Dossiê
“Tão mulher como as outras mulheres da terra”: freiras contra o patriarcado no agreste central de Pernambuco
“Just as a woman as any other woman on Earth”: nuns against patriarchy in the central hinterland of the state of Pernambuco - Brazil
“Tan mujer como las demás mujeres de la tierra”: las religiosas contra el patriarcado en el centro agreste de Pernambuco - Brasil
“Tão mulher como as outras mulheres da terra”: freiras contra o patriarcado no agreste central de Pernambuco
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 27-44, 2022
Universidade Estadual do Paraná
Recepción: 30 Junio 2021
Aprobación: 08 Septiembre 2021
Resumo: Buscamos compreender como freiras de uma pequena comunidade inserida no meio popular construíram significados de gênero e de feminino, de modo a dar respostas às demandas de participação e autonomia das mulheres com quem conviviam. Utilizamos conceitos de “Patriarcado” e “Vida Religiosa nas Pequenas Comunidades Inseridas no Meio Popular” (PCIs) como escopo teórico para compreensão da investigação empírica, que foi realizada por meio da história de vida de religiosas da Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria (Cordimarianas) que fundaram uma comunidade em Riacho das Almas, cidade do agreste pernambucano. As freiras em estudo, protagonizaram inovações na práxis pastoral, contribuindo significativa-mente para que homens e mulheres pudessem construir relações simé-tricas no exercício do poder na Igreja e na sociedade.
Palavras-chave: Patriarcado, Mulher, Vida Religiosa, Pequenas Comunidades Inseridas.
Abstract: We sought to understand how nuns from an inserted small community in the popular environment constructed meanings of gender and femininity in order to provide answers to the demands of participation and autonomy of the women with whom they lived. We used concepts of “Patriarchy” and “Religious Life in Inserted Small Communities in the Popular Environment” (PCIs) as a theoretical scope for understanding the empirical investigation, which was carried out by means of the life history of religious women of the Congregation of the Daughters of the Immaculate Heart of Mary (Cordi-marianas) who founded a community in Riacho das Almas, a town in the hinterland of Pernambuco. The nuns under study played a leading role in innovations in pastoral praxis, being able to contribute significantly so that men and women could build symmetrical relations in the exercise of power in the Church and in society.
Keywords: Patriarchy, Woman, Religious Life, Inserted Small Communities.
Resumen: Buscamos comprender cómo las monjas de una pequeña comunidad insertadas en el medio popular construyeron significados de género y feminidad para responder a las demandas de participación y autonomía de las mujeres con las que convivían. Utilizamos los conceptos de “patriarcado” y “Vida Religiosa en las Pequeñas Comunidades Insertas en el Medio Popular” (PCIs) como ámbito teórico para comprender la investigación empírica, que se realizó a través de la historia de vida de las religiosas de la Congregación de las Hijas del Inmaculado Corazón de María (Cordimarianas) que fundaron una comunidad en Riacho das Almas, ciudad del interior de Pernambuco, Brasil. Las monjas en estudiadas protagonizaron las innovaciones en la praxis pastoral, siendo capaces de contribuir significativamente para que hombres y mujeres pudieran construir relaciones simétricas en el ejercicio del poder en la Iglesia y en la sociedad.
Palabras clave: Patriarcado, Mujer, La vida religiosa, Pequeñas comunidades insertas.
Introdução1
Para que haja sempre memória de
Irmã Maria Auri e Irmã Ady Freire
O breve século XX (Hobsbawm, 1995) foi arena de significativas mudanças e transformações em vários aspectos da vida humana (Aquino, 2016), caracterizado pelo crescimento exponencial da população mundial, que se reconstitui culturalmente por conta dos desdobramentos das novas formas de globalização, comunicação e consumo. Igualmente, os severos conflitos bélicos e o aumento da produção de armas de destruição em massa e pela exploração desmedida e crescente dos recursos naturais (Capra, 1982), conflui em mudanças climáticas, com implicações para a sobrevivência da humanidade.
Tais predicados, de um lado, vão gerar uma crítica a ideia de progresso ensejado pelo pensamento científico do século XIX (Le Goff, 2003); de outro, corroboram com a proclamação de Cartas de direitos e a definição de novas cidadanias (Bobbio, 2004), o que acabou consolidando-o como o século das mulheres (Hollanda, 2018).
Neste cenário, à Igreja Católica foram reclamadas mudanças estruturais, especialmente pelas comunidades eclesiais dos países Latino-americanos onde a instituição mantinha histórica aliança com os grupos mais abastados, justificadora da manutenção das desigualdades sociais, políticas e da perseguição das expressões religiosas dos povos nativos ou dos povos descendentes do continente africano.
Além disso, era necessário que a Igreja se adaptasse às mudanças dos tempos modernos a qual estava imersa e que fora alcunhada pejorativamente de “erros” na encíclica “Quanta Cura” assinada pelo Papa Pio IX, em 1864.
Nesse ambiente histórico de ruptura com o passado em termos técnico-econômico, jurídico-político e psicológico-cultural, a Igreja Católica era, por diversas razões, associada ao ancien régime. Tal associação fez dela um dos alvos principais do liberalismo: das críticas filosóficas aos ataques a seus territórios e autoridade (Aquino, 2016, p. 119).
A resposta católica às mudanças estruturais inevitáveis veio tarde, mas chegou com a convocação do Concílio Vaticano II (1962-1965). Pari passu, o movimento feminista que eclode nos Estados Unidos da América e na Europa, vinha forçando a incorporação da questão da mulher no debate de interesse eclesial.
Logo após a realização deste Concílio, a América Latina conheceu uma forma profética do catolicismo com uma “migração”, principalmente de mulheres religiosas, para os meios populares em busca da experimentação da “Igreja pobre para os pobres” pronunciada pelo Papa João XXIII, ao conclamar para o Concílio Vaticano II (Rezende, 1999). A chegada das religiosas nos territórios empobrecidos fez surgir as Pequenas Comunidades Inseridas no Meio Popular (PCIs), corresponsáveis pela gênese das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Dessa experimentação eclesiológica, pautada numa acepção de espiritualidade “encarnada” na “Fé e Vida”, realizou-se uma experimentação profética com fundamento numa leitura bíblico-salvífica do “Atos dos Apóstolos” mediadas pela realidade. Aos poucos, incorporando uma análise teológica com aproximações do materialismo histórico-dialético, que permitiram as PCIs pôr-se a serviço da resistência às opressões vividas nos vários setores da sociedade.
