Resumo: Neste artigo discute-se as representações do rural no radioteatro de Florianópolis na década de 1950. O artigo é estruturado a partir da análise dos roteiros do programa Encantamento, melodrama do radialista Aldo Silva, do qual se depreende uma série de representações acerca das representações do urbano e do rural. Procura-se relacionar essas representações, encontradas em outras obras publicadas no período em Florianópolis, a um contexto mais amplo, a partir de uma bibliografia de teóricos da literatura, como Raymond Williams.
Palavras-chave: Radioteatro, Rural, Representações, Florianópolis.
Abstract: This article discusses the representations of the rural in the radio theater of Florianópolis in the 1950s. The article is structured from the analysis of the scripts of the program Encantamento, melodrama by radio broadcaster Aldo Silva, from which a series of representations about the representations of the urban and rural. It seeks to relate these representations, found in other works published in the period in Florianópolis, to a broader context, based on a bibliography of literary theorists, such as Raymond Williams.
Keywords: Radioteatro, Rural, Representations, Florianópolis.
Resumen: Este artículo discute las representaciones de lo rural en el radioteatro de Florianópolis en la década de 1950. El artículo se estructura a partir del análisis de los guiones del programa Encantamento, melodrama del locutor radial Aldo Silva, del cual se desprende una serie de representaciones sobre las representaciones de lo urbano y lo rural. Busca relacionar estas representaciones, encontradas en otras obras publicadas en el período en Florianópolis, a un contexto más amplio, a partir de una bibliografía de teóricos literarios, como Raymond Williams.
Palabras clave: Radioteatro, Rural, Representaciones, Florianópolis.
ARTIGOS LIVRES
REPRESENTAÇÕES DO RURAL NO RADIOTEATRO DE FLORIANÓPOLIS NA DÉCADA DE 1950
Representations of the rural in the radioteatro of Florianópolis in the 1950s
Representaciones de lo rural en el radioteatro de Florianópolis en la década de 1950

Recepción: 03 Marzo 2022
Aprobación: 16 Junio 2022
Lendo alguns dos roteiros de radioteatro disponíveis no acervo da Casa da Memória,1 em Florianópolis, escritos entre 1955 e 1967, percebe-se que neles se manifestam tanto o otimismo de modernização daqueles anos no Brasil como o ideário dualista que via no país um antagonismo entre o “moderno” e o “atrasado” (LOHN, 2008). Nesse período, marcado pelo chamado “nacional-desenvolvimentismo”, o Brasil passava por intensas transformações econômicas e sociais, alavancadas por investimentos estatais e privados, nacionais e internacionais (MOREIRA, 2008). Em Santa Catarina, no campo, depois da Segunda Guerra Mundial, os trabalhadores rurais “perceberam uma vontade de empresas e do governo em transformarem aquelas paisagens que nos acostumamos a associar sempre com bucolismo, tranquilidade e vida pacata” (LOHN, 1999, p. 42). Seguindo o exemplo dos trabalhadores urbanos, “que há muito vinham sendo regidos pelo ritmo do capitalismo industrial, os lavradores de Santa Catarina passavam a viver agora num ambiente bastante diferente do que estavam acostumados” (LOHN, 1999, p. 42).
Nessas décadas, as transformações promovidas pela modernização foram expressas e apropriadas de formas diversas por diferentes parcelas da população. No caso do rádio, além de difundir informações e notícias para um maior número de pessoas, dava vazão a representações culturais produzidas pelas elites locais e nacionais. O próprio rádio também era parte dessa modernização, expressando o desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação e a expansão da eletricidade nas casas. Em pouco tempo, “o rádio conquistou uma posição de vanguarda, superando a imprensa escrita como veículo publicitário, graças à associação de dois grandes motivos, já capazes de mobilizar multidões: o futebol e a música popular” (MEDEIROS; VIEIRA, 1999, p. 20).
O rádio, cuja instalação no Brasil data de 1923, no Rio de Janeiro, chegou a Santa Catarina em 1935, após um período experimental de dois anos (SANDOMÊNICO, 2005, p. 115). Assim, entrou no ar a primeira emissora de rádio no estado, a PRC-4, Rádio Clube de Blumenau (MEDEIROS; VIEIRA, 1999, p. 29). No entanto, apenas em 1943 o rádio chegou na cidade de Florianópolis, por meio de emissoras como a Guarujá e a Diário da Manhã, e desde seu início teve fortes laços com lideranças políticas locais, em especial das famílias Ramos, do Partido Social Democrático (PSD), e Konder, da União Democrática Nacional (UDN).
