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O cinema soviético do stalinismo tardio: entre a propaganda e a anfibologia
Soviet cinema of late Stalinism: between propaganda and amphibology
Cine soviético del estalinismo tardío: entre la propaganda y la anfibología
Revista NUPEM (Online), vol. 14, núm. 31, pp. 291-315, 2022
Universidade Estadual do Paraná

Temática Livre


Recepción: 09 Diciembre 2020

Aprobación: 27 Mayo 2021

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2022.14.31.291-315

Resumo: O stalinismo tardio, que se estendeu de 1945 a 1953, censurou e coagiu o cinema com uma eficácia desconhecida na URSS, direcionan-do-o para o confronto cultural com o arquirrival americano na nascente Guerra Fria. Enquanto o regime exigia filmes políticos que exibissem os problemas e crimes cometidos pelo inimigo e fomentassem a união interna, os cineastas procuravam burlar as diretrizes para inserir críticas sutilmente, ou o assunto abordado, centralizado na inversão da propaganda antissoviética em antiamericana, produzia ambiguidade por si mesmo. A cine-história cinematográfica de Marc Ferro, aplicada a 22 filmes do período, permite captar o jogo de interesses opostos por meio da análise de mensagens latentes, conscientes ou não.

Palavras-chave: União Soviética, Guerra Fria, Cinema.

Abstract: Late Stalinism, which extended from 1945 to 1953, censored and coerced cinema with an efficiency unknown in the USSR, directing it to cultural confrontation with the American archrival in the nascent Cold War. While the regime demanded political films that showed the problems and crimes committed by the enemy and fostered internal unity, the filmmakers sought to circumvent the guidelines to insert criticisms subtly, or the subject addressed, centered on the inversion of anti-Soviet propaganda into anti-American, produced ambiguity by itself. Marc Ferro's cinematographic cinehistory, applied to 22 films of the period, allows capturing the game of opposing interests by means of the analysis of latent messages, conscious or not.

Keywords: Soviet Union, Cold War, Cinema.

Resumen: El estalinismo tardío, que se extendió de 1945 a 1953, censuró y coaccionó al cine con una eficacia desconocida en la URSS, dirigiéndolo al enfrentamiento cultural con el archirrival norteamericano en la naciente Guerra Fría. Mientras el régimen exigía películas políticas que mostraran los problemas y crímenes cometidos por el enemigo y fomentaran la unidad interna, los realizadores buscaban eludir las directivas para insertar sutilmente las críticas, o el tema abordado, centrado en la inversión de la propaganda antisoviética en antiamericana, producía ambigüedad en sí mismo. La cinehistoria cinematográfica de Marc Ferro, aplicada a 22 películas de la época, permite plasmar el juego de intereses contrapuestos a través del análisis de mensajes latentes, conscientes o no.

Palabras clave: Unión Soviética, Guerra Fría, Cine.

Introdução

Lawton (1992a) e Youngblood (2007) demonstraram como a teoria do totalitarismo não pode ser aplicada de maneira convincente à história do cinema soviético (e, por consequência, ao seu próprio regime). Apesar do alinhamento compulsório ou entusiasmado dominar o cenário, cineastas, atores, roteiristas, com a cumplicidade de chefes de estúdio e demais membros técnicos que formavam comissões internas de controle e autocensura, ou à revelia destes, conseguiam escapar aos ditames emanados do Kremlin, por passividade ou fuga diante dos objetivos cobrados, e, por vezes, conseguiam inserir passagens anfibológicas, dúbias e de leitura incerta para a plateia. Tal inconsistência dos filmes em determinados momentos não era planejada ou desejada1. Possivelmente ocorria por motivos contrários: o formato de revisão de scripts pelos diretores em meio às filmagens, evadindo-se dos econômicos, rígidos e controláveis roteiros previamente coformulados com os produtores, como era hábito em Hollywood (Beumers, 2015). O improviso, característica do pretenso sistema de planejamento central soviético, também o era na indústria do cinema. Com esse objetivo foram selecionados 222 filmes do período 1945-53, que tratavam das relações da URSS com seus novos/velhos inimigos no novo cenário de mundo bipolar, da Guerra Fria, de descolonização e fim dos impérios coloniais europeus - fundamentalmente Inglaterra e Estados Unidos. Neste artigo apresentam-se como fundamentais “Proshchay, Ameryka!” [Adeus, América!], 1951, de Aleksandr Dovjenko, “Vstrecha na Elbe” [Encontro no Elba], 1949, de Grigori Aleksandrov, e “Zagovor obrechonnykh” [Conspiração dos condenados], 1950, de Mikhail Kalatozov, por suas dosagens de propaganda e de anfibologia. A história sócio-cinematográfica de Marc Ferro (1976, 1992, 2008) permite identificar as forças político-econômico-sociais por trás da pressão, tutela ou adesão de estúdios e cineastas a algumas mensagens e não a outras, tanto em democracias como em ditaduras, tanto por interesses e visões de mundo classistas quanto os de regimes e grupos de poder. O método de Ferro (1992, p. 134) atenta tanto às mensagens objetivas, como texto, falas, etc., quanto as subjetivas, a “construção não-visível do filme”, com a interposição de personagens e seus significados, a condução e montagem da trama, o uso dos elementos da linguagem fílmica, como transições, closes, música, ou mesmo o uso, pelo diretor, da interpretação dos atores para induzir o público a uma percepção sobre o tema - ou a revelação de sua própria, jamais explícita (Ferro, 1996). Um processo de contra-análise social.

Autores que defendem a interpretação totalitarista do cinema soviético o reduzem ao status de mera propaganda política, mais uma faceta da vida humana controlada e moldada pelo Estado-Partido todo poderoso e, por sua vez, uma ferramenta fundamental no controle das mentes de seus súditos, servos do tirano e de seu aparato de poder estatal. Na maior parte da história da URSS tal imagem passou largamente longe da realidade. Mesmo durante os sangrentos anos 1930 a crítica no cinema era possível - desde que moderada e segmentada, não atingindo figurões e compensada por mensagens pró-regime. Esse cenário mudou no pós-guerra, aproximando-se do modelo totalitarista. Ainda assim, esse período que atingiu o maior nível de controle e repressão (em termos de eficiência e não em número de vítimas, cujo troféu fica com a segunda metade da década de 1930) conheceu críticas, às vezes profundas, mas sempre ocultas, inconscientes ou acessíveis apenas para a interpretação dos grupos descontentes. Algumas mensagens poderiam ser lidas de maneira completamente diferente: tanto como apoio como ataque político ao governo. Ou poderiam passar despercebidas, como elementos triviais, mas prontamente acessadas por aqueles que em seu cotidiano percebiam falhas sistêmicas. O uso da anfibologia em terras russas não era recente. Novelistas, dramaturgos, escritores e poetas czaristas viam nesse comportamento a única forma de burlar a censura do Estado. Assim, a literatura do “pequeno homem”, malenkiy tchelovek, trazia em seu bojo elementos que mostravam o atraso, a repressão, a exploração, a mesquinhez das instituições, a injustiça social e legal que marcavam profundamente o regime pré-revolucionário3.

O cinema soviético do Degelo e da Nova Onda nos anos 1950-60 transportaria para a linguagem cinematográfica a temática czarista do pequeno homem, transformando-a num dos principais aspectos da renovação artística e num elemento de aproximação com o cinema vanguardista do ocidente. Isso foi possível diante da fissura e transmutação do cânone do realismo socialista. No stalinismo tardio, entretanto, suas regras eram mais rígidas e obrigatórias que nunca. Não havia espaço para figuras frágeis, dúbias, acovardadas, mesquinhas, repletas de humanidade e de seus problemas e virtudes, diante da imposição do herói positivo, engajado e decidido do realismo socialista. A anfibologia tomou outros rumos. Como nos anos 1930, essa crítica oculta e postura ambivalente foi possível apenas em conjunto com a inserção de momentos pró-regime.

Talvez o que chame a atenção é que essa prática do pessoal dos estúdios (ou leitura possível feita por parcelas da audiência, independente das reais intenções de diretores, roteiristas e atores) é que a anfibologia pode ser percebida mesmo em filmes que destinavam-se a ser propaganda4, seguindo as diretrizes hollywoodianas e nazistas de inserir entretenimento e diversão às mensagens ideológicas que se pretende que atinjam o público (Pereira, 2012).

Se argumenta que a nacionalização e centralização da indústria aumentaram a pressão sobre os diretores e produtores (Liehm; Liehm, 1980). Na realidade, a estatização era um sistema de pressão, censura e autocensura inferior ao do dinheiro, como constatou Lawton (1992a) com a passagem para o sistema capitalista durante a perestroika5. O modelo estatal, na realidade, gerou uma independência dos burocratas proporcionada pela distância geográfica e por uma mentalidade de funcionário público, uma segurança mínima na carreira e rendimentos, que permitia inovações e certo desdém pela autoridade pós-Stalin6.

