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“Nossa Senhora do Bichinho”: a devoção das identidades não subalternas em um povoado no Brasil
Vera Lúcia Ermida Barbosa
Vera Lúcia Ermida Barbosa
“Nossa Senhora do Bichinho”: a devoção das identidades não subalternas em um povoado no Brasil
“Nossa Senhora do Bichinho”: the devotion towards non-subaltern identities in a village in Brazil
“Nossa Senhora do Bichinho”: la devoción de identidades no subalternas en un pueblo en Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 9-26, 2022
Universidade Estadual do Paraná
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Resumo: Este artigo apresenta reflexões acerca da construção das identidades culturais mediada por elementos do catolicismo popular no povoado de Vitoriano Veloso, em Minas Gerais, a partir da devoção a Nossa Senhora da Penha de França. Considera o contexto colonial e pós-colonial sob a perspectiva decolonial para abordar a religiosidade e compreender a devoção no espaço da subalternidade. A análise se apoia na argumentação de que o contexto da religiosidade local foi marcado pela precária evangelização e vivência de um catolicismo forjado pelas matrizes culturais diversas, o que favoreceu graus de autonomia dos/as fiéis, observáveis nos dias atuais sob a forma de protagonismo. A observação e a pesquisa etnográfica realizadas em 2015 e 2020, acolheu narrativas que evidenciam atualizações da sub-versão das hierarquias e certa autonomia na gestão da fé marcadas pela centralidade da materialidade de igreja.

Palavras-chave: Identidades cultu-rais, Pós-colonialismo, Subalterni-dade, Religiosidade.

Abstract: This article presents reflections on the construction of cultural identities mediated by elements of popular Catholicism in the village of Vitoriano Veloso, in the Brazilian state of Minas Gerais, based on devotion to Our Lady of Peñafrancia (Nossa Senhora da Penha de França). It considers the colonial and postcolonial context under the decolonial perspective to approach religiosity and understand devotion in the space of subalternity. The analysis is grounded on the argument that the context of local religiosity was marked by the precarious evangelization and experience of a Catholicism forged by different cultural matrices, which enabled degrees of autonomy of the faithful, observable nowadays in the form of protagonism. The observation and ethnographic research, carried out in 2015 and 2020, included narratives that show updates of the subversion of hierarchies and a certain autonomy in the management of faith marked by the centrality of the materiality of the church.

Keywords: Cultural identities, Post-colonialism, Subalternity, Religiosity.

Resumen: Este artículo presenta reflexiones sobre la construcción de identidades culturales mediadas por elementos del catolicismo popular en la aldea de Vitoriano Veloso - Minas Gerais, Brasil, basadas en la devoción a Nossa Senhora da Penha de França. Considera el contexto colonial y poscolonial bajo la perspectiva descolonial para acercarse a la religiosidad y comprender la devoción en el espacio de la subalternidad. El análisis parte del argumento de que el contexto colonial de la religiosidad local estuvo marcado por la precaria evangelización y vivencia de un catolicismo forjado por diferentes matrices culturales, que favorecieron grados de autonomía de los fieles, hoy observables en forma de protagonismo. La observación e investigación etnográfica realizadas en 2015 y 2020, en el marco de un proyecto de doctorado, incluyó narrativas que muestran actualizaciones de la subversión de las jerarquías y una cierta autonomía en la gestión de la fe marcada por la centralidad de la materialidad de la iglesia.

Palabras clave: Identidades culturales, Poscolonialismo, Subalternidad, Religio-sidad.

Carátula del artículo

Dossiê

“Nossa Senhora do Bichinho”: a devoção das identidades não subalternas em um povoado no Brasil

“Nossa Senhora do Bichinho”: the devotion towards non-subaltern identities in a village in Brazil

“Nossa Senhora do Bichinho”: la devoción de identidades no subalternas en un pueblo en Brasil

Vera Lúcia Ermida Barbosa
Universidade de Évora, Portugal
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 9-26, 2022
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 23 Junio 2021

Aprobación: 23 Octubre 2021

Financiamiento
Fuente: FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Nº de contrato: UI/DB/04624/2020
Nº de contrato: UI/DP/04624/2020
Nº de contrato: UI/DB/00057/2020
Nº de contrato: UI/BD/151071/2021
Descripción del financiamiento: Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto CLISSIS - UI/DB/04624/2020, UI/DP/04624/2020; Projeto CIDEHUS - UI/DB/00057/2020 e UI/BD/151071/2021.
Introdução1

“‘No meio do Bichinho tinha uma Penha’: estudo sobre a Igreja de Nossa Senhora da Penha de França em Vitoriano Veloso” (Freitas, 2017) é o título que o jovem historiador e morador local adota em sua monografia de conclusão de curso. Ele transforma em interesse acadêmico a centralidade e contemporaneidade da devoção presentes nesse antigo arraial chamado Bichinho, datado do início do século XVIII. O interesse pelo tema é também da comunidade, e foi ele que mobilizou parte da pesquisa histórica e etnográfica que fundamenta este texto.

O povoado do Bichinho passou oficialmente a chamar-se Vitoriano Veloso possivelmente em 1894. A mudança se deu em homenagem a um de seus moradores, Vitoriano Gonçalves Veloso, que participou ativamente da Inconfidência Mineira. Porém, mais de um século se passou e Bichinho é o nome que permanece nas narrativas identitárias de seus/suas habitantes, e foi com ele que se tornou conhecido como destino turístico e referência de artesanato sustentável desde os anos de 1990 (Barbosa, 2019)2.

Para compreender a complexidade da devoção em Vitoriano Veloso é necessário olhar para a sua história colonial, a emergência das povoações em Minas Gerais (Fonseca, 2011) e os significados que as festas barrocas possuíam para colonos e colonizados, bem como para o estado português (Priore; Venâncio, 2010). Esse é um percurso necessário através da história e da historiografia, dos movimentos colonial e descolonial e fundamentado nas teorias críticas, para identificar as narrativas que emergem da invisibilidade e se fazem visíveis como voz subalterna (Ribeiro; Prazeres, 2015).