Contudo, o rádio também levava aos “lares os problemas, as notícias, as relações e as transformações sociais, esportivas, culturais e urbanísticas de Florianópolis, além de diversas promoções e produtos oferecidos no comércio” (MACHADO, 2006, p. 156). Em meio a esse conjunto de informações, eram transmitidos programas de radioteatro e de radionovela, que, além de serem ouvidos pelo rádio, lotavam auditórios e emocionavam o público com melodramas (MEDEIROS, 1998, p. 22-24).2
O produtor e apresentador Aldo Silva era uma das figuras de destaque nesse momento do rádio em Florianópolis. No acervo da Casa da Memória, proveniente do arquivo pessoal do radialista, pode-se encontrar alguns roteiros de melodramas transmitidos nas rádios da capital. O programa Encantamento, apresentado e dirigido por Aldo Silva, transmitido pela rádio Diário da Manhã, tem o maior número de roteiros disponíveis no acervo, num total de vinte e um (CORONATO, 2005, p. 38). O radialista começou a trabalhar na rádio Difusora de Tijucas, inaugurada por ele em 1948, mas logo se transferiu para Florianópolis, integrando-se ao grupo de radioteatro da Rádio Guarujá, onde fazia locução de comerciais, além de produzir e apresentar programas de auditório. Em 1955, transferiu-se para a recém-constituída emissora de rádio Diário da Manhã, onde passou a apresentar, entre outros, o programa Encantamento (CORONATO, 2005, p. 34-35).
Acompanhando o processo de industrialização pelo qual passava o país, que provocava profundas transformações urbanas, foram produzidas as mais variadas e diversas manifestações simbólicas, como aquelas do modo de vida nas áreas rurais do país e das pessoas nascidas nessas regiões. Nesse período, “os estereótipos, como o protótipo do caipira, do selvagem, e os discursos de retrospecção (lembranças) e a descrição de paisagens naturais disseminam-se de diversos modos, em diferentes práticas de linguagem” (PAYER, 2001, p. 167). Com isso, “os objetos de discurso referentes ao campo aparecem de um modo estilizado, idealizado, seja na romantização, seja na caricatura depreciativa” (PAYER, 2001, p. 167). Essas representações podem ser verificadas tanto na literatura brasileira das décadas de 1950 e 1960 como em outras formas de arte, entre as quais o cinema e as artes plásticas, tornando populares figuras como Jeca Tatu e Mazzaropi.
Em Santa Catarina as obras produzidas no mesmo período não deixaram de ressaltar essas representações, percebidas inclusive nas peças de radioteatro produzidas por Aldo Silva. Nessas peças, o interior é visto “pelas pessoas que vivem na capital, como lugar agradável, tranquilo, bonito” (CORONATO, 2005, p. 56). Esses programas expressam as reações entusiasmadas das camadas médias urbanas diante dos produtos trazidos pela modernização para dentro de seus lares, além de apresentarem a imagem do espaço rural como lugar semelhante ao distante e inocente passado da humanidade. Um personagem dessas peças, engenheiro do Rio de Janeiro, descreve a imaginária cidade de Serro Azul como uma “das mais belas cidadezinhas do interior”. O engenheiro refere-se a essa cidade, “de umas cinco mil almas”, com “ruas bem delineadas, suas residências bem dispostas”, que “causava ao visitante uma bela impressão”, como um “paraíso” (SILVA, s.d, p. 1).3
Quando se fala dos habitantes dos espaços rurais, faz-se referência a seres presos à terra, de hábitos rústicos, muitas vezes sem saber escrever ou mesmo falar corretamente a língua portuguesa culta. Nas palavras do engenheiro do Rio de Janeiro, na peça acima mencionada, eles eram “gente boa e simples” (SILVA, s.d, p. 1). Criam-se fantasias acerca de lugares distantes, cuja localização não precisava ser explicada com exatidão. Sabe-se, contudo, que se tratava do “interior”, ainda que essas áreas pudessem ser tanto cidades onde predominava a produção rural como áreas não urbanizadas de Florianópolis.
