. Todos o respeitam e dizem-se seus parentes. Só um lhe tem raiva, o celebre João Mussé.
Ojô é o consultor técnico dos pretos; na sua casa é que se dão as reuniões dos feiticeiros, que se resolvem as contendas, que se escrevem cartas, que se resolve quem há de morrer. Contam-se desse negro e da sua tenda de feitiço coisas pouco morais. Ojô tem agora em casa o africano Sanim que chegou da África, fingindo ter feitiços novos, entre os quais o feitiço do marimbondo, o marimbondo que leva a morte e o Ipê praga, pauzinhos com pimenta da costa, que custam apenas 150$000 (Gazeta de Notícias, 20/3/1904, p. 5).
Emanuel Ojô foi uma importante figura para a comunidade mina da cidade nesse período, uma vez que sua casa era o ponto de referência para aqueles que vinham da Bahia tentar a vida na então capital do país. Era considerado uma pessoa de posses, por isso conseguia ajudar aos demais que se aventuravam a vir para a cidade. Chegou a abrigar personalidades ilustres, como Abubaca Caolho. João do Rio chega a conhecer a casa de Ojô e a descreve da seguinte maneira: “A sala tinha areia no assoalho, os móveis concertados indicam que Ojô vive bem. Numa cadeira um fato branco engomado, e mais longe o chapéu de palha atestava a presença do feiticeiro” (RIO, 1976, p. 53). O jornalista ainda cita diversos sacerdotes famosos que viviam na casa de Ojô, dentre eles está tio Sanin. Sua casa estava localizada na rua dos Andradas, no bairro Centro, no Rio de Janeiro.
João Sany ou tio Sanin era um malê que convivia com o povo de orixá. Muniz Sodré e Luís Felipe de Lima (1996) descrevem Sanin como uma importante figura para a formação do Candomblé Kétu2 no Rio de Janeiro, no bairro da Saúde, em 1895, juntamente com mãe Aninha, importante yalorixá, fundadora do Ilé Opô Afonjá. João Sany residia na região central do Rio e, em 1908, tendo 52 anos, foi processado3 pelo artigo 1574 do Código Penal da Primeira República. Em sua residência foram encontrados, dentre outros objetos, dois Alcorões, um em português e um em árabe, diversos papéis com orações em árabe, tábuas e tintas de arroz queimado que eram utilizadas para a aprendizagem do Alcorão, onde o aluno escrevia com a tinta passagens do Alcorão nas tábuas que depois eram lavadas e a água bebida para “fechar o corpo”.
Sany se autodenominava como “professor da religião de Allah” e, nas investigações que levaram ao processo, inúmeros bilhetes foram encontrados em sua casa. Esses bilhetes foram escritos por pessoas comuns com diferentes pedidos de feitiços, destacando aqui a grande quantidade de feitiços para o amor e proteção. Assim como os demais muçulmanos processados nesse período, Sany consegue reaver seus objetos apreendidos, diferentemente dos processados por praticar Candomblés. Na ocasião, Emanuel Ojô é quem assina e financia o pagamento da fiança de 900 réis estabelecida pela justiça para a soltura de Sany.


Outra figura importante nesse cenário é Abubaca Caolho, outro pupilo de Emanuel Ojô:
ABUBACA CAOLHO
Nasceu também em Lagos. É filho de um grande feiticeiro, mas sabe tanto disso como qualquer neófito. É o tipo do explorador inconsciente. Veio para o Brasil como carregador. Com o auxílio de Ojô estabeleceu-se com feitiçaria numa casa que Alikali, o Lemamo alufá resolveu fazer sua. Vive exclusivamente da feitiçaria, é o homem do xúxúguraxú, o espinho molhado em ovo, que causa desgraça.
Na sua pretensa sabedoria inventou também o feitiço da sarna: cabeça de urubu torrada atirada em cima das pessoas com três orações recitadas a seguir, com os olhos fechados.
Abubaca não rejeita serviços. Um cidadão qualquer vai á baiuca da rua do Rezende pede a lua, o sol, meia dúzia de rainhas de Sabá, o amor da imperatriz da Coréia. Abubaca enxuga o seu olho estragado e murmura:
- Eh! Eh! Pore se fazê ...
