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GUSTAVO BARROSO E A EVOCAÇÃO DO PRETÉRITO1
Elynaldo Gonçalves Dantas
Elynaldo Gonçalves Dantas
GUSTAVO BARROSO E A EVOCAÇÃO DO PRETÉRITO1
Gustavo Barroso of the evocation of the past
Gustavo Barroso y la evocación del tiempo pasado
Fronteiras: Revista de História, vol. 24, núm. 43, pp. 171-190, 2022
Universidade Federal da Grande Dourados
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Resumo: Para Gustavo Barroso, em começos do século XX, as tradições nacionais e o Brasil estavam se perdendo frente ao tempo do progresso. Nesse sentido, sua escrita participa da construção de uma ideia de nação a partir da mobilização de elementos de uma sensibilidade antiquária para entrar, a partir de sua evocação, numa operação de resgate de um pretérito específico, transformando esses elementos da cultura material ligados à história militar em representação de um tempo desejável que torne o Brasil dizível, visível e crível. Assim, buscamos analisar o discurso barrosiano visceralmente temporalizador que demarca tempos (in)desejáveis e a partir disso modela a nação e seu rosto, sua identidade.

Palavras-chave: Tempo, Modernidade, Gustavo Barroso.

Abstract: For Gustavo Barroso, national traditions and Brazil were closing in on the time of progress. In this sense, his writing participates in the construction of an idea of ​​a nation from the history of elements of an antiquarian sensibility to enter, from its evocation, an operation to rescue a specific past, transforming these cultural materials linked to the military into representation. of a time that makes Brazil sayable, visible and believable. We seek to assimilate the viscerally temporalizing Barrosian discourse that demarcates (un)desirable times and from there shapes the nation and its face, its identity.

Keywords: Time, Modernity, Gustavo Barroso.

Resumen: Para Gustavo Barroso, a principios del siglo XX, las tradiciones nacionales y Brasil se perdían frente al progreso. En ese sentido, su escritura participa en la construcción de una idea de nación a partir de la movilización de elementos de una sensibilidad anticuaria para ingresar, desde su evocación, en una operación de rescate de un pasado específico, transformando estos elementos de cultura material vinculados a la historia militar en representación de un tiempo deseable que hace a Brasil decible, visible y creíble. Así, buscamos analizar el discurso barrosiano visceralmente temporalizador que demarca tiempos (in)deseables y desde allí configura la nación y su rostro, su identidad.

Palabras clave: Tiempo, Modernidad, Gustavo Barroso.

Carátula del artículo

ARTIGOS LIVRES

GUSTAVO BARROSO E A EVOCAÇÃO DO PRETÉRITO1

Gustavo Barroso of the evocation of the past

Gustavo Barroso y la evocación del tiempo pasado

Elynaldo Gonçalves Dantas
Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil
Fronteiras: Revista de História, vol. 24, núm. 43, pp. 171-190, 2022
Universidade Federal da Grande Dourados

Recepción: 13 Abril 2022

Aprobación: 16 Junio 2022

Introdução

Gustavo Adolfo Luíz Guilherme Dodt da Cunha Barroso nasceu na cidade de Fortaleza, Ceará, no dia 29 de dezembro de 1888. Na década de 1910 se muda para a capital do país, Rio de Janeiro, onde conclui o curso de Direito, em 1912, em concomitância à sua atividade de escritor e redator de jornais e revistas como A Careta, Tico-Tico, Fon-Fon e Jornal do Commercio, mesmo ano em que publica seu primeiro e renomado livro, Terra de Sol. Em 1914 é eleito deputado federal pelo Ceará na legenda do Partido Republicano Conservador, seu mandato (1915-1918) é marcado por discursos e propostas contra a seca, pelo seu projeto de lei contra a entrada no Brasil de pessoas consideradas indesejadas, por seu ingresso na comissão de Marinha e Guerra e pelo projeto dos Dragões da Independência (DANTAS, 2021).2

Para o intelectual e então deputado federal (1915-1918) Gustavo Barroso, as tradições nacionais e o Brasil estavam se perdendo com o advento da República e seu ideal de nação moderna rompia com um determinado passado brasileiro. Assim, Barroso se empenha na fabricação de sua própria versão sobre o tempo, modelando uma imagem de nação que definhava frente ao progresso e a ruptura temporal entre passado e presente. Visando superar a lacuna temporal estabelecida pela civilização industrial burguesa, Barroso vai mobilizar aspectos de um determinado passado, entendidos enquanto elos temporais capazes de “resgatar” esse “país que se perdia” demarcando tempos (in)desejáveis para, a partir dessa operação discursiva visceralmente temporalizadora, modelar aquilo que entendemos ser um projeto conservador, militarizado, autoritário de nação.

Dessa forma, nosso esforço de análise se concentrará principalmente no livro Idéas e Palavras (1917), escrito por Gustavo Barroso e que reúne uma série de aforismos que buscam evocar um determinado passado capaz de religar a temporalidade tripartida pela modernidade, bem como, nos interessa o debate instaurado no Jornal do Commercio (1911) entre Gustavo Barroso e a diretoria do Colégio Militar em torno de uma dita relíquia do passado militar brasileiro

Mas, qual a imagem de Brasil e tempo por ele (in)desejado? Quais são os símbolos mobilizados por Gustavo Barroso em sua operação discursiva? Para buscarmos responder essas questões nosso principal referencial teórico é o articulado por Reinhart Koselleck, em seu livro Futuro Passado - contribuição à semântica dos tempos históricos (2006). A partir desse aporte, retiraremos insumos para entender a nova dinâmica temporal advinda com a temporalidade moderna, caracterizada, sobretudo, pela aceleração, ânsia de progresso e tempo tripartido.3

Dessa forma, buscamos apontar o tempo como uma construção humana imbricada a um determinado lugar social,4 construção essa que atende a determinadas demandas imiscuídas nos jogos de poder travados no prelúdio republicano. No caso de Gustavo Barroso uma concepção de tempo marcadamente reacionária, autoritária, militarista, que, de diversas formas, ainda persiste em nossa contemporaneidade.

