Resumo: A independência do Brasil foi um movimento conservador que não garantiu direitos e cidadanias para os indígenas, caboclos e africanos que já formavam a maioria da população brasileira. Neste artigo, analisamos o processo de formação do imaginário da independência do Brasil nas periferias da sociedade brasileira. A inserção de caboclos, indígenas e africanos nas imagens representativas da independência do Brasil é fundamental para que as classes populares, na maioria das vezes concentradas nas periferias das grandes cidades, tenham sentido de pertencimento nos quadros políticos e sociais da nação brasileira, elaborando sentido popular orgânico para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil.
Palavras-chave: Caboclos, Indígenas, Africanos, Bicentenário, Independência.
Abstract: The independence of Brazil was a conservative movement that did not guarantee rights and citizenship for the Indigenous, Caboclos and Africans who already formed the majority of the Brazilian population. In this article, we analyze the process of formation of the imaginary of the independence of Brazil in the peripheries of Brazilian society. The insertion of Caboclos, Indigenous and Africans in representative images of the independence of Brazil is fundamental for the popular classes, most of the times concentrated on the outskirts of large cities, to have a sense of belonging in the political and social frameworks of the Brazilian nation, elaborating a popular sense. organic for the celebrations of the bicentennial of the independence of Brazil.
Keywords: Caboclos, Indigenous, Africans, Bicentennial, Independence.
Resumen: La independencia de Brasil fue un movimiento conservador que no garantizó los derechos y la ciudadanía de los indígenas, caboclos y africanos que ya formaban la mayoría de la población brasileña. En este artículo analizamos el proceso de formación del imaginario de la independencia de Brasil en las periferias de la sociedad brasileña. La inserción de caboclos, indígenas y africanos en imágenes representativas de la independencia de Brasil es fundamental para que las clases populares, la mayoría de las veces concentradas en la periferia de las grandes ciudades, tengan sentido de pertenencia en los marcos políticos y sociales de Brasil. nación, elaborando un sentido popular orgánico para las celebraciones del bicentenario de la independencia de Brasil.
Palabras clave: Caboclos, Indígenas, Africanos, Bicentenario, Independencia.
DOSSIÊ 19: HISTÓRIA, MEMÓRIA E PRÁTICAS DAS PERIFERIAS BRASILEIRAS, AFRICANAS E LATINO-AMERICANAS: CIDADANIA, INVISIBILIDADE SOCIAL E SILÊNCIO
INDÍGENAS, CABOCLOS E AFRICANOS: AS PERIFERIAS E O IMAGINÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Indigenous, Caboclos and Africans: the peripheries and the imaginary of the independence of Brazil
Indígenas, caboclos y africanos: las periferias y el imaginario de la independencia de Brasil

Recepción: 19 Mayo 2022
Aprobación: 21 Junio 2022
O bicentenário da independência do Brasil (1822-2022) tem suscitado um clima de celebração e comemorações oficiais com um forte caráter marcial a partir de iniciativas oficiais sem qualquer diálogo com as classes populares da sociedade brasileira. Do mesmo modo, podemos afirmar que a independência brasileira foi um movimento conservador que culminou na manutenção de uma monarquia exercida pela família real portuguesa, pelo menos para fins de entendimento prático desse processo. Apesar da maior parte da população já ser formada por indígenas, africanos e caboclos, fossem cativos ou libertos, é fato reconhecido que a narrativa de uma identidade nacional brasileira foi forjada sob a farsa do diálogo e da harmonia racial no Brasil. Em geral, nas narrativas historiográficas oficiais que se desdobraram em imagens que circulam em meios de comunicação de massa, como livros didáticos, filmes e novelas, o lugar reservado ao povo brasileiro no processo de independência do Brasil foi o de mero expectador, isto é, sem qualquer participação efetiva nos rumos da nação.
