Resumo: Este artigo discute como no século XIX aumentaram as expectativas dos protestantes para firmarem-se na Amazônia brasileira devido à abertura do rio Amazonas à navegação internacional. Como em outros países, esse movimento de expansão intentava uma saga de conversão, inicialmente, pelo acesso à Bíblia, embora desacompanhada do efetivo estabelecimento de templos protestantes, contentando-se em manifestá-lo em atos de propaganda. Esses atos promovidos pelos protestantes foram colhidos na imprensa da época, em relatos de viajantes e em relatórios oficiais, conformando uma teia de debates e juízos sobre o signo da disputa religiosa. A hegemonia católica conseguiu reforçar os obstáculos à expansão protestante, demonstrando que o diagnóstico do Catolicismo como uma religião de fachada não era correto, embora a hierarquia também manifestasse seu desacordo com as formas de vivência do Catolicismo tradicional e popular, buscando reformar este modo de “ser Igreja” para torná-lo compatível ao modelo diocesano.
Palavras-chave: Protestantismo, Cato-licismo, Hierarquia, Amazônia.
Abstract: This article discusses how Protestants’ expectations increased in the 19th century to establish themselves in the Brazilian Amazon due to the opening of the Amazon River to international navigation. As in other countries, this expansion movement intended a saga of conversion, initially, through access to the Bible, although unaccompanied by the effective establishment of Protestant temples, contenting itself with manifesting it in acts of propaganda. These acts promoted by Protestants were collected in the press of the time, in travelers' statements and in official reports, forming a web of debates and judgments about the sign of the religious dispute. Catholic hegemony managed to reinforce the obstacles to Protestant expansion, demonstrating that the diagnosis of Catholicism as a facade religion was not correct, although the hierarchy also manifested its disagreement with the ways of living traditional and popular Catholicism, seeking whenever possible to reform this way of “being Church” to make it compatible with diocesan model.
Keywords: Protestantism, Catholicism, Hierarchy, Amazon.
Resumen: Este artículo analiza cómo aumentaron las expectativas de los protestantes, en el siglo XIX, de establecerse en la Amazonía brasileña debido a la apertura del río Amazonas a la navegación internacional. Como en otros países, este movimiento expansivo pretendía una saga de conversión, inicialmente, a través del acceso a la Biblia, aunque sin acompañarse del estable-cimiento efectivo de templos protestantes, contentándose con manifestarla en actos de propaganda. Los actos promovidos por los protestantes fueron colectados en la prensa de la época, en informes de viajeros y en informes oficiales, formando una red de debates y juicios sobre el signo de la disputa religiosa. La hegemonía católica logró reforzar los obstáculos a la expansión, demostrando que el diagnóstico del catolicismo como religión de apariencia no era correcto, aunque la jerarquía también manifestó su desacuerdo con las formas de vivir el catolicismo tradicional y popular, buscando reformar esta manera de “ser Iglesia” para compatibilizarlo con el modelo diocesano.
Palabras clave: Protestantismo, Cato-licismo, Jerarquía, Amazonia.
Dossiê
Católicos e protestantes: as religiosidades em disputa na Amazônia oitocentista (1850-1888)
Catholics and Protestants: the disputed religiosities in the 19th-century Amazon (1850-1888)
Católicos y protestantes: las religiosidades en disputa en la Amazonía siglo XIX (1850-1888)
Recepción: 14 Julio 2021
Aprobación: 27 Noviembre 2021
Na segunda metade do século XIX, o Brasil estreitou seu contato com o pensamento modernizador, sobretudo com as consequências práticas de aplicação, embaladas por uma noção de progresso e expansão da economia-mundo1. Essa configuração proporcionou a entrada de imigrantes da América do Norte e Europa que traziam consigo hábitos e concepções religiosas distintas das que predominavam no Império brasileiro. Contra essa revolução das mentalidades, a Igreja Católica reagiu com a mesma intolerância de séculos atrás, como fica patente na encíclica “Qui Pluribus” (1846), exarada por Pio IX, reproduzindo o receio já sagrado na bula “In Eminenti” (1738)2, quando o papa Clemente XII denunciou a arrogância dos homens do século ao depositarem sua fé apenas nos atos mundanos, desconsiderando a intervenção divina para tão somente aprofundar o enfraquecimento da religião católica e descristianizar a cultura. Todas as revoluções ocorridas foram atribuídas à presença da Maçonaria ou de seus simpatizantes, devendo a Igreja denunciar seus intentos como mais uma aberração em consequência “pelos quais os perigos de perturbação da maior parte dos tempos são repelidos de todo o mundo católico” (Pio IX, 1738: 1), conforme a bula de 1738, referindo-se objetivamente à Reforma Protestante, enquanto alertava aos católicos para se afastarem contra tal iniquidade que reunia homens de diversas religiões ou seitas, sob seus estatutos e leis, irmanados pelo voto de silêncio.
Já segundo a interpretação protestante daquele período, o cenário de aparente descompromisso com a religião católica e sua agenda religiosa e política resultava de seu pouco enraizamento nas almas, real motivo do desespero dos papistas como alcunharam os adversários do Catolicismo. Essa perda de fiéis levou a alguns pastores a concluírem que no Brasil havia oportunidades para propagação das suas doutrinas e pastorais a serem efetivadas. Refiro-me aqui as ideias de autores que afirmam possuir o Brasil alguma receptividade para o Protestantismo, tais quais Hauck et al. (2008), Santos (1992) e Vieira (1980).
