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Movimento Lumpa: aprendizagens étnicas para uma identidade cristã em Zâmbia
Jefferson Olivatto da Silva
Jefferson Olivatto da Silva
Movimento Lumpa: aprendizagens étnicas para uma identidade cristã em Zâmbia
Lumpa Movement: ethnic learnings for a Christian identity in Zambia
Movimiento Lumpa: aprendizajes étnicas para una identidad cristiana situada en Zambia
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 58-73, 2022
Universidade Estadual do Paraná
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Resumo: Nosso escopo foi investigar o Movimento Lumpa (1954-1964), liderado por Alice Lenshina na Zâmbia, como processos interculturais identitários relativos às aprendizagens de longa duração. Utilizamos a concepção de constelações de aprendizagem, estabelecendo a interface entre a historiografia africana e a Antropologia da Educação e a Psicologia Social Comunitária. Interpretamos o Movimento como outra via social de afirmação identitária ao metabolizar cultos aos antepassados e ritos ancestrais a cargo das mulheres, bem como o combate à feitiçaria para atrair as aflições comunitárias modernas. Concluímos que o Movimento revigorou respostas comunitárias com práticas culturais melhor situadas às demandas locais e se contrapôs aos interesses de políticos, empresários e lideranças cristãs por prestígio e domínio da mão-de-obra. Esses poderes patriarcais fizeram uso da força militar para massacrar os adeptos, aprisionar Alice Lenshina e banir o Movimento de liderança feminina, enquanto era uma possibilidade de afirmação do poder local e independente.

Palavras-chave: Intercultural, Movi-mento Lumpa, Identidade.

Abstract: Our scope was to investigate the Lumpa Movement (1954-1964), led by Alice Lenshina in Zambia, as intercultural identity processes relating to long-term learning. We used the conception of learning constellations, establishing the interface between African historiography and the Anthropology of Education and Community Social Psychology. We read the Movement as other social means of identity affirmation by metabolizing ancestral cults and rites by women, as well as the combat against witchcraft to appeal to modern community afflictions. We conclude that the Movement reinforced community responses with better cultural practices, according to demand, in contrast to political, economic and religious interests for prestige and domination of the labor force. Those patriarchal powers made use of the military force to massacre the followers, to imprison Alice Lenshina and to banish the Movement of female leadership, while it was a possible affirmation of an independent local power.

Keywords: Intercultural, Lumpa Movement, Identity.

Resumen: Nuestro objetivo fue investigar el Movimiento Lumpa (1954-1964), liderado por Alice Lenshina en Zambia, como procesos interculturales identitarios relativos a los aprendizajes de larga duración. Utilizamos la concepción de constelaciones de aprendizaje, estableciendo la interfaz entre la historiografía africana y la Antropología de la Educación y la Psicología Social Comunitaria. Interpretamos el Movimiento como otra vía social de afirmación identitaria, al metabolizar cultos a los antepasados y ritos ancestrales a cargo de las mujeres, así como el combate a la brujería para agregar las aflicciones comunitarias modernas. Concluimos que el Movimiento reforzó respuestas comunitarias con prácticas sociales mejor situadas a las demandas, en contraposición a los intereses políticos, económicos y religiosos por prestigio y dominio de la mano de obra. Tales poderes patriarcales hicieron uso de la fuerza militar para masacrar a los adeptos, encarcelar a Alice Lenshina y desterrar el Movimiento de liderazgo femenino, el cual se presentaba como la posibilidad de la afirmación de un poder local e independiente.

Palabras clave: Intercultural, Movimiento Lumpa, Identidad.

Carátula del artículo

Dossiê

Movimento Lumpa: aprendizagens étnicas para uma identidade cristã em Zâmbia

Lumpa Movement: ethnic learnings for a Christian identity in Zambia

Movimiento Lumpa: aprendizajes étnicas para una identidad cristiana situada en Zambia

Jefferson Olivatto da Silva
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 58-73, 2022
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 16 Julio 2021

Aprobación: 08 Septiembre 2021

Introdução

As resistências africanas frente ao colonialismo europeu precisam ser observadas por uma perspectiva distinta. A falta de compreensão das práticas culturais trouxe ao solo africano demonstrações de racismo na forma de desprezo, por outro lado, esta mesma atitude possibilitou às populações locais se reorganizarem e estabeleceram relações distantes dos parâmetros epistemológicos, mesmo cognitivos, dos estrangeiros (Mudimbe, 2010; Fanon; 2008; Bhabha, 2007; Vaughan, 1991). Nesse ínterim é que discorremos sobre as ações do Movimento Lumpa (ou Lumpa Church, Igreja Superior), que africanizou o cristianismo na figura de sua fundadora: Alice Mulenga Lubusha Lenshina (1920-1978) na Zâmbia, África Austral. Podemos corroborar a noção de formação de novas matrizes da consciência africana moderna, como apontaram Comaroff e Comaroff (1991), devido ao capitalismo na África Austral ser potencializado pela introdução de organizações cristãs na região central do continente desde a década de 1870, pela nascente medicina tropical ocidental, pela exploração em larga escala de minérios, pela convergência com os anseios políticos e econômicos de uma elite zambiana em busca de independência e a militarização dos africanos em decorrência das duas grandes guerras mundiais.