No stalinismo tardio não há espaço para esse desdém. Toda crítica é totalmente velada - a tal ponto que sua intencionalidade é mais que questionável, afinal, poderia ser fruto de uma má estratégia da produção e uma incompreensão de sua recepção por uma audiência diversificada. O regime triunfante deseja e ordena a propaganda que lembre ou insinue sua recente vitória sobre uma máquina de guerra composta por praticamente toda a indústria da Europa continental, e que prepare e cimente uma unidade nacional diante dos novos desafios da Guerra Fria que, se não travada militarmente em território das superpotências e seus satélites europeus, o será na periferia e acima de tudo culturalmente7. Nem todas as características capitalistas e de mercado existem no modelo estatal soviético. Havia vantagens financeiras diretas aos realizadores de películas bem-sucedidas junto ao público. Mas também havia indiretas vinculadas a um bom relacionamento com o poder político, como prêmios em dinheiro. Quando a lei impedia o aproveitamento dessas vantagens em um mercado de consumo acanhado e reduzido, onde nem sempre a posse de moeda significava produtos a serem comprados (ao menos no varejo oficial), o regime poderia ofertar recompensas em bens e serviços, como o acesso aos hospitais, supermercados e resorts da elite política, ou ainda outra espécie de privilégios. Por exemplo, no livre acesso aos bens desviados para o mercado negro, sem o incômodo da ameaça de fiscalização. Ou ainda, com a proibição do uso de automóveis importados para além dos oficiais do partido, serviço secreto, Estado e militares, o apadrinhamento poderia significar a sistematização da vista grossa do aparelho de segurança da polícia e promotores para o desrespeito à lei8. A Justiça usada como arma contra desafetos e proteção para aliados desviantes, o patrimônio público utilizado para salvaguardar acólitos do fracasso econômico e comprar apoio. Um cenário inexistente fora do mundo totalitário do comunismo. O sistema oferecia recompensas semelhantes, mas também diferentes do mundo capitalista, ao tornar o resultado final dos estúdios parcialmente independente das forças do mercado. Estúdios e diretores que produzissem filmes que fossem decepcionantes frente à venda de ingressos poderiam receber prêmios ou financiamento caso interessassem ao regime. Este, por meio do Ministério do Cinema e de seu controle sobre a distribuição, poderia aumentar o número de copiões de filmes que fossem de importância política (enquanto outros poderiam sofrer escassez) e assim aumentar ligeiramente a plateia e o faturamento. Ao menos até o ponto em que a paciência dos espectadores sem muitas outras opções se esgotasse, o que significava um controle limitado. Num sistema no qual não ocorria a falência econômica de empresas naturalmente deficitárias (como as montadas longe dos pontos de abastecimento de insumos, mas perto de aglomerados populacionais com a finalidade social de gerar emprego), ou cujo prejuízo provinha do tabelamento e política de subsídios, ou simplesmente mal geridas, tal cenário não era fartamente recompensado, como a historiografia conservadora e liberal afirma9.

A cine-história cinematográfica de Marc Ferro (1976, 1992, 2008) pode oferecer a melhor via para a extração do discurso anfibológico das películas do stalinismo tardio, uma vez que pretende fazer emergir o latente nos filmes. Sua essência social também permite a apreensão das difíceis interações entre a propaganda e a crítica oculta e a realidade subjacente de uma sociedade sui generis que, no entanto, partilhava de inúmeros elementos semelhantes à da indústria do cinema no ocidente. O próprio Ferro faz questão de acusar aqueles que percebem propaganda e controle político no cinema apenas em regimes autoritários ao lembrar que isso ocorria tanto no Leste quanto no Oeste. Longe de desnaturalizar, tal postura afasta as construções teóricas que visam ressaltar, exagerar ou inventar oposições sistêmicas enquanto apagam, silenciam e negam similares, com o fito de produzir uma dicotomia de bem e mal. Ferro tem sido vinculado ao estudo de regimes ditatoriais, como a França de Vichy, sem se circunscrever a isto (Schvarzman, 2013).

O cinema como cinejornal e propaganda

Proshchay, Ameryka!”, obra de Aleksandr Dovjenko e de sua esposa e codiretora rotineira, Julia Solntseva, foi amputada duas vezes. A primeira, ao ser “liberado” da direção por Stalin, com trechos do filme ainda a serem rodadas e com uma edição alheia à sua vontade, que extirpou e fragmentou ainda mais a película. A segunda amputação provém do abandono dos filmes stalinistas após a morte do ditador. Sem os cuidados devidos, parte do já retalhado filme se perdeu. Os segmentos sobreviventes somam cerca de 55 minutos. Em 1995, a Mosfilm, Gosfilmofond, Roskomkino, Arquivo Estatal Russo de Documentação de Cinema e o Arquivo Estatal Russo de Literatura e Arte se reuniram para recompor o filme - o que também era uma forma de alento à indústria russa, que, com o fim da URSS e do espaço geográfico alcançado para distribuição, a crise econômica profunda da acumulação primitiva do capital sob o capitalismo triunfante, e a saturação do mercado por produtos importados, passava por outro período de malokartine, a “fome de filmes” - exatamente como o que resultou na mutilação no começo dos anos 1950. Como o próprio documentário anexo ao filme lembra, Dovjenko sentia a necessidade de filmar. Filmar qualquer coisa. Não era apenas uma preocupação artística e pessoal, como o apresentador e crítico de cinema Rostislav Yurenev afirma, mas também uma fonte de renda. Desde o fim da guerra filmara apenas “Mitchurin”, em 1948. Dovjenko já era um dos diretores preferidos de Stalin por possuir renome internacional, pertencer ao grupo dos revolucionários do cinema da década de 1920, ser mais maleável que outros e ser uns dos únicos grandes vivos após a morte de Eisenstein (ocorrida em 1948 - Vertov viveria até 1954, mas sua recusa ao realismo socialista o afastara do cinema muitos anos antes; Pudovkin continuaria filmando até sua morte em 1953, porém se limitando a biografias históricas e romances; Kulechov retirou-se da indústria ainda durante a guerra, preferindo apenas o trabalho acadêmico e a reitoria da VGIK, a universidade moscovita para formação do pessoal técnico e diretores). Após este filme, o diretor não teria oportunidade de filmar mais nada em vida - que se esgotou em 1956. O trabalho de Dovjenko em “Proshchay, Ameryka!” poderia ser comparado em importância para o regime apenas com “Sekretnaya missiya”, 1950, de Mikhail Romm. Ambos os filmes se baseiam em eventos reais, recentes e emblemáticos para as campanhas políticas do regime dentro e fora da URSS.

Annabelle Bucar, nascida na Pensilvânia em 1915 e falecida em Moscou em 1998 (em meio à restauração capitalista e o realinhamento geopolítico unipolar), casou-se com um cantor de ópera soviético, desertando da embaixada americana em Moscou em 1948, publicando na imprensa soviética seu livro “The truth about American diplomats”, em 1949. Stalin selecionou Dovjenko como aquele que deveria transpor o livro para a tela (da mesma forma que havia sugerido ao diretor um filme sobre o revolucionário ucraniano - mesma nacionalidade que a de Dovjenko - Nikolai Shchors, em 1938-39). O que poderia ter sido um trabalho fácil tornou-se difícil. O diretor reelaborou o script por quatro vezes. Como Rostislav Yurenev afirma (Proshchay…, 1951), o filme pretende ser uma contraposição entre a verdade e a mentira. O kolkhoz, a universidade, os jornalistas, enfim, a URSS para além das paredes da embaixada americana em Moscou (apesar de nunca serem exibidos na tela nessa versão ainda mais amputada) são puros, enquanto os diplomatas americanos e seus dependentes são a mácula. A América não é mostrada como parte ou foco da mentira. Pelo contrário, a casa rural da família Bedford é o único ambiente iluminado em todo o filme; o bar no qual Armand Howard (Nikolai Gritsenko), o diplomata crítico às atividades americanas, é assassinado, estava repleto de pessoas que queriam saber a verdade e desconfiavam de seu próprio governo. No entanto, em vários momentos, o diretor parece inverter sutilmente as posições. É difícil não imaginar que os cochichos ao pé do ouvido dentro da embaixada americana, o medo de microfones secretos, a propaganda política insistente e aberrante na mídia, do colega de trabalho que pode se revelar um inimigo e um informante, o sentimento de terror e desorientação, o que Orwell chamaria de duplipensar: dizer algo diante dos superiores e da equipe, mas o avesso ao confidente, a manipulação de informações e a autocensura como forma de saciar as exigências da hierarquia, parecem refletir ao mesmo tempo o ambiente histérico que o macarthismo semeou nos EUA e o clima de embaixadas - que em geral são realmente focos de intrigas, espionagem, planos para expandir a influência nacional, etc. Ambientes tensos por natureza, com o mundo conhecido pelo próprio Dovjenko, que recebia encomendas com temáticas solicitadas diretamente por Stalin, que a partir da sala de projeção particular no Kremlin supervisionava, orientava, criticava e pedia reformulações constantes nestes trabalhos oriundos de seus desejos pessoais. Fazia anotações nos roteiros e exigia refilmagens a partir dos rolos que assistia.