É em decorrência destas leituras que as mulheres que estavam situadas no raio de atuação das religiosas em PCI vão descobrindo a si mesmas como sujeitas a serem libertas e vão promover embates contra as formas de patriarcados na Igreja e na sociedade. Estas PCIs vão promover, inevitavelmente, pequenas revoluções, tal como ocorrem em Riacho das Almas - pequeno município situado no agreste de Pernambuco, com 17 mil habitantes e caracterizado pelo conservadorismo político, o machismo, o mandonismo e o patriarcado. Em termos ilustrativos, “uma mimetização da fictícia cidade de Santana do Agreste, do romance Tieta do Agreste, escrito por Jorge Amado” (Andrade, 2019, p. 5). Nestes termos, e em decorrência dos conflitos com a pauta de gênero, a pesquisa debruçou-se em saber como que as ideias de gênero perpassaram pela práxis pastoral destas comunidades, permitindo configurar uma nova concepção e autopercepção de mulher. Mais focalmente, como as religiosas da periferia social vão assumindo essa identidade e se autoafirmando mulheres, e pautando a libertação das opressões do patriarcado?
Assim, o artigo tem como objetivo: compreender como as freiras de uma PCI construíram os significados de gênero e de feminino, tomando como base suas trajetórias de vida. As reflexões postas decorrem de um recorte de pesquisa de Iniciação Científica, cuja metodologia têm como base a História de Vida das freiras vinculadas à Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria (Cordimarianas)2 que deram origem à PCI no município e de mulheres que conviveram com estas, entre os anos de 1982 a 1997 (Andrade, 2019). Aqui, interessou-nos situar a chegada dessas freiras à cidade, a percepção de si como “mulheres como as outras mulheres da terra”3, além do descortinamento do patriarcado e a afirmação do feminino a partir da experiência na PCI em Riacho das Almas.
História de Vida como método de investigação e narrativa
Nossa investigação é de natureza qualitativa, cujo método utilizado é a História de Vida, que nos permite melhor compreender experiências e experimentações sociais a partir da perspectiva do indivíduo que as viveu. Interessa “o ponto de vista do sujeito. O objetivo desse tipo de estudo é justamente apreender e compreender a vida conforme ela é relatada e interpretada pelo próprio ator” (Glat, 1989, p. 29).
Caracteriza-se pelo respeito e a fidelidade da opinião e das memórias trazidas pelo sujeito pesquisado, não o vendo como objeto passivo, de modo que este tem “liberdade para dissertar livremente sobre uma experiência pessoal em relação ao que está sendo indagado” (Santos; Santos, 2008, p. 715), o que faz com que o entrevistado direcione o estudo a partir de sua visão de mundo, de como vivenciou os fatos e de como interage com o presente. Utiliza-se das trajetórias pessoais no âmbito das relações humanas, compreendendo que mesmo particulares, são relatos de suas práticas de inferência na comunidade, das formas com que se insere e interpreta o mundo e o grupo do qual participa.
Tal percepção é fundamental para compreendermos as vocalizações presentes neste trabalho sobre as interações sociais e a compreensão da composição sociocultural em Riacho das Almas. O cenário que queremos descortinar neste trabalho localiza-se no processo de libertação da dominação exercida pelo patriarcado empreendida como um projeto pastoral, isto é, constituído no “ventre” da Igreja Católica e alimentado pelo ideário teológico constituído no seio da América Latina e alcunhado de Teologia da Libertação (TdL), em sua vertente pastoral nominado de CEBs. Assim, a partir da categoria libertação, será possível entender o lugar por onde estas mulheres (re)construíram os sentidos e os significados de gênero e de feminino.
Para efeitos de pesquisa, o contato com as religiosas fundadoras da PCI em Riacho das Almas deu-se através da relação intrafamiliar. Enquanto permaneceram no município, nossos parentes conviveram e foram influenciados por elas, mantendo entre si relações afetivas até os dias atuais. Em um segundo momento, pudemos encontrá-las por meio de encontros de formação realizados na Fundação Santuário das Comunidades4, lugar que abriga um núcleo de assessoria popular cofundado por elas e que faz a salvaguarda dos ideários de libertação do povo.
Ao longo de quinze anos, em que permaneceram em Riacho das Almas, a Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria disponibilizou muitas religiosas, chegando a compor duas PCI - uma no campo, outra na cidade. Moraram nestas comunidades outras mulheres não religiosas, que contribuíram sobremaneira no fortalecimento das CEBs e na compreensão sobre mulher, gênero e feminismo. É o caso da teóloga e missionária Hermínia Boudens, que por seus estudos, permitiram a ampliação da compreensão das mulheres e dos homens sobre si mesmos a partir de uma leitura da Teologia Feminista.
De forma global, para o levantamento de dados para nossa pesquisa, realizamos entrevistas com cinco mulheres do município que conviveram com estas religiosas desde a primeira hora, com a intenção de perceber como estas influenciaram as suas percepções de si, como mulheres. Depois, também entrevistamos duas freiras, tendo como critério de opção, a formação original da PCI na cidade (a terceira religiosa já faleceu) e que permaneceram em Riacho das Almas entre 1982 e 1997.
Focalizamos, aqui, apenas as religiosas com as quais fizemos entrevistas semiestruturadas em profundidade, divididas em duas etapas, em decorrência da idade avançada e das condições de saúde das entrevistadas. A primeira entrevista, com Virgínia Guerra, ocorreu em 05 e 06 de outubro de 2019, na sede da Fundação Santuário das Comunidades. A segunda entrevista, com Áurea Guerra, ocorreu em 23 e 26 de dezembro de 2019, na residência da entrevistada, tendo sido acompanhadas pelo orientador.