Desse modo, a exemplo de outros territórios, a província do Pará foi progressivamente se tornando palco do estremecimento da relação entre Igreja e Estado, esse último sendo até acusado pela hierarquia de beneficiar a concorrência religiosa ao impingir a marca do ultramontanismo no múnus pastoral de Dom Macedo Costa, cuja meta era disciplinar as crenças comuns dos populares, por um lado; enquanto por outro buscou erguer uma barreira para degradar as iniciativas de protestantes, respondendo desse modo à sensação de que a religião católica exercia uma frágil soberania na Amazônia.
Tendo como base a análise da bibliografia e observando o contexto histórico no qual o tema está inserido, este artigo objetiva demonstrar alguns conflitos ocorridos na Diocese do Pará3 entre 1850 e 1888, envolvendo a doutrina protestante, que tentava se firmar na Amazônia, apoiada principalmente em ideais liberais e maçons, frente ao conservadorismo católico, representado primeiramente pelo bispo Dom José Afonso de Moraes Torres4, e posteriormente pelo seu sucessor, Dom Antônio de Macedo Costa5. Isso sem desconsiderar os diversos interesses sociais, políticos e religiosos, tanto dos protestantes, quanto dos ultramontanos mostrando ainda como a problemática posta em questão não é algo revelado apenas no bispado de Dom Macedo Costa, pois seu antecessor, Dom José, já havia experimentado tais conflitos.
Portanto, ao analisar o cenário religioso, social e político da época, suscitam-se questões quanto às motivações sobre o modo de inserção do protestantismo na Amazônia em meados do século XIX, bem como se percebe a relevância dessa penetração em concorrência com o exercício católico na região, além da necessária atenção para os (des)encontros na convivência de protestantes e católicos, particularmente quando a hierarquia católica utilizou sua veste ultramontana para desqualificar seus oponentes.
Compreender a ação protestante na Amazônia à luz dessas investidas sazonais de propaganda, perpassando ao efetivo estabelecimento do protestantismo de missão em paralelo com o protestantismo de imigração mobilizou diferentes táticas da hierarquia da Igreja, contidas nos recursos da cultura católica para frear as iniciativas protestantes contra seu monopólio de fé. Por fim, captar o cerco do campo religioso no período, cuja evidência era a desvantagem protestante frente à hegemonia da fé católica.
A abordagem decolonial tem em vista trazer à tona o sujeito americano em diferentes recortes, particularmente quando faz a crítica aos métodos de catequização empreendidos pelo Catolicismo, por esse destituir de densidade os modos de crença e religião das populações pré-colombianas. Em seu lugar, a religiosidade por excelência, fundada no monoteísmo, não descuidou de adjetivar negativamente os signos e sentidos característicos dessas populações nativas ao rejeitar suas concepções de mundo, além de forçar traduções dentro do próprio universo de crença trazido da Europa. Com efeito, a magia indígena foi transmutada em feitiçaria, politeísmo foi recenseado como corte diabólica e a liturgia e o rito foram destroçados para impedir a reprodução da mundividência ancestral, assegurando assim a semeadura para o Cristianismo6.
Fica patente o quanto católicos e protestantes foram aliados nessa destruição das culturas religiosas, embora concorressem entre si para pastorear esse novo rebanho. Sem essa postura agressiva do Cristianismo, as religiosidades dos indígenas poderiam constituir outras inflexões, porém, a decisiva opção por exterminar e depurar, quando fosse possível ou vantajoso, as crenças e práticas dos nativos foi a tônica mais contundente dessas investidas. Dessa maneira, não parece adequada a abordagem decolonial em reconhecer a ação predatória do Catolicismo sobre as religiosidades ancestrais se não estender a mesma crítica ao aliado protestante no modo como procedeu a chamada evangelização da América.
Na prática, essas intervenções forjaram compreensões bastante deformadas sobre como se experimenta a religiosidade, pois não percebe as recriações obtidas por essas populações para retroalimentar o modo ancestral de crença em consórcio, associação, rejeição ou invenção das possibilidades de atualização dentro e fora da convivência religiosa, moldadas entre paradoxos de linguagem e sistemas de crença na Amazônia e alhures, quando diferentes propostas religiosas atuam no campo religioso e nos subconjuntos, em graus variados de penetração e concorrência dessas mensagens.
À guisa de ilustração, uso as categorias ultramontanismo e protestantismo durante os bispados de José Afonso de Moraes Torres e Antônio de Macedo Costa com vistas a explicar a formação religiosa na Amazônia, cuja característica foi a permanência da exclusão do outro e de toda possibilidade de validação da autonomia de comunidades e sujeitos, senão quando sancionadas, mediante a subsunção plena desses modos de crença ao modelo diocesano. Destarte, a hierarquia católica promoveu exitosamente a modelagem das experiências e convivências religiosas dentro do Catolicismo, enquanto por anátema desfigurou o Protestantismo como sério concorrente na Amazônia dos oitocentos. Os sucessos dos acontecimentos no Sul do Brasil foram mais favoráveis aos acatólicos, quando considerada a elevação de templos propriamente ditos e mesmo o estabelecimento de periódicos, como testemunha o jornal “Imprensa Evangélica” (Pereira, 2007), com duração de mais de 30 anos, colocando os presbiterianos como arautos dessa modernização a partir do Rio de Janeiro, capital do Império brasileiro (Imprensa Evangélica, 05 nov. 1864).
