Dossiê

O cinema na encruzilhada: Eduardo Coutinho e a proposta de credibilizar os saberes afrorreligiosos no documentário “Santo Forte” (1999)

Cinema at the crossroads: Eduardo Coutinho and the proposal of giving credibility to the afro-religious knowledge in the “Santo Forte” (1999) documentary

Cine en la encrucijada: Eduardo Coutinho y la propuesta para acreditar los saberes afrorreligiosos en el documental “Santo Forte” (1999)

Vanda Fortuna Serafim
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Gabriella Bertrami Vieira
Universidade Estadual de Maringá, Brasil

O cinema na encruzilhada: Eduardo Coutinho e a proposta de credibilizar os saberes afrorreligiosos no documentário “Santo Forte” (1999)

Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 170-190, 2022

Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 01 Julio 2021

Aprobación: 07 Noviembre 2021

Resumo: O artigo propõe-se a analisar a primeira sequência do documentário “Santo Forte”, aqui entendida como um prólogo da obra, atentando à forma como entidades da Umbanda, bem como seus adeptos, foram retratados na narrativa audiovisual em tela. A obra foi gravada na comunidade Vila Parque da Cidade, Rio de Janeiro, em 1997 e lançada em 1999, sob a direção do cineasta Eduardo Coutinho. O viés teórico adotado parte da História Cultural, em diálogo com as perspectivas decoloniais como Luiz Rufino (2019) e Frantz Fanon (2008). Tomamos o cinema como uma importante fonte de análise, à medida que constrói representações sobre determinadas identidades sociais, étnicas e culturais, podendo servir, ou não, como marcador da diferença e da diversidade.

Palavras-chave: Umbanda, Eduardo Coutinho, Religião, Decolonialidade.

Abstract: The article intends to analyze the first sequence of the documentary “Santo Forte”, understood as a prologue of the piece, focusing on the way Umbanda entities, as well as their followers, were portrayed in the audiovisual narrative. The documentary was recorded in 1997 at the Vila Parque da Cidade community, Rio de Janeiro, and released in 1999, under the direction of filmmaker Eduardo Coutinho. The theoretical framework adopted is based on Cultural History, in a dialogue with decolonial perspectives such as those of Luiz Rufino (2019) and Frantz Fanon (2008). We take cinema as an important source of analysis, as it builds representations to certain social, ethnic and cultural identities, and may or may not serve as a marker of difference and diversity.

Keywords: Umbanda, Eduardo Coutinho, Religion, Decoloniality.

Resumen: El artículo propone analizar la primera secuencia del documental “Santo Forte”, aquí entendida como prólogo de la obra, con atención a la forma en que las entidades de Umbanda, así como sus seguidores, fueron retratadas en la narrativa audiovisual. La obra fue grabada en la comunidad Vila Parque da Cidade - RJ, en 1997 y estrenada en 1999, bajo la dirección del cineasta Eduardo Coutinho. La base teórica parte de la Historia Cultural, en diálogo con perspectivas decoloniales como Luiz Rufino (2019) y Frantz Fanon (2008). Se entiende el cine como una importante fuente de análisis, ya que construye representaciones sobre determinadas identidades sociales, étnicas y culturales, que pueden servir como marcador de diferencia y diversidad.

Palabras clave: Umbanda, Eduardo Coutinho, Religión, Decolonialidad.

Conhecendo “Santo Forte”

Esse artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa sobre história, cultura e narrativas afrorreligiosas, que vem sendo desenvolvida há cinco anos junto ao Grupo de Pesquisa em História das Crenças e das Ideias Religiosas (HCIR-UEM). Partindo da história cultural, em diálogo com as perspectivas decoloniais, tomamos o cinema como uma importante fonte de análise, a medida em que constrói representações sobre determinadas identidades sociais, étnicas e culturais, podendo servir, ou não, como marcador da diferença e da diversidade.

Entendendo que “não há virada epistemológica sem virada linguística” (Rufino, 2019, p. 124), o documentário “Santo Forte”, gravado em 1997 e lançado em 1999, sob a direção de Eduardo de Oliveira Coutinho (1933-2014), é um importante marco do esforço desse intelectual no sentido de lançar “em cruzo as sabedorias ancestrais que ao longo dos séculos foram produzidas como descredibilidade, desvio e esquecimento” (Rufino, 2019, p. 7).

Ao considerarmos, ao modo da vertente teórica proposta por Luiz Rufino (2019, p. 9), em “Pedagogia das encruzilhadas”, que a raça é a invenção que “precede a noção de humanidade no curso da empreitada ocidental, o estatuto de humanidade empregado ao longo do processo civilizatório colonial europeu no mundo é fundamentado na destruição de seres não brancos” é interessante analisar a opção de Eduardo Coutinho ao produzir um documentário pautado na diversidade religiosa brasileira, mas com foco central na Umbanda, em não assumir o repertório da linguagem científica/ocidental/cristã para construir a narrativa do documentário, mais do que isso, os atores-personagens são os narradores de si mesmos. Ao optar por esse modelo, o diretor expõe contradições de um Brasil cindido, dos seres partidos, da escassez e do desencantamento (Rufino, 2019).

Em “Santo Forte”, a proposta, construída pelo mencionado diretor, Eduardo Coutinho, era a de realizar um documentário composto essencialmente por entrevistas - ou conversas, como preferia chamar - com moradores da favela Vila Parque da Cidade, situada na Zona Sul do Rio de Janeiro, partindo da temática das religiões. Outra questão importante, no âmbito dos objetivos do documentário, é a intenção do diretor de verificar entre os moradores da Vila Parque a repercussão da Missa Campal em celebração ao Segundo Encontro Mundial do Papa com as Famílias, evento católico, realizado pelo Papa João Paulo II, no Aterro do Flamengo, também no Rio de Janeiro. Para isso, o primeiro dia de gravação do documentário se dá na data de 05 de outubro de 1997, simultaneamente à realização de tal evento.

Apesar dos processos de montagem, Coutinho preza pela ordem cronológica dos eventos, tendo como marco inicial o dia da Missa Campal e como final, a data de 24 de dezembro de 1997, noite de Natal, ou seja, em datas que marcam celebrações religiosas. Assim, a partir destes aspectos gerais, iremos expor mais detalhadamente os processos que levaram à gravação do filme, a narrativa documentária, propriamente dita, bem como primeiras análises e impressões sobre a mesma.

A ideia para a gravação de “Santo Forte”, surge de um projeto de série, inacabado, para a então TV Educativa, intitulado “Identidades brasileiras”, que apresentaria temáticas culturais presentes em nosso país, sendo uma delas a religiosidade. Coutinho, estava à frente da coordenação do projeto, porém este não se concretizou por questões administrativas da emissora. Nas pesquisas para a série, o cineasta acabara de se desvincular do Instituto de Estudos da Religião (ISER)1 e se vincula ao Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP)2. Apesar de se desvincular do ISER é inegável a influência deste grupo no contato de Coutinho com as religiões afro-brasileiras, em especial à Umbanda.

Beth Formaggini (2017), historiadora, diretora de cinema e produtora dos filmes do diretor por muitos anos, no artigo “Cinema de afeto”, contido no livro “Santo Forte visto por”, diz que Coutinho se preparava muito para seus filmes. Era um intelectual bem informado e sempre lia muito sobre o assunto que iria abordar, assistia a todos os filmes sobre. Sua trajetória demonstra esse posicionamento do diretor quanto a isso.