As narrativas historiográficas brasileiras perpetuaram o lugar de subserviência dos povos indígenas e africanos no processo de institucionalização do poder e de consolidação da formação da identidade nacional. Além disso, a figura do Caboclo, representação da pluralidade racial brasileira e símbolo de uma cultura religiosa popular, foi reduzida a uma ideia pejorativa de folclore, com poucas inserções na historiografia e, sobretudo, nas imagens sociais e culturais que circulam no imaginário das periferias. Neste caso, entende-se como periferia a ideia de um espaço de diálogo, construção e ressignificação que as classes populares fazem de si mesmas, de suas lutas e de suas próprias perspectivas de mundo. Neste sentido, este artigo propõe um deslocamento das visões elitistas e conservadoras da independência do Brasil para um aprofundamento nas relações que envolviam indígenas, caboclos e africanos nos espaços de formação popular da sociedade brasileira.
Considerando a história como disciplina do contexto (THOMPSON, 2001), a nossa proposta passa por uma nova contextualização das classes sociais periféricas para pensar outras independências possíveis. Para isso, é preciso constituir uma metodologia das pluralidades que permita um rompimento das marcas de poder da colonialidade que foram estabelecidas na sociedade brasileira desde os tempos da colonização (QUIJANO, 2005). Assim, mesmo cientes de um esgotamento da colonização europeia no Brasil por ocasião da independência, em 1822, neste artigo abre-se um debate sobre a importância de ampliar as reflexões historiográficas sobre a descolonização da história que se produz e que se ensina na sociedade brasileira.
O famoso quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo (1843-1905), é ainda hoje a principal imagem da independência do Brasil que circula nas periferias do estado do Rio de Janeiro. Ilustração marcante nos livros didáticos, a imagem expressada na obra de Pedro Américo também se tornou a principal referência visual sobre o evento em produções cinematográficas e televisivas, importantes fontes de informação para as classes populares concentradas nas periferias das grandes cidades brasileiras.1 Ironicamente, a obra de Pedro Américo também “normatiza” certa marginalização das classes populares nas principais decisões políticas do país, como se as experiências das periferias não fossem importantes para a elaboração das identidades nacionais.

Segundo Maria Lucia Jacobini (2012), durante o período monárquico havia um apelo para a representação da figura do imperador como símbolo da nacionalidade e a personificação do Estado. Assim, o fortalecimento da narrativa de centralidade da família imperial como signo maior da nacionalidade brasileira era uma forma de construção de identidade e constância política. Com forte influência nas narrativas nacionalistas da Europa, sobretudo o caso francês, havia um interesse na concentração da ideia de Estado com fortes relações com o Imperador. Assim, o uso das artes plásticas para narrar a impressão de estabilidade política garantida pela perpetuação da família imperial tornou-se um forte mecanismo de produção dessa narrativa. Porém, é importante perceber que um olhar artístico importado da Europa, assim como as visões historiográficas do período, impunha uma narrativa civilizatória, baseada nas premissas de racionalidade, virtude e constância, que excluía a maior parte da população brasileira formada por indígenas, caboclos, africanos e seus descendentes (JACOBINI, 2012).
A leitura historiográfica do quadro Independência ou Morte (1888) já foi realizada por diferentes estudiosos, incluindo as atividades de inúmeros livros didáticos adotados nas escolas da educação básica. Em geral, essas leituras repetem um roteiro do centro para as margens, seguindo a indução do olhar para o centro iluminado da tela e depois a sua dispersão para as margens mais sombreadas. No jogo de luz e sombras revela-se a segregação política que se perpetuou na sociedade brasileira desde os tempos coloniais. Contudo, também é importante destacar as ausências de africanos e indígenas, mesmo que às margens dos acontecimentos históricos. Apesar da representação popular marcada pela presença de um pequeno conjunto de “caipiras”, essa representação não assegura a diversidade e a participação popular nos acontecimentos que culminaram na independência do Brasil, em 1822. A obra encomendada pelo governo imperial brasileiro não promove encontros e significação popular na formação da sociedade brasileira independente, perpetuando uma imagem de marginalização das classes populares no processo de formação da cidadania brasileira (CARVALHO, 2012).