O roteiro para obtenção dos dados foi composto por dois blocos gerais, centrando cada bloco em uma das etapas. No primeiro, buscamos escutar as narrativas sobre suas trajetórias até a chegada ao convento, suas concepções sobre mulher e patriarcado; na segunda, focalizamos as questões da saída dos conventos para composição de uma PCI, a opção pelos pobres e na práxis de libertação das mulheres. Na média, em cada momento foram recolhidos cerca de 120 minutos de áudios, gravados e transcritos na íntegra pela pesquisadora, sob supervisão do seu orientador. A urgência na transcrição serviu-se da preocupação de garantir maior fidedignidade das respostas e evitar a perda de qualquer informação relevante não captadas em áudio.
Estivemos sempre atentos às diretrizes da Resolução n. 510/16, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Por isso, este estudo teve prévia autorização do Comitê de Ética do Centro Universitário Tabosa de Almeida (ASCES-UNITA) e da anuência das Filhas do Coração Imaculado de Maria, representada por sua Superiora Geral.
A opção pelas Pequenas Comunidades Inseridas e os novos sentidos para a Vida Religiosa
As mudanças pastorais implementadas pelo Concílio Vaticano II ressignificaram a palavra Igreja. A Constituição Dogmática Lumen Gentium aplicou-lhe o sentido de “povo de Deus”, fomentando o ambiente de possibilidade da saída dos espaços tradicionalmente ocupados pelas comunidades religiosas para encontrar os empobrecidos. A partir daí, de maneira especial na América Latina, sob os efeitos das Conferências Gerais da Igreja nesta área continental realizadas nas cidades de Medellín (1968) e Puebla (1979), esta região promoveu uma “reinvenção da Igreja” (Boff, 2008).
Sobre estas Conferências, consideramos:
Daqui saem duas consequências importantes para a vida da Igreja latino-americana, sobretudo nos anos que se seguiram: a valorização da ação política e das Comunidades Eclesiais de Base; [...] As freiras, portanto, saem dos conventos, abdicam das vestimentas habituais e passam a viver em Pequenas Comunidades, no meio do povo, sob o norte da opção preferencial pelos pobres (Nascimento, 2014, s./p.).
Neste mesmo contexto, quando se festejou o cinquentenário da experiência das Pequenas Comunidades Inseridas no Meio Popular, Cecília Pousa (2015, s./p.) escreveu:
Irmãs e Irmãos de várias Congregações Religiosas, tendo contribuído até o momento nas atividades de suas instituições dedicadas a obras de educação, saúde hospitalar e assistência social, desejam participar de ações libertárias. Deixam o trabalho de suas Comunidades e vão construir, com muita coragem, Pequenas Comunidades em Meios Populares, ensaiando uma experiência de participação na vida concreta dos empobrecidos do país, vítimas não só das consequências do regime ditatorial, mas também do conservadorismo das sociedades e de grande parte da Igreja Católica Romana, mais hierárquica do que profética.
Essa mudança de paradigma da vida religiosa teve origem na região Nordeste do Brasil, em 1963, tendo seu ápice nas décadas de 1970 e 1980, quando crescia entre as religiosas o desejo de assumir as condições de vida precária e “dura, em relação às condições em que viviam antes, quando trabalhavam em colégios e outras obras das congregações” (Nunes, 2018, p. 504).
As PCIs, segundo Rezende (1999), referem-se às casas religiosas fora do ambiente conventual, pertencentes às ordens religiosas canônicas, isto é, legalmente reconhecidas pela Igreja. De modo geral, estas comunidades são formadas por grupos variáveis, entre três e cinco mulheres, que abdicaram ao estilo de vida conventual e passaram a residir em bairros marginais, áreas rurais, assentamentos ou acampamentos, “dedicando-se à convivência com os pobres, como intervenção evangelizadora, e a trabalhos de educação informal e de pastoral popular” (Resende, 1999, p. 1). No Nordeste, atuaram ativamente na resistência contra a ditadura civil-militar instalada no país (1964-1985), no fortalecimento da organização comunitária, nos movimentos sociais e partidos políticos (Pousa, 2015).
Não parcas vezes, as PCIs assumiram o protagonismo de variadas lutas por justiça social, qualificação de políticas públicas e afirmação de direitos humanos ou conflitos intraeclesiais, estando “extremamente atentas e sensíveis ao contexto social em que se achavam inseridas”, deixando-se afetar “pelos processos de mudança de que o país foi palco nos anos 1970 e 1980” (Rezende, 1999, p. 157).
Com isso, vão incluindo nas suas pautas variadas e importantes questões da política local e nacional, em consonância com a própria Igreja que busca renovação institucional a partir dessas experiências de reforma da vida religiosa, conforme descrito no Decreto Papal “Perfectae Caritatis” (Papa Paulo VI, 1965: 2): “2. A conveniente renovação da vida religiosa comporta uma volta às fontes de toda a vida cristã, à inspiração original de cada um dos institutos religiosos e à sua adaptação às condições dos tempos que mudaram. Essa renovação deve ser feita sob o impulso do Espírito Santo e sob a orientação da Igreja”.
Embora não fosse uma experiência exclusivamente feminina, as congregações compostas por mulheres implementaram esse modelo com mais sucesso dado o fato de não estarem presas às estruturas paroquiais, no que ajudou a ressignificar o papel da mulher no interior da Igreja e no mundo. Foi por causa desse aspecto que o estudo nos interessou e que saímos em busca de respostas na trajetória de vida das freiras que atuaram no agreste pernambucano. Como já afirmamos, essa pesquisa é um recorte, por isso trataremos de invocar os dados das personagens delimitadas para este artigo, as duas freiras que compuseram a primeira PCI no município.
Maria Áurea Guerra (Irmã Maria de São José), é uma cearense com 85 anos, que entrou na vida religiosa aos 16 anos de idade. Foi a primeira Irmã Cordimariana a optar pela vida de inserção, alimentada pelo desejo de ir ao encontro do povo empobrecido, depois de conhecer relatos sobre a primeira PCI publicados em revistas missionárias, de circulação nos ambientes conventuais. Assim ela descreveu:
Eu lia muito essas revistas que vinham e faziam todos os avisos, aí contava lá a história das Irmãs Missionárias que assumiram uma comunidade em Nísia Floresta [RN]. Daí começou a nascer um desejo. Quando eu vim de Icoaraci [Pará] para trabalhar em um colégio em Bezerros [Pernambuco] encontrei com Irmã Auri, que tinha feito em Salvador um curso de catequese com uma visão mais aberta e conversamos sobre essa ideia. [...] Eu era uma professora cumpridora do dever, meus alunos gostavam muito de mim, mas eu refletia muito assim: “meu Deus, o que eu estou fazendo aqui? Esse pessoal rico vem para cá para o colégio, vem para se promover, e eu aqui gastando minhas energias com esse povo. Era muito melhor que eu estivesse lá, com os pobres”, eu refletia nessa linha e conversava com Auri (Áurea Guerra, Entrevista, 2019).