Acreditamos que problematizar a construção histórica do tempo é devolvê-lo ao devir, abrindo assim a possibilidade de pensarmos também em outros tempos possíveis. Não mais tempos de exceção que se fazem a regra inscrevendo seu movimento como algo inescapável, “lei natural da história”, mas temporalidades afeitas aos direitos humanos e a justiça social. Nos posicionar, dessa forma, é lutar por uma história múltipla, repleta de possibilidades, “saturada de agoras”, capaz de derrubar condições sociais em que o ser humano é um ser rebaixado, subjugado, abandonado, desprezado, e assim, construir o verdadeiro estado de exceção, sobre o qual nos fala Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de história.5

A busca por um tempo “delicioso”

O livro Idéas e Palavras, abre com a seguinte reflexão sobre a lenda da Mancenilha:

Uma a uma as lendas vão morrendo. E eu temo que, dentro em pouco, neste pratico seculo de invenções portentosas, não reste mais aos espiritos fatigados da aspereza scientifica o afago poetico de uma só.

Cada dia desce uma lenda ao tumulo. Tudo quanto sobre ella se disse ou escreveu parece muito velho, muito remoto e muito saudoso. Em breve, todas as lendas que faziam as doçuras da poesia estarão esquecidas. Na vertiginosa carreira da humanidade para o progresso, vão ficando esparsas e perdidas (...) (BARROSO, 1917, p. 7).

Os primeiros parágrafos do referido livro, que é um apanhado de aforismos, já atestam a insegurança barrosiana frente ao tempo da modernidade que era sentido como algo caótico, pois separava irrevogavelmente o passado do presente. A “aspereza scientifica” e a “vertiginosa carreira da humanidade para o progresso” significavam a morte de toda uma temporalidade, que Gustavo Barroso naturalizava ao tratar como tradicional, das suas memórias e dos seus costumes, entendidos como sinais de atraso a mancharem a imagem de ordem e progresso pretendida pelas elites que visavam ajustar os ponteiros da recente República com o das nações entendidas como civilizadas.

Para Gustavo Barroso faltava passado em seu presente e sua narrativa estaria imbuída da missão de fabricar esse passado e essa saudade. Mas não qualquer passado, não qualquer saudade. Barroso sente saudades de uma espacialidade específica: o Ceará. E é na condição de “filho ausente”, residente, à época, na capital do país, Rio de Janeiro, que elabora seu discurso, com uma saudade que não é medida apenas em escala geográfica, mas a partir de uma escala temporal.

Assim, constitui uma nostalgia ideológica de um imaginado Brasil Império em que se reconhecia a existência de classes ou grupos econômicos, em que a perspectiva da luta de classes era mantida a distância pela aceitação de uma hierarquia social rígida, pelo reconhecimento de que cada grupo social ou “estamento” tinha seu papel a desempenhar numa sociedade orgânica, fixa, composta por todos, que deveria ser reconhecida como entidade coletiva, comandada por uma autoridade patriarcal. Saudades de um tempo entendido como natural, sem fissura e harmônico.

O tempo que Barroso sente saudades, e em ato contínuo fabrica discursivamente, é o tempo do universo rural, das mudanças lentas, graduais e seguras, do ritmo dito natural, tempo das tradições, do pitoresco, do fantasioso, das lendas, como a da Mancenilha com seus frondosos galhos que convidam a descansar ou abrigar-se sob sua mortal sombra que tanto inspirou versos, amores, óperas e poesias: “Quanto amor desesperado, quanto sentimento ferido de desprezo, quanta paixão louca e brutal foram encontrar nella a quietação, a paz, o doce esquecimento da morte!” (BARROSO, 1917, p. 8). As lendas e os mistérios eram próprios de uma temporalidade desejável em que se valorizavam os afetos, as emoções, os mistérios da natureza, em que se sabia sentir, eram resquícios de “Tudo o que a humanidade idealisou de suave, languido, ardente, doloroso, bom ou heroico” (BARROSO, 1917, p. 11).

Para Barroso, as lendas seriam elementos que valorizavam a cultura nacional e popular, aparecendo como janelas para um passado que não deveria passar, um passado que se perpetuava de geração em geração, reminiscências de uma temporalidade com pretensões de eternidade, um presente que se imbricava com o passado e que se encontrava ameaçado por um tempo fugidio, obliquo que a nada respeitava: o tempo da modernidade. É o sentimento de perda que alimenta sua narrativa, calcada na crítica ao nascimento de uma temporalidade que, para se fazer soberana, deveria enterrar todos os resquícios de um tempo entendido como incivilizado.

O tempo do progresso e da ciência é o tempo da razão, do cientificismo, da velocidade, da dinamicidade, tempo vivido e percebido como mudança, como separação entre passado e presente. No “pratico seculo de invenções portentosas” (BARROSO, 1917, p. 7) não haveria espaço, nem tempo, para contemplação, para a natureza, para as coisas do coração, para as antigas lendas que “iam morrendo uma a uma”. O tempo do progresso é o mesmo da “aspereza scientifica” de homens incrédulos no divino, no misterioso, no qual tudo passa a ter uma explicação lógica e racional. São muitas as novidades da ciência e da técnica que vem saturar a temporalidade moderna deixando a sensação que vivemos uma linearidade histórica que cada vez mais se acelera, aumentando a distância entre o passado, entendido como sinônimo de atraso e de barbárie, e o presente, lugar da primazia da civilização que caminhava cada vez mais para um futuro iluminado. No decorrer do seu aforismo, Gustavo Barroso elenca algumas mudanças que representam essas transformações: “aeroplanos e submarinos, frascos de chloroformio, injecções hypodemicas, eletricidade, sem-fio”.

No entanto, não é com reverência, nem com elogios que essas inovações são representadas em seus pensamentos. Ao contrário, a “vertiginosa carreira da humanidade para o progresso”, para entrar no rol das nações ditas civilizadas, é valorada de forma negativa nos discursos barrosiano, representada com estranhamento. Para Barroso, os objetos do presente não tinham passado, não tinham história, e dessa forma só poderiam indicar a vinda de um futuro também vazio. Ao contrário do ideal suscitado pelos defensores do progresso tecnológico, a velocidade com que esses novos recursos técnicos inundavam o cotidiano dos cidadãos das grandes capitais do país, desorientou, intimidou, perturbou, distorceu e confundiu (SEVCENKO, 1998, p. 516) muito de seus contemporâneos.