Dovjenko não era bolchevique, inicialmente. Participava do Partido Socialista Revolucionário Ucraniano, ou borobtista, de esquerda e nacionalista ucraniana, que se fundira com os bolcheviques apenas em 1921, com a imposição do monopartidarismo. Estudou artes gráficas na culturalmente efervescente Alemanha de Weimar em 1923, quando perdeu sua filiação ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Entre os construtivistas russos, destacou-se pelo lirismo, fantasia e poesia proporcionados por uma temática camponesa e nacionalista ucraniana. O seu ambiente de trabalho fazia com que a pressão do regime fosse facilmente sentida. Em 1932, o seu diretor de fotografia e câmera preferido fora processado pelo NKVD enquanto ocorriam as gravações de seu filme “Ivan”, o que ameaçava o próprio diretor, com suas possíveis acusações durante o inquérito, e as suspeitas da presença de seus acusadores entre a equipe de filmagem10. Em 1927-28 seu filme “Zvenigora” foi duramente atacado pela imprensa soviética como burguês e nacionalista ucraniano. Seu filme seguinte, “Arsenal”, 1929, o tornou mundialmente conhecido. Em 1930, seu “Zemlya” [A Terra] acabou proibido dentro da URSS, mas exportado pelo regime para a Europa Ocidental, onde desfrutou de reconhecimento. Foi convocado por Stalin para realizar as encomendas dos filmes “Aerograd” (1935) e “Schors” (1939). O relacionamento pendular com o Estado conheceu concebeu outro filme, “Osvobojdenie” [Libertação], 1940, sobre a reconquista dos territórios ucranianos e bielorrussos tomados pela Polônia em 1920. Seu bom relacionamento com o Estado chegou ao máximo. Tornou-se diretor do estúdio de Kiev, que receberia seu nome, e membro da comissão do Prêmio Stalin. Em nova guinada, seu projeto de filme nacionalista “Ukraina v ogne” [Ucrânia em chamas], considerado perigoso no ambiente do que vinha se chamando de Grande Guerra Patriótica, foi banido e o diretor perdeu a chefia do estúdio. Seus dois últimos filmes acabaram cancelados durante as gravações.

Sair finalmente de dentro dos muros da embaixada e conversar com seu amigo Armand Howard (Nikolay Gritsenko, irmão da atriz Lilia Gritsenko), chefe do Departamento de Informação da embaixada, faz com que ambos abandonem as concepções antissoviéticas. Apesar do marxismo prever a rebelião final do proletariado, inclusive o americano, contra sua burguesia, parece vigorar uma visão negativa sobre o futuro do país enquanto palco da revolução. Como nas teorias totalitárias, o regime parece ser indestrutível por dentro. Lutar contra o sistema, como Howard faz, o leva primeiro às ameaças de degradação de posto, com sua remoção para locais menos afortunados que Moscou - como Bucareste, a demissão, a pressão dos meios de imprensa, falsos testemunhos, provas forjadas de espionagem antiamericana, as calúnias públicas, a perseguição das comissões políticas do Estado e pôr fim a já anunciada morte - antecipadamente, no gabinete do secretário da embaixada, Johnny Greves (Nikita Kondratyev) -, devidamente creditada a agentes comunistas desgostosos com a fuga de seu espião na embaixada americana. Isso não impede Bedford de inverter a lógica estadunidense - não são os soviéticos que armam pequenos bandos de terroristas e insurgentes, mas os próprios americanos que jogam “os gregos contra os gregos, os árabes contra os árabes, a China contra a China”11.

As expectativas de se encontrar informação que comprove a preparação de uma guerra promovida pela URSS contra o Ocidente sempre acabam malogradas - transformam-se em entrevistas com professores inócuos, escavações arqueológicas na Armênia ou mapas de reservas florestais. Isso não impede a embaixada de negar a realidade dos fatos e publicar seus persistentes achismos irreais, como a situação degradante dos kolkhozes e sua baixa estima pelo governo consagrada pela audiência da Voz da América e as esperanças do plano do Marshall entre os camponeses - o real sentimento diante do parecer positivo de Howard e Bedford dos soviéticos dos kolkhozes, destruídos pela ocupação nazi e novamente servindo de base para a reconstrução do país, com a queda dos preços agrícolas por decreto de Stalin em 1947, que foi muito bem-vindo nas cidades, e a fome em algumas regiões da Ásia Central, pode ser apenas imaginada12. Para o secretário, o relatório original, elogioso, era peça de propaganda digna de Molotov. Em 1951 o chanceler já havia perdido parte de seus poderes, quando se negou a assinar o pedido de prisão de sua esposa judia, Polina Jemchujina Molotova. Mais um problema para o diretor?


Figura 1:
Brooks cita as crises internacionais; paranoia na embaixada americana; luta entre o corpo diplomático; coação para a espionagem
Fonte: Proshchay… (1951).

Archbald Brooks (Vladimir Lyubimov), um comerciante, torna-se a ponta de lança da penetração americana no Terceiro Mundo em formação. O capitalista que antes vendia geladeiras, agora negociava no Irã (após passagens pelo Iraque e China, dois palcos importantes da Guerra Fria naquele momento13) dois elementos essenciais da diplomacia americana - armas e bombas. Os soviéticos não haviam se esquecido da saída do país em 1946 e da crise da República Popular do Azerbaijão14. Brooks sabe que o capitalismo não pode vencer a superioridade do sistema socialista - repete por duas vezes que em 20 anos serão “jogados num buraco” (interessante notar a semelhança com o discurso de Kruschev na ONU em 1960, postergando esses 20 anos para 1980). O doente e exausto Brooks é a metáfora visual do capitalismo segundo a retórica oficial. Diante de sua afirmação de que o mundo foi arruinado com a expansão soviética proporcionada pela Segunda Guerra, o médico o lembra que 58 bilhões de dólares de lucro com a mesma não a tornam um negócio perdido.

O filme faz o expectador se recordar de todos os eventos que estamparam as manchetes dos jornais soviéticos e de todo o mundo nos últimos tempos. E o cruzamento da Guerra Fria e da Descolonização nascentes potencializou o número de pontos de choque entre as duas superpotências e os decadentes impérios coloniais europeus. O drama de Dovjenko, com os berros desesperados do moribundo Brooks, talvez tenha causado mais impacto que o oficialismo do “Pravda” e do “Izvestia”. A posição do regime nessas crises acaba fortalecida com a visão que o mesmo possuía dos interesses americanos nesses eventos e a sua denúncia. Ao discurso americano da necessidade de uma polícia do mundo encarnada por Truman, da defesa da liberdade e da democracia, e da estabilidade da ordem mundial, os soviéticos arrolam interesses de seu novo império sobre os velhos, no combate ao progressismo e aos direitos e liberdades dos trabalhadores e povos coloniais, enquanto os soviéticos aparecem como defensores naturais dos mesmos. As esferas de influência são claramente delimitadas para a audiência. A Turquia novamente aparece como inimiga e sequaz americana, fortalecendo essa imagem constantemente realçada em filmes da época15. Os antigos e novos interesses geopolíticos soviéticos são tão escamoteados pela retórica do desinteresse e altruísmo num jogo tão maniqueísta quanto no cinema hollywoodiano. Da mesma forma que os americanos, a ação direta soviética é apagada com as afirmações de desengajamento e de causas locais a exigirem e justificarem as ações da URSS. A exploração e opressão dos EUA criam caos e crises mundo, que exigem a ação soviética e a aceitação e apoio da população soviética. O apoio a revolucionários e partidos comunistas a se rebelarem ou a conquistarem o poder após longa luta, às vezes de maneira importante, como na entrega da Manchúria para Mao Tsé-Tung, em luta aberta contra os nacionalistas do Kuomintang de Kai Shek, é esquecida16. Na medida em que os EUA buscam restabelecer um cordão sanitário a uma URSS ampliada e com satélites, toda a sua fronteira, do Báltico ao Mar do Japão, torna-se um caldeirão em que se chocam os interesses soviéticos de criar zonas tampões e de satélites que impeçam ou dificultem novas invasões e os americanos, que em proveito próprio querem reverter as conquistas soviéticas obtidas na guerra. A ideia de que os americanos jogam grupos de um mesmo povo uns contra os outros para gerar guerra civil, lucros, dominação política e o bloqueio da libertação do proletariado condiz com os postulados do marxismo-leninismo, cujos manuais poderiam encalhar nas livrarias soviéticas (Todd, 1976). Para o regime cumpria as funções de propaganda política e da teoria que a moldava.

Brooks afirma que um milhão de pessoas estavam na lista do Comitê de Atividades Anti-Americanas - ao menos entre artistas, esse número era de 1950 acusados (Schrecker, 2002). Ambos os lados da Cortina inflavam absurdamente os números da repressão que ocorriam no rival, enquanto tratavam como traição ou crime comum o dissenso político interno. Da mesma forma que os americanos pincelavam os soviéticos como não confiáveis, burladores de acordos mutuamente aceitos, Dovjenko os exibe inflamados pela oportunidade de romper os tratados que dividiram o mundo do pós-guerra, como na discussão entre membros da delegação na embaixada17.

Proshchay, Ameryka!” é um “Ninotchka”, 1939, de Ernst Lubitsch, ao avesso. Como a comissária Nina Ivanovna (Greta Garbo), Bedford se conscientiza da repressão, crueldade, terror, inferioridade de seu sistema, e deserta para o rival. No entanto não teve o mesmo sucesso. 17 filmes foram cancelados pelo Politburo, tornando 1951 o pior dos anos da fome de filmes. Uma série de encontros e congressos pela paz e desnuclearização dentro da URSS, e sua presença em cimeiras dos países em processo de descolonização teriam motivado uma postura mais conciliatória do Kremlin, que, naquele ano, decidiu suspender ou amortecer a propaganda. Fora uma produção cara, em cores, o que era reservado para os filmes que mais interessavam ao regime.

O filme “Proshchay, Ameryka!” relembra o espectador de todas as principais questões diplomáticas do início da Guerra Fria e do processo de descolonização (que seria muito importante para o regime por possibilitar o rompimento do cordão sanitário e ampliar seu leque diplomático e comercial), uma conscientização de que a guerra não terminara. Que, na realidade, é uma continuação da Segunda Guerra, da luta contra as mesmas forças que a engendraram - o capitalismo, o imperialismo - e talvez a própria ideia de Ocidente (como a propaganda americana se utilizava da noção conflitante de Oriente) - sob novas formas. Uma didática que seria melhor trabalhada no gênero específico do filme de espionagem.