Mesmo sem ter estendido ou oficiado à condição de religião protestante dentro da Amazônia, a princípio, os acatólicos sentiram o peso dos valores ultramontanos quando se tornaram alvo de Dom José quando pregava contra as falsas crenças e religiões ao lançar suas preocupações a respeito da abertura do rio Amazonas à navegação internacional, graças ao perigo iminente da chegada de missionários protestantes na região, área sobreposta no território onde exercia a autoridade do seu bispado do Pará, como menciona Santos (1992).
Se o proselitismo protestante tentou unir-se à modernidade7 convêm ressaltar que a afinidade entre eles não se faz de maneira natural, mas sim por meio de lutas e construções históricas, religiosas e culturais específicas (Oliveira; Pinto, 2017). Em 1850, a antiga Capitania do Rio Negro transforma-se na nova província do Amazonas, todavia, os laços com Belém persistiram, pois o governo civil não foi acompanhado do estabelecimento de um governo eclesiástico distinto pela constituição de outra diocese, situação só remediada na República. Em guarda pelo seu rebanho, Dom José alertava para o perigo dos discursos enunciados pelos propagandistas protestantes, advindos do maior contato com os navios de bandeira estrangeira, situação também preocupante para parte das elites interessadas na manutenção do poder político sob o território. Desse modo, ambos utilizaram esse temor para reforçar a identidade do católico brasileiro, ameaçado nos limites com as colônias de países protestantes, como Inglaterra e Holanda, na Calha Norte, e as recorrentes incursões dos EUA para negociar com o Peru, a Colômbia e a Bolívia, sem prestar o devido acordo diplomático com o governo do Brasil (Neves, 2015).
Por meio dessas penetrações, os biblistas ou colportores, como foram apelidados pelo campo católico, ofereceram por meio de doações e vendas o contato direto com as sagradas escrituras cristãs, porém mediada pela figuração emoldurada, como a “Bíblia do rei James”, meio pelo qual conclamavam o aceite da verdadeira religião, mas sendo rebatidos como falsificadores dos escritos santos, blasfemadores e caluniadores da Igreja, interessados mais em apropriar-se do território do que com o real cuidado com a salvação das almas. As prédicas de protestantes e católicos pareciam anunciar um mercado de fé, porém as salvaguardas vigentes pela aliança entre Igreja e Estado serviram para sustentar o monopólio de fé do Catolicismo, embora tenha feito concessões nos arranjos econômicos em construção nos quais a presença protestante foi tolerada.
Maués (2002) acusa a importância do metodista Daniel Parish Kidder e sua esposa, Cinthia Harriet Russel, entre 1839 e 1840, por terem empreendido uma séria tentativa de implantar uma fé concorrente ao Catolicismo na Amazônia. O dado fundamental é a própria experiência das agruras narrada pelo pastor quando tentou edificar essa fé protestante (Kidder, 2008). Aventureiros ou não, como foram classificados pela hierarquia católica, personagens como os tenentes Matthew Fontaine Maury, Gibbon e Herndon bateram-se em seu país pela causa da abertura da navegação do rio Amazonas. Seu proselitismo protestante, aliado aos interesses econômicos estadunidenses, não foi negligenciado como parte de uma estratégia de domínio na América Latina, ou pelo menos de melhor condição de negociação para fortalecer a posição dos EUA (Herndon; Kinder, 2000).
Sagrada a abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira, por decreto do governo brasileiro de 1866, as tentativas continuaram pequenas, apesar da propaganda católica seguir denunciando esse risco. De relevante, só colho o registro do reverendo presbiteriano James Cooley Fletcher (Kidder; Fletcher, 1941) ao proferir a intenção de alavancar o progresso na região devido aos dotes da cultura protestante para promoção do trabalho, servindo como catalisador da civilização. Esse sentimento também animou Richard Holden a fazer missão pela Amazônia (Andrade; Neves, 2013), porém sem legar frutos tão duradouros, exceto por mobilizar a propaganda católica insurgente contra essas investidas.