A independência do Brasil foi um processo conservador. Pelo menos, isso é um consenso na historiografia brasileira. Enquanto os acordos da independência efetivaram uma imensa indenização de Pedro I para Portugal e as elites regionais se organizavam para a manutenção de seus interesses econômicos, incluindo o avanço político dos grandes mercadores de escravos (cada vez mais inseridos no interior das decisões nacionais), africanos, indígenas e os demais matizes sociais que formavam as classes populares brasileiras continuavam sob o jugo da escravidão, da pobreza e da marginalidade social e política. Desse modo, a independência do Brasil resultou de um movimento político conservador que se impôs através da imprensa, das associações e reuniões que estabeleciam o constitucionalismo como uma ferramenta de defesa de interesses que passavam ao largo da maioria da população brasileira (COSTA, 2021; PIMENTA, 2009).
Ao longo do século XIX, a política do Estado brasileiro estabelecia uma tutela dos povos indígenas sob os interesses de missionários e políticos locais, estabelecendo uma ideia de preservação e proteção ao passo que, paradoxalmente, promovia ou admitia ofensivas contra os povos indígenas, que serviriam para a catequização de um passado mestiço e que gerariam uma nação americana, politicamente soberana e civilizada (CUNHA, 1992; ALMEIDA, 2008). No caso da população de africanos, a política econômica marcadamente baseada no tráfico negreiro e na escravidão demonstra que as perspectivas políticas imperiais não observavam uma ampla independência para as diferentes identidades regionais e periféricas que sistematicamente foram excluídas dos processos de cidadania dos oitocentos (MATTOS, 2018).

As disputas de narrativas que subjugavam e marginalizavam os povos indígenas e os africanos na formação da identidade brasileira estavam presentes em diferentes espaços sociais e no processo de monumentalização da memória nacional desde os fins do século XIX. Assim, os confrontos étnicos, as revoltas sociais e as disputas políticas que marcaram a efetiva participação popular no processo histórico brasileiro foram silenciadas por uma narrativa oficial e pela repressão imposta pelas elites regionais. Nas imagens e museus, importantes instrumentos de construção de um imaginário coletivo, inclusivo com seus usos didáticos, representavam indígenas e africanos em condição de subjugação, justificando políticas públicas excludentes que perpetuaram no Brasil durante esses últimos anos.
Nem de longe tão conhecido como o quadro de Pedro Américo, e com escassas informações a respeito de sua produção, o quadro de autoria desconhecida pertencente ao acervo do Museu Casa Padre Toledo, Tiradentes - MG, representa bem a narrativa oficial da relação do poder constituído com as populações das periferias brasileiras (imagem 2). Com a intenção de comemorar e celebrar a coroação de D. Pedro I, a pintura expressa a condição de subserviência das populações indígenas e caboclas na institucionalização do poder político e na consolidação do processo de formação das identidades nacionais brasileiras no âmbito do império. Ao mesmo tempo, distantes da corte e dizimados sistematicamente, pouco a pouco a figura indígena era convertida em símbolo do poder monárquico e do ideário de nação que começava a ser forjado, ganhando vida nas representações artísticas, em pinturas, esculturas e nos títulos de nobreza (SCHWARCZ, 1998).

Representações do indígena idealizado se expandiram a partir de um movimento iniciado na década de 1840, que visava estabelecer uma identidade mais clara da literatura nacional, e tendo Dom Pedro II como participante ativo do projeto. Fortalecer a monarquia e o estado a partir de uma unificação nacional era o lema, e promover uma espécie de unificação cultural era parte importante do projeto para a execução da ideia. Por ocasião da coroação de Dom Pedro II em 18 de julho de 1841, foi cunhada uma moeda comemorativa de autoria de Carlos Custódio de Azevedo, onde uma mulher indígena coroa Dom Pedro ao mesmo tempo em que pisa uma serpe. Schwarcz (2001, p. 32) interpretou essa representação como a oposição entre a civilização (a coroa) e a barbárie, (a serpe ou dragão). A inscrição Ordo et Felicitas, ou “Ordem e Felicidade” era a mensagem que se queria imprimir ao novo período da história do Brasil por parte da elite política (CHILLÓN, 2014). Se na pintura anônima (imagem 2) o indígena aparece em posição de subserviência, na moeda comemorativa da coroação a figura indígena aparece como o “meio do caminho” entre a civilização e a barbárie, embora esteja muito distante da realidade dos povos indígenas e caboclos do período, apartados dos processos de construção do ideário de nação, servindo apenas como elemento alegórico idealizado de um império nos trópicos, que pisa o despotismo português representado pela serpe.