A temática da religião e a curiosidade sobre as favelas do Rio de Janeiro, já estava presente em suas produções. O cineasta entrou em contato com a comunidade Vila Parque da Cidade, local de gravação de “Santo Forte”, a partir de vasta pesquisa sobre religião, fruto do trabalho acadêmico das antropólogas Patrícia Birman e Patrícia Guimarães3, vinculadas ao ISER, e também com o projeto desta última, que resultou no curta-metragem “Pombagira” (1998), de 13 minutos, que tratava de sexo, amor e religiosidade na Umbanda, filmado também na Vila Parque (Formaggini, 2017)4. A autora citada, Beth Formaggini, também havia trabalhado na equipe de pesquisa do projeto para a série da TVE, e ressalta que foi a partir dessa experiência que Coutinho delimita as “prisões”, ou dispositivos5 de filmagem, que utilizará em “Santo Forte”, apesar de já vir maturando seus métodos há mais tempo. Sobre a escolha da temática “religião”, Coutinho a vê como uma constante na vida dos brasileiros e por isso consideramos que ela é uma das chaves de leitura pela qual ele busca pensar o Brasil e suas populações diversas:

Para mim, as coisas básicas de uma pessoa são: nascimento, origem, família, amor, trabalho, dinheiro, sexo, saúde, morte e religião. Porque se tem morte, tem religião. No Brasil, as pessoas se encontram com os deuses na esquina, tropeçam neles como se fosse o birosqueiro. Para a Igreja Universal, o diabo está aqui, está no ônibus. O devoto do Padre Cícero fala com a estátua e por aí afora. Então não é um filme sobre religião, é um filme sobre a vida concreta. E a vida concreta é permeada de religião. Eu achava que isso não tinha em cinema. O que se tinha era a visão da religião como coisa alienada ou então os filmes sobre rituais. Por outro lado, aprendi sobre a trajetória religiosa das pessoas. Não tem nada a ver com o universo americano ou europeu. Ninguém entende isso fora do Brasil. Eles vão para uma religião, voltam para a outra, é fantástico! E sempre por razões ligadas à vida prática (Coutinho apud Formaggini, 2017, p. 74-75).

Assim, o diretor vê o assunto das trajetórias religiosas e das relações das pessoas com a vida, a morte e o sagrado, como uma das grandes temáticas para se pensar o Brasil, percebendo nas práticas religiosas plurais e, ao mesmo tempo singulares de cada indivíduo, algo muito rico à nível individual e coletivo.

O colonialismo produziu violências indeléveis em todos nós, porém, o seu projeto de ser um paradigma hegemônico monocultural e monoracionalista apresenta fissuras, fraturas expostas, hemorragias, sangrias desatadas. Mesmo tendo sabedoria dos grupos tidos como subalternos operado golpes de forma astuta nas estruturas coloniais, o intenso investimento na formação dessa engrenagem moderna fez com que, até os dias de hoje, permaneça a dimensão do contínuo colonial (Rufino, 2019, p. 36).

Em entrevista concedida à mestre em ciências da religião Nathalie Almeida Hornhardt (2014), na dissertação “Quando o Santo é Forte: uma discussão sobre insuficiência humana no documentário de Eduardo Coutinho”, o diretor demonstra esse posicionamento que confirma a tese da autora e afirma a religião, a transcendência e a magia como formas de preenchimento do ser humano, como uma constante antropológica, pressuposto do qual a autora parte e que parece estar presente em “Santo Forte”. Ele diz:

É porque magia: quanto mais, melhor. Se você tiver dez sinais que dão sorte, é bom ter o dez. Toda proteção é útil. Agora vai explicar para um americano. É impossível. E esse filme Santo Forte, não só pelo fato de ser falado demais, é impossível, são muitas legendas, o cara tem que ler “Pomba-gira”, “Vovó Cambinda”. Ele não sabe o que é aquilo. É muito característico do Brasil (Coutinho apud Hornhardt, 2014, p. 139).

Essas afirmações elencadas são muito relevantes para construirmos nossa abordagem que prioriza pensar que, Coutinho considera a religião enquanto uma das chaves de leitura e entendimento de nosso país, mas não qualquer religião, e sim a Umbanda. Em “Santo Forte” isso não se expressa a partir do catolicismo, que é considerado ainda por muitos, pela tradição cristã de nosso país enquanto “a religião do brasileiro”. É a Umbanda que está presente e que chegou até a essa população periférica. Ele realoca o catolicismo enquanto a religião que existe, porém que não chega efetivamente até esses locais. A missa Campal com o Papa está acontecendo na mesma cidade em que os entrevistados de “Santo Forte” e Coutinho vivem. Porém, os personagens só acessam essa crença através da televisão e não da prática diária, como é o caso da Umbanda. As entidades da Umbanda, que buscamos apresentar mais à frente neste trabalho, são objetos de devoção. E isso não acontece por acaso, mas pela identificação entre essas populações marginalizadas e tais entidades.

Ao perceber isso, parece que Coutinho busca falar dessas entidades, que lemos na obra como os duplos religiosos e cinematográficos que emergem, para falar de Brasil. São duplos porque assim como as populações que lhes prestam devoção estas também foram historicamente marginalizadas e demonizadas, mas ainda resistem e cuidam dos seus. Tais divindades, para o diretor, são tidas como realidades à medida que seus crentes as significam dessa forma e, a partir disso, ele as traz como realidades para pensar o próprio mundo em que vivemos.

A obra tem 83 minutos de duração, sendo a primeira sequência de cenas de “Santo Forte”, que compreende os seis minutos iniciais, uma espécie de prólogo ou anúncio, que introduz elementos emblemáticos, ou “padrões enunciativos” para a compreensão da narrativa. A obra foi realizada com recursos da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro/Secretaria Municipal de Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura e da RioFilme6, na época vinculada à Prefeitura do Rio de Janeiro, sob a direção de José Carlos Avellar, e ainda, com o investimento do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP). A distribuição do documentário foi dividida entre a Funarte e a Riofilme, em VHS e nos cinemas. Para além disso, o filme foi também selecionado e financiado pelo “Programa Rumos - Cinema e Vídeo", do Itaú Cultural de 1998, na categoria “produção”.

O documentário gerou várias premiações a seu diretor, depois do hiato de 15 anos - desde “Cabra marcado para morrer” (1984) -, sem lançar um longa-metragem com exibição comercial expressiva nos cinemas. Dentre eles “Santo Forte” ganhou de Melhor filme, roteiro, montagem e “Prêmio da Crítica” no Festival de Brasília (1999); O “Prêmio Especial do Júri” no XXVII Festival de Gramado de Cinema Latino e Brasileiro (1999); “Margarida de Prata”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), (1999); Prêmio para finalização do filme concedido pelo Office Catholique du Cinéma (OCIC) e “Melhor filme brasileiro de 1999”, pela Associação Paulista de Críticos de Arte e SESC (Mattos, 2003). Além disso, é considerado, como um dos dez mais importantes filmes do contexto da retomada do cinema brasileiro (1994-2002).

Por conta da pesquisa prévia com os moradores, percebemos no documentário que Coutinho tem algumas informações sobre possíveis histórias dos entrevistados. Com isso, entendemos que o diretor assume uma postura de estimular a fala dos personagens, e não de falar pelo outro. Apesar disso, o diretor tem noção da assimetria contida entre ele e sua equipe e os moradores que são entrevistados. Coutinho é um cineasta, branco, de classe média-alta, que viaja até a favela buscando a compreensão da religiosidade vivida a partir das narrativas dos que lá vivem. Além de obter informações prévias sobre as histórias que gostaria de ouvir, não podemos esquecer o poder de quem porta a câmera, que vai representar, a partir de um recorte, de um olhar e de uma lógica construídas pelo diretor, esse outro. Ainda assim, é preciso lembrar que para ser antirracista, como direciona Djamila Ribeiro, “é preciso antes de mais nada reconhecer o racismo, informa-se, ter em mente que mesmo quem busca ativamente a consciência racial já compactuou com violências contra grupos oprimidos” (Ribeiro, 2019, p. 8-9). Esse reconhecimento marca a produção de Coutinho como um todo.