E para começar pede logo dinheiro.
Têm-lhe acontecido várias infelicidades por causa desse sistema.
Abubaca bebe muito, já tem estado várias vezes na Detenção, por embriaguez. E é a esse homem que que muita gente vai saber do futuro (GAZETA DO POVO, 20 de março de 1904, p. 5).
As informações sobre Abubaca são mais esparsas ainda. Pouco do que se sabe é o que foi citado por João do Rio, que o descreve como “o alcoólico da rua do Rezende”. Além disso, o jornalista explica que ele era conhecido por praticar o ibá, que seria um feitiço que o próprio teria inventado, e seria composto por uma “(...) cuia com pimenta da costa e ervas para fazer mal. Quando se fala do ibá, diz- se simplesmente: o feitiço de Abubaca” (RIO, 1976, p. 54).
Abubaca Caolho também nasceu em Lagos e, pela descrição, por ser bem próximo de Ojô e ainda ter sido ajudado por ele, pode-se levantar a hipótese de que fosse seguidor do Islamismo malê, talvez um aprendiz de alufá. Um detalhe a se levar em consideração é o problema com o álcool, descrito pelo jornal, o que o teria levado a prisão algumas vezes. Todavia, a doutrina muçulmana proíbe o consumo de álcool por seus adeptos. Mota (2018, p. 224) explica que a demanda por bebidas alcóolicas era muito comum entre os povos em que o Islã ainda não havia penetrado ou encontrava-se em processo de estruturação.
Assim como Abubaca Caolho, Apotijá, célebre sacerdote muçulmano da época, chegou em terras cariocas advindo da cidade de Lagos e tudo indica que também obteve auxílio de Emanuel Ojô para a viagem e estadia na cidade. João do Rio (1976), em uma de suas andanças em busca dos religiosos africanos, cita Apotijá em suas crônicas como um “mina famoso pelas suas malandragens, que mora na rua do Hospício 322 e finge de feiticeiro falando mal do Brasil” (RIO, 1976, p. 27).
Segundo as fontes jornalísticas, Apotijá teria chegado ao Rio de Janeiro no ano de 1897 com o objetivo de trabalhar como carregador, profissão que já estava em decadência nesse período, mas com a ajuda de Ojô, ele teria se lançado nesse mercado de feitiços na cidade. Na ocasião de sua morte, em uma sexta-feira do dia nove de dezembro de 1904, o jornal Gazeta de Notícias anunciava que metade de sua herança teria sido entregue ao seu lemamo, líder dos africanos muçulmanos da cidade, que poderia ser o próprio Ojô. O jornal ainda destaca que Apotijá era um alufá também e seu sepultamento foi dentro da crença muçulmana:
Apotijá era alufá. Sepultou-se, pois, de bruços, envolto numa peça de morim branco. No sétimo dia, os negros feiticeiros Hilário Bursima, Sanin, Dudu de Oxum, Maria Luiza, Henriqueta, etc, farão o ocê, isto é, uma vigília em que se dançará e se comerá muito. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 9/12/1904).
Em uma terça-feira do dia treze de dezembro de 1904, o jornal Gazeta de Notícias anunciava as cerimônias fúnebres de Apotijá, em sua casa na rua do Hospício, n. 328, endereço diferente do qual João do Rio mencionou na crônica.8 A cerimônia seria feita com um Candomblé.
Realizam-se amanhã na rua do Hospício n. 328, na casa do falecido feiticeiro Apotijá, as cerimônias fúnebres com que os negros orixalás comemorarão a sua morte.
Quem quiser ver de perto as cenas ultra-horríveis que João do Rio conta no seu livro As Religiões no Rio, pode aparecer nesta rua, onde se iniciarão as cerimônias com um candomblé. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 13/12/1904).