Como dito, as representações acerca das regiões rurais interioranas não são exclusividades dos roteiros de radioteatro de Santa Catarina. Raymond Williams, analisando a literatura produzida na Inglaterra do século XVI ao XX, afirma que “em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples” (WILLIAMS, 2000, p. 11). Quanto à cidade, segundo o mesmo autor, ficou associada à
(...) ideia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz, embora tenham sido produzidas em relação tanto ao campo como à cidade poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. (WILLIAMS, 2000, p. 11).
Na literatura catarinense pode-se encontrar algumas narrativas a respeito da vida em áreas rurais ou no “interior”. No entanto, essas obras mostram um interior bastante marcado por representações estereotipadas. Em Florianópolis, por exemplo, principalmente nas regiões de urbanização mais antiga, constituíram-se discursos em torno das transformações urbanas da cidade que remetem a um passado tranquilo, onde todos se conheciam, muito diferente do que seria hoje.4 Nesse caso, a percepção que essa parte da população possui em relação às regiões do interior da cidade apresenta uma ideia de que essas regiões não faziam parte da “cidade” ou mesmo que eram áreas pouco povoadas. São as praias que permeiam a representação desse interior imaginado, uma área pouco conhecida pelos setores urbanos, onde vivem alguns poucos seres simples e cujo modo de vida muito se aproxima de uma vida natural.
Não é difícil encontrar na literatura produzida em Santa Catarina textos escritos por setores de elite que exemplificam essas representações construídas a respeito da vida das populações que vivem à beira mar, tendo como símbolo o pescador. O escritor Virgílio Várzea, escrevendo em fins do século XIX e na primeira década do século XX, optou “por envolver em suas narrativas o povo mais simples, pescadores do litoral e colonos do interior. Praticamente não há narrativa sua que contenha personagens urbanos, como centrais, tipos mais sofisticados e maneirosos” (JUNKES, 2003, p. 26). De forma geral, essas narrativas não escapam a uma idealização da vida no “interior”, expressando estereótipos frequentes e bastante marcantes, presentes em textos posteriores.
Em obra do início da década de 1950, de autoria de Juvenal Melchiades de Sousa, um personagem que, desde o Rio de Janeiro, olha para a vida rural, afirma: “no interior, parece-me que, uma pessoa que realmente queira produzir, poderá com mais facilidade adquirir uma situação financeira que lhe permita viver como um ser, realmente humano” (SOUZA, 1952, p. 23). Segundo ele, “no interior, não se faz mister uma remuneração invejável para que qualquer pessoa, que tenha capacidade de produção, possa ter um lar mais ou menos confortável, que a meu ver é a maior preocupação de todos os bons chefes de família” (SOUZA, 1952, p. 23). Para esse personagem, “a vida é mais suave no interior” (SOUZA, 1952, p. 26).
Outra versão a respeito da vida no “interior”, igualmente romantizada, é aquela descrita por Othon d’Eça em Homens e algas, publicado em 1957. Esse relato, que pretendia “gravar, em resumos curtos e secos, verdades vivas e amargas”, apontava para um “povo triste e sem esperanças” (D’EÇA, 2007, p. 8). O autor, que observou a vida dos pescadores em seu refúgio na praia de Coqueiros, em Florianópolis, um dos lugares do continente “abandonados, tão à margem da cidade e de nós mesmos como se fossem lugares estranhos e distantes” (D’EÇA, 2007, p. 10), no início falava de uma vida sem pressas e sem cuidados, “sob uma grande tranquilidade e uma fina radiância” (D’EÇA, 2007, p. 12). Mas essa vida tranquila “não passava de uma ligeira e alegre impressão de veranista, de olhos turísticos que só procuravam ver e descobrir em todos os aspectos das paisagens e dos homens coisas novas e necessárias à cura de seus bocejos, da sua fartura ou do seu tédio” (D’EÇA, 2007, p. 12).