Dessa forma, sob o impacto das novas tecnologias, o homem moderno, promotor dessas mudanças, é representado como alguém que já perdeu a capacidade de sentir, é o “birrento scientista” e sua “sciencia petulante e petulante espirito” a “arrotar erudição”, sendo descrito como homem áspero, “matadores de lendas”, “assassino” (BARROSO, 1917, p. 11-12). O homem fruto da modernidade, para Barroso, é um ser desapegado de suas raízes históricas, sem sentimentos; um homem tão frio quanto suas invenções que, longe de harmonizarem, desfiguravam o mundo.

Gustavo Barroso apreende o mundo a sua volta e articula suas experiências temporais em forma de uma narrativa que visa denunciar os efeitos da modernidade, sendo seu discurso uma representação do real, fabricando sua própria versão sobre o tempo, modelando uma imagem de sociedade que definhava no caldeirão das mudanças e transformações advindas com a modernidade por ele tão detratada. Ressaltemos que Barroso era um antimoderno na linha da modernidade, que se fez intelectual frequentando os altos círculos literários da capital do país, sempre antenado aos valores e à ciência, vindos da Europa e dos Estados Unidos, e era com esse olhar cosmopolita, científico, sempre com ares de superioridade, tanto para com o Norte, que ele descrevia em seus livros e contos, quanto para com os seus debatedores na Câmara dos Deputados, que ele fazia valer seu discurso crítico às mudanças, fora do (seu) controle, trazidas com a modernidade (DANTAS, 2021). Por isso, a concepção de tempo barrosiana, reacionária e conservadora, se faz enquanto contraponto ao tempo do progresso.

As mudanças são sentidas por Barroso também no campo das artes. É com pesar que ele atesta que o espírito prático que anima a temporalidade moderna pouco a pouco se “infiltra na alma sonhadora dos artistas” (BARROSO, 1917, p. 93). É com saudade de um tempo que ele não viveu, característica de um saudosista romântico, que Barroso recorda de Theophile Gautier, que “assombrava o burguez com as suas pantalonas vermelhas, zombando do luxo mesquinho da civilisação occidental” (BARROSO, 1917, p. 93). No texto intitulado Vie de Bohême, Barroso traz a marca da saudade de um tempo por ele idealizado, quando a atividade artística seria valorizada e o que importaria era a arte, o sentimento. Esse tempo lento, quase sem alteração, anterior a sua infância no Ceará, era em suas próprias palavras “O tempo delicioso e sentimental da bohemia artistica” (BARROSO, 1917, p. 95), era o tempo desejável que ele constrói narrativamente.

O tempo desejável de Gustavo Barroso nasce da saudade dos áureos tempos de uma elite rural nortista e daqueles elementos que compunham essa sociedade, como o poder sem limites do senhor de terras, exercido sob uma vasta população e o mundo hierarquizado entre brancos e negros, senhores e escravos, homens e mulheres.

O tempo “delicioso” que Barroso nos fala tem um lugar social: é o mundo aristocrático e suas glórias, do qual ele era herdeiro; mundo rural que era o centro político-econômico do Império, em que se destacava uma elite letrada que tinha como tema de seus escritos a valorização das emoções, o amor platônico, temas ligados a espiritualidade, que cantavam uma determinada nação brasileira e o que entendiam ser sua história. Esse tempo sucumbia frente ao tempo da praticidade, da comercialização, nascido da expansão do capitalismo, que tudo transformava em mercadoria. Seu pensamento visa falar negativamente sobre novas formas de sensibilidades artísticas e culturais, trazidas com a modernidade e ligadas às manifestações da cultura burguesa.

Presentemente, os poetas discutem as cotações da bolsa, os pintores arranjam empregos vitalicios e os ecriptores conhecem bem o valor dos fundos públicos.

(...) O silencio monotono da vida intelectual hoje em dia é, certamente, o resultado da orientação pratica dos homens de letras e de arte que não encontram mais prazer na antiga e morta vida de bohemia. (BARROSO, 1917, p. 95).

Para Barroso, no tempo da burguesia pouco espaço haveria para emoções, afetos, amor, lendas e tradições, aquilo que ele considerava as raízes da civilização brasileira. No século da praticidade, das inovações técnicas e dos valores capitalistas, os homens de letras e das artes encontrariam prazer apenas no lucro. Formulação discursiva que relega a elite letrada “do século do progresso” à prática da morte da vida boemia, pois constrói a imagem de que estes intelectuais não se dedicavam mais somente às artes, procurando a concomitância com outras atividades ligadas ao comércio para sobreviver. Para nosso autor, como resultado desse pensamento individualista de valores burgueses que só pensavam no lucro, gerou-se uma vida intelectual desinteressante, monótona, típica dos grandes centros urbanos que ele experienciava e tirava parte do seu sustento no Rio de Janeiro, longe do “seu” Ceará, não de qualquer Ceará, mas do Ceará rural e aristocrático que ele fazia ver em seus textos.

O saudosismo expresso nesse discurso barrosiano lamenta a morte da tradição, mas não de qualquer tradição. Os sentidos atribuídos ao conceito de tradição são puramente conservadores, sendo assim, a tradição seria algo inerte, a sobrevivência de um passado que deveria se repetir no presente. Como nos avisa Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2009, p. 78), a saudade pode ser tanto um sentimento pessoal de quem se vê perdendo algo ligado ao seu ser e ao seu mundo, como pode ser algo coletivo, sentido por toda uma classe social que perdeu historicamente seus domínios e seus símbolos de poder engolidos pelo sopro da mudança.