Como em “Russkiy vopros”, a embaixada se satisfaz acreditando que Bedford entregará um manuscrito antissoviético sob medida, tendo até mesmo seu título apontado por Marrow. Nesse clima de certezas e alegrias antecipadas, ocorre a fuga da protagonista para a segurança soviética18.

A tensão que marcou a recente consolidação da influência soviética sobre o Leste Europeu é relembrada. A tentativa americana de se apoderar dessa região prometida à URSS em Yalta através do Plano Marshall, que ligaria suas economias e seus governos aos Estados Unidos tornou-se tema de outro filme do stalinismo tardio, “Zagovor obrechonnykh” [Conspiração dos condenados], 1950, de Mikhail Kalatozov, o diretor de “Quando voam as cegonhas” [Letyat juravli], 1957, “Sou Cuba” [Ya Kuba], 1964, e “A tenda vermelha” [Krasnaya palatka], 1969.

Em um país da Europa Oriental, recentemente libertado pelas tropas soviéticas do fascismo, se desenvolve uma nova conspiração americana. Em um esforço para transformar um Estado independente no “quadragésimo nono Estado da América”, o embaixador dos Estados Unidos Henry McHill (Maxim Strauch) torna-se a inspiração, o organizador e o centro de um grupo de conspiradores, que inclui vários altos funcionários e figuras públicas - Christina Padera (Sofia Pilyavskaya), líder do Partido Nacionalista, Ministra da Alimentação e Indústria, o líder do Partido Católico e ministro da Indústria Hugo Vastis (Vladimir Maruta), o líder dos social-democratas, ministro da Segurança Pública e mais tarde o presidente do parlamento Joachim Pino (Ilya Sudakov), bem como o agente do vaticano, Cardeal Birch (Alexander Vertinsky), a espiã do imperialismo, a jornalista de Chicago Kira Rachel (Valentina Serova), o general Bravura (Rostislav Plyatt), que contam com a ajuda do ex-nazista à soldo americano Steban (Ivan Peltzer).

Mac-Hill e Padera organizam um bloqueio econômico no país para limitar a oferta de alimentos, supostamente vindos dos Estados Unidos, contando com apoio do governo da vizinha Iugoslávia, para culpar a URSS pela fome, e assim aceitar os vínculos econômicos e políticos com os americanos por meio de sua ajuda humanitária e econômica. Após o fracasso da votação em uma reunião do parlamento, onde nacionalistas, o partido católico e os socialdemocratas de direita apoiaram a adoção do Plano Marshall, e os comunistas, camponeses e social-democratas de esquerda se opuseram ao mesmo com a ajuda da população na frente do parlamento, McHill organiza uma intervenção militar no sul do país, realizada pelas forças militares de Tito em aliança com os Estados Unidos, que colocaria no poder os ministros golpistas e eliminaria a esquerda. Enquanto isso, os “trens da paz” americanos, com estrelas e listras e bandas de jazz, carregam secretamente armas disfarçadas de alimentos para os conspiradores.

O embaixador dos EUA já parabeniza a equipe da embaixada “pela magnífica organização do golpe”. No entanto, os ativistas do Partido Comunista - Nikola Sloveno (Vsevolod Aksyonov), a vice-primeira-ministra Hanna Likhta (Lyudmila Skopina) e Max Venta (Pavel Kadochnikov) aliaram-se à ala esquerda dos social-democratas de Mark Pino (Vladimir Drujnikov) e os representantes da União Agrária de Costa Varra (Boris Sitko) e, principalmente, às massas trabalhadoras, camponeses e partisans recém saídos dos combates da Segunda Guerra. Assim formam uma resistência forte o suficiente para liquidar o golpe de direita.

A rebelião é reprimida, todos os traidores são presos, assim como o cardeal e a agente estrangeiro Rachel. Mac Hill é expulso do país. Os comunistas assumem o controle do governo. Mas o fato principal é que a delegação do Partido Comunista assina em Moscou o Tratado de Amizade e Assistência Mútua com a URSS, tendo encontrado em seu vizinho do Oriente o único aliado na luta contra os imperialistas e instigadores da guerra. O filme é repleto de frases pró-soviéticas como a dita por Sloveno, o “Generalíssimo Stalin nos ajudou!”, “camarada Stalin nos ensina isso”, “só a União Soviética pode salvar nossa liberdade e independência”, “nós juramos a Stalin e ao povo soviético preservar a liberdade e independência do nosso país!”, “Lenin disse - há vestígios de sangue em cada dólar”, “eles não estavam morrendo de vontade de vender sua terra por um dólar”, “rejeitar a ajuda americana e preservar a unidade do nosso país”, “amanhã será decidido se nos tornaremos escravos dos fazendeiros americanos” e “transformarão nosso país em uma colônia do imperialismo americano”, “o Plano Marshall é um plano de morte! Nós não vamos deixar o laço prender o nosso pescoço!”, ou caricaturas ácidas ditas pelos pró-americanos, como “você entende que podemos destruir qualquer nação em duas horas?”, “Himmler nos ensinou a ser mais íntegros nesses assuntos”, “Deus colocou uma bomba atômica em nossas mãos para destruir todos aqueles que duvidam!”, “salve suas almas do diabo vermelho! A ajuda de Cristo vem do Ocidente!”, “vamos forçar a Europa a guerrear!”, e o embate: “Percebe que o comunismo é uma nuvem terrível se aproximando de nós do Oriente?”, respondido por “O sol está vindo do Oriente!”.

Todo o enredo do filme é construído em torno da luta dos comunistas e da esquerda contra a frente unida de ex-agentes da Gestapo, cristão fanáticos, social-democratas traidores, nacionalistas e o titoísta embaixador iugoslavo, sob a liderança geral dos americanos. Na URSS a película foi vista por 19,2 milhões. De uma maneira didática e razoavelmente atrativa (com cenas de multidões e ação, filmadas em cores) a conduta soviética e de seus aliados é explicada e defendida segundo a versão oficial dos acontecimentos, condensados, personificados, dramatizados num espaço e personagens fictícios. A população soviética recebe a mensagem de que a ajuda financeira do Plano Marshall é ilusória, destinada apenas a absorver o Leste tão custosamente libertado dos fascistas pelo sangue soviético, devolver seus proletários à escravidão burguesa, da prosperidade para poucos, prepará-lo para ser novamente o “trampolim” para a invasão capitalista à URSS, reeditando a Segunda Guerra19. A crítica de cinema Maria Turovskaya (1996) acredita que o filme seja um espelho freudiano das verdadeiras intenções soviéticas de estabelecer ditaduras golpistas em sua orla, através da destruição dos governos de frentes comuns formados por representantes de todo o espectro político. Se esquece de que esta também era a opção anglo-americana, como no caso grego20.

Em “Sekretnaya missiya”, 1950, de Mikhail Romm, o diretor de “Fascismo ordinário” [Obyknovennyy fashizm], 1965, os agentes secretos soviéticos Dementiev (Vasili Makarov) e Glukhova, disfarçados de nazistas, atuam colhendo informação e obstruindo a tentativa de um agente da CIA (Sergei Vecheslov) e um senador americano (Nikolai Komissarov) de construir uma aliança entre o Eixo e os aliados ocidentais nos últimos dias da guerra para barrar a libertação política e social soviética no Leste e Europa Central21. Os líderes ocidentais são nulidades que dependem do poderio militar e amizade sincera dos soviéticos para não serem lançados ao Atlântico pelos alemães. É quase diretamente afirmado que Josip Broz Tito é um agente americano. Após a queda de Berlim, Dementiev encontra cópias de listas de agentes alemães nos Bálcãs, que foram fotografados por um oficial da inteligência soviética. Schellenberg (Aleksandr Pelevin) dá instruções aos seus agentes nos países do Leste Europeu, sugerindo que Tito era um deles. O regime eliminou a cena em 1969. Martha Shirke, também conhecida como Masha Glukhova (a famosa atriz Yelena Kuzmina, esposa do diretor na época) libera o piloto americano e aconselha que, mesmo vestido com uniforme americano, chegue aos americanos perto de Berlim. A passagem não agradou ao regime e foi censurada e extirpada em 1954. O busto de Napoleão sobre a mesa de Winston Churchill lembra o público de suas ambições europeias, o ataque ao macio baixo ventre do Eixo, que permitiria à Inglaterra chegar antes que a URSS ao coração da Europa e ao Leste - e como Napoleão, a derrocada de seus planos. O inimigo é associado à derrota, enaltecendo outra vitória nacional: sobre Napoleão, Hitler e agora Churchill - as duas últimas sob liderança de Stalin. Que é mencionado de maneira fugaz. No salão da inteligência soviética, enquanto o retrato de Lenin é banhado em luz, o de Stalin continua na sombra. Ao mesmo tempo, a luz é tão intensa que a imagem de Lenin torna-se indistinguível, enquanto a de Stalin permanece. Crítica ou elogio?

