Resumo: O artigo lida com as concepções morais dos Skilled Veterans Corps, idosos que se ofereceram para trabalhar nos vazamentos do acidente nuclear de Fukushima, ocorrido em 2011 na sequência de um terremoto e de um tsunami. Partindo de uma sociologia durkheimiana, analisamos as ideias expressas em declarações partindo do conceito de suicídio. O resultado da análise apontou para a emergência de dois pilares na sua argumentação: uma forte noção de comunidade e a figura do antepassado protetor, as quais remontam diretamente à religião xintoísta. Assim, os veteranos estão argumentando com o governo de maneira secularizada, porém partindo de bases morais religiosas culturalizadas, algo que origina uma crítica decolonial.
Palavras-chave: Skilled Veteran Corps, Acidente Fukushima, Suicídio, Discurso gerontológico.
Abstract: This article deals with the moral views of the Skilled Veterans Corps, seniors who volunteered to work on the leaks in the Fukushima nuclear accident, which occurred in 2011 following an earthquake and tsunami. Starting from a Durkheimian sociology, we analyze the ideas expressed in statements based on the concept of suicide. The result of the analysis pointed to the emergence of two pillars in their argumentation: a strong notion of community and the figure of the protective ancestor, which go back directly to the Shinto religion. Thus, veterans are arguing with the government in a secularized way, but starting from culturalized religious moral bases, something that gives rise to a decolonial critique.
Keywords: Skilled Veteran Corps, Fukushima accident, Suicide, Gerontological discourse.
Resumen: Este artículo trata sobre las opiniones morales del Skilled Veterans Corps (Cuerpo de Veteranos Habilitados), personas mayores que se ofrecieron como voluntarios para trabajar en las regiones afectadas por el accidente nuclear de Fukushima que ocurrió en 2011, tras un terremoto y un tsunami. Partiendo de una sociología durkheimiana, analizamos las ideas expresadas en enunciados basados en el concepto de suicidio. El resultado del análisis apuntaba a la aparición de dos pilares en su argumentación: una fuerte noción de comunidad y la figura del antepasado protector, que se remontan directamente a la religión sintoísta. Así, los veteranos están discutiendo con el gobierno de manera secularizada, pero partiendo de bases morales culturalmente religiosas, algo que da lugar a una crítica descolonial.
Palabras clave: Cuerpo de Veteranos Calificados, Accidente de Fukushima, Suicidio, Discurso gerontológico.
Dossiê
Suicídio a longo prazo? Estudo sobre uma moralidade xintoísta nos Skilled Veterans Corps
Long-term suicide? A study on Shinto morality among the Skilled Veterans Corps
¿Suicidio en largo plazo? Estudio sobre una moralidad sintoísta en el Cuerpo de Veteranos Habilitados
Recepción: 30 Junio 2021
Aprobación: 12 Noviembre 2021
O suicídio ocorre quando alguém, de fato, consegue matar a si mesmo. A “tentativa de” é quando ela não ocorre, porém ainda assim houve a ação. O caso que vamos estudar envolve todos os elementos de um suicídio: a intenção de veteranos japoneses de concertar o reator nuclear da província de Fukushima, no Japão, com um acidente ocorrido em 2011. Eles ofereceram-se para a missão suicida, criaram uma organização (os Skilled Veteran Corps) e mobilizaram argumentos para que o governo os deixasse agir.
É de se ressaltar que a radiação nuclear das usinas não costuma ser letal em curto prazo. Ao invés de algum ferimento superficial, ela pode, por exemplo, incidir sobre células saudáveis e alterar o seu DNA, o que a torna diferente das outras células e pode induzir a uma reprodução infindável, aumentando a chance do aparecimento de um câncer. Nesse caso, um dos argumentos dos veteranos é que o mal demoraria de 10 a 20 anos para se proliferar, o que acabaria com o ímpeto suicida. No entanto, devemos considerar 3 possibilidades: 1) este dado é uma retórica para tranquilizar os outros japoneses e facilitar a persuasão, 2) não há como prever os efeitos da radiação no corpo individual, especialmente os pediátricos e os geriátricos e 3) foi criado um grupo para essa finalidade com forte comunicação social, o que descarta uma promoção pessoal ou sem finalidade prática.
Ou seja, a disposição para o suicídio era real e verdadeira, mesmo que não tenha sido levado a cabo por fatores que veremos a seguir. A iminente morte, portanto, era consequência sabida, e alguns argumentos foram mobilizados, entre eles alguns baseados em princípios religiosos. Assim, o problema de pesquisa consiste em: quais foram os argumentos morais formulados pelo Skilled Veterans Corps diante da situação de crise nuclear em Fukushima? Para abordar esse problema, foram desenvolvidos os procedimentos metodológicos descritos na seção a seguir.
É de se ressaltar, no entanto, que o estado burocrático não deixou espaço para o heroísmo dos veteranos, e eles não puderam auxiliar na empreitada tal como pretendiam. Ou seja, trata-se de um pensamento decolonial na medida em que se sustenta uma oposição ao estado moderno, que é soberano dentro de seu território. Essa discussão será mais aprofundada na análise dos dados.
Esse estudo foi de caráter qualitativo e buscou material proveniente de entrevistas ou declarações dadas pelo grupo em meios de comunicação da época. Desse material, podemos encontrar uma série de argumentações morais, uma vez que houve a negação por parte do governo e isso ocasionou a organização de ideias e fatos para a discussão pública.