O objetivo deste texto é refletir sobre a construção das identidades culturais mediada por elementos do catolicismo popular com base na análise das narrativas devocionais a Nossa Senhora da Penha de França, também conhecida como Nossa Senhora do Bichinho. Busca identificar as estratégias e táticas de resistência cotidianas (Certeau, 1994) utilizadas para exercer protagonismos e subverter a subalternidade3 no espaço do sagrado.

A perspectiva decolonial4 (Castro-Gómez; Grosfoguel, 2007) se constitui como ferramenta para analisar a experiência histórica e os efeitos das colonizações em termos da desumanização produzida em ambos os extremos da relação colonial. Considerando a subalternidade como parte da herança colonial, o texto aborda a religiosidade no contexto colonial e descolonial para compreender a devoção como possível fator de subversão das hierarquias.

A abordagem histórica se apoia na argumentação de que o contexto colonial da religiosidade em Minas Gerais foi marcado pela precária evangelização e pela vivência de um catolicismo popular forjado pelas matrizes culturais diversas. Sendo parte da região, o povoado do Bichinho teria se favorecido desse contexto e seus devotos/as acabaram por exercer graus de autonomia que podem ser observados nos dias atuais sob a forma de protagonismos. A metodologia adotada utiliza a pesquisa em fontes documentais e etnográfica. Desta última, realizada em setembro de 2015 e janeiro de 2020, emergem as narrativas que evidenciam a centralidade da materialidade de igreja no povoado e as negociações entre o sagrado e o profano presentes nas festividades. Finalmente, elas possibilitam reflexões acerca das atualizações da subversão das hierarquias e certa autonomia na gestão da fé que revelam movimentos decoloniais históricos.

Colonialismo, colonialidade e fé

Segundo Maldonado-Torres (2010), o colonialismo foi um conjunto de processos e aparatos de dominação política e econômica utilizado com a finalidade de garantir a exploração do trabalho e das riquezas coloniais. Se consolidou para beneficiar o colonizador e se apoiou na violência física e epistêmica como recursos de inferiorização dos povos colonizados. Foi fundamental na constituição da Europa como centro da história mundial e de todas as outras culturas em sua periferia, criando um discurso eurocêntrico no qual assentou a própria modernidade. Desse discurso, que inventou, classificou, subalternizou e invisibilizou povos, histórias e saberes, emerge a colonialidade como o verso da modernidade e constitutiva da mesma5. Assim, os processos descoloniais circunscrevem-se aos momentos posteriores às independências políticas das colônias, ligados às lutas anticoloniais. O fim das relações formais de colonização, contudo, não significou a superação do legado e da produção contínua da colonialidade, ou seja, das relações de subalternização (Quijano, 2010). A análise a partir da perspectiva decolonial considera a colonialidade nos cenários descoloniais e busca a reconstrução e restituição de histórias silenciadas. Seu locus de enunciação é o conhecimento subalterno, reconhecido como recurso para identificar as fissuras entre os discursos colonial e descolonial de onde emergem as identidades, quer reproduzindo, quer resistindo e subvertendo a própria colonialidade (Maldonado-Torres, 2018).

A partir de finais do século XV, a expansão colonial estabeleceu uma nova lógica centrada no sistema-mundo moderno (Wallerstein, 2011). Nela, o capitalismo, como um sistema econômico mundial, é fruto de um processo histórico não linear ou natural forjado por múltiplas interações de fenômenos. Sem negar o caráter econômico de acumulação de capital a escala mundial que moveu as expansões coloniais, o conceito de “sistema-mundo moderno/colonial” (Quijano; Wallerstein, 1992) coloca a questão epistêmica, deslocando o locus de enunciação e transferindo-o do “homem europeu” para os povos colonizados.

Assim, a empresa colonizadora se apoiou no despojo das identidades históricas próprias e singulares dos povos colonizados e na atribuição de novas identidades, racializadas e negativas (Hall, 2006; Quijano, 2000). Desde então, esses povos estiveram submetidos ao imaginário ocidental eurocêntrico, imersos na subalternidade, caracterizados como o “outro” irresgistrável, incapaz, ausente e invisível epistêmica e sócio politicamente (Bhabha, 1998; Spivak, 2010).

A evangelização missionária imbuída da construção de uma sociedade sagrada e obediente foi parte fundamental desse processo de dominação. A missão assumida por Portugal de expandir a fé católica no “Novo Mundo” se apoiou na aliança entre Coroa e Igreja, ampliando a potencial eficiência de controle social representado pela religião. Como afirma Geertz (2017), a religião como um sistema cultural, se configura num sistema de símbolos que estabelece poderosas, permanentes e duradouras disposições e motivações nos indivíduos. Contudo, para os povos originários, “o Evangelho virá junto com a espada opressora, violenta e vitoriosa. A América apoiou então uma Igreja identificada com o Estado. O americano conheceu o cristianismo dentro de um ‘modelo’ de cristianismo latino, ibérico”6 (Dussel, 1983, p. 66, tradução nossa).

A disputa pela posse das almas e disciplina dos corpos, em particular no “paraíso tropical lusitano”, tem reflexos e atualizações que merecem ser analisadas. Um deles é o catolicismo popular, principalmente em Minas Gerais, onde as origens históricas de inúmeros santuários têm a presença da ação popular e não das autoridades ou do clero (Holanda, 2000).

O protagonismo popular favoreceu outras formas de viver a religiosidade a partir de apropriações singulares dos dogmas e se fez a partir da recepção original e criativa mesclada com a religiosidade festiva e sentimental. As festas se configuraram rituais complexos em que se confundiam e entrelaçavam instituições religiosas e seculares, majestade divina e humana, favorecendo a aproximação e certa mistura entre sagrado e profano (Eliade, 1980). Esses rituais festivos, sob influência das Irmandades leigas, valorizavam a participação das camadas populares, como um repositório de costumes e tradições, onde culturas específicas se fecundavam mutuamente (Priore, 1994).

Assim começou a surgir, lentamente, o “povo cristão”. [...] A recepção original e criativa do Evangelho pelos mestiços latino-americanos, povos oprimidos, classes exploradas, cultura nascente: indígenas, mestiços, escravos negros, espanhóis e portugueses pobres [...] Outro modelo de Igreja emergiu contra o Cristianismo dominante: uma “Igreja popular”. [...] O “catolicismo popular” fez seu caminho. [...] Uma evangelização laica, quase sem religiosos, de irmandades e santos eremitas7 (Dussel,1983, p. 68-72, tradução nossa).