Irmã Maria Auri de Oliveira, segundo sua descrição, “era uma piauiense de uma personalidade forte, mas também muito acolhedora. O que a marcava muito era a acolhida às pessoas. [...] Tinha grande amor à vida” (Áurea Guerra, Entrevista, 2019). Ela foi umas das três pioneiras a instalar a comunidade religiosa em Riacho das Almas, onde permaneceu com os pobres até que fosse acometida de uma doença que a debilitou, no final da década de 1990. Além delas, Virgínia Guerra formaria o trio que migrou da primeira PCI Cordimariana, fundada por elas na cidade de Santa Cruz do Capibaribe (PE), seis anos antes.
Maria Idelzuite Guerra, ou Irmã Virgínia, é consanguínea de Áurea e tem 94 anos de vida, sendo 61 de vida religiosa. Durante a entrevista, ela demonstrou pequenas desconexões quanto à personagens, lugares e temporalidade dos fatos ocorridos, mas traz importantes contribuições para o entendimento da formação da PCI em Santa Cruz do Capibaribe e em Riacho das Almas. Sobre a última, ela narra as impressões ao chegar no local, onde se fixaria por quinze anos.
Me lembro tanto o dia que a gente foi para Riacho. Era um fusquinha que a gente tinha nessa época, Áurea dirigia. Chegamos ali do lado da Igreja Matriz, que era só mato, e ela estacionou o carro. Dissemos: “para onde a gente vai?” A gente foi conhecer a cidadezinha para ver se dava certo vir para cá. Não conhecíamos ninguém em Riacho nessa época, acho que não, não lembro. Então, não fomos para casa de ninguém e fizemos um lanche no carro mesmo. Fomos até o Cruzeiro, paramos perto do cruzeiro, e só era aquela rua principal. Lá tinha um pessoal, aí a gente se demorou. Depois voltamos e ficamos pensando (Virgínia Guerra, Entrevista, 2019).
Depois dessa primeira visita, foram tomando ciência das características da cidade e suas peculiaridades. Áurea (Entrevista, 2019) enfatiza que “grande parte da população [era] da área rural”, por isso fizeram opção de conhecê-la em profundidade. Conforme Virgínia (Entrevista, 2019), as visitas ocorriam sistematicamente com a intenção de conviver e conhecer a realidade do povo: “saíamos em uma sexta-feira, ou quinta, para uma área rural, uma comunidade, e lá a gente ficava uns três dias. A gente visitava aquele pessoal todinho, sabe?”
Essa opção pelas comunidades do campo vai desembocar na execução do projeto São Vicente, que captou recursos do Programa de Apoio a Organizações de Pequenos Produtores Rurais do Nordeste (Decreto Presidencial n. 92.320/86), na incidência política sobre o processo de eleição da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), no ano de 1988,
Fomos tomando conhecimento de que existia o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, mas que esse, há muitos anos, era mantido por uma única diretoria. O pessoal se queixava que o STR não dava nem apoio nem a devida ajuda às pessoas da zona rural, que contribuíam e não recebiam a devida ajuda, tudo isso foi nos impressionando. [...] vimos nele uma forma de organização dos agricultores, além de ser um órgão que poderia ajudar às famílias (Áurea Guerra, Entrevista, 2019).
A mudança da diretoria foi bastante tensa, escancarando a ruptura com o posicionamento político das oligarquias locais e o patriarcado, já que marcou a entrada das mulheres na lista de filiados ao STR - antes disso, a associação era reservada ao marido. Como resultado desse processo, houve fortalecimento da agricultura comunitária por meio da instalação e manutenção de um banco comunitário de sementes, na fundação de associações de produtores rurais, dentre outras ações. Mas, a área que mais possibilitou abertura às formas e expressões que viriam configurar as novas relações entre homens e mulheres foram notadamente as intervenções nas políticas de saúde, por suas incidências sobre os corpos, sexualidade e reprodução.
Atuar para a formação de uma nova realidade do imanente, era a principal missão renovadora da Igreja, naquele momento, e vai tornando-se o espaço que favorece “os diversos movimentos leigos, eclesiais e políticos de luta pela terra e uma nova sensibilidade por uma sociedade mais justa” (Pousa, 2015, s./p.). Isto é, o deslocamento desse contingente de religiosas para o encontro das marginalidades não se deu apenas como aspecto geográfico, mas também político. Elas assumiram discurso e práticas em favor dos interesses dos grupos que sofriam dominação e opressão (Domezi, 2016).
As adaptações necessárias para se viver esse “novo jeito da vida religiosa” disciplinadas pelo Decreto “Perfectae Caritatis”, somando-se à opção em favor dos oprimidos, promoveram outras mudanças. Destaca-se, em decorrência da notória visibilidade, a troca das vestimentas dos religiosos, que substituíram os soturnos trajes habituais por roupas comuns.
Mas, embora isso tivesse ocorrido há alguns anos, a chegada de três freiras que não usavam as vestimentas conventuais fazia com que facilmente fossem identificadas com outras mulheres, que não carregam o estigma da instituição religiosa. Justamente por isso, tal substituição fora realizada de maneira a potencializar e facilitar a ideia de pertencimento comunitário, imiscuindo-se aos seus problemas cotidianos.
Eu achava que aquela roupa [hábito] distanciava muito as pessoas, além de ser incômoda. Se fosse frio ou quente, tinha que usar aquela roupa quente. Mas, foi sobretudo pelo aspecto que eu vi: quando eu chegava em um grupo com aquela roupa, ou em alguém, aí mudava-se logo de assunto porque ali estava uma freira. Eu troquei o hábito em 1976 (Áurea Guerra, Entrevista, 2019).
