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Pensando heterotopías no contexto pós-colonial: convivialismo, amor e bem comum1
Analyzing heterotopias in the postcolonial context: convivialism, love, and the common good
Pensando heterotopías no contexto pós-colonial: convivialismo, amor e bem comum1
Controversias y Concurrencias Latinoamericanas, vol. 10, núm. 18, pp. 159-171, 2019
Asociación Latinoamericana de Sociología
Recepção: 28 Fevereiro 2019
Aprovação: 03 Março 2019
Resumo: Na busca das heterotopias há, em curso, novas ideias e práticas que apontam para os caminhos a serem seguidos como observamos tanto no Sul-Global como no Norte-Global. Há, assim, uma aproximação entre o debate convivialista e aquele pós-colonial que deve ser ressaltada pois permite fazer a ponte entre as críticas da crise feitas simultaneamente a partir do Norte-Global e do Sul-Global. Na perspectiva dos estudos pós-coloniais considero muito oportuna a afirmação convivialista de que “a saída da era colonial e o declínio do “ocidentalcentrismo” abrem caminho para um verdadeiro diálogo de civilizações que, em contrapartida, torna possível o advento de um novo universalismo. A questão territorial é importante de ser ressaltada no debate.
Palavras-chave: Heterotopías, estudos pós-coloniais, debate convivialista.
Abstract: In the search for heterotopias, there are, in its course, new ideas and practices that point to the paths to be followed, as we observe both in the South-Global and in the North-Global. There is, therefore, a convergence between the convivialist debate and the postcolonial debate that must be emphasized, since it allows bridging the simultaneous criticism of the crisis made from the North-Global and the South-Global. From the perspective of postcolonial studies, I regard as relevant the convivialist assertion that “the exit from the colonial era and the decline of ‘Western centrism’ pave the way for a true dialogue of civilizations that, on the other hand, allows for the advent of a new universalism. It is important to highlight the territorial issue in the debate.
Keywords: heterotopias, postcolonial studies, convivialist debate.
Introdução
A busca de novos horizontes civilizatórios supera os limites cognitivos do que tradicionalmente se conhece como utopia e que se refere a sonhos possíveis dentro do imaginário histórico presente. Alguns autores se voltam para encontrar definições mais radicais que apontem para a ruptura da concepção de utopia presente na ideologia do progresso histórico e do crescimento ilimitado do capitalismo. I. Wallerstein (2003) propõe o termo utopística para definir as possibilidades de conceber outro mundo visto que a ordem mundial que alimentou os sonhos da modernidade capitalista e colonial estão se desintegrando. M. Foucault (1984) sugere o termo heterotopía que para ele designa mais claramente lugares e espaços não hegemônicos onde podem ser pensados outros modos de convivência social, existencial e ecológica, lugares de alteridade. Pessoalmente (Martins, 2012), considero o termo heterotopía muito adequado para o contexto atual em que há que se repensar as perspectivas do antropoceno num mundo em que as atividades humanas não são apenas periféricas mas que intervêm radicalmente sobre os destinos do ecossistema planetário com perspectivas catastróficas evidentes como o lembram alguns autores que estudam o tema (Chacrabarty, D. 2009; Stengers, 2009; Danowski e Viveiros de Castro, 2014).
A ideia de ruptura com o modo moderno e capitalista de se imaginar o mundo estimula a perspectiva de criação de um processo civilizatório socialmente mais justo e ecologicamente mais integrado. Tal proposta tem crescido à medida em que se torna evidente a impossibilidade de se manter o atual ritmo de crescimento da economia mundial com aumento das desigualdades de rendas entre classes e nações e com ampliação também da violência e dos processos de anomia social. Na busca das heterotopias há, em curso, novas ideias e práticas que apontam para os caminhos a serem seguidos como observamos tanto no Sul-Global como no Norte-Global. Na América Latina temos como referência maior destas novas utopias o caso do Bien Vivir. Esta tese que se inspirada na tradição aymara, na Bolívia, propõe repensar a vida social a partir de um novo enquadramento da relação entre Homem e Natureza e valorizando as diversidades étnicas (Rivera, 2010; Rivero, 2011; Farah e Gil, 2012).