Em outra oportunidade encontramos esse grupo de alufás, em 1904, participando de uma festa de Candomblé, provavelmente a Fogueira de Ṣàngó, festa realizada no mês de junho em homenagem ao orixá Ṣàngó. A reportagem do jornal Gazeta de Notícias, denominada S. João entre os Africanos, descreve com detalhes essa festa e cita alguns nomes de personalidades presentes no momento, com destaque para Ojô, que chega a discursar nessa ocasião falando sobre os “Candomblés de Lagos”.
Emanuel Ojô, também conhecido como Emanuel Ojô Schmidt, teria vindo ao Brasil com o objetivo de ensinar a religião muçulmana, passando seus ensinamentos aos demais colegas compatriotas que saíram de Lagos para tentar a vida no Rio de Janeiro, então capital do país.
A cidade de Lagos nesse período vivia uma intensa transformação, deixando de ser um dos maiores portos negreiros durante cinquenta ano, 1800-1850, experimentando um crescimento econômico sustentado pelo tráfico, para se tornar, em 1851, um porto seguro para os libertos, principalmente advindos do Brasil. Segundo Law (1983), desde 1820, os negócios de Lagos estavam intrinsecamente ligados ao tráfico negreiro. Entre 1801 e 1810, a cidade teria sido responsável pelo envio de onze mil cativos à América. Até 1850 Lagos manteve sua posição de proeminência frente aos demais portos de embarque de cativos da região da Costa da Mina, mesmo ano em que se tornou um protetorado britânico.
Em meados do século XIX, a cidade de Lagos vivia em meio a uma guerra pelo trono protagonizada por Kosoko e Akitoye. Kosoko era irmão do obá Idewu Ojulari, obrigado a cometer suicídio pelos chefes locais e não deixando herdeiros ao trono. Com a morte, Kosoko apresenta sua intensão ao trono em 1835, porém, não conseguindo apoio foi em direção ao exílio. Segundo Mann (2007), Akitoye teria assumido a posição de obá de Lagos e logo depois convidou seu sobrinho Kosoko para retornar e assumir o controle do mercado da cidade.
Mesmo com todas as facilidades ofertadas por Akitoye, Kosoko teria instigado uma série de ataques ao responsável pela nomeação de Akitoye ao trono, Eletu Odibo,9 que precisou se exilar da cidade. Pouco tempo depois, Akitoye ordena o retorno de Odibo10 a Lagos e, em 1845, Kosoko dirige uma ofensiva contra seu tio Akitoye. Contando com o apoio de Ijebu e Daomé, Kosoko queima a cidade e impede o abastecimento de água levando o exército de seu tio a beber água salgada, momento que ganhou o nome de Ìgá Omiró (a batalha da água salgada). Kosoko consegue tomar o controle da cidade após 21 dias de batalha, a morte de Eletu Odibo e o exílio de Akitoye para Abẹ́òkúta.
A cidade de Abẹ́òkúta, nesse período, também passava por maus momentos, pois tinha acabado de assumir uma posição dominante na região e despontava como cidade forte e segura para o povo Egbá, que já tinha sofrido com as guerras do exército fulani contra o império de Ọ̀yọ́ para instalação do Califado de Sokoto. Em 1845, Abẹ́òkúta tinha perdido seu poderoso rei Sodeke e, no mesmo ano em que Akitoye se refugia na cidade, havia uma disputa interna pelo controle político entre líderes militares e civis.
Gebara (2006) conta que o líder militar, Apati, teria apoiado o governo de Kosoko e demandado a cabeça de Akitoye, enquanto o líder civil, Okukenu, teria fornecido asilo ao mesmo, em claro desafio a autoridade de Apati, o que teria dividido a cidade em duas facções, anti e pró escravista. Além disso, para Biobaku (1857), o que estava em jogo era o apoio ou não à autoridade inglesa na região, assim como a atuação de missionários ingleses. Okukenu não conseguiu conter Apati e essa situação fez com que Akitoye fosse obrigado a se refugiar em Badagry (Gbagli). Um pouco depois dessa situação, a facção dos civis, favorável a atuação inglesa a cidade de Abẹ́òkúta, vence e a Inglaterra começa a interferir na política local com amplo apoio aos governantes civis.