Em 1824, em uma gravura de Gianne (imagem 4), o despotismo foi pisado pelo próprio imperador Pedro I, salvando uma mulher “indígena” (entendida como tal apenas por sua saia de penas, já que tem traços claramente europeus). O indígena nas representações, portanto, passou de uma figura feminina e passiva para um ente masculino e ativo, embora desconectado das populações indígenas de fato. Antes, supunha uma caracterização espiritual, anímica, da ideia de “nação”: o “Gênio do Brasil” (CHILLÓN, 2014).

Se a figura do índio autóctone, assim como a natureza exuberante e o exotismo da terra tropical povoam o ideário brasileiro desde muito cedo, foi na segunda metade do século XIX que as artes plásticas assumiram o projeto de promoção da figura indígena como ícone do Império (KNAUSS, 2013). No campo das artes, se desenvolveu uma rede de ideias que dialogava com o projeto civilizatório cultural e político que compunha o ideário das elites do século XIX. Assim como na literatura, surgiu uma extensa produção artística voltada para a representação do indígena idealizado como símbolo do Brasil, tendo grande expansão entre finais da década de 1850, até a década de 1870. No mesmo período, o indianismo romântico alcançou seu auge na literatura com a obra de José de Alencar (MENDES, 2018, p. 105-107).
Mas muito antes do florescimento do indianismo romântico, havia um indígena levado anualmente às ruas em cortejo por populares, alcunhado de Caboclo, portando uma lança e igualmente pisando uma serpe, como na moeda da coroação: tratava-se de uma escultura em cedro, atribuída a Manoel Inácio da Costa (Cairu - BA, 1763 – Salvador - BA, 1857), apelidado Seis Dedos por sua habilidade em esculpir a madeira. Dotado de sentidos outros, esse Caboclo, intimamente ligado ao Caboclo cultuado por africanos e seus descendentes, e que continua saindo às ruas até os dias de hoje por ocasião das comemorações da independência do Brasil na Bahia em 1823, foi deixado à margem da construção das narrativas oficiais e imagéticas referentes ao processo de independência. O Caboclo símbolo da vitória nas lutas pela independência e o Caboclo cultuado por africanos e seus descendentes foram atravessados mutuamente nos seus intrincados e complexos conjuntos de significações cívicas, sociais e religiosas, revelando uma agência por parte de africanos, indígenas e seus descendentes na construção de um símbolo nacional talvez maior do que se tenha admitido até agora (MENDES, 2018, p. 39).

Apesar de inegáveis avanços nos estudos sobre as experiências individuais e coletivas de africanos e indígenas nos oitocentos e seus desdobramentos na sociedade brasileira, esses estudos têm se caracterizado pela distinção e pelo estranhamento dessas identidades. Ainda é muito difícil encontrar estudos que busquem articular as identidades culturais e as demandas sociais dos povos indígenas e dos povos africanos, seja no passado colonial, seja na atualidade, com os chamados movimentos negros e indígenas. É importante destacar as fortes confluências entre essas culturas através da articulação de indivíduos africanos e indígenas, inclusive através de casamentos e compadrios (CORRÊA, 2018). Neste sentido, pensar o Caboclo como um símbolo da independência e como uma entidade das manifestações religiosas de indígenas e africanos que atravessa o contexto baiano e se reproduz na corte do Rio de Janeiro pode ser significativo para novas interpretações sobre as diferentes independências e suas representações nas periferias brasileiras.
Neste caso, periferia não se apresenta apenas como um recorte territorial. Periferia é a ampliação das representações e expressões das múltiplas interculturalidades que formam uma nação. Periferia é a voz dos silenciados que buscam expressar e valorizar suas experiências para além das narrativas estabelecidas pelas representações oficiais (aqui, o quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, é um exemplo clássico dessas representações). Assim, o que estava representado nas sombras da independência já tinha e mantém suas próprias representações e narrativas dos acontecimentos. Para que se proponha uma inserção das experiências das classes sociais periféricas nas celebrações do bicentenário da independência, é preciso ampliar as fronteiras da identidade nacional, oferecendo protagonismo para aqueles reservados ao anonimato, provocando o debate sobre o pertencimento e os seus sentidos para o estado do Rio de Janeiro.