A par de imenso progresso scientifico, há classes inferiores e mesmo em algumas camadas superiores um verdadeiro retrocesso em materia de abusões e crendices. Parece que o povo tem, mais que nos tempos idos, o culto do mysterio e a crença no charlatanismo. Não se procuram mais as forças ignotas com o fim elevado de fabricar oiro e achar a mocidade eterna. O calculo interesseiro é mais baixo. Procura-se saber das alternativas de fortuna que possa o futuro prometer. Desejam-se meios seguros

Outr’ora os generaes gregos consultavam as pythonisas e os Cesares romanos olhavam as entranhas das aves abertas pelo cutelo dos augurius. Na idade-média, Carlos Magno ouvia discursos propheticos de Merlin e Mac-Beth ia consultar a ronda pavorosa das bruxas. Era a fidalguia do Rei-Sol e do Rei Bem Amado que constituia a clientelados Cagliostros. Hoje, é a arraia miuda quem mais frequenta os hierophantes, os avanhadasvas, os maxs e as zizinhas. (BARROSO, 1917, p. 132-133).

A partir desse trecho entendemos que Barroso busca, dentro de uma história tradicional e elitista, estabelecer o continuum da história, religando passado, presente e futuro, construindo um passado-presente e um passado-futuro, na perspectiva dos vencedores, disputando temporalmente o presente com aqueles que entendiam ser o passado, e tudo que vem dele, sinônimo do atraso. Estabelecer esse continuum é lutar pela perpetuação do seu lugar social, do seu poder político-econômico-cultural que via suas estruturas serem abaladas pelos ventos do progresso e pela nova elite republicana.

Notemos como Barroso trata aspectos da “crendice”, do mistério e do oculto em sua fala. Quando esses elementos estão ligados ao passado de raiz europeia – “generaes gregos”, “Cesares romanos”, “Carlos Magno” e Luís XIV, o “Rei-Sol” – , eles são valorados de maneira positiva. É a partir desses personagens que Barroso fabrica seu entendimento sobre história, ou seja, uma história vista pela ótica dos vencedores, dos chefes de Estado, de civilizações que legaram valores ao Brasil Império, entendido como um tempo áureo. Porém, “as classes inferiores”, e mesmo alguns membros da “classe superior”, quando se valem da crença, dos mistérios e do oculto, o fazem com uma visão estritamente utilitária: o lucro, que solapa os modos de vida pré-capitalista e pré-industriais.

As tradições perdidas que Barroso sente falta estão ligadas com uma perspectiva temporal imbricada a um determinado lugar social em que enxerga, ao mesmo tempo em que constrói, um passado desejável. Essa temporalidade “deliciosa” seria encontrada num passado fabricado e na busca por símbolos que preencham o sentimento de vazio causado pela sensação de ruína do tempo em que gozavam de (mais) poder e prestígio. Desta forma, a partir de sua narrativa temporal, busca uma representação que torne dizível, visível e crível a simbolização e a materialização ancorada na tradição do Brasil Império, entendido como o ápice da história do Brasil, e como continuador de uma tradição maior, “ocidental”, leia-se europeia.

Pensar a construção da nação a partir de uma narrativa temporal calcada nas regras do discurso histórico faz de Barroso um moderno antimoderno, um intelectual preocupado com o progresso, mas não com o progresso advindo da técnica e da ciência, da visão liberal-burguesa. A modernidade barrosiana é aquela que reivindica uma modernização conservadora, sem mudanças abruptas na estrutura político-econômico-social e cultural, até pouco tempo dominante e que vinha perdendo espaço com o advento da República.

Exemplo desse antimodernismo barrosiano, que reivindica uma modernização de base conservadora, encontra-se no texto A Nigromancia (1917), no qual o autor lamenta que a luz da ciência não tenha iluminado as “classes inferiores” e “mesmo algumas camadas superiores”, assim, tratando como problema o aumento da existência de práticas sociais não adequadas à modernidade. Quais práticas sociais seriam essas? No referido texto, Barroso elenca o culto do mistério, as crendices e os jogos de azar, como o jogo do bicho, enquanto práticas associadas, em grande parte, às ditas classes inferiores.

Essa “classe inferior” era formada em sua maioria por pessoas recém libertas do trabalho escravo, seus descendentes e imigrantes, que vinham tentar uma vida melhor no Brasil e, em decorrência da “regeneração” e do “bota-abaixo”, eram expulsos do centro da cidade, passando a ocupar os morros das redondezas, cobrindo-os com seus barracos de madeira, ou a se amontoarem nos cortiços da cidade. A “arraia miuda” que formava o novo operariado, ao descer dos morros para trabalhar no porto do Rio de Janeiro, nas indústrias e fábricas do centro da “vitrine do progresso”, levava hábitos, valores, costumes e crenças, inclusive reivindicando direitos trabalhistas, passando a ser vista como sinal de atraso civilizacional, agentes fomentadores da desordem não apenas para a nova elite liberal-burguesa da sociedade republicana.

Gustavo Barroso entendia esses agentes como um “verdadeiro retrocesso” que nem a praticidade do “progresso scientifico” deu fim, ao contrário, parecia aumentar. Nota-se um elo entre esses estratos temporais que, apesar de à primeira vista mostrar os defensores do progresso e Gustavo Barroso como conflitantes, trazem um ponto de convergência: a ojeriza às classes sociais ditas inferiores e às suas manifestações de qualquer ordem, evidenciando nos jogos de poder em que se enredavam as novas e as antigas elites econômicas a demarcação de um tempo que envolvia profundo sentimento antipopular e não poupava “nem lares, nem âmbitos sagrados, nem corpos e nem vidas” (SEVCENKO, 2011, p. 30), levando a episódios brutais de opressão contra populações alijadas dos processos decisórios da vida nacional e que buscavam resistir de diversas formas.

Saudoso de um passado, em muito idealizado, no qual cada classe saberia seu lugar e viveria harmoniosamente, em que a vida estamental lhe garantiria uma certeza para o futuro, alicerçada na força do passado de uma elite agrária do norte do país, Barroso nos fala do seu presente de incertezas, no qual a perpetuação dos antigos territórios de poder se encontrava ameaçada pela burguesia ascendente e seus símbolos de progresso, e pelos entendidos valores menores da gente “miuda” que, na perspectiva barrosiana, representavam a decadência da humanidade, um verdadeiro retrocesso civilizacional. Assim, temos uma leitura/feitura do passado que carrega marcas dos jogos de poder na nascente República, construindo uma temporalidade de exceção, elitista e autoritária.