Silva (2016) observou que durante o tempo em que Kosoko governou Lagos houve um salto no comércio ilegal escravista, além de ampliar o número de escravizados embarcados. Entre os anos de 1846 e 1850 mais de 13 mil cativos foram enviados a América ilegalmente. Importante lembrar que no governo de Akitoye o comércio escravista se mantinha como principal atividade comercial da cidade, conforme apresenta os dados fornecidos pela Trans-Atlantic Slave Trade Database,11 entre os anos de 1841 e 1845. No período em que Akitoye governava Lagos um pouco mais de 11 mil cativos foram embarcados nos negreiros em direção a América.
Em 1851 os ingleses bombardeiam a cidade de Lagos e restauraram o poder de Akitoye com a promessa de cessar de vez o tráfico negreiro. Kosoko foi exilado e um consulado instaurado na ilha. Cunha (2012) lembra que após esse período, em 1861, a Inglaterra forçou o então rei Docemo, filho de Akitoye, a vender a ilha ao domínio britânico, estabelecendo assim uma colônia que, desde 1851, passou a ser um porto seguro para os libertos da América que desejassem retornar ao continente.
Com o fim do tráfico negreiro na cidade, sua principal fonte de renda até então, a saída foi o comércio do azeite de dendê, já comercializado em pequenas quantidades, que passou a ter maior importância em fins do ano de 1830, principalmente para a Inglaterra que utilizava como lubrificante e combustível industrial (CUNHA, 2012, p. 139), sendo substituído pelo petróleo e seus derivados em 1860. O comércio do azeite de dendê foi apelidado de “comércio inocente” e apoiado por abolicionistas ingleses, contudo, o lucro não chegava nem próximo ao que era obtido com o comércio escravista, mas foi uma estratégia do governo inglês para evitar um colapso da economia lagosiana. Mesmo assim, Cunha (2012) verificou um aumento na demanda interna por escravos para as plantações de dendê.
Sobre os anos iniciais do consulado inglês em Lagos, Smith (1974) comenta que houve um salto no número de comerciantes de óleo de palma que se estabeleciam na cidade em busca do comércio mais vantajoso direto com a cidade de Abẹ́òkúta e o interior pelos rios. Gebara (2006) indica que nesse mesmo período começa o serviço de vapores entre a costa africana e a Inglaterra, tendo Lagos como principal parada, considerada o “porto de Abẹ́òkúta”, pela companhia African Steamship Company. Esse fato ocasionou em uma migração de comerciantes de diversas etnias que habitavam Serra Leoa e encontraram uma oportunidade de crescimento de seus negócios aumentando o fluxo comercial da região.
Em 1852, o governo inglês fez com que Akitoye assinasse o tratado que estabelecia o protetorado britânico na ilha de Lagos. Esse documento estabelece os acordos em torno da abolição do tráfico negreiro e os limites e obrigações a serem respeitadas por Akitoye e os próximos governantes a respeito do tráfico de escravos na localidade.
Artigo 1º. A exportação de escravos para países estrangeiros está abolida para sempre dos territórios do rei e chefes de Lagos. O rei e os chefes de Lagos se comprometem a elaborar e a proclamar uma lei proibindo que qualquer um de seus súditos, ou qualquer indivíduo sob sua jurisdição, venda ou auxilie a venda de algum escravo a ser transportado a um país estrangeiro. O rei e os chefes de Lagos prometem aplicar severas punições a qualquer pessoa que não cumprir esta lei.
Artigo 2º. Nenhum europeu ou outra pessoa que se dedique a qualquer atividade ligada ao tráfico estará autorizada a residir dentro do território do rei e dos chefes de Lagos. Nenhuma casa, ou armazém ou construção poderá ser erguida com o propósito de servir ao tráfico de escravos dentro do território do rei e dos chefes de Lagos. E, se algumas destas casas, armazéns ou construções for erguida no futuro, e nenhum rei ou chefe de Lagos se mostrar apto a destruí-las, elas serão demolidas por oficiais britânicos empregados na supressão do tráfico.