Estudos recentes no Brasil têm tratado das diferentes independências que se desdobraram para além do evento de 1822. O mais emblemático desses episódios de independência é o de 02 de julho de 1823, na Bahia: após sucessivos conflitos desde que a capital Salvador havia sido dominada militarmente pelos portugueses em 1822, o Exército Libertador, formado no Recôncavo baiano pelo General Pedro Labatut, expulsou definitivamente as tropas portuguesas do território brasileiro, bem como um número significativo de civis. O sucesso do Exército Libertador se deveu, em boa parte, à participação importante e ativa das camadas populares e de homens de cor escravizados, livres e libertos nas filas militares, a despeito da oposição da elite senhorial, que temia uma possível organização, por parte da população negra, que se aproveitasse dos clamores de liberdade naquele panorama político para pleitear o fim da escravidão (REIS, 1989; KRAAY, 2002; GUERRA, 2004).
Considerada por muitos como a verdadeira consolidação da independência do Brasil, a importância do evento “Dois de Julho”, como é conhecido na Bahia, se dá especialmente porque, a partir de 1824, se inicia uma festa cívico-popular que se estende até hoje, e temos motivos para afirmar que a população negra da Bahia teve papel incontestável no estabelecimento desse festejo. O ápice da festa é o cortejo que refaz o percurso percorrido pelas tropas do Exército Libertador, onde a figura principal é uma escultura de cedro com feições indígenas, conhecida como “Caboclo”, conduzida em um carro triunfal e acompanhada por outro carro que conduz a “Cabocla”. Esse cortejo de algum modo representa a tentativa de se criar símbolos referentes a uma identidade nacional, na construção do estado-nação (ALBUQUERQUE, 1999).
No entanto, para além da noção de “símbolo nacional” atribuída a essas figuras, novos estudos têm demonstrado uma forte conexão entre as identidades indígenas e centro-africanas na formação da imagem do caboclo reverenciado nos cortejos do Dois de Julho, ainda hoje na Bahia, bem como nos contextos de terreiro, onde o caboclo é figura fundamental (MENDES, 2018). No âmbito desses estudos, é possível identificar essas conexões tanto na cidade quanto no Recôncavo do Rio de Janeiro (BEZERRA; POSSIDÔNIO, 2016; POSSIDÔNIO, 2018; CORRÊA, 2018).
Ao que parece, essas conexões cívico-populares com fortes influências religiosas ultrapassavam as distâncias regionais, conectando identidades populares. Em julho de 1889, por exemplo, havia referência de um grupo intitulado “Sociedade Independência Dous de Julho”, situada na Rua do Costa, na cidade do Rio de Janeiro. É interessante porque, nos jornais da ocasião, o grupo “Dous de Julho” foi acusado de promover batuques ao longo de vários dias que, pela data e pelo caráter cívico-popular, sem dúvida, tratava-se de um “transbordamento” das referências populares da independência da Bahia que chegavam à corte carioca. A questão fica ainda mais interessante quando, dias depois, o tal grupo se defendeu afirmando que eles “não eram batuqueiros, mas honestos e trabalhadores”, e que estavam apenas comemorando a “gloriosa data” que lhes dava título. Eles tinham estatuto aprovado e, segundo consta, também tinham autorização das autoridades locais para os festejos (O PAIZ, 17/7/1889, p. 3). O interesse maior é pensar o porquê de uma sociedade negra no Rio de Janeiro se intitular Dois de Julho. Não temos fontes documentais para investigar se tal grupo era formado por imigrantes baianos, o que seria totalmente factível, levando-se em conta os fortes laços havidos entre a população negra do Rio e da Bahia no século XIX, e a óbvia importância da data para esses grupos.