E quais os símbolos da temporalidade almejada e forjada por Barroso em seus discursos que se contraporiam aos símbolos do progresso? Qual o papel deles em sua escrita?

O culto das “glórias passadas”

A edição de 22 de setembro de 1911 do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro transcreve, da edição vespertina do dia anterior, um artigo intitulado Museu Militar de autoria de João do Norte (Gustavo Barroso), no qual o autor saúda a intenção do Clube Militar de construir um Museu Militar, afinal:

Em toda a parte os trophéos de guerra, os objectos ligados ás tradições das glorias militares, são guardados como reliquias preciosas em edificios monumentaes. Nós, porém, não temos o sentimento exacto da grandeza do nosso passado: não conservamos, viva e immoredoura, a lembrança do heroismo, da abnegação e dos sacrificios dos nossos maiores que, com a immolação de suas vidas, nos legaram a immensa, rica e formosa terra que habitamos. (JORNAL DO COMMERCIO, 22/9/1911, p. 3).

E continua:

Somos o povo que não ama seus maiores, que não admira o heroismo dos seus avós, que não revive, em sua alma, as suas condições de glorias (...). A geração presente temperará, então, seu patriotismo, contemplando as reliquias representativas das nossas glorias passadas. (JORNAL DO COMMERCIO, 22/9/1911, p. 3).

Na terça, dia 26 de setembro, a diretoria do Colégio Militar responde, no mesmo periódico, ao artigo escrito por Gustavo Barroso. O motivo da necessidade de resposta? João do Norte afirmou que a espada de Solano Lopez “está no Collegio Militar coberta de poeira, a um canto, numa velha caixa envidraçada”. Eles garantem com segurança que essa informação está equivocada:

O legendario sabre se acha collocado em lugar distincto da sala d’armas do referido instituto e está cuidado convenientemente, servindo-lhe de estojo uma caixa envernizada com tampo de vidro que descansa sobre pequena mesa forrada de panno verde. (...) A Directoria do Collegio Militar não poderia tratar senão desse modo o preciozo trophéo que nos legou a sangrenta e gloriosa campanha do Paraguay. (JORNAL DO COMMERCIO, 26/9/1911, p. 6).

Passados seis anos, o mesmo artigo é republicado no livro Idéas e Palavras. A questão levantada por João do Norte, pelo que se depreende da sua nova publicação, ainda não tinha sido totalmente resolvida. Em seu livro, Gustavo Barroso parece corrigir seu equívoco anterior, pois: “A maior de nossas reliquias militares, a espada de Francisco Solano Lopez, a arma do unico chefe de Estado que vencemos após cinco annos de cruenta guerra, acha-se quasi desprezada numa caixa envidraçada, ao canto de um salão do Collegio Militar” (BARROSO, 1917, p. 30).

Ora, o que mudou, na perspectiva de Gustavo Barroso, da publicação do jornal, da resposta do Colégio Militar para a publicação do livro? A caixa que guarda tal relíquia agora se encontra “quasi” desprezada. O que não mudou? Todo o resto. O abandono do que ele entendia ser as tradições nacionais, o desapego com o passado imperial, representado em objetos militares, persistia.

Visando superar as lacunas entre passado e presente estabelecidas pela civilização industrial burguesa, Barroso vai mobilizar elementos de uma sensibilidade antiquária para entrar, a partir de sua evocação, numa operação de “resgate”6 de um pretérito específico, transformando esses elementos da cultura material em representação de um tempo desejável, bem como em elementos de denúncia do recuo, do ponto de vista humano, moral, espiritual e civilizacional que o progresso material havia instaurado ao desprezar o pretérito que ele idealizava.

A partir das citações feitas, percebemos que Gustavo Barroso busca na história militar brasileira elementos da cultura material que preencham a sensação de lacuna temporal instaurada pela modernidade. A ênfase nesse tema, que se faz sentir também em sua atuação política será algo que o acompanhará pelo resto de sua vida.7 Nesse sentido, à primeira vista, nos chama atenção a escolha de um texto publicado há seis anos ser republicado em livro. Os discursos parecem ser idênticos, poucas são as alterações e em ambos os escritos estão presentes elementos referentes a um nacionalismo de cunho militar. Contudo, entendemos existirem diferenças que devem ser analisadas.

No texto publicado em 1911, Barroso está preocupado com o debate sobre a nação, o ser nacional e a temporalidade moderna, atribuindo às referências militares a tarefa de resguardar certas tradições que, por um lado, combatiam as representações materiais do progresso entendidas como prenhes de valores materialistas, buscando nessas mesmas relíquias militares a manutenção de uma suposta identidade nacional que estava sendo deliberadamente esquecida, desprezada.

Já a publicação em 1917, quando se analisa outros textos do seu livro, como o Culto da Saudade e Os Dragões da Independencia, concomitantes com sua atuação de deputado federal que, entre outras pautas, se dedicou a “resgatar a tradição militar” a partir do Projeto de Lei nº 71 de 1917, apelidado de “Dragões da Independência”, 8 algo de urgente parece trazer o peso do tempo dentro de si, um acontecimento histórico que remete a uma dada dimensão do tempo e do espaço na qual está inserido. Essa urgência acreditamos ter nome e sobrenome: Grande Guerra.

O desenrolar da Guerra (1914-1918), a derrocada da ideia de marcha ininterrupta do progresso e de civilização para um futuro áureo, a participação do Brasil no conflito evidenciando a situação calamitosa em que as forças armadas brasileiras se encontravam (MENDONÇA, 2008, p. 49), o ingresso de Barroso em junho de 1917 na comissão de Marinha e Guerra, e os debates em torno do projeto de lei de sua autoria que visavam recriar a guarda dos “Dragões da Independência”, imprimem um outro sentido ao seu texto: o de extrema necessidade. Ao escrever, parece gritar:

Porque não temos ainda, precisamos crear o culto de nossas tradições, especialmente das tradições militares. Sem o amor do passado e a lição dos feitos antigos, não póde haver nacionalidade. Amar a história é amar a terra. Uma não passa de corollario da outra. Até hoje, quasi não temos esforços nesse sentido. Façamo-los. Os ensinamentos das lutas actuaes nos mandam defender o Brasil das ambições que se possam elevar contra elle. Devemos executar esse programa materialmente – fomentando o desenvolvimento physico e o aparelhamento militar; espiritualmente – incutindo em todos os brasileiros a religião do passado, que é a mesma da pátria.