A formação de um clero majoritariamente secular e de uma vida religiosa orquestrada pelas irmandades formam um dos principais motivos da marcante presença da Igreja em Minas Gerais (Boschi, 1986). Segundo Fonseca (2011, p. 85), “a conversão dos sertões mineiros realizou-se gradativamente, acompanhando a marcha do povoamento e da construção de ermidas pelos colonos e a consequente expansão progressiva da malha paroquial”, colocando nas mãos dos próprios habitantes a iniciativa de estabelecer o poder eclesiástico na capitania. “As pequenas capelas construídas pelos habitantes ao lado de suas lavras ou de suas roças, coincidia com o início da formação de uma aglomeração humana mais estável” (Fonseca, 2011, p. 83). Elas representavam, além de um local de conforto, estabilidade e prática religiosa, um centro de vida social e de ajuda mútua. As organizações religiosas com protagonismo popular assumiam formas de resistência e subversão veladas e silenciosas.

Este é o contexto histórico a partir do qual o povoado do Bichinho e “sua” Nossa Senhora da Penha de França emergem. Seu arco de longa duração histórica (Braudel, 1965) abarca desde 1717, com o registro da cobrança do imposto sobre o ouro, a Inconfidência Mineira no século XIX, quando passou a se chamar Vitoriano Veloso, o despovoamento, empobrecimento e esquecimento no século seguinte decorrente do fim ciclo do ouro até visibilidade conquistada século XX, com a chegada da energia elétrica em 1982 e dez anos mais tarde com o êxito do projeto de desenvolvimento local através do artesanato. Nessa trajetória, a perenidade da devoção e a presença da igreja de Nossa Senhora da Penha de França foram os principais responsáveis pela sobrevivência da identidade comunitária e por evitar seu esquecimento.

De acordo com os registros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de Tiradentes (IPHAN-Tiradentes), a capela foi construída a partir de 1729 (Oliveira; Santos, 2010). A igreja, assim como em sua origem colonial, é uma das principais referências locais, ponto de encontro aos domingos e fulcro das principais festividades dos pouco mais de seus 1000 habitantes. Ao longo do século XX, o isolamento do povoado foi interrompido unicamente pelas peregrinações e pelo turismo religioso, atraídos pela “Nossa Senhora do Bichinho” e pela antiguidade e beleza do templo.

Originária da Espanha, onde a imagem teria sido encontrada em 1434 na Serra da Peña de Francia na comunidade de Castilla y León em Salamanca (Colunga, 1990), o culto a imagem de Nossa Senhora da Penha de França foi trazido ao Brasil pelas mãos dos missionários franciscanos em 1558 (Willeke, 1977). Em sua iconografia em Portugal e no Brasil apresenta um lagarto - ou bichinho - junto aos pés, uma alusão ao milagre a ela atribuído pelos portugueses (Neves, 1938), e no caso do arraial do Bichinho, uma das explicações do seu nome.

A pesquisa etnográfica se dedicou ao estudo das identidades culturais locais e a religiosidade, devoção e as festividades que envolvem a Nossa Senhora da Penha de França, ou Nossa Senhora do Bichinho. A análise se apoia nas observações realizadas e nas narrativas produzidas em dois momentos8: a festa em homenagem à padroeira do povoado em setembro de 2015 e a reunião comunitária realizada em janeiro de 2020 para a devolução da pesquisa.

A etnografia e as identidades devotas e festivas

O desenvolvimento da metodologia se fundamentou nas teorias críticas de caráter emancipatório (Walsh et al., 2017), considerando que é imprescindível não continuar escrevendo sobre os “outros” como se fossem objetos discretos e textos, mas sujeitos políticos de onde emergem testemunhos oriundos de espaços de marginalidade, subalternidade e subjugação (Clifford; Marcus, 2016). Nesse sentido, a escrita etnográfica considerou as múltiplas autorias, assumindo o compromisso ético político de realizar investigação científica e produzir conhecimento crítico apoiado no intercâmbio justo e recíproco das relações entre observador(a)/observado(a) e observado(a)/observador(a) (Barbosa, 2018).

A etnografia, como prática de investigação interdisciplinar, para além de um conjunto de técnicas e procedimentos, se voltou para a relação entre pesquisador/a e sujeitos/as, bem como teoria e pesquisa de campo, como forma de produção de conhecimento sobre a vida humana (Sanjurjo; Camargo; Kebbe, 2016). Nesse aspecto, a socialidade é o próprio meio de pesquisa (Goldman, 2006), pois se configura na disposição para vivenciar uma experiência em primeira mão, com a finalidade de transformar a experiência pessoal em tema de pesquisa que assume a forma de texto etnográfico (Barbosa, 2018).

Através dos fragmentos da vivência etnográfica é possível identificar fissuras por onde diversas vozes se fizeram ouvir. São as coautorias que surgem de relações de reciprocidade, onde a narrativa se configurou um instrumento contra hegemônico para evidenciar as relações entre história, memória, saber e poder.

O interesse da comunidade em conhecer a sua história através da origem da igreja e do culto a Nossa Senhora da Penha de França orientou uma pesquisa de caráter histórico e etnográfico permeada por trocas permanentes.

O percurso etnográfico teve início na visita ao Santuário de la Peña de Francia em Salamanca em junho de 2015, precedendo o trabalho de campo no povoado, planejado para o mesmo ano. A intenção era reunir elementos que indicassem o percurso e a escolha do orago da igreja de Vitoriano Veloso para apresenta-los à comunidade. Como previsto, em setembro, o resultado da investigação foi compartilhado com os moradores e moradoras durante a missa solene do dia da festa da padroeira. As informações acerca da origem da Santa ampliaram o interesse pela pesquisa e favorecerem a apropriação da mesma, expandindo a participação da comunidade com relatos e sugestões para o resgate e a construção dessa parte da história local.

De acordo com o calendário religioso, os rituais festivos à Nossa Senhora da Penha de França ocorrem no mês de setembro. Em Minas Gerais e no Santuário na Espanha apresentam características barrocas muito significativas, porém, apenas as festividades em Vitoriano Veloso foram alvo das observações em 2015. O objetivo foi aprofundar o estudo dos cenários de atualização da festa barroca do catolicismo popular no contexto relacionado ao processo colonial e pós-colonial do Brasil.