Para Virgínia (Entrevista, 2019), a mudança de vestimenta foi um fato quase natural: “eu simplesmente fiz roupa. Tive que fazer algum vestido, saia e blusa. Então, vesti, simplesmente”. No entanto, relata duas dificuldades nessa mudança, sendo a primeira, quanto ao assédio masculino: “não sofri preconceito, mas muita jogada de algum rapaz ou homem que joga uma indireta” (Virgínia Guerra, Entrevista, 2019). A outra foi da mentalidade reprodutora do patriarcado eclesial, da parte de alguns homens que ocupavam lugares de destaque na paróquia local: “Você sabe de alguém que estranhou? Aquele pessoal do X. [...] Porque, quando a gente chegou em Riacho, ele era quase o dono da igreja. Naquela época, quem celebrava lá era o padre Everaldo, já velhinho. Velho não, doente, muito doente. Então ele fazia tudo, ele e o Y, aquele rapaz lá” (Virgínia Guerra, Entrevista, 2019).
Este estranhamento não desencadeou num conflito intraeclesial local significativo porque, diferentemente do que esperava o bispo diocesano, essa PCI não assumiu a coordenação das atividades pastorais, como explica Áurea (Entrevista, 2019):
Na visão dele seria uma coisa boa nós irmos para lá, porque poderíamos ajudar nos trabalhos de pastoral, vamos dizer assim, na cabeça dele. [...] Ele achou que era bom porque a gente, pelo menos, ajudava na capacitação das pessoas, nos grupos de catequistas, essas coisas. Então, ele foi de acordo que a gente fosse para Riacho. [...] Uma coisa que a gente pediu, que não houvesse nenhuma apresentação em igreja, nem nada. Que aguardasse, em primeiro lugar, que tivéssemos o conhecimento das pessoas e vice-versa.
Entretanto, as atividades de formação catequética estavam calçadas na metodologia analítica ver-julgar-agir, o que inferiu novos olhares sobre a (e na) conjuntura local, contribuindo para o desvelamento da realidade social e suas contradições. Essa mediação analítica postulada pela Teologia da Libertação encontrava respaldo nos subsídios produzidos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Naquele contexto, assegurou legitimidade à atuação dessas religiosas que, não muito tarde
mexeram com tudo: com o sindicato rural e o enraizamento político centrado no Partido Democrático Social (PDS), com a saúde popular, os direitos sexuais e reprodutivos, as políticas públicas e as primeiras ideias de identidade de gêneros; com a luta pelo direito à terra e à água; e com a evangelização sob a ótica da Teologia da Libertação (Nascimento, 2020, p. 23).
A mobilização postulada pela PCI contou com a formação de 37 núcleos de CEBs, e quase uma centena de lideranças comunitárias, nomeadas de Animadores de Comunidade. Tal articulação alcançava comunidades de municípios vizinhos e mostrou força, o que provocou vários conflitos. Em relação às questões das eleições do STR, por exemplo, Áurea (Entrevista, 2019) discorre acerca do embate com o prefeito municipal: “Houve uma tentativa de nos cooptar para que a gente contribuísse para a vitória dele e nós não aderimos. Foi um conflito muito forte na questão sindical. No dia da eleição mesmo, o filho dele chegou até a dar um coice, como um burro, em Hermínia”.
Como resultado, a chapa de aliança com o prefeito perdeu as eleições. Além disso, aos poucos foi ocorrendo um deslocamento do centro dos poderes locais para a constituição de novas lideranças políticas, mais democráticas e alinhadas às pautas populares.
Na convivência com as comunidades, outras mudanças foram percebidas na vida do povo: na divulgação da utilização de filtros de barro, do soro caseiro, na introdução da multimistura como complemento alimentar, dentre outras. Contudo, das mais importes mudanças vivenciadas na convivência com estas religiosas situamos a (auto)compreensão nas relações de/entre gênero, que só foi possível pelo cumprimento da missão evangelizadora da Congregação Cordimariana.
Segundo Guerra (2016, p. 18), as “Irmãs Cordimarianas [são] enviadas para o cuidado da saúde dos mais pobres e abandonados”, desde a sua fundação. Entretanto, por razões de orientação da própria Igreja, estavam mais vinculadas às práticas de cuidado aos enfermos nos hospitais, e só na década de 1960, “impulsionadas pelas luzes do Concílio Vaticano II, as irmãs foram assumindo novas atividades fora dos hospitais” (Guerra, 2016, p. 29). O contato com o mundo não hospitalocêntrico na década de 1970, fez com que as discussões sobre saúde permitissem “chegar a uma consciência mais crítica sobre a realidade e os direitos das pessoas doentes. Dessa nova visão, o trabalho da saúde passou a se desenvolver sobre vários aspectos: físicos, mental, espiritual, psicológico e social” (Guerra, 2016, p. 31). Posteriormente, incidindo sobre as questões específicas dos direitos da saúde da mulher.
Mas, esse processo exigia das freiras outros olhares sobre si mesmas, capazes de produzir uma leitura apropriada das formas como as mulheres encaravam a própria realidade e seu corpo. E embora não fosse o lugar comum das discussões religiosas, salvo nas oratórias morais, era preciso falar do lugar que o corpo ocupa na sexualidade, na reprodução e na dominação patriarcal. Nestes termos, construir uma narrativa de libertação da mulher careceu o reconhecimento de si mesmas como mulheres, bem como as complexas narrativas e o seu lugar social.
Da descoberta de si à libertação das mulheres
A vida em favor dos pobres, assumida pelas religiosas, foi alargando seus limites e contornos, progressivamente. Isso porque ao “posicionar-se conscientemente, frente à realidade das classes sociais e comprometer-se efetivamente com sua luta pela superação de sua condição de classe dominada” (Nunes, 1985, p. 131) vai-se desvelando outras formas de dominação estrutural na sociedade e na Igreja, dentre às quais as formas assumidas pelo machismo e pelo patriarcado.
Andrade (2019, p. 5) percebeu que as PCIs, em Riacho das Almas, foram responsáveis por tencionar “as relações políticas internas e sociais para um novo olhar sobre si, no mundo. E, a rigor, pensar o cotidiano religioso vinculado às condições reais da população feminina (mas, não só), em termos do palpável”. Por este percurso, abrindo questionamentos sobre as fontes de opressões: o corpo feminino e suas (re)significações quanto à ideia de fragilidade e submissão.
