Dossiê
Recepción: 18 Junio 2021
Aprobación: 04 Diciembre 2021
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2022.14.31.230-247
Resumo: Detentoras de valores civilizatórios que expressam sua importância para a sociedade brasileira como um todo, busca-se discutir, neste artigo, as religiões de matrizes africanas como um contínuo com o continente africano. Esse cenário nos permitiu abordar, a partir do discurso de adeptos da região de Marabá, no estado do Pará, a necessidade de essas religiões ocuparem espaços públicos e de controle social para o avanço da igualdade racial. Para tanto, utiliza-se da história oral no registro das falas de seus participantes e da pesquisa participante pela articulação acadêmica e política. O trabalho analisa as diferentes formas de representação e identidade religiosas dialogando com a construção de políticas públicas e as formas de atuação das quais a população negra se utiliza para manter sua relação com a ancestralidade africana pelas comunidades tradicionais de terreiros, evidenciando a necessidade de construir nos espaços públicos outras narrativas.
Palavras-chave: Religiões afro em Marabá, Espaços públicos, Valores civilizatórios afro-brasileiros, Represen-tação social.
Abstract: Holders of civilizing values that express their importance to Brazilian society as a whole, this article seeks to discuss African-based religions as a continuum with the African continent. This scenario allowed us to approach, from the speech of followers from the region of Marabá, in the state of Pará, the need for these religions to occupy public and social control spaces for the advancement of racial equality. For this purpose, it is used oral history to record the speeches of its participants and participant research through academic and political articulation. The work analyzes the different forms of religious representation and identity, dialoguing with the construction of public policies and the ways of action the black population uses in order to maintain its relationship with African ancestry through traditional communities of “terreiros”, highlighting the need to build other narratives in public spaces.
Keywords: Afro religions in Marabá, Public spaces, Afro-Brazilian civilizing values, Social representation.
Resumen: Poseedores de valores civilizadores que expresan su importancia para la sociedad brasileña en su conjunto, este artículo busca discutir las religiones africanas como un continuo con el continente africano. Este escenario nos permitió abordar, desde el discurso de adherentes de la región de Marabá, en el estado de Pará, la necesidad de que estas religiones ocupen espacios públicos y de control social para el avance de la igualdad racial. Para ello, la historia oral se utiliza para registrar los discursos de sus participantes y la investigación participante a través de la articulación académica y política. El trabajo analiza las diferentes formas de representación e identidad religiosa, dialogando con la construcción de políticas públicas y las formas en que se utiliza a la población negra para mantener su relación con la ascendencia africana a través de comunidades tradicionales de “terreiros”, destacando la necesidad de construir en espacios públicos otras narrativas.
Palabras clave: Religiones afro en Marabá, Espacios públicos, Valores civilizadores afrobrasileños, Represen-tación social.
Introdução
Nas regiões sul e sudeste do Pará, existem muitas casas religiosas de matrizes africanas, às quais não é dada a devida visibilidade. Muito disso ocorre em função da existência do preconceito e falta de compreensão de seu universo cultural e religioso africano e afro-brasileiro. Dessa forma, constatam-se a marginalização e subalternização dos saberes e práticas instituídas pela ancestralidade de matriz africana que, no Brasil, ocorre desde o período colonial e que, até hoje, buscam se afirmar como importante patrimônio nacional. Por outro lado, evidencia-se um esforço de construção de autonomia, a partir da organização desse setor na busca por políticas públicas.
Diante desse contexto, este estudo foi realizado a partir da ação do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Relações Étnico-Raciais, Movimentos Sociais e Educação - N’umbuntu, vinculado ao curso de Pedagogia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), no período de 2013 a 2014, tendo como bolsista de iniciação científica Raiane Mineiro Ferreira. Atualmente, conta-se com a parceria da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará, universidade federal que tem como missão institucional a formação de recursos humanos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente os países africanos e o Timor Leste, bem como promover o desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural, científico e educacional.
O estudo pretendeu compreender as religiões de matrizes africanas como um contínuo com o continente africano e, portanto, detentoras de valores civilizatórios que expressam sua importância para a sociedade como um todo. Por outro lado, afirmou-se a necessidade dessas religiões na ocupação de espaços públicos e de controle social como afirmação de seu patrimônio material e simbólico. Com isso, ampliam-se os saberes que deveriam estar presentes no debate educacional como estratégia de combate ao racismo no Brasil.
Essa consideração torna-se relevante na medida em que se apresenta na realidade educacional como uma temática complexa, em função da difusão de valores e práticas que levam em consideração apenas a base epistemológica ocidental, considerada como universal. Problematizar o imaginário construído sobre as religiões de matrizes africanas importa pelo questionamento de sua invisibilidade e pela falta de uma reflexão crítica sobre a dinâmica pouca conhecida do processo civilizatório produzido pelo continente africano (Leite, 1995-1996).
Com o advento, em 2003, da Lei n. 10.639/2003, que altera a LBD para incluir no currículo oficial nas redes de ensino a obrigatoriedade do tema “História e Cultura Africana e Afro-brasileira” (Brasil, 2003), vislumbra-se a possibilidade de se iniciar a desconstrução histórica desses estereótipos, que recaem sobre as religiões de matriz africana, pois não se encontram inclusos nos livros didáticos ou, quando estão, se mostram destituídos como parte da cultura brasileira. Contudo, mesmo empurrada à margem da sociedade pela falta de oportunidades históricas e pelo advento que o racismo tem construído através de estratégias de superação, a população negra vem se estruturando em diversas formas organizativas e produzindo espaços de resistência, como é o caso das religiões de matriz africana.