A pergunta “Qual é sua religião?” também é algo que norteia as entrevistas. A maioria7 dos entrevistados responde que é “católico apostólico romano” e logo depois adiciona “e também espirita”, “católico espírita”, ou ainda, “e também frequento a Umbanda”. Assim, em “Santo Forte”, temos a presença de várias tradições religiosas, em especial8, a Umbanda, o Catolicismo, o Pentecostalismo e o Espiritismo. Esse questionamento condutor, nos parece muito ligado às pesquisas censitárias do IBGE, questão que perpassa atuação de Coutinho junto ao ISER e às dinâmicas, trânsitos, trocas, concorrência, enfim, às relações entre as diversas religiões presentes no Brasil e as relações de devoção que os sujeitos estabelecem com estas.

Neste sentido, a comunicação, devoção e proximidade com deuses, espíritos, orixás e, sobretudo, entidades da Umbanda é traço marcante. Vale ressaltar também, que em todo o filme não temos a presença de especialistas (pesquisadores ou lideranças religiosas) sobre as temáticas levantadas pela obra. O que se tem é a narrativa do sujeito que pratica, vivencia, e então narra sua experiência religiosa particular. A obra evidencia polifonias e, com isso, a pluralidade religiosa e cultural, nem sempre pacífica, existente em nosso país.

A partir de transcrições e mapeamentos da fonte, consideramos que “Santo Forte” possui marcos/divisões, que estão relacionadas principalmente à cronologia das filmagens, respeitada na montagem9 final pelo diretor, e que representam “blocos” pelos quais o filme pode ser lido. São estes: a) As filmagens realizadas no dia 05 de outubro de 1997, que trazem uma espécie de prólogo do que encontraremos no documentário; b) As filmagens realizadas na mesma data citada, porém com enfoque especial para os entrevistados que estão assistindo a Missa Campal realizada pelo Papa João Paulo II; c) As filmagens realizadas em dezembro de 1997, que se constituem a parte “principal”, ou o “condensado” das entrevistas do documentário; e, por último, d) As filmagens realizadas na noite do dia 24 de dezembro, véspera de Natal, que são uma espécie de reencontro da equipe e de Coutinho com os entrevistados e de “despedida”10.

A partir do exposto, buscamos pensar as relações dos moradores da localidade com esse catolicismo que, por um lado, possui uma tradição tão forte no Brasil e muita adesão, principalmente no sentido da devoção aos santos, e nas relações sincréticas com outras denominações religiosas, mas que, por outro, parece ainda não chegar/dialogar tão intimamente e efetivamente às populações que estão em lugares não privilegiados nos segmentos sociais. Parece-nos que a intenção de Coutinho, ao construir esse momento com adeptos das religiões afro-brasileiras, foi a de mostrar justamente os hibridismos presentes na formação religiosa brasileira, sob o olhar de quem os recria e vivencia, e que nem sempre tem a intenção de publicizar suas crenças e práticas, por considerarem-nas algo íntimo, privado - ainda que se digam inicialmente católicos ou espíritas e estejam assistindo a missa do Papa pela televisão.

A Umbanda e o ethos cristão/católico no Brasil

Para finalidade deste artigo, tomaremos para análise a primeira sequência de “Santo Forte”. A escolha se dá em decorrência do nosso entendimento de que se trata de um momento emblemático para a compreensão de todo o restante da narrativa e para introduzir o leitor à obra. É o prólogo ou contextualização que Coutinho faz questão de nos mostrar. Para pensarmos a construção da narrativa pelo cineasta e explorarmos as possibilidades de análise iniciais, utilizamos de alguns fragmentos da obra (imagens e relatos), e, também de discussões e trabalhos de pesquisadores que têm como objeto de análise o documentário em questão. Buscamos, vale lembrar, compreender o sujeito produtor do documentário, e o olhar construído por ele sobre religião no Brasil datado da década de 1990, a partir dos personagens que a obra traz que constroem a lógica almejada por Coutinho.

Fragmento André e Marilene
Imagem 1:
Fragmento André e Marilene
Fonte: “Santo Forte” (1999).

O quadro 1 da imagem 1, nos mostra a primeira cena do documentário, que dura em média oito segundos. O casal, abraçado à frente do que nos sugere ser sua casa, é André e Marilene. Sem introduções, depois desse plano fixo, quase como um retrato, temos a voz, seguida da imagem, de André, presente no quadro 2, que diz: “Teve uma vez à noite que ela [Marilene] acordou, ficou me batendo assim [faz o gesto]. Aí, quando eu acordei, eu olhei pra ela e era uma das guias dela: é Pomba-gira, acho que é Maria Navalha” (Santo Forte, 1999)11.

Pombagiras são espíritos de mulheres, cada uma com sua biografia mítica: histórias de sexo, dor, desventura, infidelidade, transgressão social, crime. Pombagira é um exu, um exu feminino. Na concepção umbandista, o termo exu nomeia dezenas de espíritos de homens e mulheres que em vida tiveram uma biografia socialmente marginal. O culto dessas entidades é reunido na quimbanda, uma das divisões da Umbanda, hoje em dia também encontrada em muitos terreiros de candomblé. A quimbanda cuida das situações de vida que a moralidade dos caboclos e pretos-velhos, que compõem a outra divisão da Umbanda, rejeita e reprime. Pombagira tem múltiplas identidades, cada uma com nome, aparência, preferências, símbolos, mitos e cantigas próprias. Entre dezenas há: Pombagira Rainha, Maria Padilha, Sete Saias, Maria Molambo, Pombagira das Almas, Dama da Noite, Sete Encruzilhadas. Apela-se especificamente às pombagiras para a solução de problemas relacionados a fracassos e desejos da vida amorosa e da sexualidade. Pombagira junta e separa casais, protege as mulheres, propicia qualquer tipo de união amorosa ou erótica, hétero ou homossexual (Prandi, 2008, s./p.).

Logo após essa fala, há um corte para a imagem de uma estátua vermelha de uma mulher com os seios à mostra, como vemos no quadro 3. Tal imagem representa a entidade do panteão umbandista citada pelo entrevistado: Pomba-gira Maria Navalha. Simultaneamente a isso, André continua narrando o episódio em que sua esposa incorpora a entidade, a qual o ameaça de morte. Segundo ele (Quadro 4 - Imagem 1), quando deu meia-noite Maria Navalha “vai embora” e Marilene “acorda” (Santo Forte, 1999) com dores no corpo. André segue a narrativa, interpretando ele mesmo em diálogo com Marilene:

Aí eu falei: é você? Ela falou: Sou eu. Falei: Ó, você tem problema de negócio de espiritismo? Aí ela: É, eu tenho. É de berço. Falei: Por que você nunca me falou? Acabou de vir um guia seu aí, falou que ia me matar. Ó, você procura um centro espírita, vê esses problemas seus aí, porque isso pode acabar com a relação de nós dois. [André volta a falar diretamente para Coutinho] aí foi acontecendo muitas vezes, diariamente (Santo Forte, 1999).

A narrativa continua com o personagem contando outra incorporação da esposa. Dessa vez a Vovó, uma Preta-velha, também entidade da Umbanda que aparece representada pela estátua de uma mulher negra, já idosa e curvada, com roupas brancas, como vemos no quadro 5 - Imagem 1. Na medida em que o personagem a cita no relato: “Aí um [guia] que me ajudou, foi quando desceu a Vovó dela” (Santo Forte, 1999), há um corte e temos a imagem da estátua. André então continua:

A vovó falou tudo o que estava acontecendo: [e aconselhou] ela tinha que ir em um centro para fazer a limpeza. Do mesmo jeito que ela entrou, ela tinha que sair e continuar fazendo as obrigações dela né. Aí, ela [a Vovó] me explicou, falou: Ó, você leva ela, porque senão ela vai morrer louca (Santo Forte, 1999).