De acordo com Pateman (1993, p. 39), o patriarcado é o “único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens”. Portanto, é historicamente localizado (Lerner, 2019) e se organiza como um sistema de relações sociais que articula diferentes opressões, tanto na esfera privada quanto na esfera pública, quase que naturalizando-os (Saffioti, 2015).
Em nosso país, o modelo de patriarcado está vinculado ao próprio processo de colonização, baseado na relação entre o escravismo e o latifúndio (Xavier, 1998), mantendo-se através do coronelismo, do mandonismo, do clientelismo, do patrimonialismo e do protecionismo (Schwarcz, 2019). Portanto, embora Therborn (2006) tenha apontado que o patriarcado, foi um dos grandes perdedores no século 20, as mudanças não ocorreram na mesma proporção, em todos os lugares, bem como não é possível considerar essas mudanças sem que houvesse o enfrentamento das opressões.
É relevante definir que a década de 1980, no Brasil, é significativamente importante para a afirmação das cidadanias. E a Igreja Católica representava um poderoso centro catalizador das ideias inovadoras, pautando a sociedade e os temas de constituição das políticas públicas por meio das Campanhas da Fraternidade. A partir delas, levantando valorosos debates sobre as causas da desigualdade social, sobre as quais conclamava a sociedade e o Estado a reagirem.
Então, especialmente para as comunidades pobres e sem acesso à escola, à eletricidade ou aos meios eletrônicos de comunicação social de massa, as Comunidades Eclesiais eram o principal veículo de formação e de informação, permitindo que as PCIs lograssem importantes mudanças na ecologia social local. Mas, sobretudo uma mudança estruturante na sua forma de ser-no-mundo:
De fato, uma parte delas não coloca mais a instituição, sua congregação e, no limite, a Igreja, como referência primordial ou como espaço privilegiado para a realização de seu projeto de vida. São as práticas junto aos pobres, a “comunhão de vida” com ele e a participação em “suas lutas”, os elementos legitimadores de seu envolvimento como religiosas (Nunes, 2018, p. 506).
Essa participação nas pautas dos trabalhadores é que vai permitindo enxergar o patriarcado naturalizado e servindo-se das próprias pautas em favor da libertação. Ivone Gebara (2012, s./p.) narra a descoberta da pauta de gênero, enquanto estudava com operários, no Recife. Diz a autora:
Eu ia uma vez por mês na casa de um deles, onde se reuniam de oito a dez operários. [...] A esposa do dono da casa nunca participava das conversas, ficava na cozinha ou nos trazia café. Até que um dia fui visitar apenas ela e lhe perguntei por que não participava das nossas conversas. [...] Ela disse-me: “Quer saber o motivo pelo qual não vou? Porque você fala como um homem”. Eu tentei defender-me. Ela me perguntou: “Você conhece os problemas econômicos que nós, mulheres de operários, temos?” Não. [...] “Você sabe as dificuldades sexuais que temos com nossos esposos?” Não. “Entende porque não quero participar de suas conversas, porque não fala a partir de nós”, disse-me. Essa mulher me abriu os olhos. Eu não me dava conta de que abria os olhos para minha condição de mulher na Igreja.
Essa percepção do lugar da mulher foi importante não apenas para Gebara, mas, principalmente, porque a partir dela, foi possível implementar mudanças de pensamento na formação dos religiosos, por meio da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), e gerar uma abordagem sistêmica e ontológica da mulher na Igreja e na Sociedade. Áurea (Entrevista, 2019) também confirmou que a consciência de si, como mulher, “não foi imediata”. À medida que ia se percebendo, observava que o papel relegado à mulher dentro da estrutura eclesial era de subalternização, e isso a incomodava:
Esse processo de consciência, não foi de imediato não, demorou. Pela formação que eu tinha em casa, a dureza do meu pai, eu sofria porque via minha mãe sendo subalterna também. No convento, esse processo também não foi de imediato, eu posso colocar como um marco, quando eu cheguei em Recife, na época do Concílio Vaticano II. Eu participava de tudo que eu podia na [Universidade] Católica e eu lia muito, foi uma das coisas que me ajudou muito. Tinha uma revista da Vida Religiosa chamada Grande Sinal, e nessa revista tinham todas as notícias, eu lia muito, a partir disso comecei a questionar e me tornei uma grande questionadora da congregação. [...] Então, por que os homens tinham que ditar leis quanto a Vida Religiosa Feminina? O Direito Canônico, escrito por homens, ditando a vida das mulheres, isso não foi sempre. Essa percepção deu-se com o passar do tempo, e eu fui percebendo e questionando (Áurea, Entrevista, 2019).
Recife foi um dos centros catalisadores dos anseios renovadores da Igreja, especialmente por meio do Instituto de Teologia do Recife (Inter) e do Seminário Regional do Nordeste, destituídos por ordem do Cardeal Joseph Ratzinger. Mas, enquanto esteve em funcionamento, promoveu sistemática formação para a Vida Religiosa Inserida, permitindo que houvesse um “aprendizado sistemático de uma análise de conjuntura e um alargamento da consciência” (Pousa, 2015, s./p.).
Esse alargamento da consciência foi dado num duplo movimento. Primeiro, de fora para dentro, permitindo que as religiosas fossem capazes de ler o mundo em sua dimensão imanente, ou seja, fizessem uma leitura contextual do mundo a que decidiam desbravar. Segundo, de dentro para fora, permitindo-se ser no mundo, assumindo suas identidades de gênero. No caso da PCI que estudamos, em Riacho das Almas, essa leitura foi permitida por dentro da vida laboral das trabalhadoras, sem alarde.
Conversamos com Dom Augusto [bispo diocesano da Diocese de Caruaru], que não nos apresentassem na Igreja, só depois que tivéssemos amizade e conhecimento. Foi aí que nós procuramos trabalhar no roçado com Alaíde, irmã de Liêta. [...] Não sei como era o nome do dono da terra, mas tinha um roçado lá e nós falamos com ela para arrumar um pedaço para nós (Áurea Guerra, Entrevista, 2019).