Nesses termos, procuraremos demonstrar de que maneira a trajetória do Movimento Lumpa pode oportunizar a interpretação de aprendizagens de longa duração matricentral na região denominada por Audrey Richards (1957) de cinturão do matriarcado, por atualizar tais aprendizagens em uma doutrina cristã a partir da vida comunitária do distrito de Chinsali. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica de Calmettes, Oger, Ipenburg sobre o Movimento Lumpa considerando a historiografia sobre as resistências africanas na região Austral, que será interpretada pela concepção de constelações de aprendizagens, que, tecida a partir do diálogo entre Antropologia de Educação e Psicologia Social Comunitária (Silva; Santos, 2020; Silva, 2020, 2019b, 2016), proporciona a interpretação dos efeitos de processos de aprendizagem de longa duração por comportamentos sociais compartilhados em resposta às demandas locais. As constelações de aprendizagens oportunizam compreender quais interações sócio-históricas fizeram-se presentes na trajetória do Movimento, que caracterizam uma identidade religiosa específica. Além disso, poderemos extrair da literatura os comportamentos sociais que orquestraram resistências contra o domínio colonial estrangeiro político, econômico e religioso.

Inicialmente, as constelações de aprendizagem foram inspiradas nas constelações de categorizações de Fredrik Barth (2000) a respeito da dinâmica social em tecer a identidade de grupos por meio de interações com outros grupos, criando assim fronteiras étnicas. Por meio da reflexão de quais processos de aprendizagens e suas produções poderiam construir essas identidades, elaborou-se o desdobramento de aglomerados de aprendizagens que poderiam revelar as dinâmicas sociais e/ou comunitárias em torno de centralidades específicas. Nesse sentido, a metáfora de constelações em torno de determinados elementos pode auxiliar a compreender quais processos de aprendizagem são legitimados pelo grupo em uma composição de forças denominadas de atratoras em contraste a outros processos que delimitam fronteiras e, por isso, são refratárias à tal formação (Silva, 2016, 2019a). A concepção de constelações de aprendizagem enquanto um instrumento analítico e interpretativo desdobrou-se criticamente para o entendimento das interações sociais relativas a questão étnico-racial auxiliada pelo pressuposto ético-político ao qual Maritza Montero (2004) aponta ser necessário à Psicologia Social Comunitária. Nesses termos, as constelações de aprendizagem têm demonstrado sua eficiência em pesquisas sobre processos educativos a respeito de identidades religiosas em Zâmbia (Silva, 2019b), sobre o pertencimento universitário (Oliveira, 2019), a educação familiar de benzedeiras (Dias, 2019), a identidade e mediunidade umbandistas (Almeida, 2020; Santos, 2018), cuidados comunitários (Silva; Santos, 2020; Silva; Santos; Dias, 2020) e grupos de capoeira (Guimarães, 2018).

A Zâmbia mantém sua característica multiétnica com 14.3 milhões de habitantes (censo estimado em 2012) falantes de 72 línguas, sendo os 7 principais grupos: Lozi, Bemba, Ngoni, Tonga, Luda, Luvale e Kaonde. Tais grupos são organizados em torno de chefarias, as quais foram utilizadas durante a colonialização britânica como governo indireto. O país faz fronteira à leste com Malauí, à oeste com Angola, à norte com a República Democrática do Congo, a nordeste com Tanzânia, a sudoeste com Namíbia e Botswana, ao sul com Zimbábue e sudeste com Moçambique. Seus principais produtos de exportação são cobre e cobalto, seguidos de café, algodão e milho como produtos não tradicionais, potencializados pelo período colonial no século XX (Zambia Embassy, 2021).

Conforme Neves, Silva e Barata (2010) foi uma região alegada pelos interesses da coroa lusa de acordo com o Mapa Cor-de-Rosa, ilustrada abaixo na imagem 1, que se estendia da costa índica em Moçambique até o oceano Atlântico em Angola, porém de pouca ocupação efetiva além de missões de exploração e dos sistemas de prazos no Vale do Zambeze. Com efeito, pelos interesses exploratórios de Cecil Rhodes, a coroa britânica disputou o interior da África Central na Conferência de Berlim em 1884-1885. E, em 1889, Lorde Salisbury anuncia o ultimatum contra a ocupação no território de Shiré, sul do lago Malauí, levando a humilhação lusa pela perda do domínio territorial que pairava seu imaginário desde 1607 pela concessão de terras do Monomotapa a Portugal (Cabaço, 2009; Newitt, 1995; Capela, 1995).


Imagem 1:
Mapa Cor-de-rosa
Fonte: Neves, Silva e Barata (2010, p. 3).

Segundo Renault (1971), em função de diversos relatos, como os de Henry Hamilton Johnston (1858-1927) e Cecil John Rhodes (1853-1902), exploradores e atores, respectivamente, das companhias de prospecção “African Lake Company” e “British South Africa Company”, o território do Malauí (antigo Niassa) e seu interior passaram a fazer parte dos interesses britânicos. Também houve relatos de missionários escoceses, pertencentes à “Free Church of Scotland”; de anglicanos, da “London Missionary Society” e de holandeses, da “Dutch Reformed Church”. A disputa do domínio simbólico desses cristãos atraía financiamentos das coroas para relatar sobre as riquezas e estabelecimentos de acordos com as chefarias locais, ancorados pela narrativa da Associação Internacional Africana de combate antiescravagista contra os árabes e muçulmanos, entendidos indistintamente (Garvey, 1993; Ipenburg, 1992; Fields, 1982).