Quando André fala isso, temos um novo corte e vemos a imagem de um quarto (Quadro 6 - Imagem 1), com uma colcha vermelha sobre a cama, e pouca luz. A imagem permanece na tela, em silêncio total, e sem a presença humana, por cerca de cinco segundos. Depois da cena silenciosa com o quarto vazio onde, por associação, nos damos conta ser o quarto do casal, local em que ocorre os episódios que André narra, segue-se o relato, no qual o entrevistado passa a explicar, incitado por Coutinho, como seria a limpeza/passe que a entidade havia dado nele e em Marilene.

Em determinado momento, o diretor interrompe a fala de André e diz: “Deu uma limpeza nela quer dizer o seguinte: é como se tivesse 3 pessoas. Você conversava com a entidade, que era a Vovó e falava da terceira pessoa que era ela mesma, então ela fez uma limpeza nela mesma?!” (Santo Forte, 1999). André responde que sim e Coutinho completa/pergunta: “O espírito no cavalo. É isso?” (Santo Forte, 1999). Com uma resposta afirmativa, o personagem passa a utilizar a terminologia sugerida pelo entrevistador: “É. [representando a entidade] vou fazer uma limpeza no meu cavalo. Meu cavalo tá muito carregado” (Santo Forte, 1999). Percebe-se na narrativa de André, uma mudança de tom. Se Maria Navalha causava temor, a Vovó por sua vez passava confiança e calmaria, isso porque na Umbanda Pretos e Pretas-Velhas

representam os espíritos dos velhos africanos e dos ex-escravos que trabalharam e viveram no Brasil, constituem uma das categorias espirituais do seu panteão, com perfile caracteres bem definidos. São identificados como espíritos que trabalham na linha da direita, ou seja, trabalham para o bem, prestam auxílio aos necessitados, praticam a caridade, através da palavra ou de serviços mágico-religioso. A eles são atribuídas as seguintes qualidades: paciência, resignação, bondade, tolerância e humildade (Santos, 2010, p. 127).

A narrativa de André, e as imagens apresentadas nos dão algumas dicas/prévias do que iremos encontrar na obra, e também, consequentemente, neste trabalho. Primeiramente, temos a questão dos enquadramentos. Os planos fixos, de close, que focam o rosto ou no máximo a altura da cintura, vão ser os mais comuns na obra. Coutinho escolhe sublinhar os gestos, o olhar e as expressões faciais, e a câmera acompanha tais intenções. Por vezes nos aproximamos ainda mais do personagem, como quem quer ouvir mais de perto, olhar com sensibilidade.

Vemos ainda, que o entrevistado está em sua casa, e narra, na intimidade do seu lar, as experiências com as entidades de sua esposa. Isso também é estratégico, e faz parte do jogo de enunciações do diretor, uma vez que este percebe que a religião, apesar de ser tema que quase sempre aparece na fala das pessoas no cotidiano, é algo íntimo e excepcional, e por isso, um clima e ambientes confortáveis é essencial na hora da filmagem. É notório que Coutinho não retira seus entrevistados de seus próprios espaços. Eles falam de um lugar próprio, distanciados das instituições. O que temos, parece ser a escolha, por parte do participante de onde seria este lugar de conforto, intimidade e devoção: a sala, o quarto, o quintal, a mata.

Além disso, ainda podemos notar que André interpreta cerca de três papéis na narrativa, o dele mesmo, o da esposa, e o da Pomba-gira, incorporada na esposa. E ainda, faz interlocuções que trazem para o presente as memórias do acontecido, como quando recria as conversas com Maria Navalha, e logo depois se dirige ao diretor, volta ao momento da entrevista. Interessante perceber como a narrativa coloca Pomba-gira e Preta-Velha em campos opostos, reforçando dualidades de bem (Vovó) e mal (Maria Navalha). Embora esse contraste apareça na fala de André, é sob as lentes de Coutinho que a narrativa é escolhida, recortada, editada e apresentada.

Isso, no nosso entender, abre um espaço para que o personagem comente mais sobre a temática e ainda, se sinta valorizado, notado, ao ser questionado. Além disso, é uma estratégia realizada de modo sutil, que está relacionada também à opção metodológica do diretor de não utilizar a voz over, mais conhecida como “a voz de deus”, recurso com o qual, um narrador, no processo de montagem, explica/contextualiza as narrativas de um filme. Ou seja, convenientemente narra pelo outro sem se expor. No cinema de Coutinho, os entrevistados, em negociação entre seus desejos e os desejos do diretor, é quem narra a si à realidade vivida.

Para nosso intuito de compreender a construção da obra e a construção dos personagens no que tange às experiências sociais e religiosas, não deixamos de notar outra questão que se apresenta em vários outros momentos da obra também: o personagem fala em espiritismo, quando pergunta se Marilena “tem problemas”. Porém, as entidades que incorporam em sua esposa e conversam com André, são tipicamente do panteão umbandista. Assim, essas relações entre espiritismo-Umbanda também serão exploradas neste trabalho, apontando para os processos históricos que contribuem ou não para várias apropriações, omissões e interpretações de tais religiões.

Ainda temos os planos em que são representadas, a partir de imagens de estátuas, as entidades citadas pelo personagem (Vovó e Maria Navalha) e o plano do quarto vazio, local onde a experiência narrada por André ocorreu. Sobre estes últimos, Beth Formaggini (2017) diz que, são para que nós mesmos, espectadores, possamos preencher12. Nesse mesmo sentido, Queiroz (2017, p. 29), considera que é como se Coutinho dissesse: “da mesma forma que o crente religioso não precisa se explicar e justificar sua crença, o espectador deve seguir sua crença (interpretação) sem a sugestão da palavra do personagem o da voz over do diretor”. Ou ainda, como uma estratégia discursiva que sugere que a religião, ou melhor, a comunicação com o sagrado, a mediunidade, a devoção, ocorre não necessariamente a partir da instituição, do espaço público, da multidão, pode ser particular (Queiroz, 2017; Mesquita, 2006).

Essas cenas dos espaços vazios, são também as únicas cenas silenciosas na obra. Não temos narração, nem trilha sonora. Apenas o silencio que pode indicar várias coisas, inclusive uma abertura, um entre. “Se o dispositivo da entrevista cinematográfica é colocado a serviço da mise-en-scène do outro, ele acolhe também o seu silêncio. Vale lembrar que não só de diálogo é feito o filme” (Queiroz, 2017, p. 31).

As estátuas das entidades também já foram analisadas nos trabalhos citados sobre “Santo Forte”. Scareli (2009), explora mais seu potencial ilustrativo/educativo: de trazer para o espectador algo que seja mais palpável, que remonte à uma representação do “senso comum” sobre tais entidades da Umbanda. Já Mesquita (2006), explora uma relação de projeção e identificação dos narradores com as entidades, que na maioria dos relatos são guias dos sujeitos. No caso de André, eram de Marilena. Ainda assim, a Vovó lhe passa ensinamentos, lhe ajuda, lhe guia.

Nesta primeira narrativa, Coutinho parece nos apresentar o “o que” e o “como” de “Santo Forte”. Um documentário, que tem por essência a narrativa da experiência religiosa, a partir de um enfoque mais particular, mas que, como tudo na história, está inserido em um contexto mais geral. Os quadros que mostram André, o espaço vazio e as estátuas, são a espinha dorsal da obra. Passamos agora, para o “onde” e o “quando”.

Fragmento Missa Campal: 05 de outubro de 1997
Imagem 2:
Fragmento Missa Campal: 05 de outubro de 1997
Fonte: “Santo Forte” (1999).