Nos dias que precederam a festa, por onde passaria a procissão, a comunidade enfeitou suas casas com toalhas e colchas de crochê nas janelas e varandas, e na frente de todas foram montados oratórios com os santos de devoção e fotos da família. Nas ruas, flores, balões, mensagens de agradecimento e pedidos estavam nas calçadas e fachadas. Tudo para ser benzido e, ao final, cada fiel poder levar para casa uma flor da decoração dos andores como lembrança e proteção.

O cortejo era composto por crianças vestidas de anjinhos, andores carregados pelos devotos, embalado pelos cânticos religiosos do coral de mulheres acompanhadas pela banda de música do Corpo de Bombeiros, moradores e moradoras, padres e alguns cães. Ao cair da noite, avançou solenemente pelas ruas iluminadas apenas por velas acesas para finalmente regressar à igreja e ser recebida com o foguetório e as bênçãos do padre. Então, chegara a hora de comer e beber nas barraquinhas, dançar ao som da banda que tocava no palanque, rever e conversar com a vizinhança e as crianças irem para o pequeno parque de diversões montado logo em frente à igreja.

O embelezamento das casas, a iluminação artesanal, a ornamentação das ruas e a queima de fogos são a alegria das procissões e romarias, e remontam às festas barrocas da colônia do século XVII (Priore, 1994).

A procissão de Nossa Senhora da Penha de França é um momento em que a comunidade atua ativamente. Como exteriorização da devoção, a festividade devocional traz as marcas do passado colonial, da festa barroca e das suas procissões, ornamentos, altares, risos e cânticos, numa mistura do sagrado e do profano. Porém, é nas narrativas que é possível compreender aspectos atuais da religiosidade e suas expressões no povoado quanto a devoção e as festividades que sugerem transformações e apropriações não subalternas.

Narrativas sobre a igreja, a devoção e a festa

A história da igreja de Nossa Senhora da Penha de França, ou Nossa Senhora do Bichinho, se entrelaça com a história do próprio povoado e como ela, apresenta ausências e esquecimentos. O interesse pela origem da igreja e do seu orago se evidenciou nas narrativas e expôs o esforço por parte dos/as habitantes em construir e se apropriar dessa parte da história local, denotando a sua importância identitária.

A gente não sabe quem fez a igreja do Bichinho. Deve ter sido os portugueses. Você foi lá no lugar de onde ela veio? É importante pra nós saber dessas coisas. Quem será que trouxe ela pra cá? Aqui ninguém sabe. Ainda bem que você [a pesquisadora] está interessada. Depois vem e conta aqui na igreja o que você descobriu. Deus vai te ajudar a descobrir pra contar pra gente (M., 50 anos. Entrevista, 2015).

Olha, se você [a pesquisadora] está procurando sobre a história da igreja e da santa, tem que ir conversar com a M. L. e a M., elas são as donas da pousada. Elas são minhas tias, eu levo você lá. A família nossa é muito antiga aqui e elas andam há muito tempo juntando documentos e tentando montar a história da família e essa história da igreja. Elas têm muita coisa mesmo (O., 26 anos. Entrevista, 2015).

O envolvimento com a preservação, manutenção e proteção da igreja de Nossa Senhora da Penha de França se interrelaciona a exterioridade que marcou historicamente a apropriação do catolicismo por parte dos povos colonizados e que favoreceu uma religiosidade baseada na vivência da fé fortemente associada a cultura local (Boschi, 1986).

A igreja daqui do Bichinho é muito antiga. O meu tio, que morreu recentemente, é que cuidava dos documentos da igreja. Arrumando lá as coisas na casa dele, nós encontramos os livros das contas da igreja que são de 1924. Aqui, tem o registro da inauguração das torres da igreja e do sino novo. Antes a igreja não tinha torre. Era diferente. Tem também aqui no livro anotado quanto custou a ampliação do cemitério, que foi na mesma época. Nossa família sempre foi ligada à igreja. Mas a santa, não sei dizer quem que escolheu. Deve ter sido os portugueses. Você falou que ela é lá da Espanha, que engraçado. Eu vi você [a pesquisadora] na igreja no dia da missa, acho muito bom o que você está fazendo (M. L., 55 anos. Entrevista, 2015).

Sabe que a santa que está lá no altar da igreja é verdadeira? Ela é muito antiga. Foram os portugueses que trouxeram. A outra, a pequena é muito antiga também. Ela está escondida para não roubarem. O IPHAN e o padre pediram para gente esconder ela aqui em casa, porque nossa família sempre foi da igreja. Eu fiz o curso de restauro e manutenção de peças antigas, aí aprendi como guardar e como limpar. Ninguém sabe que ela está aqui, é segredo. Ela fica nesse oratório que é o oratório de esmoler. Era para dependurar no pescoço, tinha uma tira de couro aqui, e andar de porta em porta pedindo donativos para ajudar a construir a igreja. Aquela foto, da que está na Espanha, que você [a pesquisadora] mostrou na missa, é muito diferente, é escura e não tem o bichinho nos pés dela (M., 50 anos. Entrevista, 2015).

As narrativas demonstram apropriações do sagrado que marcam a religiosidade no povoado e se torna visível na intimidade com a divindade, que permite acolher, cuidar e proteger sua santa dos “perigos do mundo” guardando-a no interior de um móvel na própria casa.

A preocupação com a preservação da igreja revela que sua relevância vem atravessando gerações e foi verificada na pesquisa dos documentos resguardados pelo IPHAN, pela Casa Paroquial da Catedral de Nossa Senhora do Pilar em São João del Rei e pelos arquivos da própria igreja local (Santos, 1995). De acordo com os registros, dentre as construções locais remanescentes do período colonial, ela é a única preservada, tendo suas obras de reconstrução, restauro e manutenção financiadas pela própria comunidade ao longo dos séculos9. O resguardo das peças históricas da igreja, fonte de grande preocupação devido aos altos índices de roubo de obras de arte e relíquias, encontra solução também no interior da comunidade, conforme é enunciado na segunda narrativa.