Com efeito, para buscar esse controle territorial, o fundador dos Missionários da África, Cardeal Charles Lavigerie, que havia realizado missões no interior africano, tanto na República Democrática do Congo, sob o comando do missionário Joseph Dupont, quanto em Uganda na chefaria de Chitapankwa; O Cardeau recebeu dois enviados da coroa lusa em Paris: o embaixador De Macedo e o explorador Serpa Pinto. Havia a promessa de um pagamento de 50.000 francos para a instalação de uma primeira missão e mais 20.000 francos anuais. Outro apoio ao anseio de Portugal foi Barros Gomes, que acompanhou Charles Lavigerie pela campanha antiescravagista e o combate religioso da expansão reformista na região (Bouron; Salvaing, 2014; Garvey, 1993; Renault, 1992; Oger, 1991).

Ora, havia a pretensão da coroa britânica por meio dos interesses exploratórios de Cecil Rhodes de conquistar o interior africano de Cairo a Cabo. Assim, no início de 1890, a coroa britânica por meio de Lorde Salisbury exigiu a retirada de tropas portuguesas a leste de Shiré, deixadas por Serpa Pinto, ameaçando o envio de navios de guerra a costa de Moçambique. Os lusos, em agosto, receberam o tratado de reconhecimento do domínio britânico e os missionários católicos partiram para o norte de Malauí em território dos Bamambwe (Roberts, 1973).

Esse deslocamento apressado foi significativo, posto que após a chegada dos missionários católicos nesta região, que se localiza na estrada de Stevenson, o corredor de transporte comercial entre o sul do Lago Tanganica e o norte do Lago Malauí, tiveram os primeiros contatos não amistosos com os guerreiros Bemba, que realizam as razias contra os Bamambwe, conforme descritos na entrada do diário de postos missionários de Mponda-Mambwe em 18 de julho de 1893 (1891-1895). Todavia, graças a mediação de Joseph Dupont, o Chitimukulu (chefe supremo) Bemba autorizou a entrada e estabelecimento de seus missionários como a efetivação pax britannica: prospecção à base do trabalho forçado ou de baixo custo deve evidenciar o que representou, segundo Arnold Leonard Epstein (1975).

Atitudes elusivas

Considerando a literatura a respeito dos comportamentos sociais africanos em relação ao poderio estrangeiro, podemos considerar as ações na forma de ações refratárias e atrativas, ou seja, à medida que as identidades comunitárias atuantes ou destacadas de práticas culturais existentes diante das aflições locais compunham a inserção de novas consciências configuradas pela educação, trabalho assalariado, comércio, burocracia colonial e religião, novos categorias eram fomentadas para diminuir ou aumentar a tensão nas fronteiras simbólicas ao poderio estrangeiro. Para tanto refletimos a partir da literatura africanista que aponta o surgimento de resistências africanas entre o século XVIII e XIX na África Central e Austral. As pesquisas de Chanaiwa (2010), Sophie Le Callenec (2004), Robert Rotberg (1961) e Vittorio Lanternari (1983) nos possibilitam uma interpretação sobre esses comportamentos sociais enquanto mediações com as aprendizagens comunitárias, não apenas como reação, mas como protagonismos africanos pelo uso de práticas sociais relativas às aprendizagens de longa duração, bem como o manuseio da introdução de novas aprendizagens. Por isso, tais comportamentos sociais fogem às categorias de mera recusa, erros voluntários ou banditismo social como forma de resistência africana como afirmou Le Callenec (2004).

Ora, há um outro elemento de interpretação dessas dinâmicas sociais, que nos auxiliam a entendê-las como ações políticas situadas as quais denominamos de atitudes elusivas (Silva, 2015). Estas se inseriram no cotidiano por meio dos pontos cegos do olhar estrangeiro com o intuito de expandir fissuras na articulação de controle social colonial. Com efeito, sua eficácia se devia às ações políticas ininteligíveis à interpretação totalizante de categorias cognitivas e emocionais eurocêntricas. Por outro lado, os dispositivos sociais pré-estabelecidos entre famílias, chefarias e vilarejos serviram de acervo intersubjetivo disponível e viável contra a postura de menosprezo dos atores estrangeiros.

As atitudes elusivas podem ser constatadas mediante diferentes frentes da engenharia colonial. Para entender de que maneira a ação missionária cristã foi uma das aprendizagens introduzidas em Zâmbia, vamos apontar brevemente as atuações e os comportamentos sociais decorrentes das políticas de saúde e dos alistamentos compulsórios para a Primeira e Segunda Grande Guerra Mundial.