No sul e sudeste do Pará, tem-se um grande número de religiosos/as vinculados/as aos terreiros, que em muitos momentos mantiveram-se distantes dos espaços públicos em face às contingências históricas. No entanto, começam a se tornar visíveis aos olhos das instituições oficiais, e da própria sociedade, ao se colocarem como sujeitos que reivindicam políticas públicas, a superação das práticas discriminatórias ainda existentes sobre essas religiões ancestrais, evidenciando sua importância social e cultural na cidade de Marabá e região.
Neste trabalho, trazemos à tona questões colocadas pelos próprios praticantes da religião que, a partir de sua ação pública, vêm iniciando um processo de enfrentamento contra o preconceito e ausências de informações sobre os saberes e as práticas oriundas dessas religiões. Para tanto, fazemos uso da linguagem oral como matéria-prima, já que muito se discursa sobre as religiões de matrizes africanas, mas em diferentes espaços é vetado o direito de os seus próprios praticantes falarem de si, de se manifestarem sobre seus anseios, angústias e desejos.
Os representantes e as representantes das religiões aqui apresentados/as se aglutinam em torno da Associação Espírita e Umbandista de Marabá e Região, instituição que congrega mais de 50 terreiros, casas ou tendas. Parte dessas casas têm participado das ações instigadas pelo N’umbuntu, e pela percepção de seus adeptos sobre a importância de se colocarem nos espaços públicos, trazendo suas demandas e preocupações.
Do ponto de vista metodológico, utilizamos como principal abordagem a história oral, que segundo a visão de Meihy (2002, p. 13) “é um recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamentos e estudos referentes à vida social das pessoas”, ampliando o conhecimento a partir dos relatos orais.
A partir dessa matriz inicial, complementam-se com outros referenciais, especialmente a pesquisa participante, que tem sido teorizada como conhecimento coletivo produzido a partir das condições de vida de pessoas, grupos e classes populares, como tentativa de avançar a partir da ciência do conhecimento tradicional (Brandão, 1999).
Para ampliar o conhecimento a ser produzido acerca das religiões de matrizes africanas em Marabá, nós incorporamos, também, para melhor conduzir o estudo da metodologia da pesquisa afrodescendente. Esta toma, como elemento principal para o desenvolvimento de pesquisa, a cultura de base africana, alicerçada pelo conceito de cultura e ampliado como reflexão metodológica à ancestralidade e sua relação comunitária, conforme escreve Cunha Júnior (2011, p. 122), principal autor dessa abordagem:
Entre os valores sociais africanos, dois nos servem para moldar um processo de observação sistemática de caráter metodológico. As noções de ancestralidade e de comunidade. A ancestralidade nos coloca diante de um fazer da construção do lugar do território dado pelo acúmulo repetitivo da experiência humana [...] A própria noção de comunidade nas sociedades africanas implica no respeito à noção de ancestralidade. A comunidade é vista como a força da identidade pela via das ancestralidades.
Assim, se evidenciam os desafios, as experiências e a participação comunitária e política das religiões de matrizes africanas em Marabá, no sentido de contribuir propondo políticas públicas voltadas para a população negra dessa região.
Do conjunto de participantes, estabelecemos, como critério para a escolha dos entrevistados/as, aqueles/as que mais estiverem presentes nas reuniões de organização de várias ações com o N’umbuntu, maior participação junto à Associação Espírita de Marabá, bem como a indicação feita pelos próprios pares.
Trata-se, portanto, de um começo de conversa sobre as religiões de matrizes africanas em Marabá e região, tendo como desafio evidenciar, a partir de seus diferentes adeptos, a vivência, a prática e os discursos elaborados por eles/as, como contribuição para a produção de novos conhecimentos sobre uma região em que os estudos ainda deixam de perceber a complexidade que envolve a consolidação e perpetuação dessa religiosidade no Pará.
Religiões de matrizes africanas: cultura e tradição
A partir das reflexões propostas pelas práticas de ensino, pesquisa e extensão e considerando-se os princípios educativos assumidos pelo N’umbuntu, o qual contempla um movimento de reflexão/ação/reflexão, reafirmamos o compromisso na produção de conhecimento, em especial na temática da participação dos terreiros de religiões de matizes africanas na busca de políticas públicas, na cidade de Marabá e região, ampliando o conhecimento sobre setores que representam a ação do movimento negro, em especial pensando suas proposições pedagógicas, ainda desconhecida na história da educação (Lima, 2017, 2021).
Dentro dessa concepção, debatemos ser essa religiosidade um espaço tradicional, onde a ancestralidade africana é mantida e recriada a todo momento. Portanto, apontamos, a partir de Certeau (2000), que os saberes tradicionais se configuram nos processos cotidianos de pessoas comuns, que, portanto, são construtores da história.
Para os sujeitos das religiões de matrizes africanas, a continuidade das tradições opera através da oralidade e símbolos, onde a identidade se forma a todo instante e constrói-se conforme as forças do local. As interferências das tradições vão sendo “reconstruídas” dentro das comunidades a partir de suas referências e práticas ancestrais.
Para esse debate, do ponto de vista teórico, apontamos como definição a dimensão assumida pela cultura negra, a partir da reflexão proposta por Cunha Júnior (2011, p. 121):
Temos por cultura negra, cultura afrodescendente ou ainda a cultura de base africana aquela que contém os elementos das culturas de matrizes africanas transplantadas para o Brasil e aqui modificadas pelos constantes processos de atualização e que guardam as bases de signos e formas de constituição como nos mostram diversos estudos ligados à cultura material e à cultura simbólica.