O cinema como crítica ambígua e sutil

O exagero e a dubialidade estão muito mais presentes em “Proshchay, Ameryka!” do que em “Russkiy vopros” [Questão Russa], 1947, de Mikhail Room. A pressão econômica e perseguição política retratados por Romm (que contou como roteirista, ao lado do próprio diretor, o famoso escritor militar Konstantin Simonov) estão presentes em qualquer lugar, do ambiente de trabalho do protagonista, o jornalista Harry Smith (Vsevolod Aksyonov), até as ruas estadunidenses, e o interior de suas próprias casas, com a pressão da esposa Jessie (Yelena Kuzmina) pela autocensura - uma ácida e primorosa análise do capitalismo americano, que muito bem poderia se encaixar nos cenários análogos na URSS, o que poderia despertar a atenção de parte da audiência. O terror que Dovjenko mostra, não. É localizado nos espaços controlados pelo governo americano, mas não em suas casas, nas quais a família da protagonista Anna Bedford (Lilia Gritsenko) desfruta de liberdade de crítica e pensamento. As locações e cenários de Romm dificultam imaginar outro lugar que não os EUA. O filme de Dovjenko se passa poucos minutos na América e quase todo na URSS. É difícil não se perguntar se o diretor está mesmo criticando os EUA ou o próprio regime soviético22. A posição crítica da protagonista não surge com seu contato direto com os soviéticos - nunca exibido - mas em sua própria família, em sua casa na fazenda. Seus parentes a advertem, antes de sua viagem para trabalhar na embaixada em Moscou, para desconfiar do Departamento de Estado dos EUA e de suas informações, movidas por interesses. Que apenas pessoas boas poderiam ter defendido sua pátria da forma que os soviéticos o fizeram. São eles que semeiam a dúvida em seu coração. O que, por sua vez, poderia lembrar aos soviéticos que o único espaço para a crítica e desmentidos do seu próprio governo era o espaço privado, entre amigos ou parentes nas poucas casas não divididas no sistema das kommunalkas. Ao mesmo tempo, a arregimentação da protagonista de uma redatora em espiã para os EUA, não por soldo, mas por motivos ideológicos e patrióticos, poderia aparecer em filmes americanos da Guerra Fria. A protagonista produz material falso para ser veiculado na mídia americana e antissoviética. Apenas quando Bedford viaja pela URSS e tem suas ideias abaladas é que entra a cena a adesão por coação (proporcionada pela instrumentalização dos dois temas da ideologia e da pátria, pelo conselheiro Murrow, inegáveis para Bedford) e não por puro convencimento.

Jornais e emissoras de rádio presentes na embaixada são instrumentos de falsificação da realidade e de propagação de mentiras. Notícias falsas são intercaladas por merchandising enganoso de produtos milagrosos divulgados pela radialista Mary Cooper (Elizaveta Alekseeva). A ambos acrescenta-se a diversão musical de uma banda militar americana com seu jazz primitivo e tolo - uma referência ao maestro e compositor Glenn Miller (alçado à capitão e logo em seguida major como propaganda para a “United States Army Air Forces” - USAAF) e sua orquestra de big band e swing. Ao mesmo tempo, quase tudo isso também estava presente no cotidiano soviético daqueles que possuíam um receptor de rádio - com a exceção da publicidade, que se tornaria rotineira na URSS apenas nos anos 1970, e a substituição dos ritmos americanos pelos folclóricos eslavos entoados por corais militares.

Talvez tenha sido sua incapacidade de ocultar qualquer traço de ambiguidade que tenha desencadeado seu afastamento do filme. O ministro do cinema, Ivan Bolshakov, não queria repetir a atuação de Boris Shumiatsky, que não conseguiu censurar devidamente a diretores e nem coagi-los economicamente pelo controle dos orçamentos (ou mesmo manter seus gastos sob controle, impedindo grandes prejuízos para o ministério - já que na URSS a figura do produtor, que deveria gerir o caixa do filme, raramente existia, ficando suas funções a cargo de um diretor com poderes ampliados), e acabou executado por sabotagem e traição em 1938. Ao menor sinal de estouros no orçamento ou de sugestão de heterodoxia política, o novo ministro agia prontamente, como na suspensão das filmagens de “Ivã, o terrível parte II” e o encaminhamento do caso de Eisenstein para o Comitê Central do Partido23. Se Dovjenko não tivesse sido afastado, talvez acabaria na mesma situação que Eisenstein, deteriorando a imagem do Partido e do mundo artístico soviético. A melhor opção econômica e política seria a liberação do filme mutilado.

Um dos momentos mais ambíguos em “Proshchay, Ameryka!” é a definição de paz que o novo embaixador americano Walter Scott (Grigory Kirillov) produz. Ele poderia parafrasear o romano Flávio Vegécio com seu “se quer paz, prepare-se para a guerra”, mas prefere colocar na boca do general da inteligência americana uma frase de Lenin, que afirma que a paz é “uma pausa para a guerra” (Pipes, 2017, p. 192). Anteriormente o público soviético já fora alertado pelo conselheiro Marrow (Alexander Polinsky) de que “os tiros acabaram. A guerra, não”. A noção da atomização do indivíduo, pregada pela teoria do totalitarismo, aparece com o novo membro do corpo diplomático, Francis Darlington (Vyacheslav Gostinsky), aterrorizado pela ameaça circundante dos russos, constantemente posto em tensão pelas advertências de Marrow ou pelos trotes telefônicos do médico da delegação, Charles Winchell (Janis Osis), e do chefe de comunicações. A maldade cômica daqueles que se aproveitam do sistema de terror transparece ao público a inversão da propaganda e da análise conservadora antissoviética, a imputando à sociedade do rival americano, mas também refletia experiências dos próprios soviéticos24. A colega estenógrafa de Bedford, Cecilia Wong (Lyudmila Shagalova), sussurra temer que suas conversas sejam grampeadas, monitoradas, que microfones escondidos se encontrem em todos os cantos da embaixada americana - mas atribuiu o sentimento de perseguição aos russos, como Darlington. O corte de Dovjenko nos mostra, no entanto, que quem controla o aparelho de escutas na embaixada é o próprio chefe de comunicações, que transmite seus relatórios ao conselheiro Marrow e ao próprio embaixador americano. O novo embaixador Scott insinua que a Cortina de Ferro se originou das ações americanas, mas que, no entanto, suas barreiras não devem existir diante do aparelho de espionagem americano. Este deve elaborar boletins precisos e regulares sobre o poderio e intenções soviéticos. O sentimento generalizado de desconfiança atinge o próprio embaixador, que duvida da afirmação de seus especialistas de que a bomba atômica soviética ficaria pronta apenas após 1954 - em 1951 o público soviético sabia que seu país a possuía desde 1949. Elogiosamente, Dovjenko faz com que Scott, melhor conhecedor da realidade, sem as falsificações da imprensa americana, apareça como melhor avaliador, realçando a conquista militar soviética na crescente corrida armamentista25.

Enquanto o comerciante Brooks é atendido pelo embriagado médico Charles Winchell, os trabalhadores americanos da embaixada fazem questão de afirmar - dentro de seu grupo - que odeiam os soviéticos oito horas por dia, por serem pagos para isso, enquanto o capitalista Brooks os odeia as 24 horas. O diretor procura construir a imagem do proletário enganado pela propaganda opressora do regime adversário, indiferente à luta de classes movida por seus amos. O discurso de Stalin pela paz fizera o comerciante entrar em colapso. Um dos trabalhadores afirma que Truman não deveria ter uma reação diferente. Quando um dos lacaios Johnny Greves aparece, o grupo se desfaz com clamores para não se falar em política: uns viram as costas, outro exclama “estou tapando os ouvidos”.

Quem são os americanos no filme? Bêbados, com tendências ao gangsterismo, comerciantes avarentos e de baixo nível, militares que preferem ganhar guerras com o sangue alheio, adeptos da cultura da violência e do mais forte, individualistas e egocentristas atomizados pelo fantasma do terror vermelho concebido por seu próprio regime. Ao lado dessa vinculação ao discurso oficial, os exageros e cenas criadas pelo diretor poderiam fortemente sugerir que o ambiente de paranoia política se referia não ao cenário real das perseguições, demissões, prisões e penas capitais do macarthismo, que obrigava o cinema hollywoodiano a se refugiar no menos polêmico gênero musical, mas ao igualmente concreto ambiente do stalinismo e do menos mortífero stalinismo tardio, que Dovjenko conhecia por dentro e em proximidade com seus líderes. Room concebeu seu filme de uma maneira em que dificilmente o público poderia se enxergar na mesma situação, apesar da temática cotidiana da falta de liberdade e repressão. Procurou conter qualquer sinal de ambiguidade. Dovjenko os ressalta. Por fim, a ideia de uma pessoa engajada que acaba abandonando a visão de seu país pela do inimigo quando percebe viver num sistema mantido por mentiras, poderia conter alguma ameaça.

Dovjenko foi convocado para o gabinete do diretor do estúdio Mosfilm, Sergey Kuznetsov, e informado do fim do projeto em estado adiantado. A busca por um papel menos confrontativo para se aproximar do surgente movimento dos Países Não-Alinhados teria sido um dos motivos fundamentais para o fim das filmagens, o que era necessário para diminuir a propaganda antiamericana (Beumers, 2015). Aludir ao noticiário conturbado nas telas do cinema agora não era uma necessidade.