Metodologicamente, seguimos os procedimentos propostos por Bardin (1977). Por esse motivo, em um primeiro momento selecionamos as falas de integrantes desses grupos e os dispomos em um arquivo de texto separado, executando uma leitura flutuante desses trechos para detectar algumas tendências. A partir dele procedemos a separação das falas relacionadas à temática do estudo, para a posterior análise qualitativa de maneira mais detida.
Na etapa da revisão bibliográfica, construímos o referencial teórico a partir do conceito de suicídio, o que resultou em uma série de categorias que permitem uma maior concretude do conceito. Dispostos os trechos, empreendemos o método da análise de conteúdo, buscando as concepções morais que dão suporte para a apreciação moral exposta nas falas. O resultado apontou para uma afinidade com algumas questões religiosas, que também foram revistas e ajudaram a consolidar o corpo evidencial.
Problemas de funcionamento com equipamentos que são causados por muitos motivos. Muitas vezes é falha na fabricação, outras vezes é desgaste, outras mal uso. No presente caso, foi um acidente externo que interferiu diretamente no funcionamento do reator da usina de Fukushima, especialmente dois:
Primeiro, o terremoto de 11 de março de 2011 destruiu a principal fonte de energia da central nuclear de Fukushima Daiichi. O tsunami que se seguiu inundou os geradores de emergência. Logo, o combustível em três dos seis reatores da instalação nuclear superaqueceu, causando derretimento de seu núcleo. Como resultado, houve várias explosões, causadas pelo acúmulo de hidrogênio. As imagens da televisão das nuvens de fumaça radioativa sobre as usinas estão presentes na memória coletiva mundo afora. Partículas radioativas contaminaram mais de mil quilômetros quadrados, e mais de 160 mil moradores tiveram que deixar a região (Fritz, 2021, s./p.).
Podemos perceber, portanto, que foi um drama desenvolvido em duas etapas: primeiramente o terremoto, que danificou as instalações, o que é potencialmente destrutivo por si só para o manejo da energia nuclear, e que foi resfriado pela atividade dos geradores. O que não se esperava era uma segunda crise, que foi a tsunami (uma onda de proporções gigantescas) que acabou com os geradores que promoviam o resfriamento desse núcleo. Isso ocasionou uma série de explosões, que espalharam mais rapidamente a radiação. Ou seja, o cenário era de perigo iminente e as autoridades buscaram saídas. Até os dias correntes a limpeza ainda não terminou completamente.
Da sociedade civil japonesa podemos encontrar algumas ações que partiram de um civismo. Uma dessas iniciativas foi a de alguns idosos, que ofereceram-se para fazer esse trabalho nos arredores da usina, e se autodenominaram como Skilled Veterans Corps, na tradução livre: “Corpo de Veteranos Habilidosos”:
Seemingly against logic, Yasuteru Yamada, 72, is eager for the chance to take part. After seeing hundreds of younger men on television struggle to control the damage at the Daiichi power plant, Mr. Yamada struck on an idea: Recruit other older engineers and other specialists to help tame the rogue reactors [...] Not only do they have some of the skills needed, but because of their advanced age, they are at less risk of getting cancer and other diseases that develop slowly as a result of exposure to high levels of radiation. Their volunteering would spare younger Japanese from dangers that could leave them childless, or worse1 (Belson, 2011, s./p.).
Nessa síntese realizada pelo repórter podemos observar dois argumentos: 1) as doenças neles demoram para se desenvolver e 2) os japoneses mais novos supostamente assumem riscos muito grandes levando em conta a sua idade. Porém, é possível aprofundar mais a natureza dessas concepções quando analisamos diretamente as falas dos indivíduos envolvidos. Vamos começar por uma problematização da questão do envelhecimento para, posteriormente, pensar a teoria do suicídio para Durkheim.
O envelhecimento não é um fenômeno apenas biológico, ele também depende de classificações sociais. Com isso não estamos querendo afirmar que se trata de uma construção social desprovida de lastro biológico, mas sim que há forças sociais envolvidas na produção do conceito de envelhecimento e que influenciam na construção de relações sociais baseadas nessa temática:
Inicialmente delimitado por estudos biológicos e fisiológicos, o envelhecimento foi fundamentalmente associado à deterioração do corpo e, a partir daí, utilizou-se essa mesma grade de leitura para guiar pesquisas focalizando outras dimensões [...]. Apenas recentemente, essa visão sobre a velhice como um fato orgânico foi perdendo sua força (Uchôa; Firmo; Lima-Costa, 2002, p. 26).
