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O discurso da identidade e os ritos angolanos em “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu
The identity discourse and Angolan rites in “Maka na Sanzala”, by Uanhenga Xitu
El discurso sobre identidad y rito angolano en “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 45-57, 2022
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 02 Julio 2021

Aprobación: 03 Diciembre 2021

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2022.14.31.45-57

Resumo: Este estudo propõe-se a interpretar as relações entre a literatura e o seu condicionamento social em “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu. À luz de uma análise de orientação sócio-antropológica, foi possível compreender que “Maka na Sanzala”, ao mesmo tempo que proporciona uma leitura de cunho intimista, integra em sua estrutura as formas com que os valores culturais e tradicionais interferem no raciocínio das personagens e na ação narrativa. Para mostrar as imbricações entre texto e contexto, recorremos ao método analítico-descritivo assegu-rado pela análise sociológica de António Cândido. A desconstrução dos elementos tradicionais e identitários de natureza ritualística constituiu a principal preocupação deste trabalho. Essa forneceu as bases para aferir que o universo mítico dos contos de Uanhenga Xitu procura restituir a identidade cultural angolana.

Palavras-chave: Angolanidade, Ritos angolanos, Literatura e sociedade, Imaginário cultural.

Abstract: This study aims to interpret the relationship between literature and its social conditioning in “Maka na Sanzala”, by Uanhenga Xitu. In the light of a socio-anthropological orientation analysis, it was possible to understand that “Maka na Sanzala”, while providing an intimate reading, integrates in its structure the ways in which cultural and traditional values interfere in the characters’ reasoning and in the narrative action. In order to show the imbrications between text and context, the research uses the analytical-descriptive method, ensured by Antonio Candido’s sociological analysis. The deconstruction of traditional and identity elements of a ritualistic nature was the main concern of this work. This provided sufficient basis for inferring that the mythical universe of Uanhenga Xitu's tales seeks to restore Angola's cultural identity.

Keywords: Angolanity, Angolan rites, Literature and society, Cultural imaginary.

Resumen: Este estudio tiene como objetivo interpretar la relación entre la literatura y su condicionamiento social en “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu. Bajo la luz de un análisis de orientación socio-antropológica, se pudo comprender que “Maka na Sanzala”, al tiempo que brinda una lectura íntima, integra en su estructura las formas en que los valores culturales y tradicionales interfieren en el razonamiento y en la acción narrativa. Para mostrar las imbricaciones entre texto y contexto, utilizamos el método analítico-descriptivo proporcionado por el análisis sociológico de António Candido. La deconstrucción de elementos tradicionales e identitarios de carácter ritualista fue la principal preocupación de este trabajo. Esto proporcionó una base suficiente para inferir que el universo mítico de los cuentos de Uanhenga Xitu busca restaurar la identidad cultural de Angola.

Palabras clave: Angolanidad, Ritos angoleños, Literatura y sociedad, Imaginario cultural.

Introdução

A literatura angolana, desde os primórdios, foi marcada no seu percurso histórico por características peculiares, não só no quadro estético e conteudístico, mas também no panorama evolutivo de afirmação. Uma das várias demonstrações para esta declaração é a moldura identitária que cobre grande parte dos textos produzidos por escritores angolanos imbuídos de espírito nacionalista com referência aos costumes; hábitos e ritos da vida rústica das sanzalas, num claro ato de pertença e de vínculo umbilical à terra. É isto que acontece na obra “Maka na Sanzala” de Uanhenga Xitu, objeto de análise neste trabalho.

Como se pode depreender, a principal motivação para estudar Uanhenga Xitu decorre do facto de este escritor ser um homem que apresenta na sua obra um discurso literário marcadamente telúrico.

A partir da leitura feita em torno dos configuradores textuais subjacentes à obra em estudo, percebe-se que a necessidade de ajustamento e, numa fase posterior, de afirmação de um certo estilo de escrita, que se pretendia identificada com a realidade cultural de Angola justifica a veia estética apresentada por Uanhenga Xitu em “Maka na Sanzala”.

Assim, com este estudo, pretende-se, por um lado, analisar a manifestação da angolanidade presente em “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu, e, por outro, augura-se discutir a relação entre a rusticidade e a identidade cultural angolanas.