Depois dessa constatação, passa a narrar, de forma pretensamente realista, toda a situação daquelas populações que sobrevivem à beira mar. Os pescadores “são seres esmagados pelo destino, podados de qualquer aspiração promissora. Nunca conheceram outro tipo de vida, nem puderam com ela sonhar” (JUNKES, 2003, p. 71). Dessa forma, mostrando a vida pobre e difícil dos pescadores, o autor os descreve sempre com pena. Em um dos capítulos mais conhecidos do livro, conta a forma como procurava dialogar com essas pessoas: “Falo-lhes sempre a rude linguagem que eles gostam (...) ouço-lhes as amargas incertezas do mundo em que labutam; sinto-lhes as vidas cheias de ameaças, de tormentos, de resignações mudas e tranquilas” (JUNKES, 2003, p. 17).
Suas vidas estão marcadas pelo conformismo e pela completa ausência de perspectiva em um futuro. Um desses personagens é João Claro, vinte anos de idade, que “criou-se na praia, como um bicho, sempre sujo de areia e limo, sempre fedendo a sargaços e a peixe fresco, sabendo aos seis anos tirar ostras das pedras” (D’EÇA, 2007, p. 122). Como não o atraía a vida ao mar, tornou-se lavrador, sentindo “uma satisfação agreste em rasgar a gleba rica e úmida com a sua enxada” (D’EÇA, 2007, p. 123). Para João Claro ou qualquer outro, a vida nunca estava separada daquele mundo. Segundo uma resenha de Homens e algas, publicada na época do lançamento do livro, “a vida do homem do mar é uma vida triste. Plena de decepções. O mar que lhes dá o sustento também lhes rouba suas vidas. O maior amigo é também o grande traidor. Vivem no mar e para o mar. Seus olhos se anuviam de tanto fitarem o horizonte” (BRANDÃO, 1958).
Descreve-se de forma superficial nessa produção literária um “interior” genérico, constituído por rudimentares relações de organização econômica e social. São nessas formas arcaicas de produção que os habitantes dessas regiões encontram algum sustento para vidas marcadas pela pobreza e pelo sofrimento. Com o olhar de quem não pertence a esse mundo, intelectuais catarinenses, tanto literatos como cientistas sociais, construíram representações romantizadas a respeito das populações rurais de Florianópolis. Esses habitantes do litoral, além do isolamento em relação à região central, teriam suas atividades econômicas limitadas à pescaria e à agricultura, tendo por única finalidade a subsistência do núcleo familiar. Essas atividades se dariam em meio a uma organização social pouco propícia à colaboração e a projetos coletivos mais amplos.5
De conjunto, atribui-se às áreas rurais o estereótipo de lugares bucólicos; são locais excelentes para que os moradores das áreas urbanas possam fugir e relaxar de suas vidas apressadas e atribuladas. Essa calmaria seria alcançada apenas nas regiões onde poderiam sentir a proximidade com a natureza, como se fosse possível o retorno momentâneo a um passado da humanidade, onde haveria uma calmaria que proporcionasse a paz de espírito. Percebe-se, dessa forma, que “os discursos de retrospecção, produzindo o efeito de nostalgia, de reminiscência, de lembrança de um passado rural da infância, como paraíso perdido da humanidade, constitui um modo discursivo universal de referência ao campo” (PAYER, 2001, p. 167).
Nesses discursos, o homem rural é um ser quase selvagem, quase uma parte da natureza, desconhecedor dos hábitos da civilização, geralmente com uma fala considerada estranha, analfabeto e incapaz de entender o modo de viver e as preocupações do mundo “civilizado”. Segundo Raymond Williams, nesse tipo de representação
todos os homens do campo, de todas as épocas e condições sociais, fundem-se numa única figura lendária. Os diferentes dialetos de diferentes comunidades rurais – as flores, por exemplo, têm muitos nomes locais diversos – são reduzidos não apenas a um único idioma rural como também têm sua criação atribuída a um inventor lendário, atemporal, visto com mais facilidade do que qualquer pessoa de carne e osso. (WILLIAMS, 2000, p. 346-7).
Com isso, em cada região são representados os “caipiras”, os “manés”, os “matutos”, enfim, os diversos tipos de “Jecas Tatus” que, embora diferentes entre si, carregam sempre muitas coisas em comum uns com os outros: a fala considerada engraçada, a forma de se vestir, seu modo de vida, entre outros aspectos.