A respeito das políticas coloniais de saúde no início do século XX, relativas ao desdobramento de tratamentos ocidentais contra as doenças tropicais - a malária, a tripanossomíase africana e a dengue, por ex. - os impérios fomentaram a criação de institutos de medicina tropical para tornar a colonização viável em resposta à iminente morte dos europeus (Bouron; Salvaing, 2014). Todavia, para o domínio dessa situação crítica para a exploração colonial, Marinez Lyons (1992) revelou o cenário violento para a formulação da teoria dos vetores. De um lado, esta teria fornecido condições de compreensão dos patógenos, transmissão e tratamentos - ou como Charles Rosenberg (1992) interpretou a delineação das epidemias em cura, tratamento e prognóstico. Porém de outro lado, Lyons (1992) assevera o quanto as práticas coloniais de saúde se caracterizavam por sua violência: aprisionamentos em isolamentos sociais, contínuas experimentações como pulsões com injeções na medula (no caso da tripanossomíase africana) e o erro-acerto para a aprendizagem da quantidade de produtos químicos necessários para o combate de patógenos (como o arsênio no combate do protozoário da tripanossomíase africana pela descoberta aplicada do Atoxil pelo médico luso Ayres Kopke em 1905) (Amaral, 2012). Essas imposições médicas se distanciam da escuta das comunidades locais a respeito de suas práticas de cuidado de patógenos endêmicos (como a tripanossomíase africana e americana, malária, dengue entre outros). Consequentemente, o menosprezo e a violência geraram fugas das pessoas, arriscando-se em trajetos perigosos por matas e rios, e mesmo pescar diante da interdição de circularem próximos a aquíferos. Além disso, a incapacidade intercultural do diálogo característica das políticas coloniais produziu nas comunidades rumores quanto às experimentações médicas. Nesse tom, Leslie White (2000) descreve o quanto os rumores pautaram a crença de os brancos se tornarem vampiros sedentos de sangue, ossos e órgãos daqueles que iam para os campos de isolamento. Práticas de violências contra as populações africanas como esta foram similares para o tratamento de outras doenças, haja vista a política econômica e de saúde contra a tuberculose na África do Sul entre 1870 a 1938 (Packard, 1989), da peste bubônica no Senegal entre 1914 e 1945 (Echenberg, 2002) e até da medicalização da maternidade na República Democrática do Congo entre 1947 a 1954 (Hunt, 1999).

As violências da Primeira e Segunda Guerra Mundial responderam por outro cenário de comportamentos sociais contra os estrangeiros. Ora de forma passiva, como aponta Le Callenec (2004) e Chanaiwa (2010), como a automutilação ou fugas para evitarem a convocação para guerras, usos de sementes inférteis ou plantio em época errada até simulação ou destruição de colheitas. Por outro lado, houve aqueles que já faziam parte de uma elite colonial e alcançaram prestígio com as autoridades coloniais, além dos que foram para o campo de batalhas como carregadores; dentre os sobreviventes as experiências das guerras oportunizaram a aprendizagem de estratégias militares e o uso e acesso a armamentos, comumente proibidos aos africanos pelas políticas coloniais instituídas na Conferência de Berlim (1884-1885).

Por meio de vínculos locais que agregaram mais práticas identitárias em circunstâncias distintas, outras ações eram imediatas, isto é, de combate físico. Sua força não estava tão somente em um ou uma personagem, porém na capacidade de otimizar redes de solidariedade contra os invasores europeus. Conforme apontou Le Callenec (2004), o caso dos Awandji no Gabão é exemplar dessa rede de solidariedade entre pequenos grupos guerreiros contra a represália sofrida pelo chefe Wongo de uma aldeia Awandji durante a Primeira Grande Guerra Mundial. Eles formaram uma comunidade religiosa, mwiri, que se dispersava na floresta e atacavam como bloco. Outra prática, que muito embora a literatura trate de forma individual, foi a capacidade atrativa das ações de Mapondera e seus aliados, que atuou entre Moçambique e Zimbábue durante o período de 1890 a 1902. Além dele, a autora menciona Dambakushamba, Samakungu e Moave no Moçambique, Mundu e Orloog em Angola, e Kasongo Niembo e Kiamfu na República Democrática do Congo (RDC), que apenas conseguiram ter essa repercussão colonial contando com uma rede de solidariedade camponesa para alimentação, informações e esconderijos.

Todavia, dentre os levantes significativos do período colonial e pré-independências, como resposta às aflições comunitárias, foi o manuseio de dispositivos religiosos para a atração de adesões contra os infortúnios - inclusive causados pela violência das invasões ocidentais. Nesse contexto ímpar de domínio e práticas culturais ancestrais houve o florescimento de movimentos africanos messiânicos com o empréstimo de signos religiosos cristãos, mas redesenhados pela mediação local para potencializar sua força refratária aos poderes estrangeiros.

Segundo, Robert Rotberg (1972), a primeira metade do século XX viu florescer por todo continente africano movimentos locais de africanização cristã (Kibanguismo, Kitawala, Igreja Etíope, Igreja dos Oráculos, entre outras), inclusive, como apontou Vittorio (1983), de movimentos nativistas islâmicos. Embora Rotberg (1972) não trate sobre a interculturalidade, podemos entender que houve um florescimento de práticas e experiências interculturais não somente pelo manejo de rituais ou objetos estrangeiros, mas porque seus intérpretes ou líderes africanos avançaram nas respostas às demandas comunitárias diante da perda de prestígio e poder local, bem como pela metabolização de práticas ancestrais. Outro aspecto que Robert Rotberg (1967) traz a respeito desses movimentos religiosos teria sido o germe do nacionalismo ocidental, introduzido pelo interesse de governança estrangeira e culminando em centralidades locais messiânicas e proféticas.