Depois do primeiro relato exposto e analisado acima, temos um corte e a exibição do letreiro (Quadro 1 - Imagem 2) “Rio de Janeiro - 5 de outubro de 1997”. Ao fundo há o som de pessoas entoando a frase de efeito “João Paulo II, te ama todo mundo”. É o início da sequência que mostra um trecho rápido do início da Missa Campal, realizada pelo Papa João Paulo II no aterro do Flamengo. As imagens são do arquivo da Rede Globo, cedidas para o documentário, e adicionadas no processo de montagem, uma vez que nessa mesma data, o diretor e sua equipe estão na Vila Parque da Cidade, entrevistando e averiguando a repercussão deste evento entre os moradores. A missa celebra o “II Encontro Mundial do Papa com as Famílias”, que tinha como tema “A família: dom e compromisso, esperança da humanidade”, e reuniu em média dois milhões de fiéis13.

O pontífice chega pela terceira vez14 ao Brasil no dia 02 de outubro de 1997, e permanece até o dia 05 do mesmo mês, data da cerimônia acima. Durante sua estadia no país, que teve como objetivo primeiro a comemoração do “II Encontro Mundial com as Famílias”, João Paulo II permanece apenas na cidade do Rio de Janeiro, onde realiza uma cerimônia de chegada, na base aérea do Galeão; encontra com Bispos e convidados do “Congresso Teológico-Pastoral”, no Centro de Congressos Riocentro; realiza uma missa com os bispos, o clero e representantes de tal congresso na Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro; a “Festa-Testemunho das Famílias com o Papa”, no Estádio do Maracanã; a “Missa Campal com as Famílias”, no Aterro do Flamengo; e uma cerimônia de despedida, mais uma vez na Base aérea do Galeão. Além dos discursos, feitos nestes eventos, a autoridade redige uma Carta Pontifícia para os enfermos do Instituto Nacional do Câncer e outra para os presos do presídio Frei Caneca.

No quadro 4, da imagem 2, temos a imagem do então Papa, acompanhada na obra da fala: “Caríssimos irmãos e irmãs. Sinto-me feliz de estar convosco pela segunda vez, nesta vossa cidade maravilhosa, para celebrar a eucaristia do Segundo Encontro Mundial com as famílias. Confessemos e peçamos perdão por todos os pecados, sobretudo os cometidos contra o amor e a fidelidade” (Santo Forte, 1999).

Ao dizer isso, as vozes da multidão que assiste a missa (Quadros 5 e 6), em coro, começam a proferir a oração do “Ato Penitencial”15. É com as milhares de vozes dizendo “por minha culpa, por minha tão grande culpa”, num clima de expiação da culpa, que somos redirecionados da Missa Campal, no Aterro do Flamengo, para a comunidade Vila Parque da Cidade, a partir de uma sequência em travelling, mostrando a localidade vista de cima, em um movimento de aproximação progressiva16, como vemos na imagem 3, quadros 1, 2 e 3.

Fragmento Redirecionamento: a chegada na Vila Parque da Cidade
Imagem 3:
Fragmento Redirecionamento: a chegada na Vila Parque da Cidade
Fonte: “Santo Forte” (1999).

Seguidamente, temos imagens de Eduardo Coutinho (Quadro 4 acima), sua equipe (Quadros 5 e 6 - Imagem 3) e equipamentos de filmagem, caminhando pela comunidade. A escolha, recorte e redirecionamento não parecem ser aleatórios. Partindo do espaço privado da casa de André que narra as experiências mediúnicas de sua esposa e a necessidade de acalmar sua Pomba-gira por intermédio de uma Preta-Velha, trazendo à tela o leito conjugal; o documentário centra-se então no espaço público, no Aterro do Flamengo, exibindo diversos pontos turísticos da cidade, onde acontece a Missa Campal, envolvendo multidões e reforçando a magnitude da fé católica no Brasil. O papa polonês é acolhido sobre gritos e frases de amor. E o momento do discurso do Papa eleito por Coutinho para constar no documentário é endereçado às famílias e se remete ao pecado e à necessidade de confessá-lo, especialmente aos cometidos contra o amor e fidelidade. Ao que a multidão reage em auto penitência: por minha culpa, minha tão grande culpa.

Esse processo é interessante para pensarmos a forma como a Igreja Católica operacionalizou seus dogmas no Brasil. Como bem observou Berkenbrock (1997) a forma como a religião se organiza no Brasil é por meio da imposição. Ser português no século XVI era sinônimo de ser católico e o regime do padroado (que vincula Estado e Igreja) queria expandir esse catolicismo para fora da América. Os indígenas foram forçados à conversão ao catolicismo. Muitos portugueses que vieram para cá, eram recém-conversos e o mesmo aconteceu com os escravos. Os escravizados eram convertidos ao catolicismo, batizados já no navio, durante o tráfico. Eram obrigados a ser cristãos, participar dos ritos e comportar-se como católicos. Mas essa conversão não significava aceitação. Os negros eram vistos como católicos de segunda categoria, não eram integrados. Muitas igrejas e capelas eram construídas com uma nave e um alpendre. Os lugares na nave eram reservados aos brancos. Os negros permaneciam no alpendre a assistiam a missa através de portas e janelas.

O recorte feito por Eduardo Coutinho parece mostrar um novo tipo de nave e alpendre que se estabelece no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, quase ao final do século XX. Ao centro da cidade, a Missa Campal com suas autoridades, à margem, do morro, das favelas, as populações pretas e pardas assistem à missa pela televisão. Declaram-se católicos, mas todos carregam seus guias e protetores, aos quais se referem com certo constrangimento e desconfiança. Passados cem anos da abolição e da instauração da República, cuja Constituição assegura a liberdade de culto, mas o Código Penal criminaliza as práticas afro-brasileiras, ainda não é seguro expressar sua fé e filiação religiosa.

Esse é um dos modos que as relações de violência se manifestam nas práticas culturais e religiosas, a partir, sobretudo, dos recortes raciais instaurados com a colonialidade (Quijano, 1992). Esta última, rebatemos a partir da decolonialidade, que coloca no centro a ideia de que a violência e exploração de povos de origem africana e indígenas, a partir do cativeiro e da invasão, produziram e produzem representações, discursos e práticas que hierarquizaram e hierarquizam as populações não-brancas a partir de uma régua eurocentrada. É a chamada cultura da discriminação, o racismo, a colonialidade expressa a partir dessas relações e representações na realidade contemporânea brasileira. Como bem explica Beatriz Nascimento (1976, p. 4):

É comum dizer que o negro tem uma cultura própria. É claro que tem. E essa cultura é vinda de nossa origem africana. Então, tem-se o candomblé, Umbanda e determinadas formas de comportamento, maneiras de se organizar, modos de habitar e uma série de outras coisas... Existe uma cultura realmente histórica e tradicional que seria a cultura de origem africana e uma outra cultura também histórica, mas que foi forjada nas relações entre brancos e negros, no Brasil. [...] o negro tem uma história tradicional onde subsistem ainda resíduos das sociedades africanas, mas tem, também, uma cultura forjada aqui dentro e que esta cultura, na medida em que foi forjada num processo de dominação, é perniciosa e bastante difícil e que mantém o grupo no lugar onde o poder dominante acha que deve estar. Isto é o que eu chamo de ‘Cultura da Discriminação’.

E o documentário segue adentrando a comunidade. Quem os orienta é Vera, moradora do local, personagem do filme e integrante da equipe de pesquisa de entrevistados. Ouvimos sua voz, enquanto assistimos à tal chegada: “A Gávea é um bairro rico. De casas maravilhosas, prédios maravilhosos. É um contraste até: uma comunidade, uma favelinha, no meio disso tudo. Ela [Vila Parque da Cidade] fica de frente para o Cristo Redentor. A gente pode ver o mar, né. A gente vê uma pontinha, ali, do Pão-de-Açúcar” (Santo Forte, 1999).