Em diferentes roteiros do programa Encantamento pode-se encontrar representações do rural bastante elucidativas quanto às imagens produzidas nos ambientes urbanos acerca das áreas rurais. Em roteiro de fevereiro de 1959, por exemplo, um personagem que passa férias na casa de um tio, afirma: “Eu adorava a vida na fazenda, e sempre que podia, passava as férias com meus tios. No sertão mineiro, aquela fazenda, era como uma joia engastada num estojo modesto. Aos meus olhos de visitante, tudo ali era encantamento” (SILVA, 1959a, p. 1). Para esse personagem, a vida em São Paulo nada tinha de interessante; ele a caracterizava como “banal”. Percebe-se que há aqui uma idealização do ambiente rural como lugar onde tudo é encanto. Uma pessoa como ele, vivendo numa metrópole, poderia sempre encontrar naquele lugar uma forma de escapar dos problemas da vida urbana.
Em outro programa, de março do mesmo ano, expressa-se essa mesma impressão urbana acerca das áreas rurais, embora parta de um outro ponto de vista. Lenita é uma jovem do interior que procura na cidade um lugar para construir seu futuro. Quando questionada sobre saudades do lugar de origem ou se pretende voltar, afirma: “Saudades, tenho... Vontade de voltar, não. Estou me habituando com facilidade a nova vida” (SILVA, 1959b, p. 1). Para ela, o que há de melhor na cidade é que “todos os dias, algo é novo na nossa existência... O que mais me intediava (sic) no interior, era a rotina... sempre as mesmas coisas para fazer, sempre as mesmas caras” (SILVA, 1959b, p. 1).
Nessa representação, as áreas rurais são lugares estáticos, que não apresentam uma possibilidade de futuro para quem lá nasce e mora. Quem permanece na vida rural está fadado a uma vida tediosa, presa a rotinas, onde não há possibilidade de conhecer pessoas novas. Se no roteiro anterior as áreas rurais eram apresentadas de forma positivada como lugares para as classes urbanas descansarem do ritmo das cidades, neste segundo roteiro apresenta-se um aspecto negativo do “interior”, ou seja, o fato de deixar as pessoas presas a uma vida que não apresenta perspectivas de mobilidade social. No caso do segundo roteiro, a saída das áreas rurais é uma forma de libertação, deixando o “conforto” na terra original para se inserir na lógica do “trabalho livre” da cidade.
Essas questões ficam mais evidentes em programa transmitido em 30 de outubro de 1958.6 Nele, a protagonista era Carmen, uma “filha de papai rico”, que “estava cansada de tantas festas, reuniões elegantes, clubes noturnos, e não sei que mais” (SILVA, 1958, p. 1). Em conversa com o pai, ela diz não suportar mais a cidade e que gostaria de ir para qualquer lugar. “Eu quero é sair desta cidade” (SILVA, 1958, p. 1). Nessa conversa, o pai fala de uma fazenda no interior que ele havia recém adquirido. Essa notícia empolga a jovem, que insiste para que ambos partam para o sítio no dia seguinte. O pai, contudo, alerta a filha que “aquilo não é lugar para uma jovem elegante como tu” e que “lá não encontrarás nenhuma diversão, nenhum atrativo” (SILVA, 1958, p. 1). Depois de ouvir as insistências da jovem, o pai cede à pressão da filha, dizendo: “amanhã iremos para a roça” (SILVA, 1958, p. 2).
Em outro diálogo, depois de chegarem à fazenda, o pai novamente expressa sua percepção do lugar: “Isto aqui, não passa de um sítio repleto de sapos e mosquitos” (SILVA, 1958, p. 2). Neste ponto, de um lado, percebe-se a construção da representação do “interior” como lugar de calmaria, que as pessoas da cidade procuram para relaxar. De outro, pode-se verificar a representação de que o “interior” seria um lugar atrasado, onde homens rudes se confundem com bichos e com a própria natureza.