O relativo domínio de informações acerca da história que permeia a construção da igreja, das obras de arte que ela abriga e dos possíveis percursos pelos quais ela passou, denotam que a sua importância transpassa a religiosidade e se amplia como espaço de reconhecimento local e de sociabilidade.

A igreja do Bichinho sempre trouxe turistas pra cá. Eles vinham porque a igreja é muito antiga. Se não fosse a igreja, o Bichinho ficava esquecido mesmo. Agora tem o artesanato, mas antes, só tinha a igreja. Aqui não tinha nada, só a igreja e Nossa Senhora. Tudo que é de importante que acontece aqui é na igreja. Casamento, festa de aniversário, velório, batizado. As festas que são a alegria daqui. Tudo é ali. Uma maravilha. Quando eu era jovem, era ali naquele largo na frente da igreja que a gente se reunia. Quando era lua cheia que era bom, porque aqui não tinha luz, aí a gente cantava, brincava, fazia baile (J., 70 anos. Entrevista, 2015).

Antes e agora, a função precípua da igreja do povoado não se relaciona apenas com a religiosidade, mas principalmente com a sociabilidade que ela promove. No século XX, no qual permaneceram sem energia elétrica até os anos de 1980, acessando às cidades mais próximas a pé ou de bicicleta, os/as habitantes tiveram no turismo religioso e na festa da padroeira, quase exclusivamente, os únicos responsáveis por levar novos atores para o cenário local.

As narrativas evidenciam uma identidade local fortemente vinculada à materialidade da igreja e ao que ela proporcionava como local de lazer, encontros e festividades se sobrepondo, em diversos momentos, à função de prática religiosa (Fonseca, 2011; Boschi, 1986).

A festa de Nossa Senhora da Penha é a melhor festa do Bichinho. É a padroeira. Sempre veio muita gente de toda redondeza. A gente ficava esperando o ano todo pelo dia da festa. As moças faziam vestido novo. Como era tudo muito pobre, era quando a gente tinha uma roupa nova. Era para a festa (V., 78 anos. Entrevista, 2017).

A festa é uma beleza! A procissão, tudo enfeitado, as ruas iluminadas de velas, os fogos. Cada um enfeita mais a sua casa para ver qual é a mais bonita. A gente tem muita devoção em Nossa Senhora. Eu faço aqui na frente de casa um altar para ela. Todas as casas onde a procissão passa, faz um altar. Eu coloco meus santos e a foto do meu filho que morreu. Eu não esqueço. Tenho que colocar. É pra ela proteger ele que está lá do lado dela. No final da procissão, a gente leva pra casa uma flor do andor dela, que está benzida, que é pra proteger nós (M. A., 70 anos. Entrevista, 2015).

A festa e seus ritos refletem a intimidade característica do catolicismo popular. Expressa a vivência do evangelho de acordo com a manifestação de uma religiosidade epidérmica em seu elemento superficial, enfatizando a igreja como espaço de vida social, voltada para os ritos das práticas exteriores a ela.

Em uma das casas enfeitadas, numa faixa pendurada entre as janelas estava escrito, “Recordai-vos, ó Senhora da Penha, que nenhum dos que em vós tem depositado sua esperança tenha ficado iludido. Agradeço por tantas graças derramadas”. Na gratidão pelas graças concedidas, está o pedido para que a santa se recorde de não desiludir quem lhe devota sua fé. Um diálogo íntimo e familiar que evidencia a relação de proximidade construída entre o/a fiel e a divindade.

Quando vem chegando a época da festa aqui é uma trabalheira, uma agitação. Tem que ficar tudo lindo em homenagem a Nossa Soberana Imperatriz do Bichinho. Enfeitar os andores da Virgem e de São José, decorar a igreja para a novena da semana da festa. Eu sempre sonhei em ver a Nossa Senhora enfeitada de cravos, um dia vou realizar este sonho (J.P., 26 anos. Entrevista, 2015).

A expressão da religiosidade no povoado está ligada a beleza e a diversão proporcionada pela festa e a apropriação original e criativa do Evangelho, uma característica do catolicismo popular surgido na América mestiça (Dussel, 1983).

A importância da igreja para a comunidade possivelmente influenciou a manutenção dos rituais ao longo do tempo. As características estéticas da festa barroca se mantêm fortemente presentes, mas é sua função de evento que quebra o ritmo regular do cotidiano, que promove a sociabilidade e o sentimento de pertença, que lhe confere perenidade. O ritual cumpre uma função social relevante, significando, ainda que momentaneamente (Eliade, 1980), uma ruptura da fronteira entre o sagrado e o profano. Nesse contexto, não é a Igreja que se apropria do povoado, é a comunidade que se apropria do tempo e do espaço do sagrado.

Aqui tem a comissão de festa. Somos nós aqui do povoado que custeamos a festa. Tem os patrocinadores, é tudo daqui. A gente reúne e paga os padres, o conjunto de música, os fogos, tudo. Os moradores botam as barraquinhas de comida e bebida. As flores para enfeitar as ruas e as casas, a gente consegue doação de uma festa de casamento ou de quinze anos que tenha tido lá no clube em Tiradentes. Todo ano eles guardam pra gente. Aí a gente distribui para os moradores e cada um enfeita sua casa. Fica lindo (A., 55 anos. Entrevista, 2015).

Como expressão cultural, a festa da Penha de França é uma experiência dinâmica que carrega em si as marcas de experiências e memórias de outros tempos e origens, e se configura numa estratégia dialógica de construção permanente das identidades locais. Uma estratégia de sobrevivência tanto transnacional quanto tradutória de práticas discursivas que encontra a possibilidade de renovar as reivindicações do passado e as necessidades do presente (Bhabha, 1998).

Na perspectiva dos/as jovens do povoado, a religiosidade festiva ganha significados que explicitam como emanam as normas que regem os comportamentos. Mostra que, de acordo com os preceitos católicos voltados para o controle dos corpos e da sexualidade, a Igreja mantém sua função de evangelizar. Contudo, cotidianamente tais normas e preceitos são vivenciados, também, de forma subversiva (Priore, 2011).