A pretensão por este estudo é justificada pelo pensamento do crítico literário Ngal (apud Leite, 2005, p. 151), segundo o qual “o autor africano se deve inspirar nos mecanismos de criação próprios da África tradicional e que o crítico da literatura africana deve orientar o seu estudo no sentido de descobrir no texto moderno as marcas dessa tradição”.

À luz do ensinamento de Ngal, nota-se que Uanhenga Xitu serve-se da riqueza cultural e dos códigos estéticos para produzir textos que espelham o mosaico cultural de Angola, fazendo ressoar o âmago das tradições e dos aspectos mais pormenorizados dos usos e costumes da sanzala.

Pode-se dizer, assim, que “Maka na Sanzala”, numa afirmação das qualidades do homem e do universo angolano, expõe os aspectos como a crença nos costumes, tradição e linguagem populares, isto é, esta narrativa faz uma incursão às raízes profundas da tradição angolana, apresentando os elementos configuradores da angolanidade, tal como nos informa Inocência Mata (1992) nos seguintes termos: “O sincretismo da voz (africanidade) e da letra (aquisição da cultura europeia) constitui um dos aspetos da originalidade da literatura angolana e configura, efetivamente, uma das dimensões da angolanidade” (apud Mallinda, 2001, p. 74).

Ora, com base no acima aludido e tendo em conta algumas evidências que complementam a abordagem aqui avançada, a obra em estudo apresenta, entre outros, os seguintes elementos peculiares:

A Mulemba, de cócoras, com um pano amarrado em volta da barriga, recebeu uma garrafa vazia para soprar. Outra mulher, com um largo caco de uma panela de barro, onde continha brasas de fogo misturadas com sementes e outros produtos medicamentosos e mágicos, chegava-o em entre as pernas, à frente das quais a criança, ainda ligada à mãe pelo cordão umbilical, esperneava nas “águas amnióticas” (Xitu, 1979, p. 29).

Portanto, a descrição de uma mulher com um largo caco de uma panela de barro, com brasas de fogo misturadas com produtos medicamentosos e mágicos patentes nas transcrições acima, levam-nos à exposição de práticas ritualísticas e culturais angolanas.

Decorrente do que se acaba de apresentar, interessa-nos formular uma questão para que este trabalho tenha, desde logo, um ponto de partida. Para tanto, elaboramos a interrogação seguinte: Até que ponto a presença de práticas ritualísticas e culturais angolanas na narrativa “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu, poderá constituir legitimação da angolanidade?

Para responder a esta questão, bem como para a prossecução dos objetivos acima elencados, foi necessário um processo de análise e aferição de conceitos, em conformidade com postulados estabelecidos pelos estudos literários e sociológicos, sem, no entanto, descurarmos outros que mantêm comunicabilidade intrínseca com a identidade angolana, como são os casos de António Cândido (2006), Ana Mafalda Leite (2005), Tania Macêdo (2012) e Suzana Machado Nunes (2009).

Assim, nesta empreitada científica, optamos por uma pesquisa de abordagem indutiva, pois, partimos de constatações mais particulares ao nível da narrativa “Maka na Sanzala”, como, por exemplo, a ocorrência de diferentes preceitos temáticos que concorram para a construção de uma identidade nacional. Depois dessas constatações, chegamos às generalizações segundo as quais, no conto xituísta, há ocorrência do discurso de identidade. Com efeito, foi nosso interesse estudar os elementos simbólicos de que Uanhenga Xitu se serve para a legitimação da identidade angolana, tanto mais que a questão sócio-antropológica foi, desde logo, colocada como um importante enfoque de estudo na análise textual.

Com vista a compreender as diferentes temáticas predominantes na narrativa, recorremos, em termos de técnica de análise textual, a uma análise do conteúdo.

Para a concretização dos nossos objetivos, e para permitir uma análise circunstanciada da obra, apresentamos na estrutura do texto, para além da introdução e das referências, quatro tópicos fundamentais: (I) o lugar de Uanhenga Xitu na literatura angolana; (II) literatura e sociedade; (III) ritos e expressões de angolanidade; e (IV) conclusões.

O lugar de Uanhenga Xitu na literatura angolana

Traça-se o percurso de um dos mais significativos escritores angolanos da actualidade marcado pelo compromisso entre a cultura tradicional dos Mbundu e a modernidade. A transição do mundo tradicional da sanzala para o palco da liderança política em Angola representa uma transição transcultural que geralmente leva gerações a ser consumada, e que, não sendo inédita em Angola, traduz um princípio de mediação que pode ser entendido como um dos elementos da angolanidade, i.e., como um dos princípios orientadores da construção da nação angolana (Venâncio, 1992, p. 217).