De acordo com a exposição de Lanternari Vittorio (1983), os movimentos aos quais ele chama de igrejas nativistas africanas apresentam cinco características atratoras - ou seja, forças de interesses em torno da centralidade do Movimento -, que podem ser sobrepostas em conformidade com as demandas locais, geralmente, levando a conflitos com as autoridades estrangeiras: a) africanização de práticas e rituais cristãos; b) perseguição à feitiçaria e fetichismo; c) autonomia aos poderes estrangeiros; d) organização eclesiástica com funções tradicionais; e, e) ênfase no Antigo Testamento para a libertação dos negros africanos.

O movimento Lumpa

Alice Lenshina apresentou uma trajetória religiosa significativa a respeito de respostas africanas às aflições comunitárias do norte da Zâmbia e do Malauí e sul da República Democrática do Congo (RDC) entre 1955 a 1964.

Nessa direção, os movimentos na África Central e Austral, igualmente, presenciou uma série lideranças mobilizadoras de movimentos refratários ao domínio estrangeiro. Segundo Rotberg (1961), as práticas e apelos cristãos, correspondentes aos interesses do capitalismo exploratório (Comaroff; Comaroff, 1991), inseriu no interior da África subsaariana o germe da noção de agregação moderna de nação (Silva, 2019a). No entanto, o poder ascendente do Movimento Lumpa foi entendido como refratário a subserviência aos poderes políticos e masculinos da nascente elite zambiana, na figura da “United National Independence Party” (UNIP) com Kennedy Kaunda (primeiro presidente), de chefarias, bem como ao grupo dos líderes masculinos católicos do instituto do Cardeal Lavigerie, Missionários da África (ou Padres Brancos por seu hábito de linho branco) e dos da “United Free Church of Scotland” (Livingstonia Mission). Estes últimos tiveram maior participação na região do Distrito de Chinsali - na Província de Muchinga, nordeste zambiano conforme representado na Imagem 2 -, desde 1905, onde o Movimento nasceu e se desenvolveu (Ipenburg, 1992; Calmettes, 1978, 1972) - com protestos do missionário católico monsenhor Joseph Dupont a Codrington embora os missionários católicos somente teriam presença efetiva a partir de 1926 (Oger, 1991).

Outrossim, os protestantes oportunizavam antes dos católicos a liderança das igrejas locais. Ademais, a introdução da escolarização foi outro elemento desagregador entre os adeptos católicos e protestantes, visto que a adesão a fé seria elemento basal para os filhos estudarem em determinada escola (Silva, 2019a; Ipenburg, 1992; Oger, 1991; Calmettes, 1978). Porém, ambos grupos se assemelhavam ao desprezo às respostas sociais contra a feitiçaria. Com efeito, o Movimento Lumpa incorporou a preocupação contra a feitiçaria de forma fulcral às práticas religiosas.


Imagem 2:
Mapa das províncias e aquíferos da Zâmbia (Chinsali - capital da Província de Muchinga - NE)
Fonte: Cole et al. (2018, p. 4).

Hastings (1979) aponta três linhas de experiência que demarcaram o Movimento: o cristianismo missionário, as ações de erradicação de feitiçaria que ganharam força no século XX com os grupos cristãos e a frustração política dos primeiros anos da Federação da Rodésia (Northern Rhodesia, Southern Rodhesia and Nyasaland - correspondendo a Zâmbia, Zimbábue e Malauí). Segundo os registros, a jovem Alice Lenshina teria ficado em um estado de coma (ou transe) devido à malária em 1953. Esse momento é caracterizado por ela, e reiterado em seus cânticos (Hinfelaar, 2004; Calmettes, 1978), como uma epifania: Deus lhe havia dado a oportunidade de conhecer Jesus e a incumbida de propagar sua palavra sagrada. Por isso o nome de Lenshina, derivado de Regina (mãe-rainha) da língua Bemba.

Após esse momento ela teria conversado com o reverendo Fergus Macpherson (1921-2002) e sido batizada em 1953 como Alice pelo reverendo Paul Bwembya Mushindo (1896-1972) (Musa, 1996). Assim, ao longo de 1954, ela e o coro do Movimento atuavam como igreja irmã da “United Church of Central Africa” (UCCA) - operando com a igreja Presbiteriana e escocesa - em Lubwa.

Havia um apreço pelas ações de Alice Lenshina devido a composição de cantos cristãos e princípios cristãos reiterados por ela (Hastings, 1979), e atrativos à doutrina cristã: proscrição de poligamia, adultério, divórcio, uso de álcool e tabaco. Embora houve certa proscrição às práticas tradicionais pelo Movimento, é preciso fazer uma ressalva, visto que agregavam dispositivos sociais relativos a outras práticas tradicionais que fomentavam entre os adeptos o interesse pela adesão - isto é, sem essa eficácia intercultural o Movimento, dificilmente, alcançaria tal relação de forças.