Vstrecha na Elbe” [Encontro no Elba], 1949, de Grigori Aleksandrov, possui vários momentos ambíguos intencionais ou potenciais. Em dois momentos Heinrich Heine é citado, inclusive com a leitura de um de seus poemas. A “damnatio memoriӕ” do poeta romântico alemão, banido pelo regime nazista, é lembrada pela derrubada de sua estátua. O tema da destruição do passado incômodo era sensível à audiência soviética. Apesar de ser muito mais frequente a políticos do que artistas26. As violações americanas perpetradas por meio da nova moeda de troca são ao mesmo tempo uma resposta às acusações contra o mesmo procedimento levado a efeito pelo Exército Vermelho, com a diferença da coação ao lado de incentivos de alimentação e proteção às mulheres alemãs (Beevor, 2005), mas também um lembrete, mesmo que involuntário, da postura soviética. Aleksandrov exibe caminhões carregados com caixas e maços de “Lucky Strike” descarregando desordenadamente nas ruas da Berlim Ocidental em ruínas sombrias, enquanto oficiais os utilizam para cooptar mulheres. Elas também são aliciadas no bar americano por meio de cartazes - mulheres são os únicos alemães permitidos, bem como brancos são os únicos americanos que podem adentrar o estabelecimento. Da mesma forma que os soldados americanos usam cigarros, comida e dólares para obter os favores das berlinenses famintas, também os usam para arrematar por quase nada os tesouros artísticos do país; a pilhagem praticada pelos americanos27 pode servir para rememorar a dos soviéticos, com a diferença de que o que chamava a atenção do rapinante americano (bebida, prataria, obras de arte) não era o mesmo que a um siberiano ou mongol (cadarços, lâminas de barbear, bicicletas), apesar de ambos apreciarem relógios (Beevor, 2005). O soviético que recebeu algum presente de um parente no fronte, ou o próprio saqueador, que manteve o butim no equipamento da casa ou o vendeu, dificilmente poderia esconder de si mesmo o fato de terem agido como os americanos no telão28.


Figura 2:
Stalin e Lenin; O golpe branco; Heine apagado da História; ponte aérea em Berlim
Fonte: Sekretnaya… (1950); Zagovor… (1950); Vstrecha… (1949).

O filme também apresenta espionagem industrial e sequestro de cientistas alemães promovidos pelos americanos, interessados na tecnologia econômica e militar dos nazistas29. Enfim, Aleksandrov reverte a representação antissoviética ao exibi-la como característica a nazistas e americanos. O resultado é uma peça de propaganda que exibe a faceta que os americanos e seus aliados procuravam apagar30, mas também um silêncio gritante. Para um cineasta que defendeu o jazz e a música negra americana nos anos 1920 e início da década de 1930, que batizou o filho (que seria preso em breve31) com o nome do ator hollywoodiano Douglas Fairbanks que visitou a URSS acompanhado da esposa, a atriz Mary Pickford, nos anos da NEP (quando ainda não existia o monopólio do mercado interno pelo produto nacional), o quanto essa relação entre silêncios e acusações dos crimes ocidentais é acidental, intrínseca ou conscientemente sugerida fica a critério do público receptor individualizado, que poderia ler o filme sob diferentes ângulos e extrair sua própria impressão pró ou antirregime, segundo suas próprias convicções.

Os aviões da ponte aérea para Berlim e a aterradora superioridade aérea americana são sugeridos no momento em que a agente estadunidense revela sua verdadeira face, como oficial do Exército, no aeroporto de Tempelhof - que era o mesmo local da linha de abastecimento dos EUA à área capitalista bloqueada por terra. A personagem podia se despedir diante da embaixada de seu país ou em algum dos postos fronteiriços, como o famoso checkpoint Charlie, atribuindo-se uma imagem de espiã. Esta, no entanto, foi trabalhada ao longo do filme, e agora é associada diretamente às forças armadas inimigas e ao seu mais espetacular feito, e uma recente ferida no orgulho soviético.

Conclusão

Ao se perceber o cinema como fruto de uma sociedade, portador de uma cultura e de uma mentalidade, com várias leituras possíveis, como faz Ferro, fica notável a influência do jogo de interesses artísticos e de liberdade crítica de seus produtores e a pressão pelo engajamento e disseminação de mensagens favoráveis e da versão oficial pelo regime. As duas preocupações divergentes chocavam-se no processo de elaboração e poderiam terminar em obras “inspiradas” bem-sucedidas, como “Zagovor obrechonnykh”, em que não se destacam elementos de crítica sutil, “Vstrecha na Elbe”, que o faz com maestria, ou experiências malsucedidas, como “Proshchay, Ameryka!”, apesar da dificuldade em determinar se este se deveu à crítica pouco sútil ou a um realinhamento do cenário diplomático e dos interesses do Kremlin.

Diante desse jogo de interesses divergentes, alguns filmes encomendados pelo governo assumiram a função didática de um cinejornal, que repetia, explicava, reafirmava e justificava, de uma maneira mais convincente e atrativa, as posições de Moscou acerca do agitado mundo do pós-guerra, embalado por uma guerra cultural acirrada baseada em mentiras de ambos os lados, uma guerra fria que ameaçava tornar-se quente a cada constante nova crise internacional, e a descolonização que multiplicava essas crises. Os diretores precisaram recorrer ao melhor da ambiguidade e da dosagem de engajamento para escapar parcialmente a essa prisão.

Poder-se-ia afirmar que a película de cinejornal é produzida em Hollywood porque a bilheteria é atraída por assuntos candentes onipresentes na mídia (cumprindo o fator duplo de divulgação e interesse) e pela diversão dos filmes comerciais de aventura, ação e espionagem. No entanto, qual a razão da dificuldade (com a exceção parcial dos anos 1990) de se encontrar tais filmes que contenham posicionamento avesso ao do regime? Afinal, teorias conspiratórias, polêmicas e reveladoras também vendem. Se na mídia americana (e inglesa) os soviéticos eram sempre os culpados dos problemas do mundo, na URSS eram sempre os Estados Unidos - e os britânicos.

Apesar da pressão do regime, efetuada de diversas maneiras, para que o cinema adotasse não só a autocensura, mas que também se engajasse de maneira profunda na busca dos objetivos políticos internos e da justificação dos interesses de Estado, que poderia resultar em censura do material (anulando todo o esforço artístico e expectativa de retorno financeiro aos estúdios e pessoal técnico) ou mesmo penalidades físicas, existiu algum espaço para a dubialidade, para que o diretor ou a plateia trabalhassem com mensagens que não eram do interesse da ditadura ou que poderiam receber até uma leitura avessa a esta.

Fontes

PROSHCHAY, Amerika! [Adeus, América!]. Direção: Aleksandr Dovjenko; Julia Solntseva. Moscou: Mosfilm, 1951. 1 DVD (70 min), color.

RUSSKIY vopros [Questão russa]. Direção: Mikhail Romm. Moscou: Mosfilm, 1947. 1 DVD (91 min), P&B.

SEKRETNAYA missiya [Missão secreta]. Direção: Mikhail Romm. Moscou: Mosfilm, 1950. 1 DVD (98 min), P&B.

VSTRECHA na Elbe [Encontro no Elba]. Direção: Grigori Aleksandrov. Moscou: Mosfilm, 1949. 1 DVD (104 min), P&B.

ZAGOVOR obrechonnykh [Conspiração dos condenados]. Direção: Mikhail Kalatozov. Moscou: Mosfilm, 1950. 1 DVD (103 min), color.