Quando se trata da reflexão sobre o envelhecimento, ela pode ocorrer por múltiplas vias. Uma delas é a histórica, quando se trata de pensar a assistência social. Nesse momento, podemos, então, realizar uma aproximação com o envelhecimento por meio das relações de trabalho. Na Europa foi onde essa preocupação se esboçou. Em termos estatais, o fenômeno tornou-se coletivo e menos individual, e isso abriu uma possibilidade de os idosos pensarem também em termos sociais e essa relação vai ficando mais forte com a transição demográfica (Coutrim, 2019; Scott, 2002). Como é problematizado em ciências humanas? “envelhecemos igualmente? O quão determinantes são para o indivíduo as idades de 60 ou 65 anos? É permitido sentir-se velho? A velhice é a mesma para todas as sociedades?” (Coutrim, 2019, p. 75). No ocidente, por exemplo, temos um compartilhado social sobre o assunto, porém “se, ao contrário, o foco for ampliado, é possível perceber, por meio dos estudos transculturais, que o conceito das idades demarcadas se amplia mais ainda” (Coutrim, 2019, p. 81). Uma das formulações é o do discurso gerontológico:
o discurso gerontológico proferido por esses especialistas, pelos meios de comunicação e mídia, grupos de terceira idade e pelas políticas públicas destinadas aos idosos se massifica e contribui de forma decisiva na construção de um pensamento que se pretende hegemônico. Ao abordar a velhice como uma universalidade abstrata, ela passa a representar nada mais do que uma etapa natural do ciclo biológico do ser humano e à qual todos estão igualmente sujeitos (Coutrim, 2019, p. 79).
Assim, podemos afirmar que o discurso gerontológico é redutor do indivíduo à sua idade, esquecendo-se de outras características deste mesmo - reduzindo-o, portanto, à biologia. Dessa maneira, a sociedade enxerga esse indivíduo deve ser protegido por sua impossibilidade.
Neste momento, podemos avançar um pouco sobre as concepções histórico-filosóficas sobre suicídio. Há muitos textos canônicos que contribuem com a discussão e enriquecem-na: a começar pela história da morte no ocidente de Phillppe Ariés (2012), no qual o autor demonstra, por meio do ocidente, que a questão da morte varia entre as diferentes sociedades, mudando desde concepções que atraem a morte para o interior da família até aquelas em que a morte é expulsa do ambiente doméstica e alocada em instituições. Outro autor de referência é Minois (2018), que estuda um objeto parecido com Áries, porém se foca na questão religiosa. Partindo desse prisma, o autor vai afirmar que:
A Idade Média apresenta, portanto, uma visão matizada do suicídio, muito distante de uma condenação monolítica. Mais do que o próprio gesto, são os motivos, a personalidade e a origem social do suicida que importam [...]. A condenação de princípio do suicídio na civilização cristã não é nem evidente nem original. As fontes religiosas do cristianismo são, na verdade, omissas, ou melhor, ambíguas, a esse respeito (Minois, 2018, p. 21).
Assim, o pensamento cristão abomina o suicídio, torna-o um pecado - e nesse sentido, o herói que dá sua vida perde a sua glória, ao invés de recebê-la. A religião cristã acaba se tornando o substrato moral do estado moderno, então podemos observar que, mesmo que não se trate do oriente em si, essas obras ajudam a estabelecer a relação do estado moderno com o suicídio, uma vez que a burocracia não trata a morte como algo natural, e sim como um acontecimento evitável justamente pela garantia dos direitos. Mas há, no mínimo, outro autor que trata também do oriente: Marzio Barbagli (2019). Ele aponta, por meio de seus dados, que concepções de suicídio se constroem quase que paralelamente no ocidente/oriente, uma é ideia de sacrifício, inclusive em suas formas que resultavam em morte, eram bem toleradas nos tempos iniciais das ideias do cristianismo, mas no ocidente, as leituras religiosas e culturais de Santo Agostinho impuseram um peso negativo sobre sacrifícios que resultavam em morte, condenando os suicidas como pecadores graves, sem direitos (divinos) inclusive após a morte (como a condenação da destruição do corpo). No oriente, por seu turno, o autor identifica a mesma variedade, e chega mesmo a teorizar sobre os kamikazes (que aparecem nos dados adiante).
Além do suicídio, é importante revisar o contexto japonês com relação ao envelhecimento: “a sociedade japonesa, ao criar condições de garantir um envelhecimento saudável e trabalho bastante pleno para a sua população, olha os seus jovens na expectativa de poder contar com quem sustente tanto o país quanto os pais no futuro, e enxerga um problema de baixa fecundidade, que deseja corrigir” (Scott, 2002, p. 107).
Assim, o Japão possui uma expectativa de vida alta por conta dos modos de vida saudável, ao mesmo tempo em que os idosos se preocupam com o bem-estar geral da sociedade. Vamos observar que esse contexto maior vai reverberar nos dados coletados.
Após essa contextualização, podemos realizar a definição conceitual que embasará a discussão das evidências. Primeiramente, vamos recorrer a Durkheim2 no clássico - tanto para as ciências sociais quanto para a epidemiologia - “O Suicídio”, primeiramente lançado em 1897, no qual ele descreve os suicídios egoísta, anômico e altruísta, na busca de produzir uma explicação social para o fenômeno. O primeiro se refere a um interesse do indivíduo que difere dos valores coletivos e ocorre porque o indivíduo não está integrado socialmente. O anômico é aquele que ocorre em momentos de crise, como por exemplo desastres ou problemas econômicos e que são frutos de momentos inesperados. O segundo se caracteriza pela fraca conexão entre indivíduo e sociedade, o que resulta na falta de construção de sentido para esses indivíduos. O terceiro, que é o altruísta, é o foco da nossa pesquisa e vamos entrar em maiores detalhes.