Este debate também vem produzindo uma revisão importante do trabalho intelectual no Norte-Global. Na Europa, a teoria crítica vem se posicionando sobre a questão das heterotopias e de valorização do tema do bem comum da humanidade (Houtard, 2013; Rosa, 2019) para repensar o capitalismo e o processo civilizatório. A proposta de E. Morin (2005) sobre uma ética da auto-responsabilidade de cada indivíduo sobre o destino do ser vivo, revela as contribuições da teoria da complexidade no debate. Na Italia, pesquisadores de universidades de Roma e de Salerno (Colasanto e Iorio, 2009; Araújo, Cataldi e Iorio, 2015; Cataldi e Iorio, 2017) buscam aprofundar os horizontes do convivialismo, ou do Com-Viver num mundo complexo e plural, a partir das possibilidades afetivas e políticas oferecidas pelo Agir Agápico. Resgatam para isso o legado da filosofia com a sociologia e a psicologia, dialogando com as contribuições de L. Boltanski (2000) sobre o tema e de A. Honneth (2009) sobre as patologias sociais e o reconhecimento.
Na França foi lançado recentemente um manifesto de intelectuais a favor de uma mudança urgente de paradigmas (Manifeste Convivialiste, 2013; Caillé, 2015; Caillé, Vandenberghe e Véran, 2016; Vandenberghe, Véran, Fistetti e Olivieri, 2016). Este se inspira tanto na tradição antiutillitarista da escola francesa de sociologia (Caillé, 1998) como na singular crítica que I. Illich (1973) fez ainda nos anos setenta do século XX ao propor uma sociedade convivial em substituição à produção industrial predatória2. Neste artigo vamos nos debruçar, sobretudo, na análise das possibilidades do Manifesto Convivialista como recurso catalizador de uma práxis teórica ampliada que vem sendo acolhida favoravelmente em diversos países. No nosso entender este manifesto constitui uma ponte interessante para a renovação da teoria social entre o Norte-Global e o Sul-Global, em particular os pontos de convergência entre as críticas anti-utilitaristas que visam a desconstrução da mercantilização do mundo, por um lado, e as críticas pós-coloniais que desafiam os fundamentos do capitalismo colonial.
Este Manifesto, divulgado em 2011, tem gerado impactos importantes no meio acadêmico por várias razões entre as quais podemos sublinhar o fato de se constituir numa reflexão crítica que atualiza o compromisso das ciências sociais para repensar a crise do Ocidentalismo. O Manifesto integra disciplinas diversas como a sociologia, a filosofia, a antropologia, a ecologia entre outras, apoiando-se sobre contribuições prestigiadas de intelectuais de diversas áreas em defesa da tese de um “bem viver” universal e pluri-universal. Este diálogo sobre heterotopias envolvendo diversos grupos intelectuais numa perspectiva transdisciplinar se legitima pelas possibilidades de uma racionalidade expressiva que articule as dimensões cognitivas e afetivas do agir humano num novo patamar de entendimento ecológico do político que atualiza a proposta de H. Arendt (2003 e 2010).
Os avanços da crítica teórica no Manifesto convidam a se refletir sobre dois desafios: um deles é doutrinário, o outro, de ordem prática e política. O doutrinário refere-se aos princípios de um convivialismo amoroso que pode ser sintetizado com a seguinte pergunta: como organizar uma cultura convivialista e baseada na ágape e no dom da generosidade e que permita conjurar os riscos catastróficos econômicos, sociais, ecológicos e morais atuais? A resposta a este desafio doutrinário passa pela iniciativa de criar uma Nova Humanidade, sugere o Manifesto, que seja universal e pluriversal, que promova novos modos de participação inspirados numa consciência ecológica, que inclua as subjetividades coletivas e individuais e que promova a diversidade respeitando a igualdade de direitos para se viver amistosamente. O segundo desafio é de ordem prática e se refere a ações territoriais de indivíduos, movimentos e instituições e ações desterritorializadas produzidas pelas migrações e pelas novas tecnologias. Neste desafio prático busca-se pensar conjuntamente iniciativas de uma nova categoria de ação humana que seja amorosa e convivial. Trata-se da criação das condições políticas, morais e afetivas necessárias para a emancipação de um novo humanismo que dê vida aos territórios, que canalize a indignação coletiva numa política de individuação e de comum socialidade, como sugere o Manifeste Convivialiste (2013, p.26).