Quando sai em busca de alguma distração naquele lugar, a jovem esbarra numa figura que no roteiro é chamada de “caboclo”, de Chico Bento e de Francisco. O diálogo entre Carmen e o “caboclo” começa com um mal-entendido, se ele estaria invadindo as terras dela ou ela as dele. O “caboclo” esclarece ser a moça quem está invadindo as terras dele: “a extrema é aquela pedra” (SILVA, 1958, p. 3). Quando ela tenta se desculpar, ele afirma, sem maior preocupação: “Não há porque, dona. Aqui não se faz questão por tão pouco. Quando quiser passear nas minhas terras, não faça caso” (SILVA, 1958, p. 3). Essa afirmação do “caboclo” faz com que a jovem passe a considerá-lo uma pessoa bondosa, embora ele aconselhe: “Confie desconfiando” (SILVA, 1958, p. 3). Curiosa, a jovem questiona o “caboclo”, que responde: “Quando um homem qui nem eu, tá na frente de u’a moça como você, no meio dessa mataria... tudo pode acontecê” (SILVA, 1958, p. 3). Ele diz para a moça que, “na sua presença, qualquer homem pode perdê a cabeça... e fazê o que não deve” (SILVA, 1958, p. 3).
Para além do beijo entre Chico Bento e Carmen que segue a este primeiro diálogo, esta passagem mostra como também no rádio de Florianópolis está presente um dos aspectos levantados por Raymond Williams (2000, p. 346-7), quando analisa a literatura inglesa: os habitantes das áreas rurais teriam uma linguagem bastante rústica, uma espécie de língua universal. Da mesma forma, o “caboclo” está associado a uma vida natural, ou seja, mesmo que de forma implícita, parte-se da ideia de que a vida nas áreas urbanas estaria muito distante da natureza. Esses homens do “interior”, considerados rústicos, como os caboclos e os pescadores, ainda estariam diretamente ligados ao meio ambiente, portanto, dominados por instintos.
Depois de conhecer e se apaixonar pelo “caboclo”, Carmen comenta com o pai a possibilidade de vir a se casar com algum morador da região. “O que??!! Casar-te com desses caipiras??!! Pois olha... conseguiste dizer um disparate maior do que o primeiro” (SILVA, 1958, p. 4). O primeiro disparate havia sido considerar a possibilidade de morar ali definitivamente. Ela demora a esclarecer para o pai da sua paixão repentina pelo “caboclo” Francisco. Mas, depois que conta, em meio à discussão, o pai recebe a ligação de um amigo, o desembargador Matias. Após essa ligação, com ótimo humor, ele volta a falar com a filha, autorizando seu casamento com o “caipira”. Depois dessa conversa, sem entender o que está acontecendo, ela encontra o “caboclo”, que então a esclarece, falando em português correto:
Não, faz muito tempo que cheguei da Europa, onde estive estudando... Conheci-a na primeira festa que fui... Soube, depois, que tinha partido para o sítio... No dia que me encontrou, não tinha intenção de fazer-me passar por homem da região... Mas, assim você me interpretou... e assim fiquei sendo... O que me interessava era estar ao seu lado. (SILVA, 1958, p. 6).
Um pequeno apontamento no roteiro, escrito à mão na cópia que se encontra na Casa da Memória, complementa a fala de Francisco: “Eu sou filho do desembargador Matias”. O casal termina junto essa história, depois de esclarecida toda a situação. Mas permanecem algumas possibilidades de conclusões. Primeiro, que as áreas rurais não são lugares para que as pessoas vivam ou construam projetos de vida, embora sejam muito agradáveis quando se precisa descansar dos problemas e relaxar em momentos de férias. Além disso, que não há possibilidade de uma comunicação, de uma aproximação mais íntima, entre os dois mundos, pois os símbolos compartilhados em ambos são muito diversos.
Nessa história, Carmen conseguiu estabelecer relação com o “caboclo” somente porque ele não era originário daquele ambiente, mas alguém da cidade que naquele momento representava o papel de morador do “interior”. Esse elemento é mostrado logo no início da história, quando Carmen se impressiona com seu recém conhecido: “Sempre pensei que o caboclo fosse um tipo magro, amarelo, com uma barba rala a cobrir-lhe o rosto” (SILVA, 1958, p. 3). Ela considera estranho um “caboclo” tão diferente da imagem que fazia daquelas pessoas, e é por essa figura de interior, tão diferente da representação anterior, que ela se apaixona. Pode-se concluir, dessa forma, que certamente há uma identificação de símbolos entre Carmen e Francisco, pois ambos são do mesmo ambiente. Pela lógica das representações urbanas do rural, seria impossível que Carmen se apaixonasse por um “autêntico” morador daquela região.