Entre as mulheres, no contexto privado do trabalho na roça, sol a sol, foram se constituindo como as outras mulheres locais, compartilhando os problemas do cotidiano e se confundindo na realidade consubstanciada de ser mulher. O trabalho com Alaíde e Liêta permitiu conhecer outras mulheres. “Ela tinha um banco de roupinhas de criança na feira. [...] Era bom ficar no banco na feira porque o pessoal chegava e conversávamos, convidávamos para ir a nossa casa” (Áurea Guerra, Entrevista, 2019). Destas conversas, foram-se criando o hábito de visitas mútuas, como relatou Virgínia (Entrevista, 2019): “segunda-feira [dia de feira livre na cidade] era para acolher alguém que já conhecíamos, porque quando alguém da área rural ia para a nossa casa, que conversava e nos chamavam: ‘vá lá na Malhada uma vez’... ‘vá lá, em tal sítio’. Aí a gente marcava e ia”.
A ideia era criar, estimular o surgimento de lideranças e, consequentemente formar uma rede de Animadores de Comunidades, pautados numa relação de confiança: “Na cidade nós fazíamos visitas, é claro que íamos conhecer também as mulheres, mas foi sobretudo na zona rural. Às vezes passávamos o dia, víamos como eram os trabalhos, chamava muito atenção a questão da água, que eram as mulheres que iam buscar na cabeça!” (Virgínia, Entrevista, 2019).
A observação do cotidiano das mulheres permitiu a percepção de como se estabelecia a divisão social do trabalho, bem como foi capaz de “introduzir a questão da saúde” e “vendo a necessidade de uma capacitação para que elas pudessem exercer o trabalho de saúde nas suas comunidades” (Áurea Guerra, Entrevista, 2019). A parceria com Celerino Carriconde e Diana Moraes nas formações, permitiu-se a abordagem de conteúdos como a sexualidade, o prazer e “o corpo da mulher. Da nossa parte, foi a importância da mulher, o cuidado, ter cuidado consigo mesma” (Áurea Guerra, Entrevista, 2019).
Mas, nesses encontros de formação, não eram focalizados na instrução das lideranças, sem aprendizados mútuos, coletivos. As lideranças eram estimuladas a falarem sobre si, suas dificuldades ou aprofundar determinados temas. Nesta troca, vão se permitindo a si perceberem integrantes de um mesmo sistema opressor, mas também como pessoas que têm corpo, corporeidade e sexualidade. Com isso, “tanto aprendemos com a convivência com elas como passamos alguma coisa de capacitação para cada uma” (Virgínia Guerra, Entrevista, 2019).
De tal maneira, é possível afirmar que estas freiras enfrentaram o seu “eu ocultado” e se ressignificaram como mulheres ao passo que enfrentaram às questões trazidas pelas riachenses. Corroborando com isso, Áurea (Entrevista, 2019) pontua que era preciso “se fazer presente na vida delas”, o que só acontece na imersão do cotidiano destas mulheres, assim “percebemos diferenças no jeito que víamos a nós mesmas, na forma como passamos a olhar e trabalhar com a natureza”, isto é, “a mulher se liberta quando se reconhece como feminino”.
De fato, a autopercepção permitiu que as freiras se assumissem como mulheres, depositárias de corpo, de sexualidade e de capacidade de estabelecer relações de fraternidade com mulheres não religiosas, mas sobretudo com homens, sem que isso colocasse em risco o seu lugar social na Igreja.
Ser mulher é sentido agora como valor e dom a ser cultivado e colocado a serviço, e não algo a ser reprimido, escondido, negado. A descoberta da outra e do outro, e a valorização do relacionamento interpessoal com base, sobretudo, na amizade, criaram novos espaços e possibilidades de amadurecimento para a mulher religiosa (Brunelli, 1988, p. 29).
Tal perspectiva favoreceu que nas diversas CEBs de Riacho das Almas fossem se constituindo relações de cooperação, tanto do ponto de vista da parceria das relações de confidencialidade, quanto da formação para as outras relações entre os gêneros.
Virgínia (Entrevista, 2019) recorda que a introdução do tema sobre a mulher veio a partir da parceria com o médico Celerino Carrinconde5, donde os ciclos de formação estavam focadas nos saberes populares e culturas locais, além da saúde sexual e reprodutiva: “convidamos Celerino. Levamos para passar o fim de semana para dar capacitação a elas, e elas foram despertando cada vez mais, se desinibindo e colocando suas experiências. Porque, mesmo pobre e morando mais nas brenhas, elas têm sabedoria”.
Através dessas formações continuadas, as cursistas vão se apropriando de um novo sentido sobre si e sobre as outras. Também homens participavam, “sempre com presença, mínima” (Virgínia, Entrevista, 2019), muitas vezes em decorrência do fato que a presença feminina nos espaços de poder e as questões discutidas nos cursos os incomodavam, “consideravam como uma ameaça” (Áurea, Entrevista, 2019).
Por consequência, o estimulo ao estudo proporcionou que mulheres fossem assumindo posições de liderança nas comunidades de base e na estrutura religiosa da paróquia, o que proporcionou que pudessem assumir também um lugar de destaque no sistema de poder local, descentralizado da figura masculina.
Nestes termos, a convivência com as PCIs, em Riacho das Almas, favoreceu a participação menos assimétricas entre os gêneros, permitindo florescer outras formas de liderança e de representatividade na comunidade. Entretanto, é preciso destacar que “lidar com estas diferenças de forma democrática, reconhecendo direitos iguais e afirmando a unidade na diversidade é o grande desafio que não só as mulheres, mas também os homens precisam enfrentar” (Ribeiro, 1997, p. 863).
A participação das mulheres vai imprimindo um estilo próprio nas celebrações litúrgicas, nas análises de conjuntura e na interpretação bíblica. Mas, sobretudo, na forma de assumir a sua relação consigo e com a comunidade, como esclarece Áurea (Entrevista, 2019):
Eu não posso dizer de modo geral, mas o grupo que nós contatamos, nós percebemos uma certa mudança de atitude e de confiança em si. [...] Vejo que, para eles [maridos] também foi uma coisa boa, porque a proporção que a mulher era mais capacitada, se desenvolvia mais, consequentemente ele ia ter mais confiança no próprio relacionamento.