Com relação a esse último, podemos aprofundar um pouco mais: “Se, como acabamos de ver, uma individuação excessiva [no suicídio egoísta] leva ao suicídio, a individuação insuficiente produz os mesmos efeitos. Quando desligado da sociedade, o homem se mata facilmente, e se mata também quando está por demais integrado nela” (Durkheim, 1982b, p. 168). Dessa maneira, o suicídio do tipo altruísta é aquele em que há uma ligação tão forte com a sociedade que o indivíduo sacrifica sua existência em prol de sua continuidade, em prejuízo de sua própria existência. Mas Durkheim vai um pouco mais além, e também avança nos subtipos de suicídio:
1) suicídios de pessoas que chegaram ao limiar da velhice ou adoeceram; 2) suicídios de mulheres por ocasião da morte do marido; 3) suicídios de clientes ou servidores ao ensejo da morte dos seus chefes. Esclarece que há o suicídio altruísta obrigatório, como há o facultativo, e, ainda, o suicídio altruísta agudo, do qual o suicídio místico é o melhor exemplo (Nunes, 1998, p. 13).
Seria tentador atribuir que a vontade do suicídio no caso estudado seria o número um, porém não é exatamente esse o caso, dado que, evidentemente, não há uma sensação de desencaixe - tanto que eles se autodenominam como “habilidosos”, o que contraria frontalmente o discurso gerontológico, e nesse caso, é preciso pensar um outro subtipo que descreva nosso objeto de estudo. No entanto, para encontrá-lo, é preciso desdobrar o grande conceito em dimensões, como mostra o quadro 1:

Podemos observar, portanto, que as categorias desdobram o conceito mais abstrato, os seus descritores permitem os localizar enquanto manifestação empírica na realidade social, enquanto as dimensões apontam para as temáticas nas quais as categorias estão expressas nas falas coletadas. Nesse sentido, o material será submetido a essa grelha para realizar sua tabulação e seu posterior tratamento analítico. Esse processo será apresentado na seção seguir.
Abordamos aqui duas qualidades de declarações, as diretas e as indiretas. A ideia aqui é abordar as ideias morais expressas nessas falas, que expressam pressupostos e leituras sobre fatos. No decorrer da seção, vamos abordar as duas qualidades de dados.
Na definição conceitual de Durkheim (2007), as representações coletivas são aquelas compartilhadas no tecido social, e as representações individuais são aquelas restritas ao domínio da psicologia. Assim, ele estabeleceu uma fronteira epistemológica para a sociologia em relação aos estudos da psique. Porém, o construtivismo, por exemplo, acaba contestando essa fronteira na medida em que a percepção do mundo é construída na interação. Por esse motivo, abordar a experiência (as representações individuais) e a questão cultural (as representações coletivas) é essencial para entender como ocorreu o processo de individuação desses veteranos.
Com relação à experiência de trajetória, podemos encontrar algumas falas que remetem à subjetividade dos idosos. A primeira fala é a seguinte: “We are not kamikaze. The kamikaze were something strange, no risk management there. They were going to die. But we are going to come back. We have to work but never die3” (Buerk, 2011, s./p.). Nesse caso, podemos observar uma comparação com o grupo histórico dos kamikazes, pilotos japoneses da II Guerra Mundial que se suicidavam lançando-se contra porta-aviões americanos com veículos cheios de explosivos. Nesse caso, foi mobilizada a ideia de que os kamikazes destruíram seus adversários, enquanto a ideia dos voluntários habilidosos é a de consertar uma situação que está crítica. Ou seja, a intenção dos veteranos não é de produzir a morte, mas sim a vida por meio da resolução da crise. Assim, temos uma problematização de cunho histórico. Após esse excerto, iniciam-se discussões em caráter de trajetória pessoal.
Nessa toada, o trecho a seguir afirmou: “‘Nuclear power plants are the brainchild of scientists and engineers’ he said. ‘They created this mess, and they have to fix it4’” (Belson, 2011, s./p.). Por essa declaração, podemos perceber que os idosos afirmam que esta tecnologia desenvolvida pertence ao seu “mundo”, e que estar aposentado não pode ser um impeditivo de tomar parte da solução. Dessa maneira, propõe-se uma aproximação entre experiência e sociedade por meio da resolução da crise. Uma outra fala que é interessante é a que se segue: “‘is a grandchild of science. The crisis was caused by human error, and the mess created by scientists and engineers should be cleared up by scientists and engineers themselves. As a physicist I feel it is indirectly partly my fault5’” (Ford, 2011, s./p.). Nesta formulação podemos perceber um “erro humano”, o que não é reverberado pelos dados, pois houve um terremoto e uma tsunami. Talvez ele esteja se referindo à opção pela matriz nuclear, o que levanta a questão de que haja, possivelmente, uma polêmica no interior do país com relação à escolha do tipo de energia.
Outro argumento de trajetória que podemos perceber foi: “‘I've enjoyed the benefits of the Fukushima plant for such a long time, why not thank them by providing some help?’ he adds. ‘Criticizing is very easy, but it's not so easy to make things better. That's why we are sweating so much6’” (Ford, 2011, s./p.). Nesse caso, podemos perceber que a trajetória do indivíduo incluiu o aproveitamento das facilidades propiciadas pela matriz nuclear, o que os torna donos do ônus da crise. Nesse caso, a burocracia do estado não deve superar a moralidade da questão, que provém de uma trajetória.