Neste artigo gostaria de trazer para discussão, em particular, as consequências teóricas e práticas dos temas da territorialização, da desterritorialização e da localização que são explicitados no Manifesto. Segundo o documento, a emancipação de uma sociedade mundial convivialista exige medidas que deem vida aos territórios e localidades permitindo “reterritorializar e de relocalizar o que a globalização tanto desterrritorializou e deslocalizou” (op. cit., p.38), pois só pode existir convivialismo na abertura aos outros, na formação de conselhos livremente constituídos que “tecerão a trama de uma sociedade civil mundial associacionista” (op. Cit., p. 37).
A questão territorial é importante para se pensar a sociedade global e a democracia a partir de manifestações políticas localizadas. Neste sentido, o Manifesto lembra que a defesa da democracia tem sido o argumento mais sólido para animar as reações populares mesmo aquelas mais ambíguas como a chamada revolução árabe ou outras que, no lado contrário, têm apresentado resultados mais ou menos exitosos. Trata-se de buscar uma democracia que promova um verdadeiro diálogo pluriversal entre civilizações implicando “uma igualdade de direitos e uma paridade entre homens e mulheres” (25). Estes aspectos me parecem cruciais para se visualizar as tensões atuais entre democratização e autoritarismo nos países centrais e periférico. O aprofundamento dos mesmos a partir da crítica pós-colonial que tem contribuições sobre a questão territorial pode ser de grande valor para se avançar com a discussão sobre convivialismo e bem comum.
Considerações pós-coloniais sobre a territorialidade
Há uma aproximação entre o debate convivialista e aquele pós-colonial3 que deve ser ressaltada pois permite fazer a ponte entre as críticas da crise feitas simultaneamente a partir do Norte-Global e do Sul-Global. Na perspectiva dos estudos pós-coloniais considero muito oportuna a afirmação convivialista de que “a saída da era colonial e o declínio do “ocidentalcentrismo” abrem caminho para um verdadeiro diálogo de civilizações que, em contrapartida, torna possível o advento de um novo universalismo. Um universalismo de várias vozes, um pluriversalismo” (Caillé, Vandenberghe e Véran, 2016, p. 25). No meu entender, esta abertura para se repensar os processos de territorialização tem impactos importantes para se visualizar desafios de construção de um convivialismo prático. Ou seja, um tipo de convivialismo que contribua para entender como é possível responder ao desafio de gerir a rivalidade e a violência entre os seres humanos “permitindo-lhes ao mesmo tempo se opor sem se massacrar” (Manifeste convivialiste, 2013, p. 12).
Nos estudos pós-coloniais a questão do declínio do ocidentalcentrismo tem relação com os deslocamentos territoriais produzidos pelas experiências vividas na trama colonial, o que leva ao tema da localização das ações políticas com vistas a se repensar uma nova matriz temporal e espacial. Esta tese é particularmente explicitada na obra de A. Escobar, sociólogo colombiano, que entende a importância crucial de repensar o desenvolvimento a partir da relação entre “natureza do lugar e lugar da natureza” com vista a promover a produção de conhecimentos contextualizados que respondam simultaneamente aos desafios econômicos, ecológicos e culturais (Escobar, 2003; 2010).
Há que se esclarecer que esta busca de relocalização cultural não se limita a um entendimento geográfico, mas a um processo de construção de narrativas que emergem nas fronteiras do presente e que produzem estratégias de subjetivação que deslocam as ideias de classe e gênero como categorias conceituais e organizacionais básicas. Assim, surgem novas posições do sujeito nas encruzilhadas de marcadores de raça, gênero, geração, sexualidade e localidade que refazem a solidariedade e a comunidade em uma perspectiva intersticial (Bhabha, 1998, p. 19-21). Este trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo, retomando o passado como precedente estético e renovando o mesmo como um entre-lugar contingente (op. cit. P.27).