Seria de grande alcance, para tal fim, remmemorar constantemente ao povo as coisas antigas, colleccionando em museus adequados objectos representativos da vida militar da nação, expondo-os, explicando sua significação, familiarisando as gentes com elles.

Somos o povo que menos guarda e, portanto, menos estima as coisas do passado. Necessitamos ser educados. Trata-se agora do levantamento do espirito patriotico do Brasil. Ha uma verdadeira cruzada. (BARROSO, 1917, p. 37).

Não existe espaço sem tempo pretérito para Gustavo Barroso. Seu discurso visa construir esse “culto das tradições militares” a partir da ideia de que, mais que meros objetos, as relíquias militares, verdadeiros “trophéos”, são “élos tradicionaes que ligam o passado ao presente e este ao futuro” (BARROSO, 1917, p. 38). Está posta aí a função do seu discurso visceralmente temporalizador: demarcar tempos (in)desejáveis e a partir disso modelar a nação e seu rosto, sua identidade.

Contra a vertigem das aceleradas mudanças que atingiam todos os níveis da experiência social, Barroso sugere o “culto das glorias passadas. Somente nós não os possuimos ainda” (BARROSO, 1917, p. 27). Ressaltemos, as “glórias passadas” são, nas palavras dele, “especialmente” as militares. Nos apeguemos a metáfora do “culto”, esse conjunto de atitudes e ritos pelos quais se adora uma divindade – o passado militar – precisa da construção de determinados templos onde se realize tal adoração. E como seriam esses templos na perspectiva barrosiana? Seriam materiais e espirituais e neles estariam abrigadas as memórias do passado militar, protegidas do “bota-abaixo” temporal promovido pela modernidade.

Os “templos materiais” de adoração ao culto do passado militar seriam os museus, lugares onde se reuniria e preservaria recordações guerreiras, tidas como testemunhos factuais de “glórias pretéritas”. Ressaltemos, a representação do passado (conservador-autoritário-militarista) que Barroso fabrica é, sobretudo, um registro de como ele pensava o mundo à sua volta. Destarte, o Brasil Império é o molde nacional, momento este que entende como glorioso, cenário de lutas, sacrifícios e vitórias militares, tempo da ordem. Tudo em contraposição à República, entendida como caótica, fragmentada, desordenada, perdida, com a entrada de novos atores sociais em cena.

Dessa forma, as tensões e disputas em torno do sentido do passado ganha a defesa da edificação de lugares concretos, verdadeiros repositórios do que Gustavo Barroso elenca como a memória nacional que guardassem representações visuais de um dado passado a ser perpetuado a partir de uma grade classificatória que, como nos lembra Benedict Anderson, tinha como efeito “sempre poder dizer que tal coisa era isso e não aquilo, que fazia parte disso e não daquilo. Essa coisa qualquer era delimitada, determinada e, portanto, em princípio enumerável” (ANDERSON, 2008, p. 252-253). Temos, assim, que Gustavo Barroso quer um museu, entendido enquanto templo de adoração ao passado, porque almeja, a partir de pressupostos próprios, classificar, delimitar e determinar uma nação e seus elementos constituintes.

Segundo Barroso esses museus militares, como vimos em citações anteriores, já se encontravam em todas as nações (BARROSO, 1917, p. 27). Todas as nações? Muito genérico, esmiuçemos mais seu artigo “Museu Militar”. Nele, Barroso cita os seguintes países, em ordem: França tem o seu Museu dos Inválidos; a Espanha a Armeria Real; Portugal o Museu de Artilharia; a Alemanha teria dezenas de museus; a Inglaterra teria a Abadia de Westminster, o Palácio de Buckingham e o British Museum. Barroso nos diz que em todos esses museus é possível encontrar objetos militares, “testemunhos das guerras antigas” (BARROSO, 1917, p. 27-29). Assim, “todas as nações” parecem significar apenas alguns países da Europa Ocidental.

Gustavo Barroso atesta que, diferente de outras cidades, europeias, que conciliaram modernidade com passado, o Brasil não soube preservar o seu passado e isso se tornava visível pelo descaso com nossas “relíquias” de guerra. Entendemos que essa comparação entre Brasil e cidades europeias têm um significado peculiar: entrar em compasso com a modernização conservadora dos países da Europa Ocidental, como a França, embora descrita enquanto “heroica e progressista é conservadora em suas emoções e ideias” (BARROSO, 1917, p. 171). Acertar os ponteiros com a Europa seria religar o Brasil com aquilo que ele acreditava ser sua raiz histórica, seus antepassados privilegiados, percepção histórica que consideramos marcadamente etnocêntrica.

Já os “templos espirituais” seriam erigidos da prática de incutir a “religião do passado” em todos os brasileiros, tentando criar uma comunidade homogênea. Contudo, na perspectiva barrosiana, como se deveria ser ensinado esse credo? Respondemos: pela sensibilidade que começaria no contato visual com o pretérito por ele selecionado. Faltava passado no presente barrosiano, dessa forma, o vazio temporal entre passado e presente instaurado pela modernidade deveria ser preenchido através do resgate de um determinado pretérito que é, assim, uma forma de operacionalizar os sentidos da história, apelando a uma dada sensibilidade visual para acessar esse passado almejado. Para Barroso era importante fazer ver esse passado.

Como já explicitado, a fabricação da história por Gustavo Barroso objetiva costurar a temporalidade antiga, religando o passado ao presente para assim ter garantia de domínio do futuro. A fórmula encontrada foi a construção de uma ideia de nação/identidade que seria buscada nos indícios de um determinado passado nos elementos da cultura material, dos quais seria possível preencher o sentimento de vazio causado pela sensação de ruína dos antigos espaços de poder. Esses elementos estariam ancorados na tradição do Brasil Império, entendido como momento áureo da história brasileira, entenda-se da região norte, e como continuador de uma tradição maior, pois europeia. Nesse sentido, a história é uma vasta acumulação de datas, personagens e elementos de um pretérito beligerante, que podem e devem ser trazidos de volta ao presente a começar pelo trabalho árduo de “resgate da obscuridade” em que se encontravam relegados por uma sociedade que entendia ser reativa ao passado.