Imediatamente à essa fala, passamos aos quadros da imagem 4 , abaixo, que mostram Vera, mulher de cabelos cacheados, na presença de Coutinho (Quadro 1), da equipe (Quadro 3) e, logo depois de Braulino (Quadros 4 e 5):

Fragmento Vera, a porta de entrada e a chegada na casa de Braulino
Imagem 4:
Fragmento Vera, a porta de entrada e a chegada na casa de Braulino
Fonte: “Santo Forte” (1999).

O diretor pergunta a ela entusiasmado: “Onde é que nós estamos, Vera?” (Santo Forte, 1999). Então, a entrevistada passa a apresentar Vila Parque da Cidade, em suas palavras “uma pequena comunidade que fica na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro. Com cerca de mais ou menos 1500 moradores” (Santo Forte, 1999). Vera relata que conhece bem o local por ter sido agente de saúde, e morar no mesmo por 35 anos. E continua: “Eu, na verdade, fui uma porta de entrada pra esse documentário acontecer na comunidade, porque eu trouxe vocês para dentro da comunidade e mostrei para você quem era essa comunidade” (Santo Forte, 1999).

Vera, se coloca como a porta de entrada da equipe na comunidade. E realmente o é. A moradora, além de conhecer a população muito bem por ter sido agente de saúde por anos no local, participou das pesquisas de Patrícia Guimarães e se mostrou criteriosa e cautelosa, como ressalta Verônica Dias (2010), em vários momentos com relação à gravação de “Santo Forte”, isso porque queria que sua comunidade fosse “respeitada”, em todos os aspectos. Segundo Dias (2010), esse trecho da personagem que está na obra, foi regravado diversas vezes, demonstrando a preocupação de Coutinho em ter a pessoa “de dentro”, que apresente a localidade, o contexto, sem que recorra à narração over. Sobre essa parte, Queiroz diz que Coutinho intenciona

evitar um padrão de enunciação jornalístico, que cumpre, contudo, mais ou menos a mesma finalidade de informar o espectador sobre o contexto no qual se passa a situação filmada. Se Coutinho não tinha como intuito guiar o filme com a autoridade de seu comentário, ele tratou de provocar a personagem para atuar no filme como narradora. Não que Vera tenha feito isso por meio de um cabresto, ao contrário, estava ciente do papel que cumpriu, e entrou no jogo do filme (Queiroz, 2017, p. 25).

É importante a observação de Queiroz (2017) de que Vera estava ciente do papel que cumpriu, pois aponta a um duplo jogo, por lado ela possibilita a entrada, atendendo aos interesses diretos de Coutinho e de sua equipe; por outro lado ela atua ao que Luiz Rufino (2019) entende como uma estratégia da Pedagogia das Encruzilhadas, como guerrilha epistêmica, que consiste em “seduzi-los para que adentrem o mato” (Rufino, 2019, p. 10), ou neste caso, na comunidade:

Os espelhos do narcicismo europeu (Fanon, 2008) serão quebrados sem nenhum temor de azar, esperamos por muito tempo, agora é olho no olho. Desculpem o peso das palavras. Nós brasileiros expurgamos o espírito guerreiro dos tupinambás, habitantes de nossas terras, para nos convertermos à complacência e à resignação do ethos cristão-católico; porém vos digo que os tupinambás continuam a baixar nos nossos terreiros, saravando as nossas bandas, preparando os nossos corpos para a batalha.

Essa conversão e complacência ao ethos cristão-católico é explorado no decorrer de todo o documentário. A partir disso, temos novamente cenas da equipe conversando e caminhando pela comunidade, em conversas miúdas que assinalam o processo de escolher em quais localidades iriam e quem dos entrevistados nas pesquisas prévias iria estar disponível na data. Braulino é citado, e logo depois, temos cenas da chegada na residência do personagem (Quadros 4 e 5 - Imagem 4). Braulino os recebe no portão e prontamente diz “estamos assistindo a missa sim” (Santo Forte, 1999), dando a entender que já sabia das intenções do documentário. Rapidamente, o diretor questiona à equipe sobre o acionamento das câmeras e microfones, com ansiedade: “ligou, ligou?” (Santo Forte, 1999). E com um pedido de permissão e licença ao entrevistado, para a entrada, somos conduzidos ao interior de sua casa, onde assiste a missa pelo aparelho televisor (Quadro 6 - Imagem 4). O início da entrevista com Braulino, inaugura a segunda sequência do documentário, composta por narrativas de personagens que estão assistindo ou se relacionam com Missa Campal e com a figura do Papa João Paulo II, a qual não vamos nos ater neste momento.

Compartilhando de algumas impressões de Queiroz (2017) e Cláudia Mesquita (2006), percebemos nessa primeira sequência alguns “padrões enunciativos”, que serão retomados quando necessário no decorrer deste trabalho, resumidos em:

1) cada sujeito, em regra, corresponde a uma sequência do filme; 2) as falas das pessoas filmadas não são agrupadas na montagem numa unidade temática, e os personagens não se encontram no decurso do filme; 3) o filme raramente apresenta registros de manifestações institucionalizadas e coletivas da religião; 4) a situação filmada majoritária no filme é a de entrevistas intercaladas com planos aos quais Mesquita chama de “intrusos”; 5) não há narração over (Mesquita apud Queiroz, 2017, p. 22).

Além disso, esse trecho do documentário que se inicia com a missa, e termina com a chegada na casa do primeiro entrevistado, é considerado por nós e, como dito pela bibliografia, como uma contextualização, ou ainda “onde” e “quando”. Temos o espaço do Aterro do Flamengo e o redirecionamento à Vila Parque da Cidade, na mesma data de 05 de outubro de 1997. A missa, traz a força do catolicismo enquanto religião que “paira” em todos os espaços, influenciando-os. Porém, um catolicismo distante, que chega de maneira diversa na comunidade. Ao mesmo tempo em que invade a residência pelas televisões, não faz parte direta do seu cotidiano, se não como uma formalidade.

“Santo forte” e a encruzilhada da descolonização

A encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos. Exu, como dono da encruzilhada, é um primado ético que diz tudo acerca do que existe e do que pode vir a ser. Ele nos ensina a buscar uma constante e inacabada reflexão sobre os nossos atos. É por isso que nosso compadre é tão perigoso para esse mundo monológico e para uma sociedade irresponsável com que se exercita enquanto vida (Rufino, 2019, p. 5).

De acordo com Luiz Rufino (2019), que apresenta uma proposta de leitura de Brasil, a partir do diálogo entre as práticas afrorreligiosas e as teorias decoloniais, a colonização precisa ser entendida como uma engenharia para destroçar gente, e a descolonização, por sua vez, não apenas como um conceito, mas enquanto uma prática social e revolucionária, uma ação inventora de novos seres e de reencantamento do mundo.

É visível neste sentido, as possibilidades que “Santo Forte” apresentam ao se responsabilizar por fazer emergir e a credibilizar de outros saberes, de forma comprometida com o reposicionamento histórico daqueles que o praticam (Rufino, 2019).

A colonialidade. Esse fenômeno, que prefiro chamar de marafunda ou carrego colonial, compreende-se como sendo a condição da América Latina submetida às raízes mais profundas dosistemamundoracista/capitalista/cristão/patriarcal/moderno/europeu e às suas formas de perpetuação de violências e lógicas produzidas na dominação do ser, saber e poder (Rufino, 2019, p. 12-13).