A afirmação avançada por José Carlos Venâncio confere ênfase à premissa desta empreitada científica e dá azo ao estudo, porquanto nela se reflete e se confirma o papel de Uanhenga Xitu na incessante luta pelo reconhecimento dos valores tradicionais que vigoram na sanzala. Neste sentido, e para melhor contextualizarmos o escritor que estamos a estudar, aquilatamos, nas linhas subsequentes, o perfil bio-bibliográfico de Uanhenga Xitu e, por esta via, as suas influências ideológico-culturais.

Uanhenga Xitu, pseudónimo de Agostinho André Mendes de Carvalho, nasceu a 29 de agosto de 1924 na sanzala de Calomboloca, na localidade do concelho de Catete e faleceu a 13 de fevereiro de 2014, em Luanda, aos 89 anos de idade.

Uanhenga Xitu tornou-se célebre por “Mestre Tamoda”, publicado pela primeira vez na Coleção Capricórnio, iniciada em 1973, no Lobito, pelo editor Orlando de Albuquerque. Nesse conto, o escritor situa-se entre duas culturas bem conhecidas por ele: a tradicional (do colonizado) e a moderna (do colonizador), e os traços de ambas poderão ser notados no diálogo entre a sanzala e a cidade.

Muito ligado a este estilo de escrita, na obra “Maka na Sanzala”, Uanhenga Xitu apresenta nitidamente esta sedução particular pelas origens, pelas peripécias da vida do musseque.

Relativamente às influências ideológico-culturais, Uanhenga Xitu enquadra-se na geração de 1948, marcada pelo movimento intelectual “Vamos Descobrir Angola!”, que pretendia uma “reacção à tentativa assimilatória que vinha despersonalizando o negro sem o integrar de fato em um novo contexto de valores” (Mourão, 1978, p. 33).

Na esteira do que ficou dito no parágrafo precedente, a professora Rita Chaves (2010, p. 4), no seu artigo intitulado “Uanhenga Xitu: Mundos em confronto de uma Terra chamada Angola”, avança que,

Uanhenga Xitu estabelece uma ponte com alguns de seus predecessores como é o caso de António de Assis Jr., autor de um romance muito significativo na história do género em Angola. A abordagem dos problemas, dos dilemas e das contradições de certos segmentos permite que se tenha uma ideia de grupos sociais importantes na composição da identidade cultural que se processava em Angola ocupada pelos portugueses. A estrutura híbrida desse terreno é uma das linhas de força da narrativa de Assis Jr., questão retomada por Uanhenga Xitu que também centra seu olhar nos mundos multifacetados que se organizam no confronto de diferentes cosmologias.

Assim, tendo em conta as configurações textuais que identificamos, na abordagem do corpus, consideramos ser razoável admitir que o Neo-Realismo português, cruzando-se com a Negritude, como movimento cultural e literário, parece-nos ter sido a escola literária que melhor teria influenciado o escritor em análise, quanto mais não fosse pelo fato de esses movimentos literário e cultural lhe ter sido, em parte, contemporâneos.

Literatura e sociedade

Literatura e sociedade são duas categorias que se interpenetram na narrativa “Maka na Sanzala” para lhe dar a necessária estrutura e significação. Assim sendo, a obra em análise demonstra que a literatura não é independente ao clima social e cultural de uma determinada sociedade. Neste sentido ela é, em grande medida, o reflexo de costumes, de ambientes e surge como parte do processo de consolidação das identidades nacionais. A respeito do carácter social da arte, António Cândido (2006, p. 30) diz o seguinte:

depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.

No contexto das literaturas africanas de língua portuguesa, o espaço social joga um papel fundamental na construção da identidade cultural. Desta forma, a obra “Maka na Sanzala” articula-se perfeitamente com o propósito da criação de qualquer obra literária, tanto é que se apresenta como uma representação do clima social e cultural de Angola. Neste sentido, ela é o reflexo dos costumes, de ambientes e de afirmação do imaginário coletivo da sociedade angolana. A respeito disso, Andrés Amorós (1987, p. 71) assevera que “Las relaciones entre literatura y sociedad son muy amplias y abarcan perspectivas casi innumerables: una gran parte de las cuestiones literárias pueden ser planteadas también, por lo menos en última instancia o como derivación, o como cuestiones sociales”.