Artigo 3º. Se, no futuro, o tráfico de escravos voltar a ser praticado no território do rei e dos chefes de Lagos, este poderá ser destruído pela Grã-Bretanha à força. Os oficiais britânicos poderão capturar as embarcações de Lagos em qualquer lugar que estejam a negociar escravos e o rei e chefes de Lagos estarão sujeitos à severa censura da rainha da Inglaterra.
Artigo 5º. Europeus e outras pessoas, atualmente engajados no tráfico de escravos, serão expulsos do país. Suas casas, armazéns ou construções até então empregados como fábricas de escravos, se não forem convertidos em negócios lícitos, em um período de três meses da assinatura deste acordo, serão destruídos. (SMITH, 1979, p. 135-137).
Esse tratado levou à saída em massa de traficantes brasileiros da cidade. Sobre esse acontecimento Mann (2007) e Silva (2016) concordam que o grupo de brasileiros da cidade de Lagos ficou constituída majoritariamente por africanos libertos e seus descendentes, previamente estabelecidos ainda durante o século XIX. Além disso, Silva (2016) explica que o tratado assegurava e dava amparo as missões religiosas cristãs em Lagos. Esses missionários ficariam responsáveis em levar “a civilização aos povos bárbaros”.
O tratado que Akitoye teve que assinar e as medidas adotadas pela Coroa Britânica no decorrer desse período eram só o início dos planos de colonização da cidade de Lagos. Após a morte de Akitoye, em 1853, Docemo, seu filho, assume o cargo e passa a governar a cidade, por pouco tempo, já que em 1861 começam as negociações da Inglaterra para a cessão dos domínios da ilha e terminam com Docemo cedendo à pressão inglesa. Assim, nesse mesmo ano, a cidade de Lagos torna-se oficialmente colônia inglesa e visando abastecer a metrópole passa a cultivar não só o óleo de palma, já cultivado, como também o algodão, uma vez que o principal fornecedor da matéria-prima, os EUA, estavam no meio da guerra de secessão.
Falola e Heaton (2008) explicam que todo esse processo de colonização inglesa em Lagos, que durou 40 anos, teve por objetivo a interiorização da influência britânica pelos territórios Yorùbá e a cidade de Lagos como ponto de partida. Durante esse período a coroa britânica interveio em questões e disputas travadas no interior, pondo fim a conflitos e estabelecendo seu domínio nas cidades interioranas. A partir de então, esses territórios formaram o que ficaria conhecido como Colônia e Protetorado de Lagos. Com a intervenção britânica chegaram também os vapores e as ferrovias que ligavam Lagos as outras cidades interioranas “pacificadas” pela Inglaterra, facilitando as trocas comerciais e a penetração cada vez maior da metrópole.
Cunha (2012) acrescenta que a instalação de firmas nessas cidades fez com que, pouco a pouco, a atuação de comerciantes independentes e autônomos desaparecessem ou fossem incorporados às grandes firmas inglesas. Em 1890, mais uma mudança torna a vida dos africanos e retornados instalados na cidade mais difícil: eles deixam de assumir altos cargos, sendo substituídos por brancos. A burguesia de Lagos, que havia se preparado para suceder os ingleses, cuja administração esperavam fosse apenas transitória, sente-se abandonada e sem perspectivas.
A partir de então, a cidade escravista de antes, era conhecida como a “Liverpool da África Ocidental” (GLOVER, 1897, p. 91), um dos maiores centros comerciais da região. Na década de 1890 viu sua população aumentar e se tornar cada vez mais heterogênea com indivíduos de diferentes etnias habitando a cidade, a maioria refugiados das guerras intestinas dos territórios Ijebu e Egbá.
O Brasil se destacava como um dos principais parceiros comerciais de Lagos e concentrava o maior volume de operações realizadas. Silva (2016) ressalta que tanto Lagos quanto o Brasil teciam uma intensa troca comercial e cultural nesse período, sendo motivo disso a comunidade de retornados que viviam na colônia demandava artigos brasileiros necessários no cotidiano em Lagos.
A autora também chama a atenção para o crescimento da circulação de periódicos em 1880, quando eram divulgadas propagandas de produtos brasileiros e notícias do país.