Ainda é importante assinalar que esse festejo cívico-popular era facilmente confundido com os batuques africanos que eram largamente perseguidos na cidade e no Recôncavo do Rio de Janeiro desde a primeira metade do século XIX, bem como na cidade de Salvador: ali, a festa era marcada por bailes e batuques nas ruas, largos e casas, grupos de cucumbis3 espalhados pela cidade, negros vestidos com trajes indígenas e dançando ao som de tambores, que conferiam um tom carnavalesco ao rito. Ao mesmo tempo, o cortejo dos carros triunfais assumia um tom de procissão religiosa, quase que um “martírio cívico-religioso”, mesclando elementos da religião oficial com práticas religiosas afrodiaspóricas, onde a devoção a uma escultura de um indígena em cedro se confundia aos ritos do Te Deum na catedral, comumente chamado de “missa do caboclo” (MENDES, 2018, p. 31-32). Em suma, as comemorações populares pela independência possível para os grupos identitários periféricos no Brasil estavam tão passíveis de ataques e perseguições quanto os cultos de aflição e os candomblés cotidianamente perseguidos durante aquele período.
É importante frisar que os indivíduos originários da África Centro-Ocidental somavam aproximadamente 93% dos africanos trazidos para o sudeste brasileiro entre 1791 e 1811, e 75% entre 1811 e 1850, tendo o Rio de Janeiro como principal porta de entrada para a região (SLENES, 2007 p. 116). Longe de ignorar a presença de grupos de africanos de outras procedências do continente no Rio de Janeiro, é certo que havia uma clara predominância de africanos centro-ocidentais no Rio de Janeiro do oitocentos, característica notada inclusive nas crônicas dos viajantes que passaram um tempo na corte, o que sugere que a superioridade numérica desses grupos era suficiente para ser observada até mesmo por estrangeiros que não necessariamente possuíam recursos para distinguir, efetivamente, as origens desses africanos escravizados (POSSIDÔNIO, 2020).
Os pioneiros estudos de Robert Slenes mostraram que o fluxo maciço de cativos originários da África Centro-Ocidental possibilitou a forja de uma identidade comum entre grupos aparentados que possuíam, nas bases de suas culturas, semelhanças importantes em suas cosmologias, crenças, línguas e práticas (SLENES, 1992, p. 60). No campo religioso, o autor identificou uma forte ligação entre os cultos kimpasi na África Central, e práticas religiosas no sudeste brasileiro (em Vassouras, 1848; em São Roque, 1854; e a Cabula, em São Mateus, no Espírito Santo, 1900), constatando certo parentesco com os cultos caboclos (SLENES, 2007, 2014). Além desses analisados por Slenes, é possível indicar, pelo menos os batuques da Fazenda São José, na Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Magé, 1855, e as práticas coletivas do Engenho do Calundu, na Freguesia de Santo Antonio da Jacutinga, 1835 (BEZERRA; POSSIDÔNIO, 2016). Nessas práticas coletivas é possível identificar a presença de indivíduos escravizados, libertos e livres, majoritariamente de origem centro-africana, mas também com uma presença de indivíduos de origens indígenas, demonstrando uma mestiçagem representada pelo culto do caboclo que, ao longo do tempo, enraizou-se nas variadas vertentes de cultos afrodiaspóricos.
A presença centro-africana que teve posição majoritária na formação da população africana na capital e no Recôncavo do Rio de Janeiro reforça o argumento de que os “caboclos do Dois de Julho”, originários da Bahia mas também festejados no Rio de Janeiro, representavam uma forte conexão entre os “donos da terra” e os centro-africanos e seus descendentes, que há muito formavam maioria da população negra na região supracitada. Kairn Klieman (2007) investigou as práticas religiosas durante a expansão bantu em território africano: os grupos migrantes, chegando a terras alheias, tinham a preocupação em identificar os espíritos que “chegaram primeiro” naquela terra, e recorriam aos sacerdotes locais para aprender os métodos de abordagem e culto a tais espíritos territoriais, que eram reconhecidos como “donos da terra”, exatamente a mesma expressão utilizada pelos praticantes do candomblé para fazer referência aos espíritos caboclos (KLIEMAN, 2003, 2007). No Brasil, o culto aos caboclos não deve ser encarado necessariamente como uma fusão entre grupos africanos e indígenas, mas também uma representação simbólica do que seriam os espíritos indígenas, a partir das mundividências dos povos centro-africanos ocidentais, em uma memória de longa duração baseada em suas práticas religiosas (SANTOS, 1995, p. 13; MENDES, 2018, p. 24).