Assim, o conceito de cultura tradicional está diretamente ligado às culturas distintas, de outras noções de território e espaço onde o grupo social se relaciona, com suas próprias dinâmicas na compreensão de como foram constituídas num contexto histórico, político e social específicos, “não há como considerar uma expressão cultural superior ou inferior, melhor ou pior do que a outra, o mesmo se aplica à religiosidade” (Munanga; Gomes, 2016, p. 140). No caso das religiões de matrizes africanas, houve e há um enfrentamento contra o racismo, por conta de um contexto de dominação e opressão que obrigou uma ressignificação de processos civilizatórios para se fazer frente à dominação político-cultural.
Com isso, as comunidades de terreiros, nas suas práticas históricas, sociais e culturais, se afirmam sujeitos dotados de saberes próprios, e nelas há processos de aprendizagem e outros que incluem formação, conscientização política, cultural e resistência ao modelo educacional hegemônico que funda a instituição escolar.
Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África (Hampate Bá, 2009, p. 167).
Nesse caso, como possibilidade para superar os problemas de enfrentamento nos espaços educativos sobre os aspectos socioculturais de matrizes africanas, acreditamos ser necessário retomar os valores civilizatórios como um contínuo africano no Brasil, e que se fazem presentes em diferentes formas de estruturação da cultura afro-brasileira, como situa Antônio (2015, p. 77), “Há, neste trânsito, transformações e novas sínteses são engendradas. Apesar desse processo de transformação e do advento de sínteses exigidas pelo contexto de luta e sobrevivência, existe um contínuo e sistematizado eixo comum, em cujos princípios estruturantes estão confiadas a existência de um sistema religioso e civilizatório”.
O autor, portanto, ressalta que a base do sistema religioso configura o processo civilizatório como um legado presente e nas formas de ser e viver à nação no Brasil. Significa, portanto, retomar um debate iniciado pelo pesquisador Fábio Leite (1995-1996), ao se referir sobre os valores civilizatórios negro-africanos, indicando que eles compreendem a Força Vital (Axé); a Palavra; o Ser Humano; a Socialização; a Morte; a Ancestralidade; a Família; a Produção e o Poder, e que, em sua análise, aparecem nas formas organizativas de várias sociedades e tradições africanas e na diáspora. Para esse autor, é necessário que reconheçamos esse contínuo, pois eles nos ligam à nossa ancestralidade: “Os ancestrais negros-africanos constituem, juntamente com a sociedade e sem dela se separar, um princípio histórico material e concreto capaz de contribuir para a subjetivação da identidade profunda de um dado complexo étnico e de suas formas de ações sociais” (Leite, 2009, p. 104).
Assim, o conjunto de valores civilizatórios que articula o contínuo com o continente se expressa no Brasil, a partir de diferentes bases que foram trazidas à força no processo de escravização, como a filosofia banto e nagô, entre outras, que vão configurar o espaço de efetivação da tradição ancestral que são as religiões de matrizes africanas.
Na cidade de Salvador, no final do século XIX e início do século XX, estruturam-se os primeiros terreiros da tradição Keto, do sistema religioso nagôs-yorubas que até hoje resistem, mas pelo Brasil inteiro as demais nações buscam estratégias de sobrevivência - no caso, falamos do Xangô, em Pernambuco, Tambor de Mina, no Maranhão, Batuque, no Rio Grande do Sul, e a Macumba Carioca. Destacamos, também, os Candomblés de Caboclos, as nações Angola, Ijexá, Fon, terreiros de Nagôs e Quimbanda. Na região Norte, elas são constituídas de diferentes práticas, em face ao processo migratório, e se caracterizam, conforme escreve Martins (2012, p. 12), se referindo às tradições do Pará, como sendo em diferentes nações. Assim, “[a]s nações Angola, Jeje Savalu, Ketu, Mina Jeje, Nagô, Umbanda e Pajelança estabelecem suas próprias fronteiras sociais, marcadas por limites diferenciados dos predominantes na ‘nação Brasil’. Suas redes sociais articulam pertencimentos que não obedecem a limites geográficos”.
Podemos observar que, na religiosidade negra em Marabá, efetivamente parece não haver uma separação clássica entre as duas formas mais conhecidas de religiões de matrizes africanas no Brasil: Umbanda e Candomblé. Os integrantes da associação deixam evidente um entrecruzamento das formas organizativas religiosas, em função dos diferentes processos de iniciação e de vivência de cada um/uma de seus/as adeptos/as, sem preocupações de limites estabelecidos, por qualquer razão oficial dessas formas religiosas, como poderemos verificar nos depoimentos proferidos por mães e pais de santo que destacamos a seguir no decorrer deste trabalho.
Além das evidências anteriores sobre a presença de descendentes de africanos, outras formas religiosas são mobilizadas e se articulam com as formas tradicionais, como discute Cunha Júnior (2011, p. 106) ao afirmar que “[a] literatura acadêmica registra ainda a presença de outras formas de religiosidade de base africana, no presente e no passado”, a exemplo das irmandades e da incorporação desses elementos às chamadas religiões negras.
Na literatura acadêmica, costuma-se apontar duas grandes vertentes de organização dessas religiões: o Candomblé, que tem sido teorizado como o culto de divindades de origem africana, representada por Orixás de origem yorubana, Voduns de origem daomeana ou Inkices de origem banto; por outro lado, a Umbanda discutida como religião brasileira, que congrega elementos das religiões espírita, da pajelança, do catolicismo popular, dos cultos regionais e de base africana, em especial a origem banto (Lopes, 2012). Ainda se tem a influência do chamado Terecô, também conhecido por Tambor da Mata, brinquedo de Barba Soeira e, às vezes, por “Verequete” ou “Berequete”: é a religião afro-brasileira tradicional de Codó, cidade do interior do Maranhão, a aproximadamente 300 km da capital São Luís (Ferretti, 2001). Nesse sentido, Santos (2012, p. 3) reafirma que as religiões afro no Pará têm como marca uma forte presença indígena. Para ele, “é possível concluir que os saberes que contribuíram para formar o que chamamos de Religiões de Matrizes Africanas na Amazônia sofreram influência do Xamanismo indígena, conhecido como Pajelança, apesar de não ter sido possível até hoje precisar quando se deu e qual o grau desta influência”.