Sobre a questão cultural, também encontramos algumas falas. A primeira afirma que: “‘We should save our younger generation’, Shiotani said. ‘I just want to extinguish the fire’”7 (Fujita, 2011, s./p.). Nessa fala, podemos perceber o sentimento de salvação das próximas gerações, o que é uma marca da individuação: no caso, o corpo dele, simbolizado pelo trabalho com a radiação, não está mais individualizado, ele expressa a necessidade coletiva de conter-se a crise, o que ilustra uma solidariedade mecânica ao menos nesse sentido da dificuldade. O interessante é que isso é reverberado em outras falas: “‘Não me acho especial’, diz Ito. ‘A maioria dos japoneses tem este sentimento, mas a diferença é se a pessoa se oferece para o trabalho ou apenas fica assistindo. Para fazer isso, é preciso muita coragem, mas espero que seja uma grande experiência’” (UOL, 2011, s./p.). Nesse ponto, podemos perceber que há um sentimento de se querer participar mecanicamente das ações, o que difere da vontade estatal, que é orgânica. Há mais evidências dessa linha de raciocínio: “‘We have to contain this accident, and for that, someone should do the work’, said Mr. Yamada, a retired plant engineer who had worked for Sumitomo Metal Industries. ‘It would benefit society if the older generation took the job because we will get less damage from working there’”8 (Belson, 2011, s./p.).
A palavra “sociedade” poderia, nesta fala, ser intercambiada por “cultura”, no sentido de que o grupo como um todo se beneficia com a ação individual. Assim, a fronteira entre indivíduo e estrutura está completamente borrada, mesmo olvidando-se da questão estatal e focando-se diretamente na sociedade civil. Essa fusão se expressa em algumas palavras, como a de “geração”: “‘We’re doing nothing special. I simply think I have to do something and I can’t allow just young people to do this’”9 (Lah, 2011, s./p.). A expressão “nada de especial” indica que o indivíduo não sobressai ao coletivo, e aponta para certa uniformidade quanto a este assunto, o que desemboca em um “dever com a herança”: “‘My generation, the old generation, promoted the nuclear plants. If we don't take responsibility, who will?’”10 (Lah, 2011, s./p.). Nesse caso, a solidariedade não se expressa apenas com os conterrâneos de vivência, porém também com as gerações posteriores - o que, possivelmente, foi feito pelas gerações anteriores, o que cria a continuidade temporal da comunidade. Por fim, podemos observar o trecho: “‘To my surprise we’ve received quite a large number of favorable responses’, says Shiotani. ‘They all say they think it's their duty not to leave this negative heritage to younger generations’”11 (Ford, 2011, s./p.). Isso reforça a ideia de maneira quantitativa de que esse é um valor compartilhado, e que pode ser investigado por meio dos e-mails de voluntários para a organização.
Até o momento, pudemos observar que se tratou de um desejo de permitir a continuidade da comunidade por meio da transmutação da ação individual em coletiva. No entanto, além desse dever moral, também houve argumentos que reforçam esse ponto.
Optamos por realizar aqui os motivos práticos da integração entre a sociedade e o indivíduo, e o que mais se acentuou neste espaço foi a questão da saúde. Essa questão é bastante intrigante porque ela é o que retira a pecha de suicídio e reforça o argumento de que se trata de um dever - o que levaria o suicídio a se tornar um sacrifício: “Por otra parte, si es cierto que el hombre depende de sus dioses, la dependencia es recíproca. Los dioses, también ellos, tienen necesidad del hombre, sin las ofrendas y los sacrificios morirían” (Durkheim, 1982a, p. 77). Ou seja, purificar o dever do sofrimento pareceu uma estratégia para furar os impedimentos do estado burocrático por meio da produção de um sacrifício. Note-se que o sacrifício acaba sendo a negação da eficácia do governo, na medida em que ele garantiria, por exemplo, o direito à vida a partir de seu aparato. Assim, o estado perde sua legitimidade diante do sacrifício, o herói é sua negação: “Ou seja, é preciso um duplo: o metafísico dependeria da transcendência do físico: o herói se desvincula das qualidades humanas e por isso consegue ser consagrado. Mas é preciso o duplo homem para que o processo de sacralização aconteça. Se esse duplo homem não transcende, não existe o processo e nem a metafísica” (Lopes; Martinez, 2019, p. 522).
Assim, o estado moderno não quer que esse duplo se crie, a ele interessa que a metafísica não se complete - os heróis fundadores das nacionalidades, por exemplo, sacrificaram-se para criar o estado. Não precisar mais de heróis é o atestado de que aquele sacrifício de fundação é verdadeiro, que se construiu uma estabilidade que se tornou coletiva e beneficiou a coletividade. A possibilidade de se tornar um herói, aqui, seria pela morte pelo câncer, o que foi um argumento mobilizado, como veremos a partir desse momento.
O argumento biológico é que o câncer demora para se desenvolver em pacientes geriátricos: “The group, consisting only of retirees age 60 and up, says it is uniquely poised to work at the radiation-contaminated plant, as the cells of an older person's body divide more slowly than a younger individual”12 (Lah, 2011, s./p.). Assim, é informado que a divisão celular, biologicamente, é mais lenta, porém esse argumento não está sozinho, são feitas adições, como veremos nas falas posteriores. “‘Em média, eu provavelmente terei mais 13 a 15 anos de vida’, conta Yamada. ‘Mesmo se eu for exposto à radiação, o câncer precisará de 20 ou 30 anos para se desenvolver, portanto, nós, mais velhos, temos menos chances de ter câncer’” (BBC, 2011, s./p.). Nesse sentido, a exposição à radiação não seria fatal em um primeiro momento, o que retiraria o heroísmo do ato. Por isso, sugerem uma substituição: “‘We have to work instead of them’, says Yamada, referring to the estimated 1,000 workers currently at the nuclear plant. ‘Elders have less sensitivity to radiation. Therefore, we have to work’”13 (Lah, 2011, s./p.). Nessa fala, podemos perceber o argumento biológico e também o ambiental, dado que o trabalho precisa ser feito de qualquer maneira.