A noção de encruzilhada, por sua vez, “emerge como disponibilidade para novos rumos, poética, campos de possibilidade, práticas de intervenção e afirmação da vida, perspectiva transgressiva à escassez, ao desencantamento e à monologização do mundo” (Rufino, 2019, p. 13). Embora o documentário não traga respostas, é visível o caráter de denúncia que assume, em finais do século XX, dos limites dos binarismos ocidentais como forma de controle social, reduzindo as complexidades étnicas, culturais, identitárias a proposta civilizatória ocidental/cristã.

A encruzilhada nos possibilita a transgressão dos regimes de verdade mantidos pelo colonialismo. A manutenção desses regimes balizados na ordenação de um mundo cindido contribui para a perpetuação das injustiças cognitivas praticadas a todos aqueles desviados, uma vez que existir plenamente é ser credível e ter uma vida enquanto possibilidade de fartura e encantamento (Rufino, 2019, p. 18).

A encruzilhada como escapatória ligada a Exu, nos remete a forma como Exu-Mulher, Maria Navalha, é narrada pelo personagem André. Com certo temor, preocupação, em tom de rejeição. São esclarecedoras nesse sentido as observações de Franz Fanon (2008) de que o racismo e o colonialismo precisam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo, onde além dos brancos, muitos negros acreditam no fracasso de sua legitimidade e acabam declarando uma guerra maciça contra a negritude, mais dos sintomas do racismo estrutural, que precisa ser entendido como “um sistema de opressões que nega direitos, e não um simples ato da vontade de um indivíduo” (Ribeiro, 2019, p. 12). E reconhecer esse caráter estrutural pode ser paralisante. Como observou Gordon ao refletir sobre os escritos de Fanon (2008, p. 15) “este racismo de negros contra negros é um exemplo da forma de narcisismo no qual os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco”.

O apresentar-se como católico, presente nas falas iniciais de muitos moradores da comunidade, reiteram esse reflexo branco, mas este é desvelado, à medida que os moradores se sentem acolhidos para falar de seus guias, suas crenças, sem julgamento de valor. O catolicismo, e posteriormente, o cristianismo, são entendidos então, enquanto formas de embranquecimento. À recusa das práticas afrorreligiosas nesse sentido, é mais uma das formas de sobreviver em uma sociedade estruturalmente racista onde as práticas e expressões africanas são compreendidas como bárbaras e incivilizadas. Sobre esse aspecto são fundamentais as reflexões de Fanon (2008, p. 34) acerca de que “todo povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem da nação civilizadora”, ou seja, quanto mais se rejeita a negritude mais branco será.

Em diálogo com Djamila Ribeiro (2019, p. 108), ao informar que para uma educação antirracista “pessoas brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as privilegia historicamente, produzindo desigualdades, e as pessoas negras podem se conscientizar dos processos históricos para não reproduzi-los”, compreendemos e evidenciamos na obra de Coutinho esse esforço e responsabilização, há o cuidado da escuta, do afeto e do reposicionamento do Brasil, ao reafirmá-lo não pela formalidade de um ethos católico, mas pelo Santo forte.

Reivindico a máxima cunhada por Câmara Cascudo, que diz que “no Brasil quem faz santo é o povo”. Então ser santo no Brasil compreende pensar os níveis de negociação que se estabelecem para se ter as condições e o reconhecimento do estatuto de santidade, já que aqui a pureza reconhecida na ideia de santidade se contamina em meio a uma série de negociações. Em nossas bandas, baixa santo que bebe cerveja, santa metade bicho, metade gente, santo menino que come doce, tem promessa feita em terreiro e paga em igreja, santo que perde a autoridade com o fiel e santo que vem de vez em quando em terra só para curtir uns furdunços (Rufino, 2019, p. 54).

Uma vez que é, também, nossa responsabilidade assumir a emergência e a credibilização de outros saberes, diretamente comprometidos, com o reposicionamento histórico daqueles que o praticam, entendemos que a diversidade religiosa se apresenta como um tema urgente a ser discutido, inclusive do ponto de vista acadêmico, que continua perpetuando o eurocentrismo, uma parte dos intelectuais brasileiros ainda tenta enxergar em seu espelho narcísico uma intelectualidade europeia romantizada, desprezando os grupos, saberes, etnias e culturas que compõem o próprio país. Seguem realizando o epistemicídio, ou seja, o apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos (Ribeiro, 2019, p. 6).

Concordamos com Luiz Rufino (2019, p. 64) em que “esse apagamento da produção e dos saberes negros e anticoloniais contribuem significativamente para a pobreza do debate público, seja na academia, na mídia, ou nos palanques políticos. Se somos a maioria da população, nossas elaborações devem ser lidas, debatidas e citadas”. Conforme apontado por Djamila Ribeiro (2019, p. 94), “os negros representam 55,8% da população brasileira e são 71,5% das pessoas assassinadas” no Brasil. Nesse sentido, é fundamental que as pessoas brancas compreendam os mecanismos pelos quais o racismo opera por aqui.

Por fim, a forma como Eduardo Coutinho conduz as narrativas no decorrer do documentário apresentando as diversidades de crenças que se consolidam no espaço da comunidade, que ao mesmo tempo é marginal e central quando pensamos em Brasil, serve para potencializar dúvidas e gerar energia propulsora e outras invenções, e a Pomba-Gira é um elemento central nessa narrativa. Nos chama a atenção, pois se a Preta-Velha consegue ser assimilada pelo imaginário brasileiro, o mesmo não ocorre com Maria Navalha, e como bem destacou Luiz Rufino (2019, p. 48) “o que contraditoriamente abre caminho para este estudo é a produção de Exu como impossibilidade pelo colonialismo”.

Exu enigmatiza as existências, os conhecimentos e movimentos do universo. Ele consegue isso de maneira exímia ao instaurar a dúvida, as incertezas, e nos lançar na encruzilhada.

O inferno são os outros - negros, indígenas, silvícolas, adoradores de deuses pagãos, primitivos, incivilizados, bárbaros, animalescos, desalmados, em suma, desumanos. Em uma perspectiva de mundo em que se compreende a batalha luz versus escuridão, para esse modelo de ser/saber/poder só há um caminho, o extermínio. Devemos considerar que o extermínio, aqui entendido, opera de diferentes maneiras, desde a mortandade de corpos, saberes e gramáticas, até as mais variadas formas de subalternização que incidem de forma violenta transformando os ditos “outros” em possibilidades credíveis. No cruzo da dicotomia moderna “mente e corpo”, denunciamos que o extermínio das materialidades é também extermínio dos elementos que vagueiam no plano do sensível. As oposições de bem versus mal estão na base da formação das mentalidades do mundo ocidental. As batalhas das luzes versus a escuridão projetam a ciência moderna - suas razões - como prática de conhecimento que vem a produzir esclarecimentos, superando assim qualquer forma de indício “trevoso”. Porém, essa ciência a serviço do esclarecimento operou/opera fielmente a serviço das pretensões coloniais, mantendo a sua dominação em detrimento da subalternização e aniquilação de outras formas de conhecimento (Rufino, 2019, p. 49-50).

Nesse sentido, a cultura ocidental construiu o demônio - as populações pretas e pardas que se tornam personagens de “Santo Forte”, os moradores de favelas, os umbandistas - o colocou na garrafa e garantiu sua tentativa de se qualificar como oposição ao “mal”, como bem observou Rufino (2019), mas o colonialismo não venceu nas bandas de cá; ao contrário, ele codificou-se uma grande encruzilhada.

O colonialismo produziu violências indeléveis em todos nós, porém, o seu projeto de ser um paradigma hegemônico monocultural e monoracionalista apresenta fissuras, fraturas expostas, hemorragias, sangrias desatadas. Mesmo tendo sabedoria dos grupos tidos como subalternos operado golpes de forma astuta nas estruturas coloniais, o intenso investimento na formação dessa engrenagem moderna fez com que, até os dias de hoje, permaneça a dimensão do contínuo colonial (Rufino, 2019, p. 36).