Jean-Loup Calmettes (1938-1993), missionário católico do instituto dos Padres Brancos, que acompanhou de perto o Movimento, dedicou sua tese ao tema, apresentada em 1978, “The Lumpa Sect, Rutal Reconstruction, and Conflict”. Ele descreve que Alice Lenshina introduziu benções e ritos que seriam facilmente legitimados pelas instituições cristãs - quer protestantes quer católicas. Além disso, refere-se ao trabalho de seu confrère, também missionário do mesmo instituto, Louis Oger (1960), ao relatar, que ela fez uso de práticas locais de benções para o aumento da durabilidade dos grãos de colheita, como da medicina tradicional mutifu para manter os grãos como se estivessem na planta antes da colheita.

Diferente de uma lógica de empreendimento religioso-econômico, Calmettes (1978) argumenta que ela não teria ido nesta direção, embora contrário aos argumentos de Oger (1960). Em carta enviada a seu tio, chefe Mubanga, Alice Lenshina pediu dinheiro a ele reclamando que seus diáconos estariam drenando o dinheiro do Movimento, neste caso, absorvendo para si o prestígio antes de chefes e/ou políticos. A vida comunitária do Movimento contava com o apoio de seus mais de 70 diáconos de diferentes áreas - denominados por Musa (1996) de kapitao. O Movimento teria insistido até contra a poligamia, inclusive, do casamento de viúvas como segunda esposa de alguém já casado, como aconteceu com a trajetória de Alice Lenshina (Rotberg, 1961) e era uma prática corriqueira.

O advento da independência da Zâmbia na década de 1950 e 1960, após o enfraquecimento dos impérios em decorrência da Segunda Grande Guerra Mundial, trouxe uma aberta desconfiança contra os europeus, inclusive conta os missionários. De acordo com Oger (1991), eles passaram a ser denominados de bacisanguka (traidores), bamwisa (invasores) e cisanguka (aqueles que se transformam em feras, como leões, para devorar as pessoas). Até os padres africanos eram vistos com desconfiança, chamados de negros ocidentais.

Podemos acompanhar o direcionamento social de rumores (White, 2000), neste momento, direcionados contra os estrangeiros. No entanto, isso não significou uma definitiva aproximação entre protestantes e católicos, visto que o Movimento Lumpa se despontou como uma via distinta; tais rumores otimizavam a adesão à igreja de Alice Lenshina como afirmação das identidades comunitárias locais para criar fronteiras à vida moderna - que pouco proporcionava acesso aos benefícios da modernidade. Após a ruptura com a UCCA em 1955, o Movimento se estabeleceu no vilarejo de Kasomo tornando-se a Nova Sião de seus adeptos. Seu diferencial de atração era a ênfase no combate à feitiçaria, desde 1954, desprezada por protestantes e católicos (Kangwa, 2018). No entanto, como afirmou Musa (1996), a feitiçaria representava um grande perigo à vida social.

Parcialmente, a UNIP de Kennedy Kaunda - que em uma perspectiva de fomento à criação de uma consciência nacional, sobrepondo-se às chefarias enfraquecidas pelo colonialismo, proclamou o slogan “One Zambia, One Nation” - ao se interessar pela ideia desses vetores, já que a construção da nação zambiana precisaria romper com as fronteiras identitárias anteriores, por outro lado, esse interesse de unificação em prol da governança contrastaria com o distanciamento político e econômico legitimado pelo Movimento.

Segundo o diário do posto missionário de Kayambi (18 de março de 1956), católicos compuseram um cântico contra Lenshina e o mal que ela estaria causando, posto que alguns de seus seguidores morreram por terem sido enfeitiçados por ela após visitá-la. Essa interpretação de causalidade atribuída a feitiçaria já fazia parte do acervo cultural zambiano, basta lembrarmos que os missionários no início de sua obra missionária em Zâmbia foram acusados de matar as pessoas que abençoavam quando estas estavam em leito de morte até a primeiras décadas de 1900; pelos mesmos dispositivos, os médicos foram acusados de se apossarem de seu sangue, órgãos e ossos durante as experimentações dos primeiros tratamentos contra a tripanossomíase africana até a década de 1930 (Silva, 2015; White, 2000).

Nesse sentido, o primeiro pároco zambiano de Ilondola, Pascal Mwamba Kakokota, em abril de 1956 foi acusado de ser feiticeiro, o que era um contrassenso em vista de ser uma acusação grave jurídica, mas não cristã. Seu acusador, Joseph Mumba do Movimento Lumpa, foi preso e em torno de 500 adeptos passaram a protestar por mais de 10 dias em frente a boma (administração local). Com efeito, 64 adeptos foram presos e o esposo de Alice Lenshina, Petros Chitankwa Mulenga, ou kapitao Matamanga, foi considerado o agitador e sentenciado a dois anos de prisão (Ipenburg, 1992; Calmettes, 1972). O termo kapitao é emprestado do português e pronunciado sem a vogal nasal que é inexistente na língua Bemba, também se escreve com “k”, já que o “c” geralmente é pronunciado como “ch” em teacher do inglês. Este termo foi incorporado no imaginário Bemba pelas incursões lusas no território Bemba desde 1798 por Lacerda (Roberts, 1973).