Outra questão levantada pode ser encontrada nessa fala:
Yamada worries about the health of current Fukushima workers, and says the nuclear burden should be tasked to an older generation that has “consciously or unconsciously” supported the plant, and reaped the benefits of the electricity it’s generated. He often jokes that he has just 15 years to live, not long enough for cancer - a common side-effect of radiation exposure - to develop14 (Fujita, 2011, s./p.).
Aqui emerge o dado de que são 15 anos exatos para o câncer. É preciso considerar, no entanto, que a expectativa de vida no Japão é muito alta, o que equivale a se dizer que, em verdade, esse argumento não é tão exato quanto se pretende, ao menos não em todos os casos. Porém, há também uma questão cultural: “‘When we were younger, we never thought of death. But death becomes familiar as we get older’ [...]. ‘We have a feeling that death is waiting for us. This doesn't mean I want to die. But we become less afraid of death, as we get older15’” (Lah, 2011, s./p.). Assim, o sentimento de morte os torna moralmente “imunes” ao medo e também torna desnecessário o revezamento entre os cientistas.
Por fim, podemos ressaltar uma última fala neste tópico: “‘Older people taking the risk is much less damaging to our society than asking the younger generation following us to take it’, Dr. Shiotani says, adding bluntly, ‘because we are nearer the end of our lives anyway’”16 (Ford, 2011, s./p.). Novamente, a integração se viabiliza por meio dessa legítima passagem de bastão, o que ilustra o modo como a integração ocorre. Por essa razão, foi afirmado que: “Nos mandar no lugar dos jovens é apenas o mais sensato a fazer” (Jornal Nacional, 2011, s./p.). A questão da sensatez, portanto, aparece como um valor essencial para essa coesão do grupo, e é cobrado do estado.
No entanto, podemos perceber que essa argumentação dos veteranos não se confirma quando estudamos biologicamente:
Pessoas que recebem a mesma dose de radiação não apresentam os mesmos danos e nem sempre respondem em tempos semelhantes. A relação dose-resposta é o resultado estatístico obtido de vários experimentos, in vivo, in vitro, e em acidentes com radiação. Existem alguns fatores que modificam a resposta ou o efeito biológico, como por exemplo, a idade, o sexo e o estado físico. O indivíduo é mais vulnerável à radiação quando criança ou quando idoso. Na infância, os órgãos, o metabolismo, as proporções ainda não se estabeleceram definitivamente e, assim, alguns efeitos biológicos podem ter resposta com intensidade ou tempo diferentes de um adulto [...]. No caso do idoso, o processo de reposição ou reparo celular é de pouca eficiência e a resistência imunológica é menor que a de um adulto normal (Tauhara et al., 2003, p. 133).
Ou seja, não se pode afirmar inequivocamente que a biologia vai blindar o idoso do total das consequências, uma vez que não é apenas o câncer uma delas. Porém, a bibliografia demonstra que não é impossível que um japonês viva o suficiente para desenvolver o câncer:
O Japão é o país com a maior expectativa de vida ao nascer - 83,82 anos para mulheres e 77,19 anos para homens [...] -, a qual aumentou em quase dez anos desde 1970. Os idosos têm o crescimento relativo mais alto entre todas as faixas etárias do país. Evidentemente, essa longevidade faz com que ele abrigue uma das maiores proporções de população acima de 65 anos - 15,7% em 1997 (Scott, 2002, p. 104).
Nesse ponto, é perigoso de fato submeter-se à radiação em qualquer contexto, e possivelmente os veteranos tenham essa informação e estejam a omitindo publicamente para facilitar a aceitação de seu pedido de ajuda por parte do governo - que, por seu lado, deveria ter essa informação por causa de seu verdadeiro sistema de peritos, como afirma Giddens (1991). Todos esses processos descritos, no entanto, estão ocorrendo no interior da sociedade civil japonesa, o que nos leva a uma indagação: como foi a relação com o estado?
O estado seria o único capaz de obrigar, formalmente e de maneira legítima, um cidadão a promover algum tipo de ação, caso este consiga não se afetar ou superar a coerção de outros civis. Nesse caso, declarações provenientes de comunicação chegaram até as autoridades e elas responderam. No entanto, é importante também retratar as relações com a própria usina, que não é pública.
Podemos observar, primeiramente, a vertente diretamente política do assunto: “At this moment I can say that I am talking with many key government and Tepco people. But I am sorry I can't say any more at this moment. It is on the way but it is a very, very sensitive issue politically”17 (Buerk, 2011, s./p.). Pela fala, podemos perceber que, de fato, a comunicação alcançou as autoridades, porém há uma série de questões políticas que não podem ser reveladas em público. Isso, em verdade, ilustra que a lógica dos veteranos não convenceu aos burocratas em um primeiro momento, e podemos compreender parte dessa recepção por meio dos relatos posteriores.