Colocando o discurso nestes termos, entende-se que a relação literatura e sociedade é um dos elementos que reforça a função humanizadora da obra literária, sobretudo pelas possibilidades de recriar e representar o imaginário cultural do povo, o que se comprova efetivamente com a narrativa “Maka na Sanzala”, de Uanhenga Xitu. Por isso, e “como se vê, não convém separar a repercussão da obra da sua feitura, pois, sociologicamente ao menos, ela só está acabada no momento em que repercute e atua, porque, sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana” (Cândido, 2006, p. 31).

Pode-se, contudo, dizer que o texto literário serve de instrumento para retratar a realidade e concebe-se como um veículo de conhecimentos do mundo, cuja práxis social permite o conhecimento de realidades passadas, presentes e futuras. Neste sentido, através de um discurso subjetivo, é possível chegar-se à realidade social e cultural tomando o leito da literatura.

Assim, olhando para os contos produzidos por Uanhenga Xitu, entende-se que a preferência por este género radica da necessidade de o autor trazer ao de cima um universo cultural autóctone de Angola.

Desta feita, o conto apresenta-se como uma unidade narrativa que nos leva imediatamente à acepção de que no universo narrativo angolano, o conto surge e se desenvolve tendo em vista a temática da africanidade e a vontade de emancipação do angolano, ao que Uanhenga Xitu procurou evidentemente colocar-se como intérprete, tal como diz Suzana Machado Nunes (2009, p. 80), “na realidade africana, o papel do contador não é atribuído a qualquer pessoa. O contador é detentor da arte de contar, uma prática ritualística, um acto de iniciação ao universo da africanidade”.

Como se pode constatar, ainda que de forma sintética, os temas propostos nos contos vão demarcando o espaço angolano, através da literatura, ganhando um novo impulso e comprometendo-se com a causa e com o ideário nacionalista.

A escrita de Uanhenga Xitu, e de muitos outros que enveredaram pela mesma linha em termos de produção de conto, cimentou uma literatura claramente divorciada dos cânones literários portugueses e dos eixos temáticos metropolitanos, tudo por conta dos procedimentos literários que singularizam a relação do escritor e a expressividade resultante do conteúdo do conto, como refere Julio Cortázar (1999, p. 150-151),

um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva, ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência.

Com efeito, é dessa batalha fraternal, referenciada nas transcrições acima, que Uanhenga Xitu procura construir os seus contos fazendo resvalar o mundo de que ele próprio é parte. Como contista, serve-se deste género para sustentar a necessária intimidade com o universo cultural angolano, colocando-se como um espelho reprodutor de elementos culturais angolanos.

A partir de “Maka na Sanzala”, pode-se observar o que é apresentado nas linhas anteriores, onde o autor faz compreender alguns véus que localizam a realidade angolana, pelo que Uanhenga Xitu não hesita em captar as diversas situações do universo sociocultural que integra o mundo da sanzala.

Enfim, em termos de elementos literários que se entrecruzam na construção do conto angolano, tendo como base de análise a obra em estudo, são as repetições que abundam o discurso das personagens, a oralidade e as práticas ritualísticas com os quais Uanhenga Xitu tece a sua prática contista mergulhada no imaginário cultural angolano.

Como se disse, uma das principais características da obra “Maka na Sanzala” é o relato de acontecimentos da comunidade rural que através dos quais levam o leitor a visitar situações quotidianas de Angola. Na verdade, “aqui está talvez uma das mais fortes marcas da ficção do autor: o seu afastamento do núcleo urbano, buscando flagrar os mitos e ritos do “mato”, da sanzala, trazendo ao leitor culto e urbano a mundividência e as vozes do hinterland” (Macêdo, 2012, p. 238, itálico no original).

Assim, o conto em Uanhenga Xitu é apresentado como resultado de uma fusão de diversos elementos socioculturais, pelo que este cruzamento de diversas situações ao longo da obra “Maka na Sanzala” produz uma imagem sui generis de Angola. Uanhenga Xitu, por meio da sua ficção narrativa, deixa ecoar as vozes do passado, isto é, convida num sentido apelativo à memória e ao resgate da preservação da ancestralidade e da tradição angolanas.