Nesta perspectiva pós-colonial do local como narrativa pós-geográfica entendemos ser possível se aprofundar, seguindo o afirmado no Manifesto Convivialista, a revisão crítica do duplo postulado do pensamento ordinário que rege as ações de governo na atualidade, a saber, a) postulado do primado absoluto dos problemas econômicos sobre os demais e b) postulado da profusão sem limites dos recursos naturais (manifeste convivialiste, op. cit., p.19). Na verdade, acredito que tais postulados apenas se sustentam quando se abstrai a experiência real da vida cotidiana e se valoriza uma matriz social limitada a trocas mercantis que se reproduzem numa temporalidade linear e seriada e numa espacialidade aberta ao infinito. No lado contrário, a narrativa da localidade pensada pela crítica pós-colonial permite recontextualizar as práticas culturais para revelar a complexidade de fatores que intervém no equilíbrio sistêmico da vida em comunidade, reorganizando espaço e tempo a partir do vivido coletivamente.
Neste sentido, a desumanização em curso diz respeito à subordinação da existência humana a uma “lógica contábil, técnica e gestionária” como diz o Manifesto (32), mas, igualmente, ao reforço de tradições culturais, étnicas, religiosas e nacionalistas que emergem na vida social e na esfera do capitalismo colonial como resposta a falta de sentido de um mundo mercantilizado e marcado pelo desequilíbrio ambiental e social.
Desafios de ampliação da matriz moral moderna para incluir a diversidade estética
Neste trabalho de revalorização do lugar que constitui um ponto de confluência entre o pensamento antiutitilitarista do Manifesto e a crítica pós-colonial é importante assinalar que a validação do pluriversalismo como categoria central para se reconhecer o pluralismo cultural universal não pode mais se limitar à perspectiva idealizada de uma comunidade de iguais, seja na ótica do contrato social de J.J. Rousseau (1978) seja na da comunidade imaginária nacional pensada por B. Anderson (2011). O Novo Humanismo a inventar, precisa dar conta de como conciliar a tendência humana inata a vida comunitária sem se perder numa vida desprovida de sentido existencial e espiritual. Para isso, os trabalhos de invenção de um Humanismo mais solidário e espiritual devem superar as barreiras sectárias de costumes, valores e regras que as culturas particulares criam para viver o apego ao passado e ao desejo de consumo no presente.
É importante aprofundar o debate para saber como o Manifesto Convivialista pode ser viabilizado na prática em diferentes culturas e nos espaços transnacionais de modo a favorecer a formação de comunidades semânticas, generosas e solidárias “que vivenciem suas rivalidades sem necessariamente terem que se destruir mutuamente”. Para o Manifesto se transformar num projeto de interesse teórico e prático efetivo, precisa superar uma visão universal idealizada do humano mesmo na sua perspectiva multicultural para responder aos desafios do Agir Amoroso, que para os italianos é fundamental para ampliar o imaginário convivialista. Para isto, há que se considerar como superar as intransigências culturais que afastam os seres humanos uns dos outros a partir de crenças religiosas, sexuais, nacionais e consumistas. Nesta perspectiva, o projeto do Novo Humano deve incorporar uma série variada de fatores históricos e culturais que projetem o multiculturalismo político como um novo entendimento do bem comum.
Há, logo, que se alargar a perspectiva moral oferecida classicamente pelo debate filosófico moderno sobre igualdade e liberdade que é contextualizado no romantismo e no racionalismo europeu e que não reflete a complexidade cultural e as diferenças étnicas, culturais, nacionais, sexuais e religiosas presentes nas sociedades contemporâneas pós-coloniais. Estas diferenças são muito claras na trama da colonialidade e revelam a importância das subjetividades emergentes na produção do cotidiano abrindo o político para processos de lutas e de liberação que valorizam a diversidade e o pluralismo.