Outra formulação vai no sentido de reafirmar a segurança da oposição: “‘We don't want to die’, says the 72-year old, a former engineer for Sumitomo Metal Industries Ltd. ‘We just want to stabilize the nuclear plant, nothing more’”18 (Fujita, 2011, s./p.). Assim, é reafirmado que os veteranos não causarão problemas durante a crise a partir de suas mortes, que comprovariam a ineficiência do estado para com a preservação da vida de japoneses, o que caracterizaria uma negação do sacrifício - que é tudo o que o governo burocrático não deseja, pois os heróis atestam sua ineficácia institucional. Adicionalmente, para promover o ímpeto de grupo, foi feita a seguinte declaração: “‘could if they wish get a decent job at Fukushima, but they have chosen us’, says Shiotani. ‘They want to work not for money, but for something fundamental and essential for society’”19 (Ford, 2011, s./p.). Isso demonstra a habilidade corroborando as necessidades do estado burocrático, que precisa lidar com a crise.
Depois dessas declarações dos Skilled, podemos analisar algumas respostas oficiais. A primeira é a de agradecimento: “They, including this reporter, are calling because of what the prime minister's special adviser to the nuclear crisis publicly dubbed them, the ‘suicide corps’. Goshi Hosono, at a news conference last week, told reporters that while the government was grateful for the offer, there is no immediate need for the elderly volunteers”20 (Lah, 2011, s./p.).
Podemos observar que ao menos um político os chamou de “corpo suicida”, o que talvez explique algumas das declarações, que possibilitaram o desdobramento de algumas questões morais investigadas na pesquisa. Ou seja, uma declaração política com a mesma utilidade de uma boa pergunta aberta e que ajudou a evidenciar uma série de símbolos compartilhados pelo grupo. Essa posição, de fato, se manteve: “‘The problem is that Japanese state-run insurance plans do not cover volunteers, and private plans do not cover radiation risks. We are asking government officials and lawmakers to make some sort of government-supported insurance for volunteers’, explains Shiotani. ‘But I have no confidence how soon they can act’”21 (Ford, 2011, s./p.).
Ou seja, o que impediu a ação dos voluntários foi parte do seguro de saúde, que com certeza possui cotações diferentes por causa do momento de crise. A informação pública, portanto, que foi essa a faceta da burocracia que se sobrepôs e que impediu a participação dos voluntários.
Na seção prévia pudemos analisar os dados nas suas relações entre si. Cabe, agora, relacioná-los com uma teoria mais ampla. Apesar de poder construir essa relação apenas com a cultura em si mesma, não é impossível interpretar também um substrato religioso, buscando traçar uma fonte mais duradoura de antiguidade. Essa perspectiva foi inspirada na seguinte frase encontrada: “Buddhism recognizes the Bodhisattva, a person who is motivated by love and compassion to help all sentient beings”22 (Belson, 2011, s./p.). Por ela, podemos observar que foi dada uma interpretação dos atos segundo o budismo, explicando o ato em termos de “Bodhisattva”, como uma transcendência para todos os seres sencientes. No entanto, essa não nos pareceu exatamente a chave explicativa, dado que as falas coletadas referiram diretamente às novas gerações japonesas, sem menções diretas às outras comunidades (como outras nações, por exemplo). Assim, elegemos uma religião mais “nacionalista”, o que é o caso do xintoísmo, que é voltada especificamente para o povo japonês. Existe, portanto, uma relação entre essa construção de um laço de sociabilidade mais nacionalista, embora o vocabulário religioso não esteja mais se apresentando na questão.
Com relação ao xintoísmo, quais são as suas principais características? A começar, ela é uma religião doméstica:
No Japão, a religião doméstica estima o culto aos antepassados e os ritos aos mortos, liturgia que busca a manutenção e a prosperidade familiar. Não se pode escolher os antepassados e os progenitores [...]. O conceito de “doméstico” - ou “da casa” - subentende, simultaneamente, habitação construída e família, a saber, grupo que dá continuidade ao ofício e patrimônio dos antepassados e lhes presta cultos. Numa visão rigorosamente antropológica,ie “casa” não alude apenas a um grupo unido genuinamente por consangüinidade (Nakami, 2005, p. 59).
Nesse sentido, o xintoísmo se foca na prosperidade da família, porém não se restringe à família consanguínea e pode se expandir para outros grupos. Assim, a nação japonesa podia ser uma comunidade imaginada - como diria Benedict Anderson (1993) -, sentimento que foi transferido para a devoção ao Imperador. Há muita literatura (Luiz, 2018, 2021; Silva, 2006) que afirma que esse momento de efervescência foi tão poderoso que se “laicizou” na cultura, perdendo seu lastro religioso e se tornou um valor social compartilhado por outros cidadãos: “Os japoneses, após a morte, passam a pertencerem ao rol dos “antepassados”, isto é, alguém digno de ser cultuado e com incumbência de “proteger” seus descendentes ou a comunidade na forma de deidade” (Gaudioso; Soares, 2020, p. 30).
Ou seja, após a morte é que inicia a gênese dos “antepassados”, e que, se por um lado são cultuados, por outro lado precisam render proteção. Para o xintoísmo, portanto, dois traços são importantes: (a) prosperidade do grupo e (b) o respeito aos antepassados.