(...) o analfabetismo entre a população em geral indicaria que os jornais eram lidos por uma pequena parcela de indivíduos que dominava a língua inglesa. No entanto, baixos índices de escolaridade não eram um limite à circulação do conteúdo impresso nas páginas destes veículos. (...) as notícias publicadas nos periódicos de Lagos eram retransmitidas de boca em boca e um mesmo exemplar de jornal poderia ser compartilhado por até quatro leitores. Era também comum igrejas e associações promoverem reuniões em que se realizavam leituras públicas de periódicos, panfletos e excertos de livros. (SILVA, 2016, p. 237).
Dessa maneira muitas pessoas conseguiam ter acesso as questões levantadas nesses periódicos, além da intensa circulação de notícias trazidas além-mar pelos comerciantes que fervilhavam na região central lagosiana. Essa troca de informações pode ser a resposta para a vinda de Emanuel Ojô e seus companheiros para a então capital do Brasil. A hipótese é que munidos de informações de compatriotas que já viviam no Rio de Janeiro, essa viagem para a cidade não teria sido arriscada, já que teriam uma rede de apoio e segurança para o ensinamento da fé muçulmana.
Nesse contexto de incertezas para os lagosianos, surge um sentimento de nacionalismo juntamente com um movimento de revisão cultural chamado “Renascença Yorùbá”. Cunha (2012) lembra que nesse período edita-se em Lagos um jornal bilíngue inglês-yorùbá, o Iwe Irohin Eko, fundado em 1888. A língua yorùbá, antes desprezada, passou a ser valorizada e ensinada nas escolas junto com o inglês. Outra medida dos nacionalistas foram os nomes e as roupas ocidentais, presente em uma campanha na imprensa que ridicularizava o uso de roupas ocidentais e de sobrenomes estrangeiros. Esse movimento era um combate a colonização inglesa, que, segundo Silva (2003), tinha por objetivo dissolver e aculturar o povo dominado para uniformizar o Estado, facilitando a dominação colonial.
A identidade política Yorùbá é uma identidade inventada pelo movimento nacionalista que começa em Lagos, consequência de um processo de construção histórico-cultural apoiado pela burguesia lagosiana que estava perdendo sua posição para os ingleses. Amselle e M’Bokolo (2014) explicam que quando nos referimos ao povo yorùbá estamos aludindo ao contingente de pessoas que ocupam grande parte da atual Nigéria, Togo e a República do Benin (antigo Daomé), e estão divididos entre os sub-grupos étnicos Egbá, Egbádo, Ọ̀yọ́, Ìjẹ̀ṣà, Ìjebú, Ifẹ̀, Ondo, Ilorìn, Ibàdàn, Kétu, entre outros. Já Clapperton (1829) e Law (1997) acreditam que o termo yorùbá derivaria de aouba ou uaba, palavras árabes que significam “pagão”, ou o termo Yarriba, também de origem árabe e que era utilizado para designar aqueles que eram de Ọ̀yọ́.
Para além das definições do termo, a identidade política Yorùbá foi acionada em um momento em que o poder colonial britânico estava sendo questionado pela população. Era parte de uma reação autoafirmativa dessas pessoas, que permitiu que os Yorùbá se tornassem a nação africana mais prestigiosa dessa região e explicaria a identificação como Yorùbá dos retornados da região ocidental africana. Para Silva (2002), assim que esses “brasileiros” chegavam nessa área, reconheciam-se pela identidade maior, a Yorùbá.
Essa situação em Lagos e nas demais regiões interioranas, atualmente Nigéria, chegou ao Brasil pondo em evidência os nagôs e minas que viviam no país, construindo uma forte identidade religiosa, a medida em que se observa a hegemonia do Candomblé nagô12, ou Kétu13 no Rio de Janeiro, na Bahia e na então capital do país. Parés (2010) chama esse processo de “nagoização” do Candomblé e o motivo seria o intenso diálogo entre a Costa da África e o Brasil, em sua maioria, pelo comércio de itens religiosos, além da troca de saberes que existia nessa travessia, o que facilitou a circulação transatlântica dos ideais do nacionalismo cultural que estava sendo promovido na região ocidental africana.