No modelo mais de propagandista do que de missão, o capitão estadunidense Robert Nesbit foi um dos chamados biblistas, pela sua ação de distribuir bíblias à população ribeirinha. Coube ao próprio bispo Dom José repelir esse tipo de incursão, como assinalam suas palavras na carta pastoral de 1857, já bem próximo dele renunciar à dignidade de bispo:
Tendo chegado ao nosso conhecimento que as sociedades Biblicas dos protestantes, contra as quaes já havia o Summo Pontífice exercitado o zelo de todos os Bispos catholicos, escolheram ultimamente esta Nossa Diocese e principalmente a Provincia do Amazonas, para ahi disseminar seus perniciosos erros por meio de cahtecismos, e outros livros de doutrina ricamente encadernados, e distribuídos gratuitamente pelo povo para assim mais facilmente chegar ao seu fim dos quaes alguns nos forão remettidos pelo muito reverendo vigario geral daquella província, esforços certamente empregados por uma sociedade Biblíca ultimamente creada com o nome de - Alliança Christã - e justamente condemnada pelo SS. Padre Gregorio 16° ereceta com o fim de sustentando-se na Italia, insidiar com mais proveito os adoradores da verdade catholica, espalhando por toda parte numerosos exemplares da Escritura Sagrada vertida em língua vulgar para ser lida sem guia, e segundo o espirito privado de cada um; é nosso dever levantar nossa debil vóz para assim arrancar do campo do Pai comum de famílias a sizania, que o homem inimigo pretende ahi plantar para abafar preciosa semente de fé (Torres, 1856, p. 1).
Servindo-se fartamente do arsenal doutrinário do Concílio de Trento (1545-1563), o bispo aponta os males trazidos pela modernidade, argumento recorrente, posteriormente, na pena de Dom Macedo ao responsabilizar enormemente ao protestantismo pelas sizanias (grafia da época) do campo religioso cristão, com consequências no ordenamento da sociedade civil, porém não se refere a um sujeito determinado, prefere contrapor-se ao projeto concorrente, denunciando a prática de enredar almas para objetivos perversos; de maneira complementar exalta o Clero por haver se prevenido contra essas ciladas e por marchar junto a ele contra essa ameaça à soberania da Igreja Católica.
Se havia o receio do efeito desse intento protestante é conveniente assinalar a baixíssima adesão dos populares ou entre as elites político-econômicas a essas práticas, persistindo apenas marginalmente como um imaginário a assombrar o campo católico, todavia sem obter substância suficiente para contra-arrestar a hegemonia católica. Infiro ser mais um ato preventivo de Dom José para minar qualquer tentativa mais contundente de concorrência religiosa. Em complemento, atualiza o campo católico quanto aos riscos da semeadura protestante ao confirmar a validade da doutrina romana como foi impresso na encíclica papal “Inter Praecipuas Machinationes8”, de Gregório XVI, no qual o sumo pontífice expressava sua reprovação quanto ao surgimento das sociedades bíblicas.
Não menos importante é a visão extremamente preconceituosa dos pastores protestantes quanto ao modo de experimentar a crença do chamado Catolicismo popular. Se esses discursos são marcados pelo tempo, portanto, estão alinhados às concepções vigentes, nem por isso deixam de serem juízos de valor contra as formas de expressão de outras religiosidades. Nesse âmbito, a variação foi apenas de anunciante, o Clero católico ou o Clero protestante se revezavam em atribuir adjetivos pouco elogiosos ao modo de “ser católico” popular; tal como escreveram alguns dos chamados “viajantes”, dentre eles, Fletcher9. Quando ele missionava nas províncias do Norte do Império brasileiro, em carta a seu pai, asseverava: “de todos os povos que tinha conhecido, os brasileiros eram os que menos se importavam com a religião” limitando sua vida religiosa a “foguetórios e procissões” (Vieira, 1980, p. 170). Para ele, a religião popular se resumia à adoração de gravuras e imagens de santos, uma espécie de “sincretismo entre o catolicismo puramente simbólico do camponês português e os conceitos religiosos dos índios e dos africanos” (Vieira, 1980, p. 170).
De importância supervalorizada por David Gueiros Vieira, Richard Holden, portando a insígnia do Departamento de Missão da Igreja Episcopal e da Sociedade Bíblica Americana, por volta de 1860, teria sido um propagador eficiente da doutrina protestante quando veio ao Pará realizar a distribuição de bíblias e panfletos na versão evangélica. Não obstante Holden não tenha atuado como um missionário propriamente dito, sua memória foi guardada como um prócere da causa, restando suas contribuições por gozar do sentimento de amizade com certos políticos liberais brasileiros como Tito Franco de Almeida e com líderes maçônicos, alistando-o na “vanguarda dos primeiros estágios da Questão Religiosa” (Vieira, 1987, p. 207) e pela influência do livro de Fletcher e Kidder, “O Brasil e os brasileiros” (1941).
A hierarquia católica e os missionários protestantes não chegaram a compreender a significação do Catolicismo popular, tão somente referendavam os próprios modelos com os quais estavam acostumados. Por seu turno, Fletcher coloca a si e aos seus como vítimas da perseguição da Igreja, julgando a si próprio como tendo a verdade, já que proferia uma única certeza na interpretação das Escrituras Sagradas, rejeitando qualquer possibilidade de encontro com o Sagrado como eram exercitadas nas muitas devoções aos santos. Ao questionar os argumentos do bispo sobre como: “Abraão adorou os anjos, e adorou também os filhos de Heth(!). (Gênesis, XXIII, 7)”, Fletcher persevera em suas crenças desancando o Catolicismo popular, porém seu objetivo era descredenciar todas as formas de catolicidade, inclusive o Catolicismo diocesano (Fletcher; Kidder, 1941, p. 316).