O trabalho de resgate do passado se materializaria em “glórias”, tendo na criação de um espaço institucional, o Museu Militar, o objetivo de reunir relíquias do pretérito capazes de congelar uma determinada imagem do tempo. Contra a vertiginosa aceleração da modernidade, Barroso nos propõe um tempo imóvel, congelado, que uma vez que fosse dado a ver à sua audiência, servisse de espelho para a sociedade contemporânea.

Então, nesse verdadeiro relicário estariam dispostos os símbolos máximos da nação, elencados por algumas relíquias, como os terçados que os bandeirantes utilizaram para adentrar os sertões, mosquetes e espadas utilizadas na Guerra do Paraguai e as bandeiras tomadas aos inimigos à custa de muito sangue. Entretanto, a “maior de nossas reliquias militares” seria a espada de Francisco Solano Lopez (BARROSO, 1917, pp. 29-30). Barroso vê nesses elementos da cultura material o tempo, ou melhor, camadas de tempo sobrepostas. Eles representam tanto o passado desejável que não poderia passar, quanto o presente indesejável que deveria ser mudado pelo “culto do pretérito”.

Mas, por que a espada de Solano Lopez seria o maior troféu da nossa história? Retomemos uma citação anterior. Para Barroso,

Somos o povo que não ama seus maiores, que não admira o heroismo dos seus avós, que não revive, em sua alma, as suas condições de glorias (...) A geração presente temperará, então, seu patriotismo, contemplando as reliquias representativas das nossas glorias passadas. (BARROSO, 1911, p. 3).

Ao sentir saudades de um tempo não vivido por ele mesmo, mas que lhe deveria ser garantido pelo princípio de sangue e de hereditariedade, Gustavo Barroso tinha como norte a saudade de um tempo que deveria ser resgatado. O tempo dos seus avós, o tempo em que o Império brasileiro vivia seu auge9 e com ele o poder discricionário do senhor de terras do norte do país, ainda influente nos rumos da sociedade imperial, sob um mundo estamental e hierarquizado entre brancos e não brancos (negros e indígenas), homens e mulheres. Tempo que ele elege como de sacrifícios “patrióticos”, como os da Guerra do Paraguai (1864-1870), que despertou o sentimento de unidade nacional, levando o exército brasileiro a derrotar o líder paraguaio Solano Lopez.

Herdeiro e porta-voz de uma elite que lutava para preservar seus privilégios ameaçados pelos defensores da modernidade, Barroso vai organizar a sua concepção de história associada à história militar, buscando “resgatar” o passado “tal qual tenha ocorrido” e, com isso, trasladar o passado para o presente, formulando, assim, uma temporalidade naturalizada, domesticada e pronta para ser cultuada, uma temporalidade beligerante, reacionária, conservadora e autoritária. Tempo de exclusão, de exceção, tempo fabricado narrativamente para, a partir da atribuição de determinados sentidos dados ao passado e à objetos da cultura material, erigir um determinado país.

Considerações finais

Ao tempo fugaz da modernidade que, com seus objetos tecnológicos, parece conquistar uma área após outra da sociedade, Barroso propõe a construção do Museu Militar, lugar máximo de adoração ao tempo pretérito. Seguindo a tradição antiquária dos museus europeus, seriam depositadas as “verdadeiras relíquias” nacionais presentificadas nos objetos da cultura material, de cunho beligerante, que remeteria a uma temporalidade aristocrática que ele entendia serem tempos gloriosos da nacionalidade brasileira.

Símbolo máximo desses objetos seria a espada de Solano Lopez, esse “legendario sabre”, que jazia sob as ruínas de um tempo que Barroso considerava não ser valorizado. O resgate desse “preciozo trophéo”, escolhido como elo temporal, presentificaria o passado e garantiria sua manutenção no futuro, religando a temporalidade tripartida. Seu resguardo na instituição militar teria, assim, a função de valorizar a presença de um pretérito dado a ver a um público que, uma vez ungido nesse culto ao passado, despertaria em seu ser o “espirito patriotico do Brasil”.

Entendemos que a mobilização do nacionalismo, tal qual preconizou Gustavo Barroso, funciona como recurso ideológico utilizado para justificar sua concepção de tempo/espaço que tem como principais características a defesa moral e material de um Brasil aristocrático e monarquista, o autoritarismo, a militarização, uma moralização conservadora dos costumes. Uma operacionalização discursiva, comprometida em combater o avanço da modernidade e da modernização, considerado nocivo à suposta identidade nacional forjada em seus escritos, é composta por discursos que falam da passagem de uma antiga sociedade rural baseada na pessoalidade, no paternalismo e na inviolabilidade senhorial, para uma sociedade urbana, atravessada pelo discurso do progresso e pelo anonimato do capital, pela invasão dos agentes do Estado e pela quebra e/ou reorganização de hierarquias sociais, em um tempo/espaço que estava fora de ordem e que se dispôs a ordenar.

Vale ressaltar que, a partir do laço de amizade que Gustavo Barroso manteve com o então senador e futuro presidente da República, Epitácio Pessoa, durante suas participações na Conferência de Paz de Versalhes, em 1919, que poria fim a Grande Guerra Mundial, e posteriormente na excursão que fizeram pela Europa e América, quando presidente da República, no ano de 1922, Epitácio Pessoa criou o Museu Histórico Nacional e entregou sua direção a Barroso, o que segundo a historiadora Aline Montenegro Magalhães significou “a concretização de um projeto barroseano exposto em artigos como ‘Museu Militar’ e ‘Culto da Saudade’” (MAGALHÃES, 2009, p. 82-83).