Considerando os elementos apontados em torno das representações do rural na literatura e no rádio catarinense nas décadas de 1950 e 1960, é possível destacar questões bastante relevantes. Uma primeira questão seria a possibilidade de universalizar essas representações, ou seja, encontrá-las em momentos distintos nos mais diferentes e distantes lugares. Talvez seja possível relacionar essa representação acerca das pessoas que vivem em áreas rurais com o homem em “estado de natureza” de Rousseau, na França do século XVIII (ROUSSEAU, 1979, p. 147-9). Pode-se encontrar analogias entre as transformações ocorridas no campo e na cidade, que aparecem nos programas de rádio de Florianópolis, com as disputas entre o “antigo” e o “novo” nas páginas do romance Morro dos ventos uivantes, da inglesa Emily Brönte, escrito nas primeiras décadas do século XIX (BRONTE, 1995, p. 133-137). Por outro lado, entre alguns autores românticos, contemporâneos de Emily Brönte, há uma percepção do rural como lugar que carrega certa aura de pureza, onde vivem pessoas boas, como são representados, por exemplo, os camponeses descritos em Frankenstein por Mary Shelley (SHELLEY, 2003, p. 73-6). Enfim, são possíveis as mais variadas e diversas analogias, que dão conta de mostrar visões romantizadas e estereotipadas, positivas ou negativas, das áreas rurais e das pessoas que moram nesses lugares.
Contudo, essas analogias devem evitar que as representações sejam visualizadas de forma homogênea, afinal elas não pairam no ar, mas são formas de expressar ideias que possuem bases materiais concretas. Entende-se que “a produção de ideias, de representações, de consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida” (MARX; ENGELS, 1984, p. 36). Nesse sentido, pode-se entender as representações produzidas a respeito do rural pela literatura europeia como uma possível expressão do processo de transformação social e econômica que veio a ser chamado de “revolução industrial” (WILLIAMS, 2000, p. 138-144). Pode-se, por outro lado, fazer analogias entre essas mudanças na Europa com as transformações econômicas e sociais pelas quais passou o Brasil ao longo do século XX. Se a Europa dos séculos XVIII e XIX teve a forte marca da revolução industrial, que levou à urbanização de inúmeras regiões e em alguns países modernizou as relações de produção do campo, também o Brasil na década de 1950 vivia um processo de intensas transformações na economia, na indústria, na sociedade, na cidade e no campo.
O país parecia caminhar mais rápido com planejamento estatal, antecipando as possibilidades futuras das obras de infraestrutura e a associação a investidores externos. A fórmula para o desenvolvimento apresentava-se quase indiscutível: o progresso viria para superar o passado agrícola do país e privilegiar os habitantes urbanos, os quais teriam acesso às facilidades modernas. (LOHN, 2007, p. 298).
Diante desse processo, que transforma profundamente as sociedades, surgem as reações mais diversas, que podem ser identificadas, grosso modo, de duas formas. De um lado, aquelas que se colocam contra a “modernização”, fazendo uma defesa da vida no campo. Seria a indústria uma forma de corrupção do homem “puro”, pois o mundo industrial e urbano o afastaria da natureza. De outro lado, há reações que, em defesa da modernização, entendem que as relações de produção rurais são “atrasadas” e, por isso, devem ser destruídas. Nessa compreensão, entende-se que o capitalismo deve se desenvolver livremente, devendo toda e qualquer relação de produção que possa impedir esse crescimento ser destruída ou superada.7 O rural se torna algo incômodo, como se fosse um passado que insiste em permanecer no presente. Com isso,
a partir de um lugar discursivo urbano os objetos e sujeitos associados ao campo são ditos como estando fora do espaço presente, e que o elemento figurativo “paisagem”, assim como sua descrição nos textos, catalisa esse processo discursivo na imagem de um rural distante, como natureza externa ao espaço urbano: um campo distante, separado da cidade. (PAYER, 2001, p. 170).