A partir disso, apontamos que os diferentes sujeitos que compõem as religiões de matrizes africanas em Marabá percebem a necessidade de se fazerem presentes nos espaços públicos da cidade. Aqui entendemos que os espaços públicos são entendidos em duas dimensões. A primeira diz respeito ao trânsito pelos espaços coletivos pela cidade, conforme pontua Narciso (2009, p. 18, grifos no original), onde “o espaço público constitui um factor importante de identificação, que conota os lugares, manifestando-se através de símbolos e em segundo lugar, refere o espaço público como o lugar da palavra, como lugar de socialização, de encontro e também onde se manifestam grupos sociais, culturais e políticos que a população da cidade exprime”.
Dessa forma, tornar visível ao coletivo a existência das expressões de matrizes africanas, conforme veremos adiante. Por outro lado, pontuamos que conjuntamente essa ocupação significa o diálogo com as instituições “do poder público e da iniciativa privada, pois são estes que têm o poder de materializar a forma do espaço e induzir as expressões sociais dos indivíduos” (Narciso, 2009, p. 20). Isso nos remete a perceber como os adeptos das religiões aqui mencionados/as se mobilizam para a participação em diferentes formas de controle social atribuídas a estruturas institucionais da cidade de Marabá.
O fato de os adeptos/as de matrizes africanas em Marabá se mobilizarem nesse processo significa a necessidade de se articular para descontruir as narrativas produzidas sobre eles e elas, o que se enquadra na perspectiva mais atual da ideia decolonial. Para Quijano, é necessário discutir a colonialidade como lugar de poder que, durante o processo capitalista, submete os povos por sua condição racial:
A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala societal (Quijano, 2010, p. 84).
Tal argumento sustenta o desafio de as religiões de matrizes africanas em Marabá tornarem-se visíveis em diferentes momentos da ação social, política e cultural. Nesse sentido, Pereira (2020, p. 199) argumenta a necessidade de colocar em evidência os paradigmas afroancestrais, entendidos como aqueles cujas “compreensões sistêmicas trazidas para o Brasil no contexto da diáspora e preservados nos muros dos terreiros” produzem conhecimentos sobre o movimento dentro dos terreiros das comunidades de matrizes africanas em todos os lugares do Brasil.
Dessa forma, para o enfrentamento da invisibilidade desse segmento, o N’umbuntu, a partir dos contatos estabelecidos anteriormente, propõe um processo de discussão, no sentido da participação política de seus adeptos1, e contra a intolerância presente na cidade. Como parte dessas ações, foi-se organizando uma série de imagens e filmagens a fim de compor um acervo significativo sobre a prática de mães e pais de santos na cidade.
Religiões de matrizes africanas no Pará: trajetos em Marabá
A história recente da Amazônia oriental brasileira é marcada pelas contradições inerentes às políticas oficiais de ocupação da região, na segunda metade do século XX. Essas novas frentes migratórias para o sudeste do Pará, em parte, foram motivadas pelo projeto de “integração do desenvolvi mento do Nordeste com a estratégia de ocupação da Amazônia”, o qual foi um dos responsáveis pelo aparecimento de várias cidades (Silva, 2006).
Etimologicamente, o nome Marabá advém da cosmologia indígena tupi-guarani, que linguisticamente divide-se em Mayr-Abá para significar lugar de gente estranha, diferente. No entanto, há um “outro”, um estranho que não é exaltado na história oficial dessa cidade: pelo contrário, é expurgado, discriminado. Esse outro é notadamente o maranhense e toda sua carga histórica, cultural, simbólica e religiosa imbricada à sua ancestralidade.
A cidade de Marabá, situada ao sul e sudeste do Pará, não foge à característica da migração, dando origem e estrutura à cidade, no que se refere, especificamente, à população negra. Observa-se uma forte presença, com a finalidade de novas oportunidades de empregos e condições de vida melhores. Em termos populacionais, Marabá, segundo dados do IBGE (2010), apresenta uma população de mais de 250.000 habitantes. No que concerne à sua composição racial, temos os seguintes dados: 6,5% de pretos, 61,4% de pardos, 35,1% de brancos e 2% de outras etnias. Essa população está localizada em seis distritos urbanos, respectivamente denominados de: Cidade Nova, Industrial, Morada Nova, Nova Marabá, São Félix e Velha Marabá ou Marabá Pioneira.
Esses dados indicam uma prevalência de população negra, portanto, deixam evidentes os desafios para o debate sobre as relações raciais na região e a ampliação do foco das discussões, tendo em vista que nessa região os estudos estão voltados para os grandes projetos de desenvolvimento e seus impactos no modo de vida da região, sem, contudo, aprofundar as identidades que se defrontam com essas questões econômicas e sociais.
Em se tratando da realidade no município de Marabá, percebe-se que a prática do preconceito, racismo religioso engendrado às práticas vinculadas às matrizes africanas são recorrentes e explícitas no modo de vida do citadino, é claro, com suas especificidades. Por conta do processo de ocupação da região amazônica, temos como exemplo a intensa influência da cultura negra maranhense, cujo principal aspecto é a cor de sua pele, culinária e, sobretudo, sua prática religiosa - elementos intrinsecamente ligados aos valores civilizatórios africanos.