Eduardo Coutinho, no documentário aqui analisado, não se dá o direito de falar do outro sem sentir o mundo pela presença e o tempo/espaço do outro. Ele não fixa bem e mal em campos opostos, mas tensiona, ouve e pensa essas possíveis dicotomias. “Santo Forte”, dessa maneira não aponta para um ou outro caminho possível, mas se transforma em um entre, apresentando-se como uma encruzilhada epistêmica para pensar o Brasil.

Fontes

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Referências

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Notas

1 Entre 1985 e 1994, Coutinho é um dos criadores do departamento de vídeo do ISER, o ISER-Vídeo, que produz “Santa Marta - duas semanas no morro” (1987) e “Volta Redonda - memorial da greve” (1989). O ISER é uma organização não-governamental, existente até os dias de hoje, criada em 1970, por Rubem Alves, que conta com sociólogos, antropólogos e pesquisadores no geral que se debruçam sobre as temáticas relacionadas às religiões no Brasil e suas relações com o âmbito social, político e econômico. A organização já contou com pesquisadores como Peter Fry, Carlos Brandão, Emerson Giumbelli e Patrícia Birman. Informações contidas no site da instituição (ISER, 2020).
2 Segundo Carlos Alberto Mattos (2003), o CECIP, criado em 1986, e existente até hoje, empenha-se na criação de materiais educativos acessíveis a respeito dos direitos e deveres da cidadania. Desde fins da década de 1980, Coutinho fez desse Centro o seu ponto de referência em termos de trabalho e atuação social. A partir do seu vínculo com o CECIP, em fins da década de 1980, o documentarista manteve relações com a instituição até o fim de sua vida, mesmo realizando documentários desvinculados com a mesma, uma vez que passa, a partir de “Santo Forte, a não se identificar com documentários ditos para fins estritamente didáticos, como os produzidos pelo centro.
3 O trabalho das antropólogas resultou na Dissertação de Mestrado em Antropologia Social intitulada “Ritual e estratégias de diferenciação simbólica no campo religioso: a Igreja Universal do Reino de Deus” realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1997. Segundo Giovana Scareli, doutora em educação, na tese intitulada “Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho” (2009), as antropólogas realizaram uma pesquisa de campo na comunidade, com entrevistas e filmagens. No trabalho citado, “Guimarães conviveu com um grupo de 42 pessoas, sendo 30 mulheres e 12 homens, durante nove meses ininterruptos. Com base nesta relação tão próxima, na participação do dia a dia dessas pessoas e com longas entrevistas gravadas é que pôde construir sua análise ritual da libertação como um sistema ritual de construção da pessoa” (Scareli, 2009, p. 54).
4 Temos ainda o artigo de Birman (1996) “Mediação feminina e identidades pentecostais”, publicado no periódico “Cadernos Pagu” citado por Scareli (2009) como mais um dos resultados da pesquisa na Vila Parque, no qual, segundo a autora, buscou compreender as “formas de contato cultivadas entre pentecostalismo e cultos de possessão, valorizando a ideia de um processo que envolve formas sucessivas de apropriação e reelaboração simbólica entre os dois sistemas religiosos em contato” (Birman apud Scareli, 2009, p. 53).
5 “Dispositivo” é um termo que Coutinho começou a usar para se referir a seus procedimentos de filmagem. Em outros momentos ele chamou a isso “prisão”, indicando as formas de abordagem de um determinado universo. Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro - o que, aliás, ele se recusa terminantemente a fazer. O dispositivo é criado antes do filme e pode ser: “Filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário” (Lins, 2004, p. 102).
6 Empresa da Prefeitura do Rio de Janeiro vinculada à Secretaria Municipal de Cultura. Atuante nas áreas de distribuição, apoio à expansão do mercado exibidor, estímulo à formação de público e fomento à produção audiovisual, visando o efetivo desenvolvimento da indústria audiovisual carioca.
7 Também temos entrevistados que são “evangélicos”, geralmente com alguma relação, anterior ou atual, com a Igreja Universal do Reino de Deus e também com a umbanda e o espiritismo como é o caso de Lídia e Vera, por exemplo.
8 Falamos isso pois são citadas ainda outras religiões de matriz africanas, como o Candomblé, e também outras denominações protestantes que não neopentecostais, como a Assembleia de Deus.
9 Verônica Dias, em sua tese de doutoramento em Comunicação (USP) “A construção da realidade - o estudo do processo criativo de Eduardo Coutinho na elaboração do documentário Santo Forte” (2010), analisa o material bruto da obra, anterior aos processos de montagem, e ressalta que o documentário é resultado de um processo deste montagem, também negociado entre diretor e montador, e que apesar de Coutinho privilegiar a cronologia e a ética de não descontextualizar as narrativas, nem de colocar relatos que podem ser prejudiciais àquelas pessoas, temos de lembrar que está implicado nisso tudo, escolhas e recortes, e que em “Santo Forte”, tem-se, por exemplo, a regravação de narrativas, como a de Vera, no início da obra, ou seja, é, antes de tudo uma construção.
10 Vale dizer que essa separação é uma escolha metodológica específica, mas não a única. Outros autores analisam a obra por diferentes olhares e divisões. Como Scareli (2009) que se utiliza de “camadas”. Nos aproximamos um pouco mais da divisão feita por Mesquita (2006), uma vez que parece servir melhor às discussões que nos propomos a realizar.
11 Todas as transcrições do documentário utilizadas neste trabalho foram realizadas pelas autoras.
12 Cláudia Mesquita (2006) os chama de “planos intrusos”, que destoam do minimalismo da obra.
13 Segundo o site “Vatican News”, novo sistema de informações do vaticano, iniciado em 2015, pelo Papa Francisco, os Encontros Mundiais das Famílias, como são chamados atualmente, tiveram início em 1994, quando o então Papa João Paulo II, inseriu a Igreja Católica no rol de iniciativas tomadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), que havia proclamado 1994 “O Ano Internacional da Família”. O primeiro Encontro ocorreu em Roma, de 08 a 09 de outubro do mesmo ano. João Paulo II participou do I (Roma, Itália), II (Rio de Janeiro, Brasil), III (Roma, Itália) e IV (Manila, Filipinas). Desde 1994, o Encontro ocorre a cada três anos, atualmente liderado pelo Papa Francisco (Freitas, 2018).
14 João Paulo II visitou o Brasil três vezes, foi o primeiro pontífice a fazê-lo. A primeira visita foi em 1980, recebida pelo então presidente João Figueiredo. Passou 12 dias no país e visitou 13 capitais estaduais. A segunda foi em 1991, no governo de Fernando Collor de Melo. E a terceira, em 1997, como descrito acima.
15 Oração católica que faz parte do momento da missa católica em que se admite e se pede perdão pelos pecados. Geralmente, proferem-se as palavras “Confesso a Deus todo-poderoso e a vós, irmãos e irmãs, que pequei muitas vezes por pensamentos e palavras, atos e omissões, por minha culpa, por minha tão grande culpa. E peço à Virgem Maria, aos anjos e santos e a vós, irmãos e irmãs, que rogueis por mim a Deus, nosso Senhor” (Peron, 2014).
16 Sobre o redirecionamento em travelling para Vila Parque, Scareli (2009, p. 52) diz que é um dos sinais de “um conflito do diretor que deixa algumas marcas no filme, pois ao mesmo tempo em que quer apostar em algo novo, mantém alguns resquícios do documentário mais clássico e algumas sequências bastante comuns no cinema e na televisão, como por exemplo, as tomadas aéreas e a aproximação com o local da filmagem”.
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