Verifica-se, assim, que o tempo barrosiano consagra a elite aristocrática do passado imperial como agente promotora da edificação nacional. Portanto, sua concepção de história é feita a partir do ponto de vista dos “vencedores”. Dessa perspectiva, está alijada de sua concepção histórica grande parcela da sociedade brasileira dos primeiros anos da República. O passado que ele fabrica em sua trama discursiva se converte em tábua de salvação, resposta para sua desesperança, solução para sua crise, âncora temporal num mundo que ele percebe em transformação acelerada e de um futuro que se fecha, ordem em meio ao caos que ele experenciava. Suas “âncoras temporais” foram buscadas, principalmente, na evocação de um passado militar ligado a fatos, pessoas, vestígios e atos por ele considerados memoráveis, dignos não só de serem trazidas à lembrança, mas que não deveriam deixar de ser recordados, pois deveriam ser cultuados.

Culto a um determinado passado que constitui uma narrativa, que é atravessada e constituída por um enredo, que é uma forma de fazer ver e de dizer o passado, de contar uma história e em ato contínuo construir essa mesma história, uma história monumental, de eventos-monumentos e pessoas-monumentos tratados como vestígios de um tempo que estava se perdendo e que era preciso de alguma forma recuperar.

Nesse sentido, a visão de mundo barrosiana irá compor sua perspectiva temporal sobre tempos (in)desejáveis, mesclando autoritarismo e conservadorismo com uma sensibilidade romântica e antiquária, que se aproxima das premissas da nova elite burguesa-industrial pela ojeriza à “arraia miuda”, que ascendia com o advento da República, capaz de impor a “qualquer custo” o que eles entendiam ser (sua) Ordem e (seu) Progresso.

Traços que persistem e se reformulam sob novas aparências das elites brasileiras do início do século XXI, que seguem ostentando bens culturais e materiais, símbolos de uma história construída em cima da infâmia e do silenciamento dos “vencidos”, projeto de “Brasil acima de tudo”, inclusive de corpos relegados à morte e ao esquecimento, que ainda vigoram.

Material suplementario
Referências
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez / Recife: Massangana, 2009.
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas / FFLCH / SP, 2002.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
CERQUEIRA, Erika Morais. O passado que não deve passar: História e Autobiografia em Gustavo Barroso. Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011.
DANTAS, Elynaldo Gonçalves. Gustavo Barroso, o Führer brasileiro: nação e identidade no discurso integralista barrosiano de 1933-1937. João Pessoa: Ideia, 2015.
DANTAS, Elynaldo Gonçalves. Os (in)desejáveis: tempo, espaço e identidade na escrita de Gustavo Barroso (1912-1920). Tese (Doutorado em História), Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’. São Paulo: Boitempo, 2005.
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Troféus da guerra perdida. Um estudo histórico sobre a escrita de si de Gustavo Barroso. Tese (Doutorado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
MENDONÇA, Valterian Braga. A experiência estratégica brasileira na Primeira Guerra Mundial, 1914-1918. Dissertação (Mestrado em Ciência Política), Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
MENEZES, Lená Medeiros. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na capital federal (1889-1930). Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: NOVAIS, Fernando Antonio; SEVCENKO, Nicolau. (orgs.). História da vida privada no Brasil-República: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando Antonio; SEVCENKO, Nicolau. (orgs.). História da vida privada no Brasil-República: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. PUC-Rio, 2006.
Fontes
BARROSO, Gustavo (João do Norte). Idéas e Palavras. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro e Maurillo, 1917.
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 85, nº 264, 22 de setembro, 1911.
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 85, nº 268, 26 de setembro, 1911.
Notas
Notas
1 Este artigo resulta de Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2021, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que concedeu bolsa de estudo.
2 Fora do nosso escopo de análise, mas importante para compreensão do percurso intelectual-político de Gustavo Barroso, é interessante ressaltar que nos anos posteriores a década de 1920, Barroso galga cada vez mais espaço nos círculos intelectuais do país, vindo a ser diretor do Museu Histórico Nacional e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Na década de 1930, ingressa nas fileiras da Ação Integralista Brasileira (AIB), onde se destaca como ideólogo, por sua posição antissemita e anticomunista e por liderar as milícias integralistas (DANTAS, 2015), vindo a falecer em 3 de dezembro de 1959, na cidade do Rio de Janeiro.
3 Segundo Koselleck (2006, p. 42-43), o tempo da modernidade rompe com a temporalidade anterior, um tempo caracterizado pela percepção de que a história se associava a uma natureza que não se modificava, ou melhor, que apenas se modificava na longa duração, seguindo um continuum de validade geral que encerrava em si, ao mesmo tempo, passado, presente e futuro. Dessa forma, a história era entendida como magistra vitae, pois dela poderíamos tirar ensinamentos proveitosos para a vida, já que as experiências geracionais não se modificavam tanto.
4 Entendemos o pensamento de Gustavo Barroso como sendo fruto de operações, enquanto prática que liga a ideia ao lugar de escrita, segundo regras historicamente definidas. Quanto ao conceito de lugar social, ver: Michel de Certeau (2002).
5 Trabalhamos com o pensamento de Walter Benjamin a partir da tradução das teses utilizadas por Michael Löwy (2005).
6 Segundo Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2013, p. 225-226) o conceito de resgate, tão caro ainda na nossa contemporaneidade, indica uma dada forma do pesquisador se relacionar com seu objeto de pesquisa, uma dada relação entre o presente e o passado, no qual o historiador, debruçado sobre sua fonte, não apenas poderia enxergar de forma nítida o passado, tal como ocorreu, mas, também, ao salvá-lo da obscuridade dos arquivos, dar-lhe vida presente, fazendo tornar o passado.
7 Fazendo-se sentir na prática museológica, empreendida ao longo do período em que foi diretor do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, e em suas escritas biográficas de personagens militares. Sobre essas questões, ver: Cerqueira (2011). Esse tema também lhe é caro em sua atuação não só de intelectual, mas como chefe da milícia integralista. A esse respeito ver: Dantas (2015).
8 O referido projeto visava exaltar as tradições militares do Brasil, a partir da criação da guarda do presidente da República, Os Dragões da Independência, com uniforme inspirado na antiga guarda de honra do imperador Dom Pedro I. Mais informações sobre o debate em torno desse projeto, ver: Dantas (2021).
9 Segundo Antonio Candido (2002, p. 69), esse momento da história do Brasil Império foi de apogeu político, econômico e militar, sendo que a vida cultural também se desenvolveu muito no decênio de 1860-1870.
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