O tema dos direitos humanos e coletivos tem que ser repensando neste contexto epistemológico e moral ampliado para promover uma nova cultura política fundada na experiência vital comunitária e coletiva (Santos, 2008). Há que se repensar, então, o tema dos Direitos Humanos a partir de uma ótica imaginária mais complexa que refaz o tema da política e da moral nas tensões entre capitalismo e colonialidade. Nesta visão, os direitos devem considerar a perspectiva do agir amoroso e das dádivas positivas como dispositivos de descolonização das práticas e dos pensamentos, colaborando para desbloquear os elementos intersubjetivos, emocionais e afetivos, que inibem o encontro gentil e que geram a rivalidade sectária. Pensar um novo sistema de direito comum e plural que articule as diferenças culturais e nacionalismos diversos dentro de um trabalho de descolonização da vida social é a chave para se avançar no debate convivialista voltado para o bem comum.
Utopia da comunidade igualitarista e a diversidade de experiências políticas no mundo pós-colonial
A transformação de um entendimento universalista uniforme do mundo como foi proposto pelo racionalismo europeu moderno (Wallerstein, 2007), para um outro que seja pluriversal, isto é, aberto a vários universos culturais como propõe o Manifesto Convivialista, constitui um importante deslocamento de olhar sobre a realidade plural. Mas tal avanço teórico não pode se limitar ao mero reconhecimento do declínio do “ocidentalcentrismo” pois este não explica os desafios de superação da colonialidade e dos impactos das subjetivações emergentes sobre a vida política, a nível planetário.
Se a “ocidentalização do mundo” (Latouche, 1989) está relacionada com a expansão do capitalismo colonial é necessário saber se o pluriversalismo pode integrar a diversidade cultural pós-colonial como um multiculturalismo político - que seja capaz de promover os Direitos Humanos sem negar a diversidade de humanos. Para isto acontecer é importante indagar que dispositivos devem ser criados para se gerenciar igualitariamente o diálogo concreto entre diversas experiências comunitárias - nacionais, étnicas ou religiosas -, de modo a favorecer a vivência consciente das “fronteiras do presente” (Bhabha, op. cit., p.19). Pois apenas nos “entre-lugares” dessas fronteiras é possível se administrar as tensões produzidas pelas diferenças de gêneros, sexuais, culturais e entre nacionais e estrangeiros, que atravessam necessariamente o objetivo do Manifesto de que os humanos devem “se opor sem se massacrar”.
A referência clássica de um comunitarismo igualitário é representada pela obra de J.J. Rousseau que se refere a um entendimento universalista dos valores humanos pensados a partir de sua experiência eurocêntrica romantizada. Para ele, na organização da vida em sociedade o Homem tem que abrir mão da sua liberdade natural para edificar um contrato coletivo (Rousseau, 1978) no qual se desenvolvem os potenciais racionais, morais e afetivos. Neste plano teórico emerge a soberania popular e as instituições políticas podem ser reformuladas para que a lei dê conta satisfatoriamente dos temas da propriedade e da resolução das desigualdades. A lei assegura direitos e deveres individuais dentro de um pacto político que tem o Estado como garantia. A vontade geral, visando a igualdade de direitos, passaria a ser o garantidor dos limites das liberdades individuais e da separação entre público e privado4.
Sua ideia de uma comunidade, lembra-nos B. Santos (1995, p.138), continua sendo da maior relevância para se pensar outras formas de organização do poder social, evitando-se a polaridade entre Estado e Indivíduo. Mas o desafio contemporâneo de valorizar as comunidades como dispositivos de promoção de direitos justos e democráticos não pode esquecer a questão nacional e colonial pois é no interior das sociedades nacionais que se desenvolvem as tramas comunitárias atuais. Na obra de Rousseau o tema da Nação emerge apenas indiretamente nos cruzamentos das relações entre Soberania Popular, Estado e Governo na medida em que seu foco é um contrato social que aparece apenas na ordem republicana europeia em formação e sem considera as tensões inter-nacionais e coloniais. O limite deste raciocínio, como já lembramos, é que tal ideia de comunidade se funda numa idealização moral da igualdade e da liberdade nos moldes do romantismo europeu e que não explica a violência do capitalismo colonial. Ele não responde aos problemas práticos das intransigências de crenças que reproduzem mesmo nos processos migratórios as diferenças entre culturas tradicionais e nacionais, por um lado, e as novas subjetivações emergentes, por outro.