Desta feita, estes elementos que configuram a cartografia rural angolana são apresentados em “Maka na Sanzala” num gesto claro de resgatar e manter viva a memória angolana, com o propósito de agir na sociedade angolana como um instrumento reflexivo e principalmente como uma forma de legitimação dos aspectos ancestrais do espaço angolano.

A relação que se estabelece entre o conto e a terra reflecte o verdadeiro panorama social e cultural dos angolanos, revelando assim um lado concreto, que incide sobre a realidade social do homem comum da “sanzala”, como o próprio título da obra encerra. Assim, Uanhenga Xitu coloca a sanzala como um espaço de memórias e que desempenha uma função de relevo na construção do significado social nas comunidades rurais angolanas.

Ritos e expressões de angolanidade

“Maka na Sanzala” é uma obra que sugere, de imediato, uma leitura aparentemente descontraída por apresentar uma profusa sequência de referências telúricas, em que o autor dá a entender que é movido pela vontade de captar a memória ancestral da sua gente, recuperando-a como representação dos aspectos que enformam a cultura angolana.

Uanhenga Xitu, como um escritor angolano, é tocado pelos problemas do povo, pelo que a sua escrita se inscreve na dinâmica do quotidiano do musseque, daí a sua valorização na expressão estética. No entanto, de forma mais consolidada e mais comprometida com a causa angolana, com base em pressupostos culturais intrinsecamente assumidos e identificados com Angola, Uanhenga Xitu apresenta na sua narrativa uma autêntica afirmação e valorização da identidade angolana.

Tal como se refere na Introdução, a obra “Maka na Sanzala” expõe aspectos peculiares do universo cultural angolano, como são os casos da crença nos costumes, tradição e linguagem populares, fazendo, assim, uma verdadeira incursão às raízes profundas da tradição angolana, como se pode ver nas seguintes transcrições:

No quarto, a Sanza, velha quimbanda, convidada para adivinhar a razão do impecilho, continuava no seu mister. Fazia das suas mãos kixakatu. Os dedos da mão direita passava-os na palma da mão esquerda, como quem estivesse a afiar uma navalha. De vez em quando tirava de uma pasta de couro uns pós brancos que atirava para trás e para a frente de si, ao mesmo tempo que monologava umas preces (Xitu, 1979, p. 21).

Ora, tendo em conta o descrito acima, nesta parte do estudo a atenção estará voltada para a análise dos configuradores que demarcam a angolanidade em “Maka na Sanzala”. Todavia, antes de se focalizar este elemento, torna-se interessante apresentar em termos temático e ideológicoa obra que constitui ocorpus da análise.

No plano diegético, a obra “Maka na Sanzala”, composta por três capítulos (“Parto”, “A fama da Mafuta” e “Mambumba”) que se complementam semanticamente, narra as diversas situações por que passam as comunidades rurais angolanas, neste particular as comunidades residentes em sanzalas, desde os seus hábitos e costumes, as suas tradições, as suas tensões, enfim, o seu quotidiano aos seus modos de expressão característicos.

Há, pois, no capítulo introdutório da obra, uma descrição da génese do elemento que norteará a construção da narrativa. Referimo-nos, aqui, ao nascimento de Mafuta, a personagem protagonista da narrativa. Acrescente-se que este parto é nos apresentado de forma simbólica com base numa complicação caracterizada por dores e demora: “Na madrugada de um dia e de um ano recuado, a mãe Mulemba, mulher já de três filhos, ainda se encontrava debaixo da dor de um parto que ia a caminho de mais de dois dias” (Xitu, 1979, p. 15).

Este imbróglio é ultrapassado quando se descobre o motivo da complicação do parto com recurso a uma interpretação feita com base em práticas ritualísticas características das comunidades rurais:

Kienda, vestido de pano, apertava-o sobre a cintura com um cordel de Kibalala (fibra de imbondeiro) que fazia a vez de cinto, esquecendo-se de que nestas ocasiões de parto os maridos, tendo conhecimento, não devem usar calças e, se as usam, não devem apertar o cinto nem o botão que comprime a cintura […]. Depois deste incitamento feito numa confusão de gritos cadenciados, ouviu-se um vagido de criança:

“In ngã in ngã in ngã in ngã…”. (Xitu, 1979, p. 26-27).