O antagonismo entre os grupos cristãos e os adeptos do Movimento otimizava socialmente a causalidade da feitiçaria, mas que fora somente potencializado como acervo cultural por Alice Lenshina pelo uso de práticas e rituais. Calmettes (1978) constata o quanto esse acervo era recorrente nos cânticos de Alice Lenshina: mulwani (inimigo), mubi (pessoa maléfica) e fibi (objetos maléficos).

A mudança de novos parâmetros socioeconômicos, como atestado por Richards (1970), pôde ser observada pelo itinerário de muitos vilarejos que ficavam um ou dois anos desolados na dependência de seus anciãos. Este efeito era provocado pelo crescente interesse de jovens que, em busca de dinheiro, iam em grupos trabalhar nas minas de prospecção nesses períodos. Vale ressaltar que a introdução da vida moderna na Zâmbia teve como um de seus pivôs as práticas e lógicas doutrinárias cristãs, até tendo que lidar com a greve de catequistas por melhores salários (Silva, 2019a).

Há certa imprecisão do quanto em 1964 o Movimento já teria agrupado entre os adeptos ou Leshinites, contando com grupos na Zâmbia, República Democrática do Congo, Zimbábue, Malauí e África do Sul, conforme apontaram Calmettes (1978, 1972), Oger (1991, 1960) e Ipenburg (1992). Porém Musa (1996) considera ter sido em torno de 65.000 adeptos diferente dos 150.000 de Calmettes e Oger. Embora com essa variação significativa, mesmo a de Musa (1996) já demonstra um número expressivo em comparação às outras igrejas hegemônicas.

Os dispositivos sociais se estabeleceram como ações atrativas ao Movimento. Assim esses dispositivos eram potencializados pela interculturalidade do Movimento, então distantes das práticas cristãs disponíveis na Zâmbia - emanados a partir do Distrito de Chinsali. Ora essa interculturalidade precisa ser entendida como ampla mediação simbólica, isto é, havia uma capacidade criadora de Lenshina e seus diáconos de absorverem as aflições comunitárias e apontarem respostas a tais demandas.

Podemos dizer que de forma intercultural o Movimento Lumpa conseguiu atrair adeptos em vista do reposicionamento da mulher no cenário religioso e familiar, conforme já apontou Hastings (1979) e reiterado por Kangwa (2018), correspondendo às aprendizagens de longa duração do cinturão matriarcal (Richards, 1957): nacimbusa wa chisungu (mãe dos emblemas sagrados da iniciação feminina e do casamento), cibinda wa ng’anda (responsável familiar pelas obrigações religiosas), mulheres como geradoras e sacerdotisas das famílias, kabunda wa mapepo (condutora das orações em tempos de desastres e epidemias. Alice Lenshina, como apontou Kangwa (2018), por meio da profecia e adivinhação conduzidas com hinos, práticas de cura e a justiça e equidade de gênero, teria conseguido reinterpretar e africanizar o cristianismo de forma mais eficiente que missionários cristãos católicos e protestantes.

Igualmente foi perceptível aos brancos sua capacidade agregadora dominada pelos hinos que ela compunha e conduzidos pelo mestre do coro, Alfrede Kapele Nkonde (1938-?) - genro de Alice Lenshina. Além de não apresentarem qualquer elemento herético, segundo Macpherson, sua mensagem estava inscrita nos cânticos que eram realizados na ritmicidade dos cantos Bemba e dançando Ndelema. Esta dança era apreciada por homens e mulheres, que a executavam de forma circular com palmas e ululação (Musa, 1996). Algo que devemos considerar é que Musa (1996) destaca Robert Kaunda, o irmão mais velho de Kennedy Kaunda, como responsável em editar os hinos de Alice Lenshina e não os compor, como insistiu Oger (1960) e Calmettes (1978).

Outrossim, Alice Lenshina era saudada respeitosamente com genuflexão e palmas, similar as honrarias de chefe. De acordo com a entrevistada por Musa (1996), a ex-Lenshinite ou ex-adepta, Sundie Rain, mencionou que seus adeptos a saudavam pelos termos de mulopwe (Sua Excelência), ba mama (grande mãe), ulubuto lwa calo (luz do mundo) e katula wa calo (salvadora do mundo).

As atitudes centrífugas do Movimento de afastamento da política e não pagamento de impostos transformaram-se em ameaças aos interesses da UNIP, das chefarias locais e igrejas hegemônicas. Segundo Musa (1996), um dos incidentes que demarcou foi a orientação para que as crianças não saudassem qualquer outra autoridade e símbolo que não fosse os do Movimento. Consequentemente, as crianças teriam sido expulsas das escolas (1996). Além disso, houve o agravamento de conflitos em decorrência da perda de domínio da população pelas autoridades: com o deslocamento de pessoas dos vilarejos, as chefarias e os líderes religiosos perdiam prestígio e o poder de controle social sobre a mão-de-obra e o pagamento de subsídios.

No entanto, entre 1961 e 1962, Alice Lenshina havia deixado o comando da igreja a seus diáconos para gerenciar uma loja no Cinturão de Cobre (Copperbelt). Com o distanciamento de seu prestígio messiânico houve o abandono de quase dois terços de Leshinites (Musa, 1996). Porém, logo após seu retorno, o Movimento revitalizou o poder de atração.