Referências

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Notas

1 “Uma parte da realidade expressa no cinema escapou aos censores. Escapou sempre e escapa ainda hoje, quando, apesar de todas as formas de controle, de Andrei Rublev ao cinema nacionalista, o filme se liberta mais e mais da instituição que o governa [...] um filme, seja ele qual for, sempre vai além de seu conteúdo, da mesma forma que escapa a seu censor, escapa também a quem faz a filmagem. Essa é uma verdade que diz respeito aos textos, porém ainda mais às imagens, durante essa metade de século em que os mais doutos fazem as vezes de verdadeiros iletrados diante da imagem [...]. Mas o filme escapa também ao cameraman e ao cineasta, que não chegam a apreender necessariamente todas as significações da realidade que mostram. Por exemplo, já foi demonstrado que, sob a aparência de um filme agradável ao regime - é o caso de Tchapaiev, de 1934, que de fato satisfez todas as vontades dos dirigentes soviéticos -, o diretor revelou os traços profundamente tradicionalistas da ideologia stalinista. Há inúmeros outros exemplos que demonstram o quanto um filme sempre vai além de seu próprio conteúdo” (Ferro, 1992, p. 28-29).
2 Além dos citados no corpo do texto do presente artigo, também foram escolhidos os filmes: “Admiral Nakhimov” [Almirante Nakhimov], 1946, de Vsevolod Pudovkin; “Admiral Ushakov” [Almirante Ushakov], 1953, de Mikhail Romm; “Geroi Shipki” [Os heróis de Shipka], 1954, de Sergei Vasilyev; “Korabli shturmuyut bastiony” [Bastiões da tempestade dos navios/Almirante Ushakov parte II], 1953, de Mikhail Romm; “Maksimka”, 1952, de Vladimir Braun; “Nezabyvaemyy 1919 god” [O inesquecível ano de 1919], 1951, de Mikheil Chiaureli; “Padenie Berlina” [A queda de Berlim], 1950 de Mikheil Chiaureli; “Shkola zlosloviya” [Escola de fofoca], 1952 de Abram Room; “Smeliie lyudi” [Pessoas ousadas], 1950, de Konstantin Yudin; “Sportivnaya Chest” [Honra esportiva] , 1951, de Vladimir Petrov; “Velikaya sila” [Grande poder], 1950, de Friedrich Ermler; “Velikiy perelom” [A grande virada], 1945, de Fridrikh Ermler; “Velikiy voin Albanii Skanderbeg” [Scanderbeg, grande guerreiro da Albânia], 1953, de Sergei Yutkevich; “Zastava v gorakh” [Posto avançado nas montanhas], 1953, de Konstantin Yudin.
3 Segundo Fonseca (2018, p. 255): “O discurso esópico (ezopóvskaia riêtch) era uma característica recorrente dos escritores da Época dos Romances Polêmicos, que visava a driblar a rígida censura, elaborando uma história principal de pano de fundo, mas que escondia o tom denunciatório da narrativa. Entre seus pares do início da década de 1860, a linguagem criptografada era compreendida, mas para os críticos das décadas vindouras, sua ironia soou como deboche [...]. No início da década de 1860, Sleptsov possuía cadeira cativa como colunista da revista O Contemporâneo, escrevendo na coluna Notas Petersburguesas (Peterburgskie Zamiétki), onde combatia, com o magistral auxílio da linguagem esópica, a burocracia governamental, a corrupção das instituições e a falta de perspectivas no campo e na cidade após a emancipação desordenada dos servos. Sua antipatia pelo governo e a defesa dos artistas e da população marginalizada renderam-lhe o qualificado epíteto de ‘advogado do povo’. Nessa primeira metade da década de 1860, podemos afirmar que Sleptsov gozava de enorme prestígio e popularidade entre a intelectualidade russa”. O uso da linguagem esópica pela literatura encontrou modelos parecidos com o uso da ambiguidade, metáfora e simbologia no cinema soviético. Tramas que envolviam pessoas simples (ou pessoas abastadas em situações que pareceriam superficialmente simples, como o amor mutável em uma sociedade que não reconhece o divórcio, como em “A dama do cachorrinho”, 1899, de Anton Tchekhov) no turbilhão social do país socialista acabaram se tornando uma janela opaca para a dura realidade.
4 O cidadão soviético poderia utilizar seus jornais não para ler, mas com as finalidades que contam Todd (1976) e Mehnert (1966). O que prejudicaria o objetivo do Kremlin em fazer chegar sua narrativa sobre o cenário internacional e as justificativas para sua atuação neste, bem como das motivações para os novos sacrifícios e comportamentos esperados e cobrados da população. Filmes que tratavam de eventos contemporâneos poderiam servir assim como jornais mais convincentes e apelativos que os cinejornais que os precediam durante a exibição, para não falar da mídia imprensa. Tramas de conspiração e espionagem poderiam disseminar sua versão de maneira muito mais efetiva, na medida em que atraem a atenção e geram empatia com os personagens.
5 É também comum a afirmação de que não existia cinema independente na URSS e no Leste Europeu (Liehm; Liehm, 1980). Poderia ser uma realidade na época de Stalin, mas não após ele - diretores como Grigori Chukhrai, de “Balada do soldado” [Ballada o soldate], 1959, tornaram a criação de um fundo destinado unicamente a ele uma de suas metas desde os anos 1960, bem como a autonomia do diretor sobre contratos de trabalho e contratações, assumindo o papel do produtor, na URSS muitas vezes substituído por comitês do pessoal dos estúdios. O que invalida a ideia. Youngblood (2007) e Lawton (1992b) mostram como as uniões artísticas criativas, surgidas dentro dos grandes estúdios soviéticos, às vezes assumiam a função dos pequenos estúdios, preservando o cinema independente e a experimentação artística, com pouquíssimos recursos, garimpados nos concorridos fundos dos estúdios, que permaneciam em parte livres da redistribuição das bilheterias promovida pelo Ministério do Cinema ou de empréstimos do banco estatal.
6 “Quanto mais concentrado o poder político, mais um punhado de seus representantes no nível superior do Partido Comunista e do governo - e às vezes um único representante - tornou-se o primordial e supremo “Espectador”. Esse Espectador decidiu sobre o destino individual dos filmes, dos artistas do cinema, e tendências com uma crueldade bastante diferente da - e ainda em muitos aspectos semelhante - crueldade de usar os resultados de bilheteria no Ocidente como praticamente a única medida do sucesso de um filme [...]. E, naturalmente, essas pressões [por parte do Estado] também provoca uma contrapressão, o que é evidente nos esforços dos cineastas para mudar a situação, no seu crescente sentimento de responsabilidade coletiva para o estado geral de coisas, nos seus esforços para alcançar uma maior descentralização e estabelecer mais grupos de produção independentes, e, em última instância, no fortalecimento do papel desempenhado pelos cineastas e suas organizações dentro de todo o sistema. [...] A união pessoal entre o Espectador e o poder político liga o artista do cinema à política. Cada palavra proferida pelo artista inevitavelmente iniciava um diálogo político, cada tentativa de sair da linha conduzia para um conflito político, cada show de não-conformismo resultava em ostracismo político, ou pior [...]. Muitos talentos menores logo perceberam que o conformismo absoluto abria portas que teriam sido rigorosamente fechadas para eles se tivessem confiado apenas em seus talentos. Quanto aos com talento, enquanto se recusassem a trair seus talentos, mais cedo ou mais tarde se veriam em conflito com os poderes constituídos. E depois, todos eles juntos aprenderam a lição - e muitos aprenderam muito bem - o cinismo da política do dia-a-dia, manobrando, e trapaceando, sob o lema ‘os fins justificam os meios’. Por outro lado, nos momentos de crise política quando o poder centralizado tornava-se temporariamente fraco, o filme aproveitou seu papel e prestígio como ‘a mais importante de todas as artes’ para começar a falar com os reais espectadores, a audiência em geral do filme” (Liehm; Liehm, 1980, p. 1-2).
7 Como Fürst (2006) e Deutscher (2006) mostram, o stalinismo tardio (1945-53) se caracterizou por continuidades e rupturas profundas diante de sua fase de consolidação, o alto stalinismo (1929-41): a repressão de massiva, indiscriminada e improvisada, passou a ser cirúrgica, individual e profissional; apesar da falta de morarias para talhadores, destroçadas pela guerra, a nova classe média - ou estrato social - conhecia uma economia e cultura de consumo incipiente; o ambiente universitário balançava entre a repressão e silenciamento diante das correntes sancionadas e oficiais e o debate aberto; universidades formavam técnicos em grande quantidade, corroendo parte do poder e presença dos praktiks, aqueles com formação prática e que não receberam o ensino secundário, e que muitas vezes assumiam posições de liderança gestão de empresas e processos industriais (como o cinema). Assim, as condições internas para o Degelo artístico quase imediato à morte de Stalin existiam previamente, permitindo que este ocorresse tão rápido. Se o ambiente da nascente Guerra Fria estimulava o apoio a pseudociências como forma de marcar posturas ideológicas, este não foi o caso do cinema, que, apesar do realismo socialista, continuava a formular sua linguagem segundo o cinema clássico de Hollywood e a manter contato com este.
8 Na URSS circulavam carros importados do outro lado da Cortina de Ferro vindos de compras oficiais do regime para sua cúpula dirigente (apesar da produção nacional de carros de luxo copiados dos modelos ocidentais), da Segunda Guerra Mundial (abandonados pelos nazistas em fuga ou confiscados na Europa libertada) ou comprados por especuladores de diplomatas e pessoal estrangeiro com o direito de trazê-los - e então silenciosamente revendidos no fervilhante mercado negro automotivo. O cineasta Alexandre Lomakov (mais conhecido pela sua coleção particular de carros e motocicletas em Moscou) possuía uma Mercedes Benz 540 SKL, da qual foram produzidas nove unidades, tendo sido seis destruídas, que fora abandonada no Cáucaso e parado no mercado negro (Meney, 1984).
9 Apesar de subsistir, gerentes e trabalhadores ficavam sem o grosso da renda, constituída por bônus de produtividade e qualidade (Mehnert, 1966) - um quadro que perdurou até as políticas salariais niveladoras de Brejnev (num ambiente no qual a mão de obra escasseava), mas que também reorientou as empresas para a busca do lucro, a eficiência, o combate ao desperdício e a descentralização nos anos 1970 na reforma de Kosygin (Segrillo, 2015). A anekdoty soviética que afirmava que o comunismo resolveu todos os antigos problemas do capitalismo pondo em seu lugar problemas inteiramente novos é apenas parcialmente correta.