Contudo, na história do Japão, há outras concepções sobre sacrifícios que resultam em morte, seja na citação de um dos Skilled Veterans, que faz um paralelo com os kamikaze ou, ainda, os samurais que cometiam seppuku/harakiri por honra. Por isso, a construção histórica do suicídio no Japão é muito própria para a análise dos dados:
A sociedade japonesa fornece materiais únicos para os estudos sociais sobre o ato de tirar a própria vida, sendo um dos países com as mais altas taxas de suicídio do mundo. Somente no ano de 2014, por exemplo, o Japão registrou uma taxa de 18,5 suicídios para cada 100 mil habitantes (BBC, 2015). Historicamente, uma das práticas de suicídio mais antigas do Japão é o Seppuku (切腹) ou Harakiri (腹切り), que era uma forma ritualizada do ato que perdurou durante séculos, representando uma insígnia, um ato de coragem e de honra reservado para os militares - precisamente, para os samurais - durante o Japão feudal (Oliveira, 2020, p. 289).
Neste ponto, o suicídio é ritualizado em diversas instâncias e, ao mesmo tempo, é cotidiano para a sociedade japonesa. Logo, a morte auto infligida não é necessariamente algo apartado do restante da cultura, é um ato de coragem e de honra - ou seja, é uma solução em determinados casos. Como esses padrões morais se expressam nos dados?
Um ponto importante para esse grupo é a autorreferenciarão. Inicialmente, eles se denominam como “veteranos” e não como “aposentados”. Essa é uma evidência que demonstra o quão desejam contrariar um discurso gerontológico de inoperância, o que os torna antepassados ativos tais quais o do xintoísmo e que atuam no mundo da vida. Ou seja, é um valor religioso que se tornou cultural que embasou a argumentação civil. Na outra parte da interação, podemos observar que o estado assumiu uma postura com o discurso gerontológico para embasar uma proteção.
O governo adotou o discurso gerontológico, enquanto os membros do grupo utilizaram a questão biológica para justificar o seu papel enquanto antepassados “presentes”. Os veteranos possuem ao seu lado a biografia e o fator biológico, o que coloca aqueles corpos em posição de possibilidade. Porém, o governo assumiu o papel de antepassado “ausente” e é obedecido, até mesmo, pelos veteranos. Talvez se o estado tivesse deixado ocorrer a ação dos voluntários, perdesse a sua legitimidade na medida em que não justificaria seu laço de solidariedade baseado na proteção, “sacrificando” os seus cidadãos. Analisar especificamente as declarações do governo pode ser um bom estudo para teorizar essas relações de lealdade e de laços de solidariedade.
Mesmo sem esses dados é possível se afirmar que se trata de uma atitude decolonial:
O que chamo aqui de atitude decolonial encontra suas raízes nos projetos insurgentes que resistem, questionam e buscam mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder [...]. Durante a chamada época da ilustração europeia, esta atitude era parte de uma guinada mais ampla, quando a ideia e a tarefa da decolonialidade do ser, do poder e do saber adquiriu um estatuto de projeto político internacional (Maldonado-Torres, 2016, p. 88).
Ora, o estado moderno é que preconiza essa soberania, e o modelo japonês foi concebido justamente na Europa Moderna e foi implantado no Japão com mais força no pós-II Guerra Mundial (Souza, 2017). Os veteranos, portanto, estão criando um questionamento deste estado burocrático na medida em que argumentam com base na cultura japonesa. A sua vontade de exercer um sacrifício é a resistência a essa gaiola de ferro do estado moderno.
Essa abordagem que leva em conta a religiosidade permite, também, conferir ordem a uma contradição que surge no discurso puro dos agentes. Pois, por um lado, os veteranos afirmam que aceitar sua ajuda é a atitude mais racional, porém ao mesmo tempo evocam o dever, o qual não necessariamente apela para uma racionalidade e sim para um pertencimento a um grupo. Os dois argumentos, portanto, anulariam-se do ponto de vista lógico, porém com a interpretação sociológica elas ganham um corpo coeso e passa a ter um significado.
Este artigo tratou de uma série de posições morais, lidas pela lente da religiosidade shintoísta, mobilizadas num momento de crise, que foi o vazamento nuclear na usina japonesa de Fukushima no ano de 2011, ocasionada por um terremoto e um tsunami. Nesse momento alguns idosos ofereceram-se para executar a limpeza, autodenominando-se Skilled Veterans Corps. Analisamos as falas diretas e indiretas desse grupo para determinar a natureza moral de sua escolha. Os resultados apontaram para uma construção de uma ancestralidade contrariando um discurso gerontológico proveniente do estado. Após essa sistematização, podemos realizar algumas reflexões finais.
Uma delas é que, aparentemente, a sociedade de direitos não combina com o heroísmo, uma vez que a partir dela o estado, assumindo os direitos básicos, acaba por colocar agentes públicos responsáveis por cada um deles. Nesse sentido, poderíamos teorizar, mesmo, de uma gaiola de ferro weberiana23 ao menos no caso analisado, no qual os idosos não desejam contrariar o estado. Porém, sabemos que esse comportamento nem sempre se repete em outras culturas, o que abre muito espaço para lutas e contestações sociais.
Uma última reflexão pode ser realizada acerca da ancestralidade. Em sociedades de solidariedade mecânica, os idosos tinham o poder de dizer a realidade no passado, porém nas de solidariedade orgânica esse papel já não é o mesmo. Eles claramente precisaram formular muitas explicações direcionadas para os agentes públicos, justificando-se quando, em outras épocas, somente precisariam mencionar a sua vontade e isso seria o suficiente para torná-la real.