Essa situação pode ser percebida no conflito de interpretação das Sagradas Escrituras quando manifesto. A seguir, transcrevo a narrativa protestante de um pastor para demonstrar como a convivência religiosa do Catolicismo, representada pela hierarquia, foi acusada de deturpar por simplificação para atender aos interesses diversos do que consideram a retidão dos mandamentos: “A verdadeira razão, pela qual ele se ofendeu com o pequeno catecismo, é que o mesmo continha os dez mandamentos não mutilados”. Acusação bastante grave do detentor da verdade religiosa dizendo ter em “mãos os dez mandamentos como vêm impressos em todos os livros de ensino religioso adotados em Portugal e em alguns pontos do Brasil: aí se vê que o segundo mandamento foi omitido”; qual o sentido da pretensa omissão? Facilitar o entendimento? Dessa forma, “para completar o decálogo, o décimo mandamento ficou assim dividido: ‘Não cobiçarás a casa do teu vizinho’, restando como nono mandamento ‘Não cobiçarás a mulher do teu próximo’, etc, etc.., nem qualquer coisa que seja de teu vizinho” (Fletcher; Kidder, 1941, p. 317). Esta polêmica não foi só pastoral, visava atingir o núcleo doutrinal, por isso recebeu reprovações da hierarquia católica.
O incômodo dos pastores protestantes com a situação da religião no Pará diz respeito aos valores de sua própria experiência religiosa, pois acreditavam ver apenas uma religião de fachada, distante do coração e das almas dos homens, apesar dos cultos serem solenizados com pompas nos templos e as muitas mediações daqueles viventes da fé, não perceberam quão entranhadas essas experiências estavam no quotidiano.
Para o também bispo Antônio de Almeida Lustosa (1939), Dom Macedo Costa também concorreu na resistência à entrada de protestantes nas Amazônia escrevendo em 1861 uma carta pastoral sobre o protestantismo: “premunindo os fiéis contra a propaganda que se tem feito nesta Diocese de bíblias falsificadas e outros opúsculos heréticos” (Lustosa, 1939, p. 75).
Posteriormente, David Vieira se interrogava qual o sucesso alcançado por essa Carta Pastoral quando o prelado pediu aos fiéis para lhe entregarem todas as bíblias e panfletos distribuídos por Holden em 1863, logo após ele deixar Belém. É possível identificar o descontentamento do bispo em seu jornal “A Boa Nova”, quando afirma que “nenhum fiel deve, em consciência ler livros maus, ou folhas publicas, em que sua religião é vituperada, e insultada, nem aprovar, nem concorrer de modo algum para estas perversas publicações” (A Boa Nova, 03 abr. 1872, p. 1).
Dom Macedo Costa se utilizava da publicação de suas cartas pastorais e de artigos em jornais sob o controle da Diocese, como o “Estrella do Norte” (1863-1869) e o “A Boa Nova” (1871-1883), o qual escrevia alertando aos fiéis contra os eventuais ou usuais “inimigos” da Igreja Católica, “atacando-os” ou revidando as publicações de protestantes, maçons e liberais. Seus avisos, porém, tinham como foco principal seu “verdadeiro e real inimigo”10: a Maçonaria. Atribuindo um papel secundário aos protestantes quando eram abrigados nas folhas dos jornais para alardearem princípios da fé reformada em contínua luta para desacreditar dogmas, liturgias e ritos católicos.
Houve uma recepção às ideias protestantes no Brasil, apesar da resistência empunhada pelo campo católico. Todavia, não se deve menosprezar o investimento feito pela hierarquia católica para reforma interna da Igreja durante os Oitocentos. Sem haver ainda uma efetiva hegemonia do modo de “ser Igreja” diocesano, constato uma comunidade de interesse sendo gestada, cuja premissa foi trazer ao grêmio da Igreja o Clero mais propenso às agendas do Estado, convertendo-o, quando possível à disciplina ditada pelo bispo ultramontano/romanizador, em paralelo com a rígida formação do Clero alinhado a esses preceitos. Com efeito, a segunda metade dos Oitocentos propiciou o direcionamento do Clero católico para os interesses da Igreja, em detrimento das antigas lealdades aos partidos políticos e ao Estado como assinalou Fragoso (1992). Doravante, a Igreja estava concentrada mais na empreitada do Catolicismo romano do que na questão nacional.
Concernente a esse debate, é importante destacar a conceituação de Ultramontanismo (ou Romanização), caracterizando-o como uma campanha religiosa11 dirigida pela hierarquia eclesiástica que pretendeu afastar a Igreja do poder mundano na figura do Imperador e aproximá-la das orientações da Santa Sé, bem como reagir contra certas correntes teológicas e eclesiásticas, impulsionadas pelo laicismo, sob o manto do progresso.
Tomo de empréstimo algumas noções de Manoel (2004) quanto ao ultramontanismo como uma forma político-prática de condenar a modernidade, a secularidade e a ilustração, buscando atualizar a legitimidade de outrora conquistada durante o medievo, quando a Igreja era exibida com única intérprete dos processos celestiais e terrenos.
Estando o poder fundado na autoridade religiosa, e não nas soberanias dos povos, caberia a interpretação elaborada pelos ultramontanos a justificar os descalabros vividos nos séculos.