Eu sempre participei muito da igreja. Eu era coroinha, vivia na igreja. Já fui a Virgem Maria. Adorava. Os padres eram muito bonitos e eu ficava admirando, depois achava que estava pecando em pensar neles como homens. Depois que eu comecei a trabalhar na loja, não participei mais porque a loja abre domingo também, é quando tem mais turistas. Eu adoro a festa de Nossa Senhora da Penha daqui. É a maior festa do ano. É quando vem os conjuntos musicais para tocar no palanque. Por isso é que é muito boa. É muito animada (M. I., 18 anos. Entrevista, 2017).

Assim, se por um lado há muitas aproximações possíveis entre as expressões da religiosidade e as festas de ontem e de hoje, também existem muitas diferenças, e elas se evidenciam nas identidades que se produzem no interior das práticas cotidianas. Longe do colonialismo português, os sujeitos atuais exercem de forma mais livre a subversão de outrora. Ela está presente no protagonismo resultante da autonomia quanto à gestão da festa, da vida religiosa e da própria religiosidade. A apropriação da igreja, bem como dos santos que ela abriga, é fruto da aproximação e da intimidade, não tanto no campo religioso, mas no sentimento de posse ainda mais intenso.

Afinal, o dia da festa é marcado pelas homenagens e elas foram bradadas pelo padre no final da procissão: “Viva Nossa Senhora da Penha de França! Viva São José! Viva o povo do Bichinho!”. Neste momento, todos/as são igualmente homenageados/as. Santos, santas e o povo, o sagrado e o profano se unem sem hierarquias. Todos/as são protagonistas.

Narrativas sobre a religiosidade

Em Vitoriano Veloso, no que se refere à religiosidade e tomando como exemplo a festa da Penha de França, a relação com a divindade é estabelecida direta e intimamente pelos devotos e devotas. Tais características favoreceram relatos de caráter autônomo e crítico do/as moradores/as aos representantes da Igreja. A relação estabelecida entre a comunidade e o pároco10 se caracterizou pelo distanciamento e certa irritabilidade dos/as fiéis em relação aos sermões, comportamentos e atitudes do agente “administrador” do sagrado:

Eu não gostei do sermão do padre. Ah! ficou falando de drogas, dos costumes, da inveja, do roubo das santas, “poxa”, hoje é o dia de Nossa Senhora, é o dia dela, e ele vem falar que vão roubar ela. Hoje é o dia da festa, não tem nada a ver ele falar essas coisas (M. S., 58 anos. Entrevista, 2015).

No final da festa a gente faz as contas do que lucrou. O padre, ele só vai embora depois que a gente paga a ele. Não importa se o lucro das barraquinhas foi menor, ele quer o dele. Ele não assiste a comunidade. Ele só vem por causa do dinheiro e para comer lá no restaurante. Todo ano é assim (J. A., 51 anos. Entrevista, 2015).

Quando o meu marido morreu eu estava de resguardo com mais seis filhos pequenos. O padre foi chamado para rezar a missa de corpo presente aqui em casa, porque eu não podia sair ainda. A casa estava cheia de amigos, o quintal e até a rua. Veio todo mundo. Aqui todos se conhecem, é como uma família só. No final o padre fez questão de cobrar, como eu não tinha dinheiro, ele sugeriu que cada pessoa que estava ali desse um pouco até chegar no valor que ele cobrou (M. S., 58 anos. Entrevista, 2015).

As narrativas expõem as disputas de poder quanto ao protagonismo ligado à religiosidade e conferem a presença do sacerdote alguns elementos que desvelam a relação estabelecida entre a comunidade e a Igreja. Por sua vez, refletem como as identidades historicamente construídas no povoado estão impregnadas pela herança colonial e como a colonialidade atravessa o cotidiano. Elas abordam a percepção dos/as fiéis acerca da contradição entre o sagrado, identificado com amor e compaixão Divina, e o aspecto econômico. Nesse momento, os relatos expõem uma das faces mais perversas da Igreja colonizadora, a ambição que mercantiliza não apenas a alegria, mas também a dor do/a subalterno/a.

O sagrado, o profano e o poder

O conhecimento gerado pela sistematização da experiência do encontro etnográfico compõe a tese de doutorado (Barbosa, 2019), ou “livro do Bichinho”, como a comunidade denominou.

Em janeiro de 2020 retornei ao povoado de Vitoriano Veloso para a devolução da pesquisa através de um encontro com a comunidade e a entrega de uma cópia do “livro do Bichinho”, destinada a compor a biblioteca da escola municipal.

A decisão acerca da data e local desse encontro foi definida coletivamente. Pelo seu simbolismo, importância para os/as moradores/as e relevância na pesquisa, a igreja de Nossa Senhora da Penha de França foi escolhida para acolher o evento. Em função dos vínculos construídos anteriormente, o caminho mais natural foi combinar diretamente com a pessoa responsável pelas chaves e zelo da igreja. Conhecida e respeitada na comunidade há décadas por exercer esta função, sua indicação foi unanime para autorizar o uso do local. No contato realizado com algumas semanas de antecedência, ela manifestou a preocupação em assegurar o respeito ao “espaço sagrado”. Seu apoio incondicional e a confiança vieram após serem fornecidas as informações acerca finalidade do pedido e do conteúdo da explanação.

Contudo, a dinâmica da história trouxe novidades para os espaços de poder exercidos sobre a religiosidade local. A chegada de um novo Bispo para a Diocese de São João del Rei em 2018 e a nomeação de novos párocos para as 42 paróquias que compõem seu território, definiu novas configurações, novas regras e maior “autoridade” da Igreja sobre os devotos e devotas, bem como sobre a gestão das igrejas.

Certamente, quando as regras mudam, os lugares de poder seguem tais mudanças. O fato é que o anúncio/convite sobre a realização do encontro na igreja, feito ao final da missa no sábado anterior a data de sua realização surpreendeu o novo padre, que solicitou esclarecimentos e promoveu repreensões. Uma situação nova para a comunidade e para a pesquisadora, tendo em consideração os protagonismos identificados no cenário anterior, principalmente quanto a apropriação e gestão do espaço da igreja.

Os possíveis constrangimentos foram contornados pela apresentação prévia, privada e detalhada da pesquisa ao pároco, bem como o teor e a intenção do evento. A disponibilização de uma cópia da tese para o acervo da Igreja e o compromisso de que as futuras apresentações seriam promovidas pela Diocese garantiram o local escolhido para o encontro, mas não evitou desconfortos acerca do exercício de autonomia para ceder o espaço sem a autorização do representante da Igreja.