Em diferentes espaços, torna-se trivial ouvir anedotas de domínio público, amplamente reproduzido por cidadãos, expressões como “terecozeiro” ou “macumbeiro”, evidenciando o caráter depreciativo e racista para com as religiões de matrizes africanas, desta vez oriundas do estado do Maranhão. “Terecozeiro”, nessa relação, é umas das múltiplas maneiras negativas de achincalhar, debochar do maranhense.
O trabalho de Silva (2013) sobre a presença das comunidades de terreiros em Marabá discute as religiões de matrizes africanas. A autora destaca a perseguição histórica sofrida pelos adeptos/as dos terreiros devido à visão etnocêntrica europeizada e tão enraizada em nossa sociedade. Também se evidencia que, na atualidade, esses grupos religiosos são vítimas de preconceito por tratar-se de religiões iniciáticas e esses rituais expandirem-se para além dos espaços dos terreiros, traduzindo-se na estética das vestimentas, cortes de cabelos e modos de vida no cotidiano da cidade. Muitos ainda apontam as religiões de matrizes africanas como cultos ao “diabo”, descartando a sua capacidade de enfrentamento às formas de intolerância religiosa, e a sua real missão como guardiãs de um conhecimento ancestral trazido da África no contexto da diáspora.
Vale ressaltar que, da visão supracitada, impera o racismo religioso. A visão depreciativa das religiões de matrizes africanas deve-se muito à produção de conhecimento científico descompromissado com a realidade, que não contempla essas populações. Pesquisadores/as, utilizando aportes teóricos europeizados, eurocêntricos e racistas, vislumbraram tais práticas e sujeitos e as comunidade tradicionais de terreiro enquanto e tão somente como objetos de pesquisa, deslocando-se e desconsiderando suas histórias de vida, culturas e religiosidades próprias, seja no continente africano, seja na diáspora africana pelo mundo.
Os resultados de tais estudos causaram um problema quase irreversível para os africanos e seus descendentes pelo mundo afora. O que está em jogo não é, portanto, tão somente as formas de religião, mas sim a disputa de poder entre elas. Falamos de uma disputa ideológica, de visão de mundo de como se enxergar, perceber e se relacionar com o mundo exterior e interior também, assim como de cosmologia e cosmovisão. No entanto, apesar das investidas contra as religiosidades de origem africana, houve um crescimento e ressignificação delas na diáspora. No Brasil, nota-se uma larga expansão e diversidade destas, principalmente no início dos anos 1980, no século XX - a exemplo têm-se a Umbanda, religião que traz forte influência africana, mas como estratégia de sobrevivência adere a padrões cientificistas do espiritismo e cresce exponencialmente em terras brasileiras, e que ocupou áreas antes de domínio do Candomblé, religião conhecida por sua origem mais próxima das raízes africanas. Por sua vez, o Candomblé também avançou no espaço da Umbanda, com a busca de novos conhecimentos por parte dos/as adeptos/as, agregando as especificidades dos cultos regionais que fortaleceram as estratégias para que fossem adentrando em locais onde só igrejas, sejam elas católicas ou não, poderiam se projetar.
No âmbito da cidade de Marabá, o N’umbuntu buscou implementar algumas estratégias, articulando pesquisas e ações sociais, a partir de diferentes projetos, que evidenciam a presença negra na população de Marabá e região.
Em uma delas, tivemos consciência da existência das religiões de matriz africana na cidade a partir da exposição fotográfica organizada por Deyze dos Anjos Silva (2013), naquele momento estudante do curso de Ciências Sociais. A mostra retratava o cotidiano de diferentes terreiros em Marabá, como parte da pesquisa de conclusão de curso da expositora, cujo objetivo era, justamente, mapear essas comunidades afrorreligiosas.
A pesquisa mostrou que há terreiros nos seguintes núcleos urbanos da cidade de Marabá: São Félix, Morada Nova, Liberdade, Amapá, Jardim União II, Independência e Nova Marabá, na zona rural de Marabá e na zona rural de São João do Araguaia, totalizando 21 espaços sagrados pertencentes ao universo cosmológico afro-marabaense: terreiros, roças, searas, mesas, cabanas, vendas; frequentados e pesquisados para compor um retrato da região.
Evidenciou-se, também, a relação existente entre as outras tradições culturais e religiosas, como o Divino Espírito Santo e o boi-bumbá: há uma relação de reciprocidade que merece o devido destaque em produções futuras. Constituiu-se um acervo fotográfico e audiovisual de festas, rituais e toques de que foram permitidos fazer o registro.
A partir desse processo, o N’umbuntu buscou dar visibilidade dentro e fora dos espaços acadêmicos a essas práticas religiosas. Isso se mostrou importante, na medida em que, no ciclo de cultura realizado em 2012, pudemos contar com a participação do pai de santo Gê de Ogum, cuja fala reafirmou o preconceito sofrido pela religião, por conta do total desconhecimento de sua cosmovisão e, em especial, fez menção às dificuldades enfrentadas pelas crianças de terreiros, dentro do sistema escolar, debate trazido na obra de Caputo (2012) quando analisa a presença de crianças de terreiros dentro do sistema oficial de educação.
No ano de 2013, tivemos como marco o processo de consolidação do N’umbuntu, em articular a atuação e parceria com as religiões de matriz africana de Marabá e região, em seus diversos ambientes, em especial a Associação Espírita e Umbandista de Marabá e Região. Durante os debates, juntamente com o povo de santo, o N’umbuntu constatou a necessidade de movimentação junto ao poder público, uma vez que existem muitas casas e terreiros, mas essa realidade não condizia com os documentos produzidos pela administração municipal na comemoração de 100 anos da cidade de Marabá, os quais não evidenciavam o importante papel dos terreiros, tendas e casas de matrizes africanas.