A personagem Mafuta representa o leimotiev da confusão instalada na comunidade, dando título à obra “Maka na Sanzala” (Mafuta). É ela o ponto onde tudo começa e tudo desemboca, pois, pelas qualidades que possui, simboliza uma mulher forte, loira e bastante atraente, capaz de aturdir a mente e a atenção tanto dos homens como das outras mulheres: “As lendas sobre a Mafuta, quanto à sua beleza e às suas macas, correram sanzalas e sanzalas, Concelhos e Concelhos - quer em danças e cantos quer através da boca das pessoas que iam cumprir o cativeiro por causa dela” (Xitu, 1979, p. 34).

Assim, no que respeita ao aspecto temático, há uma insistência na reivindicação de valores culturais, de que a tradição oral e suas formas fazem eco, como por exemplo as práticas populares, a dimensão mítico-mágica do universo, a singularidade dos costumes e códigos sociais, como provam os seguintes exemplos:

- Raios que me partam, há aqui mistério! Ó Kasunha, traz depressa um archote, parece que o mocho está aqui na sala. Depressa, sinto o cabelo a arrepiar-se-me - pediu o velho Toko (Xitu, 1979, p. 24).

De repente a velha quimbanda, num movimento diabólico, urrou e buibuilou, mexendo-se convulsivamente, ao mesmo tempo que sacudia os sinos que lhe pendiam dos paramentos. E esteve neste delírio por longos minutos (Xitu, 1979, p. 35).

Esta busca de expressão de identidade cultural que a ficção de Uanhenga Xitu vem demonstrando, ao resgatar traços culturais preservados pela oralidade, e através de uma voz de engajamento social, surge como parte do processo de consolidação da identidade nacional.

Pelo fato de estar a descrever literariamente o espaço rural angolano, a obra “Maka na Sanzala” expõe as práticas tradicionais africanas típicas deste espaço: “Outras mulheres entravam e saíam do quarto, para arranjar e trazer ramos de plantas milagrosas, necessárias nestas situações de partos difíceis. Uma velha trouxe pó de escamas de Haka e ordenou que dessem de beber à parturiente o mais depressa possível” (Xitu, 1979, p. 19-20).

Na obra em análise, é possível encontrar ainda observações relativas aos costumes sociais, as quais poderão ser detectadas ao longo de toda a narrativa. Exemplo:

A Mulemba, de cócoras, com um pano amarrado em volta da barriga, recebeu uma garrafa vazia para soprar.

- Sopra na garrafa, com força, filha!

A parturiente soprava com tanta força na garrafa que se viam os fios de suor a deslizarem-lhe pela face (Xitu, 1979, p. 29).

Em “Maka na Sanzala”, Uanhenga Xitu apresenta a diegese como um mundo repleto de mitos, fantasmas e crenças. No entanto, parece que a finalidade desta estratégia é fazer conhecer o manancial cultural angolano, não como uma superstição de sentido animista, mas sim demarcação do universo angolano no contexto da produção literária, dando, obviamente, o cunho nacionalista característico.

Na verdade, a tradição não pode ser vista como algo imundo, ou detrito que pode ser submetido a uma complexa indústria de reciclagem. As tradições constituem uma verdadeira visão do mundo dos outros e de desenvolvimento do nosso mundo à medida da realidade profunda do quotidiano.

Para tanto, sendo a magia uma prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais, valendo-se da intervenção de seres fantásticos, Uanhenga Xitu inscreve, na sua narrativa, ações simbólicas e ritualistas próprios da prática da magia angolana. A figura de quimbanda ou médium espírita funciona como mediadora entre os vivos e os espíritos, permitindo que estes possam intervir na vida presente dos homens, que para tal entra em transe e, por inspiração ancestral, consegue interagir com os homens. É o que acontece quando Kasexi (velha quimbanda) chega à casa da Mulemba (parturiente) para inteirar-se do trabalho de parto, como atesta a seguinte passagem textual:

De repente a velha quimbanda, num movimento diabólico, urrou e buibuilou, mexendo-se convulsivamente, ao mesmo tempo que sacudia os sinos que pendiam dos paramentos. E esteve neste delírio por longos minutos. […] Kasexitinha o dom de xinguilar, de conquistar doentes e de atrair adeptos. Nas masakela em que ela fizesse parte afluía muita assistência, com o simples propósito de apreciar os iselekete (partes, salamaleques) que executava no acto de invocação e de possessão (Xitu, 1979, p. 35-36, itálico no original).