Desde 2018 vêm sendo implementadas mudanças pela nova gestão da Diocese. Dentre as “novidades” estão a padronização da organização de ritos e festejos, a proibição da comemoração de rituais e apresentações musicais, fogos de artifício e bebidas alcoólicas nas festas em homenagem as padroeiras e a regulação da autonomia sobre o uso do “espaço sagrado”.

No povoado, as opiniões se dividiam entre apoio e preocupação.

Tem gente que não gosta, eu gosto. Tá botando ordem. [...] Antes, as pessoas reclamavam com o padre e ele mudava, agora não. [...] Na primeira eucaristia, não tem mais celebração, palmas, vestidos novos, vela, terço [...] é todo mundo igual, com roupa igual. O novo padre disse que só aqui no Bichinho era diferente, que o povo daqui era muito festeiro. Agora isso acabou, é tudo igual (C., 48 anos, Entrevista, 2020).

A mudança repentina dos padres, sem a participação das pessoas, contrariou as comunidades. Prados rejeitou o novo padre. [...] As proibições nas festas das igrejas, [...] proibiram os fogos porque teve um acidente e processaram a igreja, aí o Bispo proibiu tudo, fogos, bebidas, palanque com música, show, jogos. Isso vai provocar uma pobreza estética da festa. As Irmandades em Tiradentes enfrentaram as ordens e mantiveram os fogos e tudo. Tiveram que entrar na justiça até. Mas aqui no Bichinho não tem Irmandade. Não sei como vai ser (G. 32 anos. Entrevista, 2020).

O contraste e as tensões entre Igrejas e fiéis, resultantes das tentativas de normatizar e controlar as festas católicas em seu caráter híbrido sagrado e profano, de ordem e desordem, de norma e anarquia, não é recente. As mudanças em curso acenam para uma reordenação nos lugares de poder e, consequentemente, novas disputas e negociações. Contudo, o “enfrentamento” terá que esperar, as festividades em homenagem à padroeira, previstas para setembro de 2020 e 2021, quando as novas regras impostas pela Diocese vigorariam no povoado e a comunidade seria desafiada a construir e exercer - ou não - suas estratégias de rebeldia, foram impedidas pela pandemia provocada pelo Covid-19.

Devido a continuidade do contato com a comunidade, conquistada pela reciprocidade que marcou a pesquisa, tem sido possível saber que mesmo em tempo de ameaças invisíveis agravadas pela “necropolítica” (Mbembe, 2021), a programação das comemorações religiosas em Vitoriano Veloso resiste. Em 2020, elas ocorreram através da realização das celebrações e bênçãos transmitidas pelas redes sociais. A frase que conclamou os fiéis foi: “Ó Senhora da Penha, ajudai-nos a viver a fé em família!”. Em 2021, a programação incluiu missas, batismos, novenas e recitação do terço com a participação limitada da comunidade, mediante cadastramento e obedecendo aos protocolos sanitários. O programa divulgado na página oficial da Diocese, anunciou: “Comunidade do Bichinho realiza festa em honra a Nossa Senhora da Penha. Realização: Comunidade de Vitoriano Veloso - Bichinho e Paróquia de Santo Antônio, Tiradentes, MG”. “Na alegria de viver o amor em família” foi a frase deste ano, ela anuncia um tempo que já inclui a possibilidade de alegria, ainda que com limitações. Assim, e em decorrência dos vínculos estabelecidos, as atualizações acerca da devoção e da festa continuam a chegar.

Oi Vera! Boa tarde!

A festa esse ano contou apenas com a programação interna. Do dia 03 ao dia 11 de setembro foi realizada a novena com missas e orações. Cada dia tivemos a presença de um padre da diocese que veio para presidir a missa. No dia 12 de setembro foi o dia maior das festividades. Nesse dia a programação contou com 4 missas, sendo a última abrilhantada pela orquestra de Tiradentes. Não houve procissão. O movimento de barraquinhas foi suspenso, mas houve venda de pastéis, canjica e refrigerante. Um decreto da diocese proíbe agora a venda de bebidas alcoólicas (J.P. Freitas [historiador, artesão e morador do povoado]. Conversa por meio de Mídia Social, 20 set. 2021).

O relato sinaliza que, assim como as celebrações têm sido capazes de adaptarem-se as restrições impostas pela pandemia de Covid-19 para seguirem perenes na cultura da devoção ao sagrado, também seguem adaptando-se e perenizando-se o lado profano identificado com os prazeres degustativos. Afinal, na designação de festa religiosa no catolicismo popular estão presentes de forma indissociável o sagrado e o profano.

Algumas considerações

Os desafios quanto ao exercício do protagonismo como estratégia não subalterna, não são novos. Está localizado na fronteira da diferença colonial de poder (Mignolo, 2000) e se configura como a prática do pensamento fronteiriço a partir de uma fissura na estrutura da colonialidade. Desse modo, a partir do pensamento subalterno colonial, as expressões e a apropriação da religiosidade em Vitoriano Veloso expressam cotidianamente o exercício da subversão ao padrão de poder e a necessidade de confirmar o protagonismo através autocompreensão da constituição complexa das identidades.

A análise historiográfica, considerando a subalternidade como locus de enunciação epistêmica, associada a pesquisa etnográfica, explicitou continuidades e rupturas quanto a religiosidade, o sagrado e o profano colonial e descolonial que evidenciam atualizações dessa subalternidade. Contudo, também expuseram estratégias de resistência e subversão empreendidas silenciosamente, permanentemente e invisivelmente no cotidiano que afirmam o espaço e o exercício de um protagonismo nada invisível e tampouco subalterno.

No novo cenário, com dinâmicas de desumanização e discriminação das identidades que se evidenciam também na esfera religiosa - onde talvez tenham sido gestadas e jamais desaparecido, se impõem novas estratégias não subalternas para a construção de reexistências.

Afinal, no contexto do catolicismo popular observado, a propriedade da fé, da festa, da igreja, dos santos e santas e do cemitério pertence aos moradores e moradoras de Vitoriano Veloso. Na ausência cotidiana dos representantes da Igreja, que estão presentes apenas nos momentos específicos em que são chamados pela comunidade são, principalmente, as mulheres que se responsabilizam pela vida paroquial. Elas detêm as chaves das portas da igreja, definem locais no cemitério onde devem ser enterrados os mortos, limpam, ornamentam o local sagrado e agendam as missas, os batizados e os casamentos. Lavam e engomam os trajes sacerdotais, são as vozes do coro e ministram a catequese.