A partir disso, busca-se dialogar com a universidade para firmar compromissos, pois a academia tem como um de seus papéis ativos a produção de conhecimento sobre temáticas do contexto o qual está inserida, e assim promover debates na busca em superar o preconceito e o desconhecimento dos saberes produzidos por essa população negra e seu pertencimento religioso.
Para tanto, a pesquisa se amplia com as falas de seus participantes, evidenciando-se a organização dos terreiros na cidade de Marabá como forma de se fazer frente ao desconhecimento e ocupação de espaços públicos afirmando a sua emancipação. O foco das perguntas foi compreender o pertencimento religioso de cada entrevistado/a, assim como suas experiências e vivências com as religiões de matrizes africanas em Marabá e os conflitos inerentes ao desconhecimento sobre essa histó ria e cultura. Foram entrevistados/as cinco adeptos/as das religiões de matrizes africanas, possibilitando-nos sistematizar melhor seus perfis a partir do quadro 1, a seguir:
Destaca-se, no perfil dos/das entrevistados/as, uma faixa etária média de 47 anos. Em termos profissionais, tem-se aposentados com profissões definidas, com exceção de uma delas, que é do lar. A escolaridade média é de ensino fundamental, à exceção de Pai S. de Ogum, que tem Ensino Superior incompleto. Em termos de naturalidade, com exceção de Pai S. de Ogum, que é de Marabá, todos os demais são de outros estados, notadamente do Maranhão e Tocantins. Isso, de certa forma, reafirma o perfil apontado da cidade de Marabá, no que se refere ao processo de migração.
A partir disso, discutimos como o pertencimento às religiões de matrizes africanas faz parte da trajetória dos/das entrevistados/as. Segundo aponta o pai conhecido como Cigano (Entrevista, 2013),
Meus pais são umbandistas, tanto a família do meu pai quanto da minha mãe. Eu entrei na Umbanda aos 14 anos de idade, sendo filho de santo na cidade de Santa Inês no Maranhão. Após sete anos, minha mãe de santo, Dona Deusa, fez meus trabalhos, passei nove dias recluso tomando “caldinho de pinto”, que é a feitura no santo na Umbanda e me tornei pai de santo na Nação de Mina Nagô. [...] Sou filho de São Jorge, carrego o guia Cigano, alguns caboclos das matas, trabalho com seu Zé Pilintra, e quando trabalhamos temos a capacidade de receber muitas correntes, e vários guias.
Aqui, notoriamente se observa a circulação dos integrantes das religiões na busca de afirmar seu pertencimento, conforme ressalta Santos (2015, p. 33), “enfatizando a continuidade das formas culturais africanas e a tenacidade da tradição”, onde o trânsito religioso não denota ser um problema a ser discutido, mas como busca e respeito aos processos iniciáticos.
Sobre isso, a conhecida como Mãe D. (Entrevista, 2013) expressa essa busca, mas também reforça o entrecruzamento dentro das formas religiosas no Norte a fim de resolver questões físicas e espirituais.
Minha mãe me levou a um centro de trabalho, eu tinha entre treze e quatorze anos em um vilarejo chamado Anajá, nas proximidades da cidade de Santa Luzia-Maranhão, porque eu sofria muitas perturbações desde criança, minha mãe não acreditava mas teve que me levar com o intuito de suspender a espiritualidade em uma mulher para que ela cuidasse de mim. Chegando lá, a mãe de santo Zumira, hoje já falecida, disse que não suspendia, que minha mãe me levasse a outro terreiro, mas minha mãe não tinha condições de me levar até outro lugar. Então, continuei frequentando a casa da mãe de santo Zumira, quem, cuidando de mim, organizou minhas correntes, batizou o guia, e foi aquele negócio, hoje tenho 63 anos e nunca me desviei, nunca saí, nunca abandonei. Sou filha de Ogum, meu pai de cabeça é o guia Zé Vaqueiro, e meu guia trabalhador é o Padrinho Antônio, Antônio Légua.
A colaboradora, em sua fala, articula as várias expressões representadas no Brasil, que vai da Umbanda passando pelo terrecô, no caso do padrinho Antônio Légua, matriz religiosa que, segundo Centriny (2015, p. 27, grifos no original), “vem dos bantus do verbo leleko, teeleko ou tlesso, que significa abençoar, celebrar, comemorar através dos tambores”. Nesse caso, Légua se refere a uma entidade vinculada a essa forma religiosa.
Interessava-nos, também, compreender como a religião era vista na trajetória desses sujeitos, que buscam em suas trajetórias reafirmar a importância desse pertencimento.
Assim, para Pai S. de Ogum (Entrevista, 2013), nesse cenário de vivência espiritual, se faz necessário
[a]firmar, mostrar, eu sou umbandista, sou candomblecista, eu sou de axé! Muitas pessoas ainda acham que devem ficar com as por tas fechadas para o mundo, para a imprensa, as pessoas de outras religiões. Nós estamos trabalhando na parte educativa, de consciência, de esclarecimento, de estatuto, de leis federais, que nos amparam, estamos trabalhando essa parte e já evoluímos bastante.
Significa, em sua percepção, que, para se fazer frente aos preconceitos, necessário se faz o enfrentamento nos espaços públicos, a fim de construir uma valorização das religiões de matrizes africanas.
Na fala de Mãe F. de Iansã (Entrevista, 2013), o enfrentamento tem sido uma marca que persegue as religiões de matrizes africanas.
O preconceito é a coisa que mais acontece por aqui. Já me levaram na delegacia três vezes, por causa do barulho do tambor, só que eu sempre ganho a questão, graças a Deus [...]. Quando o meu povo da irmandade chegava, algumas pessoas vinham enfrentar, teve um certo vizinho que chegou a prometer tiro ao meu pessoal, e uma vizinha que veio até aqui munida de faca querendo perfurar uma médium minha. Tenho enfrentado muita coisa ruim, e continuo enfrentando muitas barreiras com fé e coragem em Deus, a fé que tenho nos orixás e eu penso que estou acabando de vencer.