Prestando atenção à expressão anterior, retirada do discurso onírico do curandeiro, poder-se-á afirmar que há razões profundas para que a personagem Kasexi, velha quimbanda, se envolva num movimento no qual manifesta um sentimento profundo de arrojo, uma envolvência mais empenhada na procura de soluções mágicas.

Visto o assunto à luz deste paradigma, é natural considerar “Maka na Sanzala” uma narrativa de pendor tradicional angolano, remetendo, assim, para uma leitura baseada na relação do quotidiano do homem com os seus antepassados, na linha de pensamento defendida por Alberto Mathe (2016, p. 65): “Nas tradições africanas existem práticas muito próximas do apocalipsismo, com destaque para a intervenção de mediadores entre o homem e os seres sobrenaturais, que podem predizer o futuro”.

As crenças e as convicções no poder de ancestrais que atuam como elo entre o mundo dos mortos e o dos vivos representam uma das características peculiares dos africanos. Por isso, tendo em conta o trajeto narrativo já avançado nas páginas anteriores, encontra-se não poucas vezes em quase toda a obra a manifestação da crença na magia africana e, por consequência, respostas a estas ações, tal como nos comprova o seguinte excerto textual: “Os pais da criança, principalmente a mãe, temendo que a miúda fosse enfeitiçada, temperaram-na com remédios contra mau-olhado. E, assim, crescia a rapariguinha com cordões cheios de nós, amarrados ao pescoço, na cintura, nos artelhos e nos pulsos” (Xitu, 1979, p. 53).

Como se pode depreender, na família tradicional africana a reverência pelo antepassado é uma forma de manter viva a tradição e a fidelidade para com as suas crenças, tanto é que a mãe da criança, no trecho exposto no parágrafo anterior, tratou de arranjar remédios tradicionais para proteger a filha de um possível infortúnio.

Ainda no que diz respeito à crença na magia, na obra desencadeia-se, por exemplo, uma série de actos supersticiosos e maldições que povoam o universo das personagens:

Toda a população da sanzala, nessa noite, dormiu inquieta, porque sabia-se que o Toko era um adversário perigoso.

Comentava-se que o Bungula tinha assinado a sentença de morte pelo atrevimento. A um quimbanda, cheio de prestígio como Toko, nunca se deve censurar, em público, as consequências da sua magia (Xitu, 1979, p. 86).

De facto, o enredo da história é constituído de forma inédita, mas com essência profunda do ponto de vista da significação da cultura tradicional africana. Como se pode notar, a um feiticeiro nunca se deve criticar em público os seus atos maliciosos, pois a sua reação é fatal e dizima quem proferiu tal discurso para fazer valer a sua hegemonia tradicional. Esta ação quase grotesca aparece nas lendas africanas em que o feiticeiro tem poderes sobrenaturais, controla o mundo e as pessoas, fazendo delas o que lhe convier.

Com base nos exemplos subsequentes, é possível constatar-se que o cenário e o momento da ocorrência de atos mágicos são preferencialmente noturnos. Assim, supõe-se que a noite seja o momento ideal para o estabelecimento de contato com o sobrenatural. Portanto, em “Maka na Sanzala”, através de mistérios cria-se um espaço nebuloso na vida das personagens, onde a noite insinua uma configuração cronotópica do enredo: “- Sim, de noite não gosto de falar muito, porque costuma dizer o mais-velho que de noite o feiticeiro prende a voz” (Xitu, 1979, p. 34); e “Toda a população da sanzala, nessa noite, dormiu inquieta, porque sabia-se que o Toko era um adversário perigoso” (Xitu, 1979, p. 86).

A evocação da noite nos trechos acima permite, por um lado, conhecer as características do dia em que as ações decorrem de forma a visualizar o comportamento das personagens e, por outro, permite construir o valor simbólico do tempo cronológico noturno, uma vez ser durante este período que as personagens realizam, tal como nos exemplos em questão, as suas ações mais profundas, servindo como esconderijo para a omissão de algum mal ou para alguém se esconder de alguma ação maligna contra si. Portanto, do ponto de vista do imaginário popular, a noite foi sempre vista como a parte oculta do dia onde o homem busca os sonhos e imagina o futuro. Por isso, a escuridão é a principal porta de acesso à maldade e à feitiçaria.