Importante lembrar que esse é o mesmo período em que Nina Rodrigues está pesquisando as culturas africanas na Bahia e categorizando as etnias existentes, colocando sempre no patamar mais alto a identidade e religiosidade nagô, assim como toda uma massa de pesquisadores da chamada Escola de Nina Rodrigues, como Arthur Ramos, vem depois repetindo essa sentença, o que pode ter auxiliado na hegemonização do Candomblé nagô/kétu no país em detrimento das demais nações.
No Rio de Janeiro de início do século XX o que se observou foi a união de um grupo que tinha por base a identidade mina e não a religião. Um forte exemplo dessa situação são as comunidades Yorùbás analisadas por Lovejoy (2000) em que os devotos de orixás e os muçulmanos estavam reunidos sob o prisma da mesma identidade, sendo o fator étnico o responsável por definir os valores identitários. A identidade não é estática, portanto, esses indivíduos podem acionar quantas identidades forem necessárias em diferentes momentos da vida.
Essas dinâmicas se encarregam de atualizar os laços entre os integrantes do grupo. Amselle e M’Bokolo (2014) enxergam as etnias como categorias flexíveis cujas fronteiras seriam permeáveis a contatos e trocas exteriores. Por isso, esses indivíduos não pertenceriam a apenas uma etnia, e sim, a um universo de identificações em que as identidades étnicas poderiam ser acionadas em função de contextos políticos, sociais e culturais específicos, como é o caso do renascimento cultural Yorùbá na região lagosiana.
No Rio de Janeiro essas pessoas eram identificadas pelo grupo de procedência mina e praticavam tanto o Islamismo quanto o Candomblé, sem distinções. A presença de pretos mina no país gerava desconfiança e histeria, ainda por conta da revolta de 1835, na Bahia. A população passou a temer aqueles que praticavam a religião muçulmana. Naquele período, principalmente na Bahia, os pretos “suspeitos de praticarem a feitiçaria malê” eram alvo de diversos abusos por parte do Estado. Além da violência física, diversas incursões policiais foram realizadas nas casas de africanos libertos ou não. Foi uma verdadeira caça às bruxas e qualquer objeto encontrado que ligasse o indivíduo à crença malê tornava todos os moradores prisioneiros imediatamente.
Ao mesmo tempo em que essas práticas se tornaram comuns na província baiana, na capital do Império não fora diferente. O reviste das casas de africanos foi adotado na cidade também, qualquer “preto suspeito” era investigado, do mesmo modo que batuques e outras manifestações religiosas africanas foram proibidas.
O viajante turco Al-Baghdadi14(2001) relata esse tipo de perseguição aos muçulmanos na cidade do Rio de Janeiro. Quando foi ensinar algumas práticas do Islã à comunidade malê foi alertado: “se você usar seus trajes, nós não poderemos mais ir a sua casa, e sua utilidade se esvairá, pois se os cristãos souberem que você é muçulmano hão de imaginar o mesmo de nós” (AL-BAGHDADI, 2001, p. 19).
Outro africano mina que habitava o centro do Rio de Janeiro, famoso nesse período e rastreado através dos processos judiciais, se chamava Horácio de Sá Pacheco.15 Alegava ter como profissão “dar consultas” e foi preso em 1907 na rua Barão de S. Félix, pelos artigos 157 e 158 do Código Penal de 1890. Em 22 de setembro de 1907, a Revista da Semana e o Jornal do Brasil fizeram uma reportagem sobre a apreensão feita pela polícia em sua residência trazendo, inclusive, fotos dos objetos apreendidos, dentre os quais, cartazes em árabe, tesubás, livros em árabe, um vidro com ervas maceradas, folhas escritas em árabe, diversos exemplares do Alcorão em português e árabe, mais de 500 mil réis, libras esterlinas, 20 francos, joias em ouro e algumas tábuas de madeira para o ensino da fé muçulmana, que segundo Horácio, tinham muito valor de cura.