Nos roteiros do programa Encantamento percebe-se um predomínio da ideia de desenvolvimento econômico como um fator positivo, apresentada, por exemplo, na comparação entre a vida na cidade e no “interior”, feita pelos personagens das peças mencionadas. O “interior” é atrasado e calmo, enquanto a cidade, lugar agitado e onde as “coisas acontecem”, guarda muitas possibilidades e mistérios. Em um dos roteiros analisados, por exemplo, quando ocorre o contato entre uma personagem e o “caboclo”, também pode-se perceber essa mesma representação, pois o homem rural é visto negativamente, a ponto de não haver a possibilidade de uma relação entre um “caboclo” e uma jovem da cidade (SILVA, 1958). No programa de rádio essa relação torna-se possível apenas porque ele, na verdade, não pertence àquele ambiente.
Deve-se levar em conta que essas representações do rural não podem ser reduzidas a meras invenções. Nessas regiões existem pessoas com hábitos diferentes daqueles da cidade, com suas vidas organizadas de forma bastante específica e, principalmente, com um universo simbólico bastante peculiar em relação àquela da sociedade. Contudo, cada comunidade rural tem suas particularidades, originadas nas relações específicas de produção e reprodução material da vida nas quais estão inseridas. Não há, portanto, um único rural e muito menos um homem rural único, homogêneo. Entende-se, com Raymond Willians, que a realidade histórica é surpreendentemente variada, ou seja,
a “forma de vida campestre” engloba as mais diversas práticas – de caçadores, pastores, fazendeiros e empresários agroindustriais –, e sua organização varia da tribo ao feudo, do camponês e pequeno arrendatário à comuna rural, dos latifúndios e plantations às grandes empresas agroindustriais capitalistas e fazendas estatais. Também a cidade aparece sob numerosas formas: capital do Estado, centro administrativo, centro religioso, centro comercial, porto e armazém, base militar, polo industrial. (WILLIAMS, 2000, p. 11).
Se há semelhanças entre as representações europeias e catarinenses do rural, deve-se não ao fato de haver um homem interiorano universal, mas à existência de um intercâmbio intelectual, de uma generalização literária e simbólica acerca do que pode ser a vida rural, fazendo com que os “selvagens” representados na Europa sejam iguais ou bastante parecidos com as representações das variações de “matutos” no Brasil. Dessa forma, se um literato desejasse descrever algum ambiente rural no Brasil, não precisaria fazer uma visita ao local ou conversar com as pessoas que nele moram, bastaria ler obras europeias da vida rural ou outras que se tenham produzido no Brasil acerca do mesmo tema. Nessas representações, todos os “caipiras” são iguais e nas áreas rurais há apenas um monte de mato e uma aglomeração de mosquitos. Dessa forma, certamente é curioso que se encontre, por exemplo, alguma semelhança no homem do litoral catarinense e no homem do sertão nordestino.
Seja na literatura, nas artes ou no pensamento social, em grande parte as imagens construídas a respeito do campo mostram o mundo rural como cenário apartado do urbano. Segundo Silvana Paula, “o processo de modernização, mais nitidamente vivenciado a partir da década de 1930, e seus desdobramentos subsequentes reforçam esta separação”. Dessa forma, “tanto o senso comum como o pensamento social brasileiro focalizam campo e cidade divididos por uma fronteira principalmente cultural, de modo a ser configurada uma descontinuidade entre ambos”. Nessa descontinuidade, “o meio urbano é privilegiado como sendo o polo gerador dos estilos de vida sintonizados com a contemporaneidade”, enquanto, “no tocante aos estilos de vida, o meio rural é costumeiramente evocado (...) como sendo desprovido da aura de modernidade” (PAULA, 1998, p. 274).
Os ambientes urbanos, em particular suas elites políticas e econômicas, produziram um homem rural por meio de preconceitos próprios de classes ou frações de classe que lutavam politicamente pelo estabelecimento de sua hegemonia no Estado. Uma de suas ferramentas foi a desqualificação das áreas rurais, a fim de justificar massacres no campo, expropriações de propriedades, entre outras coisas. Nesse processo, foram produzidos símbolos para mostrar que aquelas pessoas que viviam nas regiões rurais nada mais eram que seres de hábitos muito próximos a “selvagens”. Em Florianópolis, que vinha passando por transformações urbanas, não foi diferente, levando também por meio das ondas do rádio a imagem de “caipiras” e “caboclos”, bem como da “roça”, e contribuindo na construção de um imaginário romantizado e estereotipado acerca das pessoas que moram, trabalham e constroem suas vidas no “interior”.