Na obra “Maka na Sanzala”, nota-se ainda que os homens vivem num ambiente mediatizado por símbolos. É identificando-os e interpretando-os que se podem entender os acontecimentos. Como pode ler-se a título exemplificativo: “À frente do caminho, e pousado sobre uma árvore, apareceu-lhes um kiua-kiua, pássaro pressagioso, ao qual se atribui a faculdade de anunciar novidades. E as raparigas quiseram pôr sortes, imitando as mais velhas (Xitu, 1979, p. 105-106). Aqui, o pássaro está imbuído de um forte poder mítico, uma vez que as aves alcançam aquilo que o homem nunca atingirá: os céus, o voo, a elevação, a leveza e a suspensão, constituindo assim uma metáfora de novos tempos e esperança.

Como se vê no extrato anterior, existe, na obra em estudo, uma construção simbólica da identidade, não sendo, por conseguinte, um processo eufémico, ou emprestando as palavras de Alberto Mathe (2016, p. 73): “tanto nos contos que refletem a religiosidade cristã, como a religiosidade tradicional africana, os temas sobrenaturais não são estranhos à realidade, pois é normal forças espirituais ou estranhas intervirem na vida real, salvaguardando as diferenças na orientação espiritual”.

Outra perspectiva da manifestação da tradição angolana presente na narrativa “Maka na Sanzala” é o respeito e a valorização de cerimónias conducentes à estabilização social. Este facto pode ser lido em algumas passagens textuais onde se faz uma descrição sobre o homem que tencionava violar a Mafuta numa mata, todavia, a intervenção duma velha foi bem-sucedida: “O eco de huáádiau estoirou estrondosamente na mata! A velha, de tronco nu, mostrando os seios que a velhice tornara em sola, buibuilava freneticamente: - bui-bui - ora dirigia-se em direcção onde se sumira o bandido ora vinha voltear a remida que se mantinha na mesma posição de kumbongola” (Xitu, 1979, p. 118, itálico no original).

Enfim, é na perspetiva que nos é dada pelo narrador sobre a atitude e ações simbólicas das personagens que são sugeridas as marcas culturais dos angolanos, que vão para além de limitativos quadrantes geográficos angolanos, situando-se então numa dimensão humana que consideramos ser mais abrangente, ou seja, africana.

Conclusões

Em “Maka na Sanzala”, Uanhenga Xitu procura repor um universo mítico fundado na visão do musseque, tanto mais que nos seus contos há temáticas voltadas à ancestralidade e ao espaço da memória angolana. Neste sentido, na obra, constrói-se a identidade cultural, um ideário que se manifesta não apenas no tratamento de temas e motivos retirados do quotidiano do espaço angolano, mas também por uma nova ordem discursiva, que se traduz em ruptura estética.

Para reificar a sua função identitária, “Maka na Sanzala” serve-se do constante uso de arquétipos da cultura e antropologia marcadamente angolanas tais como musseque, quimbanda, Mulemba, palavras que só encontram uma verdadeira expressividade semântica nas línguas autóctones.

Da análise feita, constata-se que “Maka na Sanzala” busca valores nos modelos da tradição angolana, expressando assim uma cosmovisão atrelada à realidade autóctone angolana. Desta feita, o realismo tradicional africano manifesta-se na narrativa xituísta pela incorporação dos cultos dos ancestrais, diversos rituais tradicionais, acontecimentos explicáveis apenas pela lógica da religião tradicional como a possessão, a eleição de pessoas para serem templos vivos dos deuses, os poderes por detrás da ordenação de um curandeiro e o seu conhecimento de plantas para tratamento e cura de doenças biológicas e espirituais, e o sistema de crenças em geral.

Enfim, a ligação da obra de Uanhenga Xitu com a identidade angolana foi logo colocada neste estudo como questão de partida, ou seja, o horizonte da análise colocava a narrativa xituísta numa visão de legitimação da angolanidade, quanto mais não fosse a presença de configuradores identitários como as tradições e a presença de contornos ritualísticos, facto pelo qual estes elementos constituíram os eixos temáticos desta empreitada científica.

Referências

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