A reinvenção, na atualidade, de sistemas comunitários abertos à diversidade de identidades e à confluência de afetos solidários não pode desconsiderar a Nação na medida em que os acordos familiares, associativos e comunitários ocorrem, necessariamente, em territórios nacionais que, nesses últimos séculos, contribuíram para uma mistura irreversível de línguas, costumes e valores. Tal relação visceral entre Comunidade e Nação aparece, hoje, como da maior importância para se visualizar saídas para a série de conflitos internacionais e intranacionais, coloniais e pós-coloniais, pois não é possível se pensar a questão democrática a partir de uma noção abstrata e historicamente descontextualizada de comunidade.
Quem apresentou importante contribuição para se pensar esta relação entre Comunidade e Nação foi Benedict Anderson no seu clássico Comunidades Imaginadas (2011). O autor, inspirando-se nos ventos do pós-estruturalismo ofereceu uma contribuição original ao deslocar o debate sobre a comunidade nacional do plano geopolítico tradicional para o plano da linguagem. Neste sentido, ele se afasta das definições de Nação ligadas ao industrialismo europeu ocidental presente na obra de Gellner, das leituras sobre a revolução francesa presente no trabalho de Kedourie ou na análise marxista de Hobsbawm, para propor a Nação como fruto da imaginação de indivíduos aspirando por uma comunidade de iguais num espaço vazio preenchido pelo movimento editorial. A simbólica nacional passaria a ter sentido no interior de uma lógica comunitária afetiva que contribuiria para naturalizar a língua e a história.
A tese de Anderson inspirou importantes avanços como o de H. Bhabha (2010, p. 12) que entendeu a Nação como Narração, como sistema de significação cultural. As fronteiras, para este autor, são espaços intermediários “através dos quais se negociam os significados da autoridade cultural e política” (op. Cot., p.15). Por isso, Bhabha tem razão ao afirmar que a nação ocidental é uma forma obscura de viver a localidade da cultura e que povo e nação são estratégias discursivas de identificação cultural (op. Cit.,p.386).
No entanto, na perspectiva dos estudos subalternos, P. Chaterjee (2008) critica Anderson, explicando que a tese da Nação moderna como sendo formulada num tempo homogêneo e vazio que incorpora o espaço pelo capitalismo editorial é uma ficção que não rompe com a leitura ocidentalista. Nesta direção, ele propõe uma nova epistemologia que supere o universalismo europeu que apenas ressaltaria um desenvolvimento histórico específico, o da Europa ocidental. Chaterjee entende que conceitos de sociedade civil, estado e cidadania se abrem para um universalismo que não explica as diferenças culturais e históricas pois as comunidades tradicionais não conheciam tais nominações (op. cit., p.10). Nesta mesma direção, podemos observar que as noções de Povo e de Popular como categorias unitárias no interior da Nação não apontam necessariamente para utopias liberatórias. Elas servem, sobretudo, como dispositivos de organização e de classificação das populações no território, visando apagar os rastros das diferenças para homogeneizar o espaço da dominação.
Ressurgência de comunidades morais e estéticas pluri-universais
Chaterjee explica que a oposição entre Estado e Sociedade é uma abstração muito simples que não dá conta dos choques de interesses entre o Estado e as Comunidades locais (op. Cit., p.14). Os excluídos formam comunidades a partir de outros que possuem um poder que os excluem. Nesta direção, Bhabha sugere que os hibridismos culturais são alimentados pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência das vidas dos que estão em minoria. E que a reencenação do passado introduz outras temporalidades culturais na reinvenção da tradição (Bhabha, 2003, p. 21). Esta reflexão ajuda-nos a entender que o surgimento de comunidades periféricas como aquelas que encontramos no Brasil - as dos sem-teto ou dos sem-terra - são sistemas de ação que se referem à Nação pelas suas brechas, pelos entre-lugares onde o poder disciplinar do Estado deixa de funcionar.