Por outro lado, além desses vetores de atração, o Movimento foi engendrando comportamentos refratários contra os não adeptos, até aduzindo os rumores de pastores, diáconos, padres e catequistas cristãos, e autoridades político-econômicas, sob a liderança de Kennedy Kaunda (irmão caçula de Robert Kaunda, um dos diáconos de Alice Lenshina). Isso fez com que houvesse a pedido das chefarias e de Kaunda a ordem de retornarem para os vilarejos de origem diante do vertiginoso crescimento do Movimento, que poderia resultar no enfraquecimento de governança, bem como diminuição da força de trabalho disponível para as minas de prospecção e das fazendas - ambas tendo seu domínio agentes estrangeiros. Houve conflitos entre adeptos cristãos e do Movimento, bem como destes contra as autoridades.

Como resultado final, Kaunda ordenou o massacre do Movimento em 1964 com registros de torturas, estupros e queimas de corpos - duas semanas antes da proclamação da independência do país. Alice Lenshina e seu marido foram conduzidos ao cárcere domiciliar sem julgamento até a morte da profetisa em 1978, quando o templo é destruído a mando do presidente Kaunda (Katulwende, 2010; Hudson, 1999; Rotberg, 1961). Podemos observar que o Movimento trazia à tona práticas ancestrais de cultos familiares e comunitários do protagonismo feminino, anterior à ênfase, por exemplo, da supremacia do Chitimukulu (chefe supremo Bemba) na segunda metade do século XIX (Binsbergen, 1983). Outrossim, essa ascensão feminina era contrária aos esforços missionários cristãos em lapidar a figura do ser supremo, visto que esses líderes suprimiram os aspectos femininos de Lesa ou Lisa (deus supremo local convertido no deus cristão) para enfatizar o domínio e dependência masculina, conforme atestaram Richards (1957) e Hinfelaar (1997).

Tal sentimento de aversão hegemônica outorgou o banimento da igreja de Alice Lenshina e estendendo-se às suas ramificações. Ora, a ameaça de perda do poder, ou de sua divisão, continua atuante no imaginário zambiano como um trauma à hegemonia político-religioso-econômica e de gênero. Por isso que a “Mutendere Church”, ramificação da “Jerusalem Church”, considerada como vinculada aos ensinamentos do Movimento Lumpa, tentou se registrar como sociedade e foi rejeitada pela suprema corte do país em 1981 em nome da lei e ordem (Supreme Court, 1981), sendo a sentença mantida até o momento.

Considerações finais

Podemos concluir por meio das constelações de aprendizagem, que a trajetória do Movimento Lumpa forneceu elementos para interpretarmos seus vetores de atração e refração. Mesmo que a ênfase seja dada a sua fundadora, Alice Lesnhina, devemos lembrar que seus diáconos foram fundamentais para a organização das ações na formação de uma nova comunidade cristã livre do jugo europeu. Além disso a capacidade intercultural do Movimento pôde ser analisada pelas atitudes elusivas - os processos comunitários não-ditos -, interpretada a partir dos estudos sobre o Movimento, em sua maioria, atores religiosos católicos (Calmettes, 1978, 1972; Oger, 1960; Hinfelaar, 2004, 1997) e protestante (Ipenburg, 1992), interpondo com a historiografia sobre as resistências africanas. Nesse sentido, os rumores puderam otimizar fronteiras identitárias para convergirem interesses a favor do Movimento ou contrários à alteridade do Movimento. A partir do Movimento, os rumores atuavam como trajetórias das respostas locais às aflições comunitárias produzidas pela imposição de uma consciência estrangeira pautada no trabalho assalariado, movimentos grevistas, apelos ao mercado de escolarização e tratamentos alopáticos. Além disso, inicialmente catalisou a concepção de unificação para além das identidades locais, que convergia os anseios nacionalistas da UNIP e Kennedy Kaunda (presidente de 1964-1991) em busca da independência. Nesse contexto, o Movimento conseguiu metabolizar práticas de cura e cuidado comunitário, bem como a luta contra a feitiçaria, e um espaço social de protagonismo da mulher zambiana para reflorescer no cinturão matriarcal a ancestralidade dos cultos da terra e dos ancestrais.

Por outro lado, os poderes masculinos e cristãos locais e estrangeiros, impulsionaram rumores refratários ao Movimento Lumpa focando em Alice Lenshina, desmoralizando-a publicamente em púlpitos religiosos, políticos e acadêmicos e fomentando o ódio aos adeptos, o que provocou violências cotidianas para resultar no massacre em 1964 e sua prisão domiciliar sem julgamento por 14 anos. A partir dessa interpretação observamos que as forças de atração e refração do Movimento podem direcionar novas linhas de interpretação a partir dos dispositivos sociais e considerar que a independência não era um anseio social, unicamente político, já que as pesquisa tangenciam de que maneira outras forças de refração - isto é, a atuação da exploração de mão de obra zambiana pelas empresas de prospecção e fazendas - puderam ser atuantes contra o Movimento.

Material suplementario
Fontes
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Notas

Imagem 1:
Mapa Cor-de-rosa
Fonte: Neves, Silva e Barata (2010, p. 3).

Imagem 2:
Mapa das províncias e aquíferos da Zâmbia (Chinsali - capital da Província de Muchinga - NE)
Fonte: Cole et al. (2018, p. 4).
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