Durante os depoimentos das testemunhas do processo de Horácio de Sá Pacheco, Sinval Pereira de Melo, o comissário responsável por fazer a prisão do referido alufá, conta que Horácio se descreveu como curandeiro de moléstias curáveis e incuráveis, dando consultas no momento da batida policial. Uma outra testemunha, Isidoro Pinto Guimarães, depois de ter se sentido mal de saúde, declarou ter ido se consultar com Horácio, que para resolver seu problema teria escrito em uma das tábuas com “uns pauzinhos e tinta preta” e logo depois teria dito a Isidoro que “fecharia seu corpo” na próxima visita, com um preparado de ervas, um “remédio”, que deveria ser ingerido. As demais testemunhas comentaram que Horácio realizava suas consultas com o Alcorão, abria em uma página e dali começavam as orações e curas. Logo depois, fazia a escrita de letras cabalísticas na tábua, com tinta de arroz queimado, e fazia a lavagem do objeto. A água da lavagem deveria ser ingerida pelo consulente para cura de moléstias e “fechamento do corpo”. Para tal, também se utilizava das diferentes ervas encontradas em sua casa.16
Sobre a utilização dessas tábuas de madeira, Freyre (1995) observa um ritual curioso. Os praticantes da religião importavam uma tinta azul da África, e com ela escreviam sinais cabalísticos em tábuas de madeira, por fim, lavavam essa tábua e a água com a tinta era bebida por quem quisesse “fechar o corpo; ou atiravam-na no caminho da pessoa que se pretendia enfeitiçar” (FREYRE, 1995, p. 312). Reis, Gomes e Carvalho (2017), esclarecem que a prática de escrever com tintas nas tábuas era muito comum na região muçulmana da África Ocidental, e eram utilizadas por neófitos da religião, a fim de aprender a língua árabe.
No Rio de Janeiro era comum em casas de alufás que utilizavam para a confecção de amuletos com passagens do Alcorão, além de figuras cabalísticas e encantamentos. O alufá Rufino,17 em seu depoimento, menciona mais detalhadamente um dos empregos desta prática dentro da religião dos alufás: “para tanto, escrevia o nome do moço de frente para o da moça num dos lados de sua prancha de orações e encantos e ‘rezava’ sobre o outro lado da mesma, quer dizer, escrevia fórmulas para amarrar casais” (REIS; GOMES; CARVALHO, 2017, p. 310). Priscila Mello (2009) explica que a adoção dos caracteres árabes para a confecção destes amuletos está ligada a ideia de proteção do corpo e também do espírito, evitando o esquecimento de sua cultura e suas origens.

Assim como os outros sujeitos apresentados acima, Horácio Pacheco trabalhava no mercado de feitiços da cidade. Atuando como curandeiro, dava consultas, “fechava o corpo” com a água da tinta de arroz queimado que lavava as tábuas, fazia remédios com as ervas encontradas em sua casa e se dizia embaixador de Allah na terra para curar a humanidade e dar fortuna a quem não a tem. Horácio era um curandeiro bem conhecido no Rio de Janeiro, sendo procurado por pessoas de diversas localidades da cidade e até fora do Estado, alguns doutores e políticos. A história de Horácio Pacheco tem algumas diferenças dos demais sujeitos analisados neste artigo. Horácio declarou ter 100 anos na época de seu processo, declarou também ter nascido na cidade de Lagos. Em entrevista ao Jornal do Brasil, declarou também ter chegado como escravizado ao Brasil em 1827 e, desde então, teria trabalhado para espalhar a palavra de Allah.

A vida desses indivíduos ainda precisa de mais análise e aprofundamento, assim como suas motivações para fazerem a viagem da cidade de Lagos para a então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, cidade que passava por uma intensa perseguição às manifestações religiosas africanas e afro-brasileiras, perseguição essa institucionalizada pelo governo republicano. Com o objetivo de “civilizar” e modernizar a cidade, nos moldes europeus, a ideia era afastar o quanto fosse possível qualquer marca da “degeneração” que poderia impedir a modernização da cidade, e a população preta e seus costumes eram o principal alvo da política de higienização social brasileira.