A herança colonial da presença/ausência da Igreja em Minas Gerais deixou marcas como o protagonismo dos/as fiéis. Fincada na subversão das hierarquias e certa autonomia na gestão da fé, a devoção não subalterna transparece na recusa permanente, ainda que por vezes invisível, do lugar de subalternidade reiteradamente imposto pela colonialidade.

Material suplementario
Fontes
A. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 21 set. 2015.
C. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 10 jan. 2020.
G. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 10 jan. 2020.
J. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 22 set. 2015.
J. A. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 22 set. 2015.
J. P. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 21 set. 2015.
M. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 20 set. 2015.
M. A. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 21 set. 2015.
M. L. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 20 set. 2015.
M. I. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 22 abr. 2017.
M. S. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 22 set. 2015.
O. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 20 set. 2015.
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V. Entrevista concedida a Vera Lúcia Ermida Barbosa. Prados, 18 abr. 2017.
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Notas
Notas
1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto CLISSIS - UI/DB/04624/2020, UI/DP/04624/2020; Projeto CIDEHUS - UI/DB/00057/2020 e UI/BD/151071/2021.
Notas
2 O registro oficial mais antigo encontrado sobre o arraial do Bichinho data de 1717, foi produzido pela Câmara Municipal de São João del-Rei e trata do “Rol dos moradores” (São João del Rei, 1717) e faz parte da “Coleção Casa dos Contos”, da Biblioteca Nacional Digital do Brasil. Segundo Santos (1995, p. 1-2), outros documentos do IPHAN/Tiradentes demonstram o início da povoação e da presença da igreja de Nossa Senhora da Penha de França. Dentre eles, o “Lançamento do quinto real em São João del-Rei - 1715-1721” (APM - Arquivo Público Mineiro), o “Rol dos confessados desta Freguezia de Santo Antônio da Villa de São Joze Comarca do Rio das Mortes deste prezente anno de 1795” (s/numeração - Arquivo do Instituto de Historia e Geografia de Tiradentes [IHGT]) e o “Livro de visita pastoral de D. Frei Cipriano de São José, 1800” e “Livro de visitas pastorais de Frei José da SS. Trindade 1821-1826” (Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM), fls. 423). Desde 1938 o povoado de Vitoriano Veloso pertence ao pequeno município de Prados, localizado no Campo das Vertentes, Região Central de Minas Gerais segundo a divisão territorial da Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão (SEPLAG/MG). De acordo com o IBGE (2020), a população estimada para 2020 era de 1.080 pessoas.
3 Adoto o conceito “subalternidade” segundo a definição dos Estudos Subalternos para referir a pessoas de regiões e grupos que estão à margem na disputa por poder da estrutura hegemônica. Contudo, este enfoque se recusa a pensar a subalternidade a partir de uma perspectiva essencializadora, relacionado apenas com o colonial ou o pré-moderno. Ao contrário, compreende a subalternidade como “um conceito para designar o novo sujeito que emerge nos interditos da globalização” (Beverley, 2004, p. 337).
4 Na literatura sobre a colonialidade do poder (Quijano, 2000), o conceito “decolonialidade” aparece tanto como descolonialidade e descolonial como decolonialidade e decolonial. Embora o pensamento decolonial tenha sido implantado a partir do início da colonialidade, sua genealogia e seu nome foram sistematizados por intelectuais do Grupo Modernidade/Colonialidade. O Giro Decolonial proposto pelo grupo é um projeto de deslocamento epistêmico na esfera social e no âmbito acadêmico que considera a crítica pós-colonial e a teoria crítica como projetos de transformação que operam e operaram basicamente na academia europeia e norte-americana. O uso do termo “decolonial” e “decolonialidade” e “descolonial” e “descolonialidade” não é unânime (Mignolo, 2010). Adoto as expressões decolonial e decolonialidade na medida em que, da mesma maneira que se faz necessária a distinção analítica entre colonialismo e colonialidade, não se deve, também, confundir descolonização com decolonialidade.
5 O conceito “colonialidade” permite compreender a continuidade das formas coloniais de dominação produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do “sistema-mundo capitalista moderno/colonial” mesmo após o fim das administrações coloniais (Grosfoguel, 2008). Configura-se como uma matriz colonial de poder complexa e de níveis entrelaçados: controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, de gênero e da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento que estrutura o sistema-mundo moderno/colonial, em que o trabalho, as subjetividades, os conhecimentos, os lugares e os seres humanos do planeta são hierarquizados e governados a partir de sua “racialização” (Quijano; Wallerstein, 1992).
6 No original: “El Evangelio vendrá junto a la espada opresora, violenta, conquistadora. América soportó entonces una Iglesia identificada con el Estado. El americano conoció el cristianismo dentro de un ‘modelo’ de Cristiandad latina, ibérica” (Dussel, 1983, p. 66).
7 No original: “Comenzaba así a surgir, lentamente, el “pueblo cristiano”. […] la recepción original y creativa del a naciente: indígenas, mestizos, esclavos negros, españoles y portugueses empobrecidos [...]. Surgía contra la Cristiandad dominante otro modelo de Iglesia: una “Iglesia popular”. [...] Una evangelización laical, casi sin religiosos, de cofradías y santos ermitaños” (Dussel,1983, p. 68-72).
8 A etnografia acolheu os relatos e testemunhos que são apresentados no texto. Seu compartilhamento se dá mediante termos de autorização e consentimento dos/as participantes, reconhecidos/as como atores e coautores/as da pesquisa.
9 Durante o período pandêmico que se iniciou em 2020, a igreja de Nossa Senhora da Penha em Vitoriano Veloso foi alvo de novas restaurações. Novamente financiadas exclusivamente por fiéis da comunidade (Paróquia de Tiradentes, 2020).
10 Em 2018, em decorrência das mudanças promovidas pela nova gestão da Diocese de São João del Rei, o pároco foi transferido após mais de 30 anos atendendo a comunidade do Bichinho.
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