Exatamente por terem se afastado da autoridade como princípio fundamental, os povos incorreram nos erros do século como exemplificavam os “horrores das revoluções”, a desordem do Estado e da sociedade civil, só sendo possível remediar essa condição pela inspiração no paradigma holístico vigente no medievo, cuja característica era o poder de correição e centralização na Sé de Roma, submetendo-se à infalibidade papal, conforme determinado por dogma ratificado no Concílio do Vaticano I em 1870: valorização do episcopado e o reforço do magistério, retomando o tomismo12, considerado pela Igreja a única filosofia necessária para o cristão.
Para ajudar a traduzir os significados das mudanças e entender as relações dessa época, é de suma importância salientar o pensamento de Antonio Gramsci. A partir da identificação da Igreja como aparelho ideológico13 é possível decifrar suas intenções em concorrer com as outras mediações advindas da modernidade para não se deixar superar frente às propostas de laicidade ou de pluralidade religiosa, movendo-se entre posturas e ideias conflitantes para seguirem como segmento especializado de intelectuais orgânicos/intelectuais tradicionais14.
Se as preocupações com as investidas políticas americanas sacudiam o Estado, o governo eclesiástico sentia o peso da penetração protestante, fosse como projeção evangélica das denominações cristãs ou intervenções de Estado, particularmente quando durante as distribuições de bíblias acusavam os católicos de distorcerem a palavra de Deus. Em diferentes escritos protestantes circulando no Império havia uma condenação expressa à idolatria com adoração de imagens, forçando o Clero católico a criar a sutil diferenciação entre a veneração feita aos santos e a adoração, que estava exclusivamente reservada a Deus.
Era uma fragilidade do Catolicismo popular observada nos “catecismos protestantes”. Na prática, representavam um grande desafio para o Clero católico afastar as versões tradicionais do Catolicismo popular, cujo centro da visibilidade está no culto aos santos, sem necessariamente desprender-se do sacramento, liturgia e doutrina como queria a Cúria romana.
Protegidos pela supraidentidade católica, a hierarquia e o Clero mobilizaram a doutrina para credenciar a experiência da vida dos santos viabilizada pelo ato benfazejo do Espírito Santo, sem o qual jamais poderia haver vida consagrada. Assim, se causavam mal-estar à intelectualidade e dirigentes católicos os cultos ocultos dos santos, para as comunidades que viviam sob o patrocínio dele, em nada, ou muito pouco foi afetado por essa crítica elaborada pelo proselitismo protestante. Prova disso foi manutenção do culto dos santos no quotidiano dos fiéis, como testemunha o Círio de Nazaré, que continua a pulsar na cidade de Belém no século XXI, apesar dessas notas em livros e jornais simpáticos à fé reformada. Pode-se concluir a baixa eficácia na metodologia de distribuição de bíblias e panfletos, só alterando o resultado quando atos mais ousados foram edificados pela constituição de campos de missão, no qual puderam constituir-se como frente de atração de fiéis.
Para a mentalidade protestante havia uma impropriedade em “misturar o serviço de Deus” com os festejos dentro e nas margens do templo, situação também incômoda para os bispos ultramontanos. Já os fiéis não confirmavam esse juízo. Fazia sentido experimentar a plenitude da festa do santo sem as fronteiras erigidas pelos sacerdotes. Com efeito, o crente protestante sentencia “Se não tivessem finalidades religiosas, seriam mais excusáveis; mas um povo ser levado a pensar que se pode misturar o serviço de Deus com tais divertimentos e loucuras, é um fato tristemente lamentável” (Fletcher; Kidder, 1941, p. 317). Muito provavelmente não haveria reparo do Clero católico sobre esse axioma. Já o Catolicismo popular foi e é capaz de sublimar essas exigências para ratificar seu compromisso com a experiência religiosa do culto aos santos.
De todo modo, os protestantes estavam chegando! Se não eram muitos, nem por isso deixavam de existir, obrigando o campo católico em formação a armar-se para o combate na disputa pelo imaginário em diferentes facetas como era o problema dos casamentos existentes entre católicos e protestantes. Segundo creia a hierarquia católica, os casamentos nos países protestantes não passavam de concubinato, pois a eles faltavam a sagração própria do sacramento, tal como era reconhecido pela Igreja Católica.
Obviamente, havia o reconhecimento sim do casamento como um progresso e um traço muito importante de contenção da imoralidade, registrando um avanço civilizacional, porém, sem as amarras do sacramento cristão, eles acabavam por perder a sua auréola de sagrado como fica evidente em matéria do periódico “Estrella do Amazonas” publicada em 8 de abril de 1857 em suas páginas 3 e 4. Os jornais tiveram grande importância no estabelecimento das posições dos diferentes interlocutores, bem como demonstram o quanto esse veículo ocupou o centro da disputa pública, como indicado abaixo:
Estas folhas encararam a questão sob ponto de vista das conveniências moraes e religiosas, em que repousa o futuro e a nacionalidade do império; não consultaram nem respeitaram a legislação da igreja a este respeito; e por isso desfiguraram e deslocaram o fato de seu ponto de vista theologico para sacrificar uma suposta, mas contestada conveniencia politica, ou de engrandecimento material para um paiz cujas tradições, cuja lei fundamental e cujo futuro é essencialmente católica.