Tal constatação é corroborada por Virgínia (Entrevista, 2019) ao explicar a mudança nas relações domésticas, entre esposos: “eu acho que mudou um pouco. Por exemplo a Z, ela era assim, introvertida. Daí, depois das capacitações a Z foi outra pessoa”. Portanto, a vivência religiosa feminina ligada ao cotidiano dessas mulheres procurou traduzir e aplicar às suas realidades concretas um modo de empoderamento que permitiu modificar as microestruturas sociais, depois as próprias estruturas sociais locais.
Sob tais condições, a PCI, em Riacho das Almas, buscou imprimir uma nova concepção nas relações instituídas na sociedade local, utilizando-se de recursos teológicos e pastorais que subsidiassem as CEBs para acabar, ou pelo menos minimizar os efeitos desse modelo socioeclesial patriarcal. Ora, Ribeiro (2003, p. 227) aponta que “as Comunidades Eclesiais de Base constituem, no interior da Igreja, um espaço privilegiado para questionar as relações de dominação”.
Assim, as PCIs ao perseguir a libertação de todas as formas de opressão, constituíram um discurso e uma disputa pela igualdade dos gêneros, podendo ser considerada um dos seus princípios da busca por esta libertação. Neste âmbito, embora imiscuída com a ideia teológica presente na América Latina, a libertação conquistada pelas mulheres no âmbito das CEBs, é também, uma libertação de si mesmas em amalgama cultural, que as impõem, freiras ou mães, numa condição de subalternidade.
Num contexto mais amplo, essa experiência influenciou outras experimentações, nas diversas CEBs do agreste pernambucano. Sobre isso, Guerra et al. (1992, p. 14) explicam que estas Comunidades lutaram desde sua nascença “pelos direitos da mulher, porque ela ainda é muito oprimida e submissa. [...] E ela tem os mesmos direitos que o homem à participação no mundo, à formação, à tomada de decisão, ao lazer, etc. Não é pra ficar presa à casa”. Neste horizonte, a práxis pedagógica ganha seu significado, e a participação da mulher nos espaços decisórios traz em si o sentido político da ideia própria do gênero.
Assim, a vigilância contra retrocessos ou reprodução das formas de dominação masculina mantém-se como pauta dos ciclos de formação e como meta de ação política no seio da sociedade. Destacamos, ainda, que a intencionalidade de novas relações constituídas entre homens e mulheres, a partir da experiência originária, em Riacho das Almas, deram-se de maneira processual, estimuladas por meio da formação continuada, que foram sistematizadas por meio da construção de novas tecnologias sociais6 na Fundação Santuário das Comunidades.
Para enfrentar ou, pelo menos, minimizar os efeitos desse modelo patriarcal, a compreensão do(s) feminino(s) como categoria na luta pela libertação é despontado com destaque como um projeto político nas CEBs do agreste, que se comprometem com a mudança paradigmática das relações, sem que haja maior ou menor poder. Nesse modelo, os estudos de gênero não pretenderam só instaurar investigação ou atuar sobre as mulheres, mas introduzir todos os comunitários na construção de nova compreensão sobre todos (Andrade; Gonçalves; Nascimento, 2021, p. 15).
A vivência nos processos formativos e a experimentação da partilha comunitária com as Irmãs Cordimarianas, vão constituindo-se, gradativamente, numa nova forma de perceber e vivenciar as expressões do feminino. Estas descobertas não são apropriações apenas das comunidades pastoreadas pelas freiras, mas é uma descoberta que se dá simultaneamente e cumulativamente pelas religiosas, pelas mulheres e pelos homens.
Não é possível afirmar que se tratou de um movimento feminista, sequer de um tensionamento teoricamente construído. Foi a partir das lutas pela sobrevivência, das pautas das mulheres que se viam oprimidas, das questões que lhes afetam no cotidiano como as relações de poder na vida comunitária, por exemplo, que lhes permitiram chegar a uma consciência e incorporar uma nova percepção de si.
Nestes termos, nos últimos 50 anos, as mobilizações por uma Igreja mais democrática vêm pautando os direitos da mulher dentro dos átrios católicos, denunciando o patriarcado socioeclesial e reivindicando mais espaço para a atuação feminina na Igreja (Brunelli, 1988). E assim, a questão da mulher como um projeto de ser-no-mundo experienciado por esta Pequena Comunidade Inserida no Meio Popular desdobra-se num comprometimento com a mudança paradigmática das relações e orienta a conseguir, a partir da afirmação das identidades femininas, a construção de uma nova compreensão sobre todos e todas, e uma releitura do mundo e de igreja.
Considerações finais
O artigo proporcionou que entendêssemos como as freiras de uma Pequena Comunidade Inserida no Meio Popular, em Riacho das Almas, Pernambuco, construíram os significados de mulher e de feminino. Neste processo, participando da vida das mulheres, testemunhando seus conflitos, frustrações e esperanças, as Irmãs Cordimarianas foram provocadas à autopercepção de si, como mulheres, e estimuladas a lutar pela afirmação dos direitos da mulher, o que ocorre por meio de uma leitura sobre as situações sobre as quais careciam ser libertadas.
Portanto, a implementação dessa práxis não pode ser compreendida como uma forma de “feminismo cristão”, mas é imbuída do discurso da Libertação das opressões do patriarcado presente de forma estrutural na sociedade e na Igreja. E, por meio de atividades permanente de formação, foram capazes de trazer contribuições significativas para que homens e mulheres pudessem construir relações simétricas no exercício do poder, tanto na vida eclesial quanto na constituição da vida em sociedade.
A contribuição destas freiras para a superação da percepção da mulher como “herdeira de Eva” permanece atual e relevante, especialmente, porque a afirmação desta como sujeita participante do “Reino de Deus”, em paridade de dignidade e valor frente ao homem, ainda tem provocado acalorados debates no âmbito do catolicismo, especialmente despertadas pelo neoconservadorismo e neopatriarcado militantes nos tempos atuais.
Tais religiosas postularam o protagonismo dos discursos em favor da justiça e dos direitos humanos, em Riacho das Almas, entre 1982 e 19977, fazendo-se mulher. E, ao apresentar-se como todas as mulheres, reconheceu na oprimida, o lugar da ação profética, que acontece no imanente, conclamando a libertação.
Fontes
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Notas