Dessa forma, evidencia-se o desafio de colocar para a sociedade abrangente a importância que essas religiões têm, em termos sociais, culturais e ancestrais, ampliando a compreensão para se fazer frente às violências, que são históricas.
Para tanto, discute-se com os colaboradores e colaboradoras o tema da participação social e política, seja através de expressões institucionais em termos de associação, seja pela visibilidade das expressões culturais que estão presentes nas religiões.
Nesse sentido, tem-se como representação das religiões em Marabá a Associação Umbandista e Espírita de Marabá, que segundo os registros teria sido inicialmente fundada em 2008, interrompida em seguida para ser retomada em 2010. Conforme informa Pai S. de Ogum (Entrevista, 2013), atual presidente da associação,
[o] presidente anterior a mim era meu pai de santo que quatro anos antes do seu falecimento quis me passar o cargo de presidente e eu não tive interesse em aceitar, por considerar uma responsabilida de muito grande, e não me sentia preparado para assumir, e após o falecimento do mesmo a associação acabou. Na época existiam vários associados, inclusive temos o livro de ata da associação e o histórico de arquivo morto, os quais eu recebi após o falecimento do presidente.
Na continuidade, houve a necessidade de se retomar a discussão sobre esse processo organizativo. Dessa forma, salienta Pai S. de Ogum (Entrevista, 2013):
No bairro da Liberdade, fizemos uma reunião, com o intuito de iniciar a organização em prol da defesa do nosso povo, por conta do preconceito na cidade e em prol de criar uma estrutura, apoio, e no dia 13 de abril de 2010 foi feita a eleição e a abertura da ata, e fui nomeado presidente e o Pai Ozias, vice, contando com a presença de um tesoureiro, um secretário e doze fiscais, e houve evasão de alguns fiscais devido às dificuldades, e assim mesmo reconhecemos tudo em cartório e reabrimos a associação.
No processo organizativo, para afirmar a importância da associação, faz-se pertinente um conhecimento mais ampliado dos espaços e lugares de atuação das religiões. Pai S. de Ogum (Entrevista, 2013) discute que,
[q]uanto ao levantamento, nós não possuímos um dado específico de registro, somente informal. Baseando-se pelo registro de associados, o percentual estima-se de 10% de umbandistas e nações afro, entre outras religiões em Marabá e região, na área sul, sudeste do estado do Pará, que existem no mínimo 200 casas religiosas de matriz africana.
Essa percepção não sistematizada das formas religiosas presentes em Marabá coloca-se como um desafio para a manutenção dos trabalhos desenvolvidos pela associação, que, entre outras “finalidades, pretende reunir os adeptos da doutrina espírita, umbandista e demais cultos afro-brasileiro de Marabá e região, difundindo e orientando as atividades espirituais e, assim, promover a defesa dos interesses de seus associados” (Lima; Villacorta, 2014, p. 37). Para Pai S. de Ogum (Entrevista, 2013), “[d]urante esse período, buscamos apoio dos órgãos administrativos e fomos mal-recebidos, mesmo apresentando documentos. Já fui até Belém, no Sentur, buscar apoio ao projeto para associação, mas infelizmente não conseguimos, solicitamos apoio para fazer eventos, e não obtivemos ajuda, nem resposta”.
Para fazer frente a essa dificuldade de apoio, a associação se vincula à universidade e, a partir das ações do N’umbuntu, se configura seu processo de organização, no sentido de se fazer presente na cena pública local e efetivar políticas públicas, onde “suas lideranças aprendem novas gramáticas políticas e sua mística e ritual refazem-se a cada dia nos novos contextos de pluralismo religioso da sociedade contemporânea” (Santos, 2012, p. 70).
Marcadamente, em 2013, por conta da legislação federal em torno da história e cultura africana e afro-brasileira e da participação aberta à sociedade civil em diferentes conselhos, evidenciou-se uma importância da movimentação política das religiões de matrizes africanas, com marcante atuação da associação.
Nesse sentido, potencializou-se toda uma movimentação que culminou na participação de mães e pais de santo, ligados à Associação Umbandista e Espírita de Marabá, em diferentes conferências promovidas pela Prefeitura de Marabá. Na Conferência Municipal de Cultura e a Conferência de Igualdade Racial, o setor das religiões tiveram representantes que foram escolhidos como conselheiros da região de Marabá nas conferências estaduais e nacionais, em especial na Conferência Nacional, em Brasília, tendo como protagonistas Pai Ozias de Oxóssi e Pai Luzivaldo de Omolu.
Em continuidade a essa participação política, foi lançada, no dia 16 de agosto, a campanha “Quem é de Axé, diz que é! Marabá, 100 Anos, Nós Também Construímos”, que surgiu em outros estados do País, no ano de 2010, a partir da ação do Coletivo de Entidades Negras, que identificou um número muito pequeno de pessoas que se declaravam como integrantes de religiões de matrizes africanas nos dados oficiais. Em Marabá, aconteceu em face ao desconhecimento dos órgãos governamentais da presença dessas religiões em vários bairros da cidade, e que se encontravam fora dos documentos produzidos nos 100 anos da cidade, completados em 2013.
Assim sendo, além dessas ações culturais e políticas, a campanha foi marcada pelo lançamento da “Carta Aberta à População de Marabá”, onde se alertava da ausência da população negra nas comemorações dos 100 anos da cidade, e a proposição de políticas públicas para esse segmento, em especial a Coordenadoria de Igualdade Racial. Essas propostas foram assumidas pelo executivo municipal, assim como o desafio para sua implementação de maneira consensual.