Segundo nos cumpre, protestamos contra essas susceptibilidades das conveniências da colonização; e passamos a fazer ligeiros reparos, partindo do principio de sermos uma nação catholica, e de que a igreja é uma sociedade perfeita, com os caracteres da visibilidade, de unidade, de santidade, de universalidade e apostolicidade.
[...] mas sempre diremos que nos paços reaes dos monarchas catholicos as famílias dos monarcas protestantes serão e deverão ser recebidas como famílias legitimas, mas perante a igreja catholica, que considera o matrimonio como Sacramento, essa famílias são consideradas concubinato, porque a igreja não considera as gerarchias civis (Estrella do Amazonas, 08 abr. 1857, p. 3-4).
Correntes de imigrantes de países protestantes para o Brasil constituíram-se em um problema para a Igreja dos Oitocentos. Isso não significa que ela fosse oposição à imigração, apenas questionava o porquê da atração de imigrantes de países protestantes, quando havia em países católicos um número considerável de pessoas dispostas a migrar para essas terras no qual vicejava a universalidade do Catolicismo, evitando, dessa forma, o afloramento e a ampliação de conflitos.
Outra preocupação desenvolvida por Dom José foi a importância de favorecer a conversão dos indígenas à fé católica, mas não consegui estabelecer um nexo entre o problema da imigração despertado nos anos 1850 e os preparos do sacerdócio para o aprendizado da língua geral no seminário diocesano. Contudo, parece razoável supor o uso dessa qualificação para fortalecer o número de fiéis frente a uma possível ameaça de penetração e conversão do protestantismo na sua diocese que congregava as províncias do Pará e Amazonas. Durante a gestão de Dom José, houve um incremento em novas conversões graças ao uso da língua geral e essa tática parece ter sido exclusiva de tal bispado.
O esforço dos bispos católicos movia-se em direção à sustentação da posição da Igreja na Constituição de 1824, na qual não havia a possibilidade de reconhecimento de casamentos civis como modo de normalização das famílias, ficando o casamento civil sem propósito. Por sua vez, o poder civil tentava conciliar interesses para incensar a imigração como modelo de substituição da escravidão. Várias tentativas legislativas tentaram demover a Igreja de sua posição, porém, ela sustentou a falta de legitimidade para sequestrar o caráter sagrado do matrimônio.
A imigração prosseguiu, apesar da contrariedade da Igreja. Recusado os intercursos com o Protestantismo, restou ao governo selar um termo para validar os contratos de casamento, afetando tangencialmente o poder e prestígio da religião oficial do Estado. Para efeito de registro, convêm salientar a inexistência de esforços para o reconhecimento pelo antigo Estado colonial português ou do Estado imperial sobre as formas de matrimônio/casamentos das populações ancestrais aqui existentes; no entanto, os debates acirrados em torno da problemática do casamento civil versus o casamento religioso foi bastante extenso e desgastante para as partes envolvidas. Só sendo efetivamente superado com a proclamação da República, quando foram estabelecidos novos acordos na sociedade civil e no Estado no que se refere a essa questão.
Fica patente cada vez mais a reprodução institucional do ordenamento político jurídico do mundo ocidental nas terras do Brasil como um dos sinais da modernização em curso naquele instante. Decisivamente, a hegemonia da Igreja sobre o imaginário do casamento estava em regressão, porém ela conseguiu conter na prática a validação desse modelo de contrato até o final do império. No “Estrella do Amazonas” tem-se a confrontação do projeto de modernização das relações civis sobre o casamento como uma moléstia à causa da Igreja.
Ou a igreja he ou não uma sociedade perfeita, infalivel e perpetua. Se o he, como devemos não só crer como catholicos, mas aceitar pelo facto constitucional de ser a religião do Estado, então deveremos aceitar e reconhecer o direito e a legislação dessa igreja he terminante nas suas disposições a este respeito; e, pois, nenhum poder civil pode modificar, a não ser pelos “devidos e imprescriptiveis tramites de uma concessão pontifica”, nos casos em que o possa permitir o caracter da igreja. Talvez que esta jurisprudência escandalise o tal espirito de tolerância, que tanto se alardêa, mas é doutrina recebida e preponderante que o Estado pode, sim regular os direitos civis, proveniente do acto matrimonial, mas á igreja é á quem compete regular a validade do matrimonio. [...] considerando a questão no terreno em que agora a colocamos, estamos certos que não hesitará um só momento em vir postar-se nas raias da igreja, que homens que disem catholicos, querem ceder aos Hunos das seitas dissidentes (Estrella do Amazonas, 18 abr. 1857, p. 2-3).
No bispado de Dom Macedo, a polêmica do casamento civil voltou ao debate público pelo crescimento das migrações para o Brasil e a resposta do bispo em sua diocese foi referendar os atos do Primaz do Brasil, quando esse barrou o projeto de “execranda memória” (Estrella do Norte, 1864, p. 397). Os ultramontanos seguiram lançando anátemas sobre aqueles que quiseram conciliar a vigência do casamento civil em virtude da necessidade de atração da colonização protestante, fazendo perder a referência do Brasil como um país essencialmente católico, alcançando a marca de “sete ou oito milhões” segundo o mesmo jornal (Estrella do Norte, 1864, p. 397), mas em contrapartida, desconheceram a instituição do sacramento revestida no matrimônio. Necessário apontar sobre a inexistência de qualquer menção às relações de casamento e família próprios das populações ancestrais nesse debate.