Nesta direção, lembramos haver comunidades que surgem não do reclamo, mas da reivindicação de lugar próprio de exercício de poder, questionando o processo de centralização do Estado. Em geral, nas periferias, as comunidades nacionais são conjuntos populacionais que vivem o sentimento de nação de modo confuso e ambíguo. Tais sentimentos são formatados por diversos marcadores que revelam aspectos étnicos, sociais, de gênero, de classes, de religião, entre outros, formando um mosaico populacional complicado entre o político e o messiânico. A lógica mercantil não contribui, porém, para liberar o potencial emancipatório dos marcadores na organização de um fazer democrático. Isto explica, por exemplo, que no território das periferias urbanas de grandes centros surjam movimentos que emergem no chamado espaço da ilegalidade e que se apropriam dos espaços legais para germinar outros dispositivos de poder paralelos. Vemos isto na expansão do narcotráfico e das facções criminosas na América Latina.
Dois modos de construção do poder aparecem neste denso e fragmentado mapa temporal e espacial: um deles é expresso pelos reclamos, que nos fala Chaterjee e que se resolvem por políticas assistencialistas pontuais que nunca objetivam a cidadania, mas apenas abrandar o mal-estar. O outro é aquele das manifestações anticoloniais formando uma sociedade política ativa que se desdobra entre reações pela ampliação de direitos e aquelas outras voltadas para a organização de sistemas comunitários autônomos e que tem sua expressão particular tanto em comunidades de paz como de violência. Na luta pela sobrevivência as comunidades populares são cooptadas precariamente pelos apelos ao consumo, pelas práticas religiosas de baixa reflexividade ou pelo nacionalismo que permite se criar inimigos externos para se proteger da precariedade. Ou, então, tais comunidades são ameaçadas pela disseminação dos discursos da violência que geram a desistência e o medo. No caso das comunidades geradas nas brechas da sociedade ou nos processos de migração e de guerras, a produção da violência generalizada atualiza a Lei do Talião - dente por dente passa a ser dor por dor – e a ideia romântica de comunidade é substituída pelas lutas que opõem viventes e sobreviventes.
Nas sociedades periféricas como a brasileira a violência do poder estatal sobre as comunidades pobres desfaz o sonho da comunidade homogênea para dar lugar a uma matriz espacial e temporal fragmentada por narrativas que buscam separar mais que unir. As memórias e as tradições se perdem impactando sobre as solidariedades familiares, associativas e políticas. E no desaparecimento da pretensa uniformização do tempo e do espaço do estado nacional brotam as sementes da guerra e do extermínio.
A questão crucial, no meu entender, é admitir a impossibilidade de se discutir as práticas de cooperação cívica, solidariedade afetiva e inclusão política seja nos planos macro-social ou micro-social, sem estabelecer uma discussão mais profunda sobre a natureza de Comunidades Solidárias no interior de sociedades nacionais divididas pela expansão do capitalismo colonial no centro e na periferia do sistema mundial. Se consideramos, por exemplo, movimentos comunitários libertários e inspirados em tradições comunitárias pré-coloniais como no caso dos movimentos indígenas bolivianos, concluímos que seu sucesso apenas ocorreu ao se encontrar uma solução entre Comunidade e Nacionalidade que passou pela fórmula de fundação de um Estado Plurinacional, solidário e convivialista.
Esta questão é crucial hoje quando constatamos que o desafio de formação das sínteses comunitárias liberadoras não constitui apenas um problema das sociedades periféricas envolvidas com os sincretismos e conflitos culturais. Agora, tais problemas fazem parte do cotidiano político dos países centrais quando observamos os impactos dos migrantes e refugiados na Europa e nos Estados Unidos. Tais impactos apontam não para uma abertura do sistema democrático para acolher a diversidade cultural, mas justamente o contrário, para a ressurgência de movimentos nacionalistas como vemos, hoje, na Áustria, na Hungria, na Polônia, na Alemanha, na Inglaterra, na Itália ou nos Estados Unidos.