Considerando a marginalização de africanos e indígenas nas representações oficiais da independência no Brasil, sobretudo aquelas que circularam pelas periferias do Rio de Janeiro, como os caboclos, sejam centro-africanos, sejam indígenas, podem ser identificados como referências para a identificação das classes populares nos diferentes processos que representam uma cidadania emancipatória. De certa forma, a perseguição religiosa do presente e do passado são representações da abdicação e do sequestro dos direitos políticos e sociais das comunidades das periferias, que reverberam na ausência de identificação direta com as imagens da independência que circulam na educação básica e na cultura de massa.
Depois de 200 anos da independência, a ampliação de direitos para as camadas mais populares ainda é um desafio para a sociedade brasileira. Entre os direitos básicos, cujo acesso é fundamental para o pleno exercício da cidadania, o direito à memória, embora nem sempre considerado, é fundamental para que seja possível consolidar um projeto de nacionalidade brasileira. A inserção de caboclos, indígenas e africanos nas imagens representativas da independência do Brasil é fundamental para que as classes populares, na maioria das vezes concentradas nas periferias das grandes cidades, tenham sentido de pertencimento nos quadros políticos e sociais da nação brasileira, elaborando sentido popular orgânico para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil, em 2022. Assim, a implicação de direitos e deveres se articula, produzindo um sentimento de respeito, orgulho e dever com a nação brasileira e o próprio exercício da cidadania.
Ao longo dos últimos 200 anos, indígenas, africanos, pretos e pardos foram alijados dos processos de direito e de cidadania, a começar pela ausência nas narrativas historiográficas e escolares. A recente aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08 oferece recursos para a valorização das histórias indígenas e africanas de forma articulada nos currículos escolares e na produção da historiografia brasileira. Contudo, ainda há entraves pedagógicos e ideológicos que dificultam o acesso às informações que possam questionar uma narrativa colonial do processo de formação da sociedade brasileira.
A relação entre as celebrações do bicentenário e as periferias está implicada diretamente com uma ideia de “modernidade tardia”, uma vez que, depois de 200 anos, a modernidade ainda não contemplou uma profunda inclusão das classes populares na cidadania. Apesar de uma narrativa de inserção de africanos, indígenas e caboclos nos quadros da identidade nacional, as imagens e memórias da independência que circulam nas periferias ainda situam as classes populares às margens dos acontecimentos e das mudanças políticas da nação. Neste caso, há um deslocamento desses sujeitos, provocando a criação de novas identidades culturais. Assim, “as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas dessa forma por identificações rivais e deslocantes advindas, especialmente, da erosão da identidade mestra” (HALL, 2014, p. 15).
Desse modo, provocamos um pensar sobre as diferentes experiências que deslocam as fronteiras estabelecidas pelas narrativas que normatizaram o conhecimento sobre a identidade nacional. Portanto, a identificação das diferentes formas de celebração da independência, considerando as articulações de diferentes identidades populares podem promover uma ampliação do direito à participação na memória da independência do Brasil, favorecendo uma identificação e uma adesão das periferias nas celebrações do bicentenário da independência, em 2022.
O cotidiano dos 200 anos de independência forjaram experiências comuns por indivíduos anônimos e marginalizados, em geral em condições de subalternidade, sofrendo ataques diretos das narrativas e das ações do Estado brasileiro. Ainda há muitos protagonismos que centralizaram outras narrativas da independência para além daquelas formuladas, produzidas e que foram circuladas nas periferias. Neste sentido, também é necessário observar uma metodologia da escuta através da experiência de uma operação historiográfica que se debruça sobre fontes manuscritas, recursos bibliográficos e memórias das periferias sobre a independência inacabada, se considerarmos que os acontecimentos de 1822 deveriam ter dado início a um processo de garantia de cidadania sem qualquer distinção.
Acervo do Museu Casa Padre Toledo (UFMG). Tiradentes - MG, Brasil.
Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro - RJ, Brasil.
Acervo do Museu Imperial, Petrópolis - RJ, Brasil.
Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (Museu do Ipiranga), São Paulo - SP, Brasil.
Jornal O Paiz, ano VI, nº 1744, 17 de julho, 1889.