Bem preparados para confrontos de longa duração, os bispos investiram na consolidação de sua posição na sociedade civil, particularmente na articulação do campo católico formado no decurso da Questão Religiosa15, bem como nos debates que se seguiram até a separação entre Estado e Igreja. Antevendo esse movimento de secularização do Estado no Brasil, a Igreja fortaleceu suas posições para não reviver as experiências traumáticas das lutas com os liberais, quando chegou a ser excluída na formação do consenso na sociedade civil.
Sem poder contar com um colegiado próprio, como será o Episcopado do Brasil reunido na carta pastoral coletiva de 1890, coube a cada bispo definir eixos e táticas de intervenção em cada diocese, reunindo talentos e recursos para executar e acompanhar as diretrizes do projeto de mobilização do campo católico, abrangendo o Clero e o rebanho a seu cargo. Dessa maneira, percebe-se uma intervenção objetiva da hierarquia na promoção do modo diocesano de “ser Igreja”, privilegiando a explicação e a importância da frequência aos sacramentos, sem necessariamente desprezar ou excluir o culto dos santos e, de modo singular, reconhecendo a precedência do poder espiritual na manutenção da segurança contra a esfera da secularização.
Pelas visitas pastorais, o próprio Dom Macedo servia de modelo ao campo católico ao semear o esclarecimento da religião como a principal garantia da civilização em oposição à floresta. O ofício de salvar almas do Protestantismo não estaria completo se essas mesmas almas ficassem suscetíveis ao modo de “ser Igreja” do Catolicismo tradicional e popular, por causa da penetração subliminar de crenças ingênuas ou pela ignorância de um Catolicismo ilustrado, capaz de desconsiderar a importância da fé para aclarar a razão, sendo necessária a manutenção da guarda alta quanto às seduções modernas trazidas pela imprensa maçom, liberal e protestante.
Sem titubear, o periódico “Estrella do Norte”, em 1864, acusa outras religiões cristãs como sendo falsas. Nomeadamente, aquelas que são frutos da religião verdadeira, das quais imitaram o corpo de doutrina e de culto, temperadas segundo a própria receita de cada uma das denominações, originando um conjunto bastante diverso, por não mais se aterem às regras e aos limites, contentando-se apenas na recusa em reconhecer a verdadeira religião, chegando a estarem dispostos a destruí-la pelo veemente protesto com o qual se manifestam no signo “antirreligioso do protestantismo”.
As falsas religiões, á imitação da verdadeira, teem um conjuncto de doutrinas e de culto fóra dos quaes já se não lhe pertence; mas o que os ministros protestantes tentam fazer passar por uma religião não é senão uma anarchia sem regra e sem freio, que não faz senão negar, destruir, protestar, e que se condemna a si mesma dando-se o nome anti-religioso de protestantismo (Estrella do Norte, 11 dez. 1864, p. 396).
Segundo o articulista do periódico, não há verdade nas intenções e nem nas propostas oferecidas pelos ministros protestantes. Ao custo do falseamento da doutrina e do culto só se chegaria à anarquia. Mais do que nunca, a segurança da Igreja Católica, em seus quase 2.000 anos de existência, servia de esteio espiritual, moral e material para a direção das almas e dos negócios políticos, sem ceder a uma sanha de destruição e do protesto, como interpreta o próprio signo antirreligioso dado à denominação assumida pelos rebelados contra o grêmio do Catolicismo assumindo a forma de Protestantismo.
A difusão da mensagem protestante no seio da religião católica não conseguiu alterar fortemente as relações de forças existentes no campo. Considero inadequado apresentar o período em questão como sendo característico de um mercado religioso nos termos propostos por Bourdieu (1998), observando a solidez do monopólio vigente nos Oitocentos brasileiro, quando a Constituição de 1824 estabeleceu garantias muito eficientes para proteger a religião oficial do Estado contra as investidas de qualquer concorrência.
Se muito, posso admitir a existência de uma disputa para a efetiva instalação de um mercado simbólico no que tange as mensagens religiosas, sem, entretanto, desconhecer a presença bastante difundida da concorrência simbólica entre a Igreja e a Maçonaria. O processo de modernização e modernidade no país estava sendo constituído pela tradição, liderada pela hierarquia ultramontana, pelo liberalismo, imerso em menor parte na Igreja, enquanto largamente era acolhido nas lojas maçônicas e nos partidos políticos, porém sem poder atestar a reprodução de uma cultura de liberdade religiosa difundida na sociedade civil.
Para estatuir o mercado religioso é necessário conformar a disputa pelo controle efetivo da produção e a circulação da mensagem religiosa, fundada numa organização legitimamente aceita na gestão e distribuição do conjunto dos bens simbólicos. Essas características não são patentes no Brasil, embora haja a presença da contestação e o exercício de disputa de mensagens religiosas protestantes em relação aos católicos. As fontes aqui tratadas são o testemunho de como os protestantes e seus aliados operaram para alterar o estatuto legal do monopólio religioso, tendo por réplica a defesa da manutenção do regime do Padroado, no qual Igreja e Estado se protegiam da concorrência do Estado laico.