Considerações finais
Um tema fundamental que emerge nesta discussão, devidamente assinalada pelo Manifesto (op. cit, p.28), é a do “bem comum” estimulando a arte de viver juntos (com-viver) e, acrescento, guardando a intenção do Agir Amoroso. Neste sentido, o Manifesto entende que o princípio de uma “comum humanidade” deve considerar quatro pontos: comum humanidade, comum socialidade, individuação e oposição controlada (op. cit., p. 35) com atenção aos aspectos morais, políticos, ecológicos e econômicos.
Quando pensamos numa experiência relativamente bem-sucedida como a do caso boliviano, considero importante acrescentar a estes quatro aspectos mais dois pontos: o do direito comum e o da estética cosmológica. O do direito comum permite que os recursos materiais e práticos da vida cotidiana sejam guiados por um sistema jurídico consensual que não pode dispensar alguma forma de organização política como a dos Estados (nacionais, plurinacionais ou pós-nacionais) ou outras formas associativas, como é, aliás, ressaltado pelo próprio Manifesto, para funcionar como dispositivo de regulação do poder (op.cit., p. 36).
A estética cosmológica, por sua vez, é fundamental para se reorganizar o imaginário humano na relação com a Natureza o que se faz necessariamente por rituais de integração mágicos e afetivos que escapam do controle meramente cognitivo da realidade. Na minha contribuição para a versão em português do Manifesto Convivialista intitulada “Direito coletivo à vida, convivialismo e nova justiça social: o caso do movimento indígena boliviano” (Martins, 2016) lembro que a metáfora Pacha Mama que significa Mãe-Terra, convida-nos a pensar o pós-colonialismo através de duas abordagens, uma simbólica e outra política. A primeira emergiu de uma releitura ontológica e ritual da relação entre Homem e Natureza, sendo a representação arcaica da Natureza substituída por uma nova representação que enfatiza o papel da cultura para uma epistemologia plural. Pacha Mama também tem relevância política quando questiona os fundamentos do direito de alguns de se apropriarem dos recursos vitais como água, terra, alimentos e outros em benefício próprio. Como esses recursos já estavam lá desde tempos imemoriais, os movimentos indígenas bolivianos entendem que eles constituem fundamentos naturais irrevogáveis da sobrevivência humana e espiritual da humanidade (Martins, 2016, p. 157-159.
Para concluir, devemos lembrar que a experiência boliviana do “Bien Vivir” que elegi como referência para finalizar esta reflexão sobre convivialismo não contém uma garantia de perenidade num continente como o da América Latina, marcado pela força de oligarquias que se sustentam em amplas alianças nacionais e internacionais de capitalistas. Estes se empenham nas tentativas de destruir o ineditismo histórico dos movimentos indígenas sul-americanos na medida em que o caso boliviano passa a se constituir não numa simples utopia intelectual mas numa experiência histórica efetiva. Isto é, há na região uma experiência histórica anti-colonial real que não é tradicionalista e se beneficiou do sistema de poder republicano instalado para inovar politicamente. Tal evento é confirmado pela aprovação da nova constituição boliviana de 2011 que criou o Estado Plurinacional, promovendo o reconhecimento das mulheres e dos indígenas no interior do sistema de poder. Isto ajuda entender haver soluções concretas para o processo caótico da colonização planetária e que estar a exigir novas práticas de ações solidárias amistosas.
Nesta perspectiva, a heterotopia do convivialismo não pode se limitar a um discurso unificado. Ela tem que se revelar como narrativa a ser traduzida para diferentes situações inspirada por um Agir Amoroso solidário focalizado no Bem Comum e respondendo a diversos imaginários sociais e culturais anti-coloniais. Ela tem que se expressar igualmente como uma ética de auto-responsabilidade de cada indivíduo, como o sugere Morin (2005) que permite se entender o convivialismo como solidariedade amorosa tanto no plano das instituições primárias e domésticas como naquelas públicas, organizacionais e políticas.
Referências:
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Notas