Dentro do programa da campanha, participamos ativamente da grandiosa festa em homenagem a Yemanjá/Oxum, que ocorreu no dia 17 de agosto, retomando uma tradição já existente em Marabá, registrada pela primeira vez em 1988, realizada pela associação, contando com a presença de terreiros da cidade e região, saindo em carreata, procissão e entrega de oferendas e homenagens a esses Orixás.
Sobre isto, Mãe D. (Entrevista, 2013) relembra que
Quem fazia acontecer as festas de Yemanjá era a Dona Rosenir, ela era dona de um terreiro grande e bonito, bem na Rua da Boa Esperança. Quando chegava o mês de abril, ela começava a organizar, e ela ia em todos os terreiros incentivando um, ajudando outro, e ela convidava todo mundo, as vezes iam dois ou três terreiros, e nós levávamos barcos, lonas para fazer as barracas, fazíamos o altar, colocávamos a imagem de Yemanjá e dos outros santos, fazia-se uma bandeira com a imagem de Yemanjá e tocava-se tambor. Nós íamos na véspera, dia 14 de agosto, dia 15 é o dia de Yemanjá, e fazíamos aquela festa bonita, e despachávamos aquelas oferendas, com muitos fogos de artifício, levávamos o tambor para a beira das águas, e o povo tocando e cantando na beira da água.
Assim, um dos reconhecimentos dessa atuação nos espaços públicos resultou no agraciamento do Pai O. de Oxóssi, vice-presidente da associação, com a Comenda “Mãe Doca”, instituída pelo Decreto Legislativo n. 05/2009, proposição da Deputada Bernadete Tem Caten (PT), que instituiu na Assembleia Legislativa do Estado do Pará a Comenda “Mãe Doca” de mérito afrorreligioso em homenagem aos Cultos Afro-Brasileiros. A homenagem é uma celebração à memória da luta de Mãe Doca, maranhense de Codó e filha de santo do africano Manoel-Teu-Santo, que em 1891 - apenas três anos após a abolição da escravatura - enfrentou o racismo e inaugurou seu Terreiro de Tambor de Mina na capital paraense.
É importante registrar que as demandas oriundas da ação política e cultural das religiões de matrizes africanas em Marabá, até este momento, se fazem presentes no cotidiano da cidade, tendo em vista que seus representantes têm sido convidados/as em diferentes momentos de formação de educadores/as nas escolas municipais. A expressão da festa, a cada ano, conta com o apoio das várias instituições públicas em sua realização.
O que se pode apontar é que há uma persistência, histórica e atual, dentro da sociedade brasileira e particularmente amazônica, de que as religiões necessitam ocupar espaços, sendo capazes de atuar para satisfazer os anseios por conhecimento sobre a dimensão civilizatória presente na forma de ser e agir como descendentes de africanos e africanas no Brasil.
Considerações finais
As ações articuladas entre a universidade e as religiões de matrizes africanas em Marabá demarcaram um exercício conjunto na busca de políticas públicas para a população negra, não apenas para seus adeptos, mas também para dar visibilidade a essa população na cidade. Para tanto, discutiu-se a necessidade da criação de uma Secretaria de Igualdade Racial em Marabá, como instrumento principal à efetivação e cumprimento das leis quanto à cidadania negra.
Em face desse posicionamento, o povo de santo, posteriormente, através da associação, demandou a realização de uma audiência com a prefeitura, tendo como foco a efetivação dessa política, inclusive levantada no advento da Conferência da Igualdade Racial ocorrida em Marabá. Nesse diálogo, a administração pública colocou suas dificuldades e seus problemas estruturais para a efetivação de uma secretaria específica. No entanto, se estabeleceu um compromisso para a estruturação de uma Coordenadoria de Igualdade Racial de Marabá, vinculada ao gabinete do prefeito. A ação pública deve contribuir para a ampliação do debate das relações raciais no sul e sudeste do Pará, a ser implantada no ano de 2014.
Para concluir, o N’umbuntu, através de suas ações, tem dado alguns passos à frente quanto à implementação da Lei n. 10.639/2003, dentro das escolas com formações de professores/as, com o intuito de levar ao contexto escolar a importância de se estudar, discutir e reafirmar a presença do negro na sociedade brasileira e, assim, também subsidiando políticas públicas com os olhos nos avanços alcançados ao demonstrar aos praticantes das religiões de matrizes africanas a importância de se reafirmar, de se impor diante da sociedade preconceituosa e vencer os paradigmas os quais foram impostos desde o período colonial no país, e que há tempos impedem a cultura negra de aflorar e demonstrar seu valor e sua beleza.
Este artigo, ainda que parcial, coloca de frente o desafio em ampliar na academia o reconhecimento e o enfoque sobre as africanidades, contribuindo em produzir conhecimentos que possam dialogar com a sociedade mais abrangente. Em especial, busca romper com as narrativas que inferiorizam o processo civilizatório trazidos pelos africanos/as, num patamar de produzir conhecimentos oriundos dos seus descendentes, especialmente na reflexão histórica e na mudança dos conhecimentos educacionais, possibilitando-se a valorização de saberes e fazeres diversos e valorização das experiências vividas pelas religiões de matrizes africanas na região amazônica.
Fontes
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MÃE F. DE IASÃ. Entrevista concedida a Raiane Mineiro Ferreira. Marabá, 2013.
PAI CIGANO. Entrevista concedida a Ivan Costa Lima. Marabá, 2013.
PAI S. DE OGUM. Entrevista concedida a Ivan Costa Lima. Marabá, 2013.
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Notas