10 O diretor de fotografia Daniil Demutsky ajudou Dovjenko a formular o uso de fantasia e sonho com o auxílio de sua fotografia. Foi preso em 1932, 1934, 1938 (nas duas primeiras, por quatro meses, na última, 17 meses), proibido de residir em 15 locais diferentes por três anos por ser parente de um oficial branco (Trimbach, 2003). A guerra e a evacuação dos estúdios para Tashkent já o encontraram num exílio interno lá, que o permitiu afastar-se das autoridades e a continuar na indústria do cinema. Mestre (ao lado de Eduard Tisse, cinegrafista de Eisenstein) da escola pictorial, utilizou a união de métodos construtivistas e pictóricos de expressão (Loshak, 2002).
11 Os três eventos foram fartamente trabalhados pela mídia em ambos os lados da Cortina de Ferro. O Acordo das Porcentagens entre Stalin e Churchill estipulava que a Grécia seria zona inglesa apesar da forte atuação das guerrilhas comunistas locais na expulsão dos nazistas e da presença do Exército Vermelho na fronteira. Em 1944-46 Stalin, por diversas vezes, afirmou a líderes como Dimitrov (Roberts, 2006) e Tito (Deutscher, 2006) que a URSS não apoiaria os comunistas locais a chegarem ao poder. Figuras importantes como Litvinov e Gromyko asseguraram aos britânicos o cumprimento do acordo. Tito foi severamente repreendido por Stalin por fornecer auxílio às guerrilhas comunistas já em choque com os monarquistas, ex-fascistas e britânicos sem consultar e informar a URSS. Para a mídia e políticos americanos, Tito operava a mando de Stalin em mais um episódio da anunciada expansão soviética nos Balcãs. O Afrika Korps encurralou os ingleses em duas ocasiões. O aparente colapso fortaleceu o movimento nacionalista árabe, que executou golpes de Estado antibritânicos e antifranceses em todo o Oriente Médio em 1941-42. Em 1945 surgiu a Liga Árabe, reunindo os governos sob mandatos anglo-francos, que acabaram cancelados entre 1946-47 com a percepção pelas metrópoles de serem insustentáveis diante da pressão anti-imperialista por parte da população e dos mandatários locais. Os novos Estados emancipados foram agitados entre 1948-51 (e além) por inúmeras quedas de governo, golpes civis e militares (como a rápida sucessão de regimes na Síria), atentados políticos (como o assassinato do rei da Jordânia), a imersão num mar de refugiados (como o Líbano e a Jordânia) e a ameaça de guerra civil (que chegou ao auge no levante Al-Wathbah no Iraque). A Guerra Árabe-Israelense de 1948 terminou com um racha na Liga Árabe, que ameaçou a Jordânia ao esta incorporar a Cisjordânia palestina. A maioria das tropas inglesas (com a exceção de Suez) foi expulsa do ex-protetorado do Egito em 1947-51. A afirmação nacional e dos Estados, por um lado, e por outro o pan-arabismo e o anti-imperialismo, faziam os árabes colidir entre si. A atuação da URSS nesses eventos fora dúbia. Até 1948 apoiara Israel, fornecendo-lhe armas via Tchecoslováquia. Após a deserção dos social-democratas de Ben-Gurion para o campo americano os posicionamentos políticos se afirmaram e clarificaram, com o apoio militar, econômico, tecnológico e diplomático soviético aos nacionalistas árabes. Para os soviéticos, a atuação americana estaria por trás dessas convulsões. Dovjenko atribui aos americanos o cenário de fragmentação política pós-Primeira Guerra formulado pela Declaração Balfour anglo-francesa de 1917, baseada na máxima de dividir para conquistar, criando tensões, rixas, novas identidades e lealdades no antigo território árabe (Fromkin, 2010). O desaparecimento da culpa dos impérios europeus e sua imputação ao império americano corresponde ao estado decadente daqueles, não mais vistos como inimigos principais. A mesma sensação transparece no filme de Dovjenko com a legação britânica (representada por Leonid Eremeev) sendo escorraçada pelos americanos na embaixada ao se negarem a aceitar a hegemonia americana no ataque à URSS e no controle do mundo. A URSS inicialmente buscou a reconstrução de sua aliança com os nacionalistas chineses do Kuomintang, abalada pouco antes da Segunda Guerra. Em especial, que Kai Shek reconhecesse o que os acordos com americanos e ingleses em Yalta prometeram aos soviéticos: a posse de Port Arthur no Mar do Japão, antigo objetivo czarista. Ao mesmo tempo, entregava o butim de guerra japonês à Mao, agora equipado com artilharia e logística motorizada (Carew, 2019). Enquanto Truman buscava conquistar espaço ao expulsar ou enfraquecer Stalin em sua zona de influência europeia e no Oriente Médio, a situação de Kai Shek se precarizava. Quando os EUA enviaram material para o Kuomintang, nada mais poderia impedir a vitória de Mao no continente.
12 Apesar dos kolkhozes serem anunciados (apesar de não exibidos) como modelos, recentemente (1946) foram afligidos por uma onda de fome no imediato pós-guerra, causada pela destruição e abandono dos campos, falta de mão de obra masculina e maquinário (absorvidos pelo esforço de guerra), seca, o fim da ajuda americana do Lend-Lease e os novos compromissos de assistência alimentar na Europa em escombros. Stalin guardou em sua gaveta um relatório que tratava do canibalismo praticado por uma mãe no Cazaquistão (Volkogonov, 2004).
13 As relações soviéticas com o Iraque eram anteriores à Guerra Fria. Durante o avanço de Rommel em direção à Alexandria, um governo antibritânico chegou ao poder na colônia iraquiana. Stalin o reconheceu em 12 de maio de 1942 (Roberts, 2006), como forma de mostrar seu desagravo ao não-reconhecimento britânico da reanexação do Báltico promulgada por suas assembleias nacionais. Os rebeldes foram derrotados pela dinastia rachemida e pelos ingleses, mas, em janeiro de 1948 (e por toda a primavera), quando da renovação do status de domínio britânico pelo rei Faisal II, eclodiram greves, paralisações e motins de populares, trabalhadores, estudantes e minorias como os curdos (num movimento chamado de revolta Al-Wathbah) que foram violentamente reprimidas pelo regime. Alegou-se uma orquestração comunista - e o ouro de Moscou. No entanto, os sauditas não atuaram menos. Os comunistas representavam apenas uma pequena parcela dos manifestantes e partidos envolvidos. A duração da agitação, sua violência e a ameaça que representava para a Inglaterra, que acabara de abandonar a Palestina, tornou o conflito em mais um episódio da Guerra Fria na mídia (Tripp, 2007).
14 Em dezembro de 1945 o não marxista “Partido Democrático Azeri” declarou a independência do extremo noroeste do Irã (apesar da presença do marxista “Partido Trabalhista Pan-Iraniano”), fronteiriço ao Azerbaijão soviético e de mesma etnia, numa região sob ocupação militar soviética - ao passo que a metade sul fora ocupada pela Inglaterra, quando os dois aliados recearam interesses do Xá em se aliar à Hitler em 1942. Ambos acordaram um cronograma de retirada sem que nenhum o obedecesse. Sob pressão anglo-americana, em março de 1946 Stalin retirou as tropas e o apoio militar aos nacionalistas azeris, que foram derrotados pelos iranianos em dezembro - juntamente com a pequena pró-soviética República Curda de Mahabad (Casey; Wright, 2011).
15 Como “Admiral Ushakov” [Almirante Ushakov], 1953, “Admiral Nakhimov” [Almirante Nakhimov], 1946, “Geroi Shipki” [Os heróis de Shipka], 1954, “Korabli shturmuyut bastiony” [Bastiões da tempestade dos navios/Almirante Ushakov parte II], 1953, “Padenie Berlina” [A queda de Berlim], 1950, “Velikiy voin Albanii Skanderbeg” [Scanderbeg, grande guerreiro da Albânia], 1953.
16 Alguns dos interesses soviéticos eram tão antigos quanto meados do século XIX. A decadência turca, o “doente da Europa”, provou ao Kremlin que os estreitos do Dardanelos e do Bósforo não eram inacessíveis. Ao longo daquele século o czar tentara convencer as potências europeias de sua prioridade na região, por onde escoava a maior parte de sua produção agrícola e exportações. Apesar da contenção da Rússia nesse período, a região fora prometida pela Inglaterra e França como espólio numa vitória na Primeira Guerra (Clark, 2014). As exportações de Stalin não eram tão dependentes, porém a saída para as águas quentes do globo continuava a ser uma preocupação. Obter uma base na região, como fora avaliado durante a Segunda Guerra (Carew, 2019), abriria o Mediterrâneo para a Frota do Mar Negro. Stalin já demonstrara interesse nas colônias africanas. Quando os aliados solicitaram influência sobre a área libertada na Europa pelos soviéticos, Stalin lembrou de pedir igual participação nos negócios na zona liberada pelos aliados ocidentais, no caso, Líbia italiana. Molotov não acreditava que o Ocidente aceitaria a guarda do estreito (Molotov; Chuev, 2007). Apesar da derrota turca para as forças czaristas, com as revoluções de 1917 o Divã conseguiu ocupar a província de Kars e o monte Ararat. O Pacto Ribbentrop-Molotov de 1939 pretendia reverter o Tratado de Versalhes, o que foi sancionado em boa parte em 1945. Moscou não se esqueceu da fronteira da Armênia soviética e fez o pedido pela retificação. A antiga inimizade russo-turca e o interesse renovado na área aceleraram a entrada turca para a OTAN, vista pela Inglaterra como um elo a ser protegido na rota para o Oriente. A Turquia (e a Itália) receberia mísseis atômicos americanos que poderiam atingir Moscou entre 1959-61, retirados em 1963 após a Crise dos Mísseis. O pedido de guarda sobre os estreitos foi refeito por Stalin em março de 1950, seguido por um projeto de ampliação da frota do Mar Negro (Casey; Wright, 2011). A crise dos Dardanelos ganhou os contornos de pré-guerra na imprensa das duas superpotências, como ocorreu na maioria dos outros confrontos mencionados. Esse objetivo geoestratégico soviético seria realizado parcialmente apenas em 1971, com a criação da base militar de Tartus na Síria, e nos últimos anos, com a passagem do Chipre grego para a zona de influência econômica russa.
17 - “Teerã, Yalta, Potsdam - todos eles foram erros. Você verá. - Algo louco está acontecendo no mundo! Cada pequeno Estado está tentando se tornar independente. Todo governo está ocupado suprimindo o comércio com a ajuda de tarifas, cotações, embargo. Chega dessas soberanias nacionais! É óbvio! - Absolutamente certo. - Não, deixe-o dizer, quem devemos mandar para morrer. Quem irá lutar por nós? Quais ideias temos para oferecer? - Para destruir o comunismo. Não é uma boa ideia, você acha? [...]. - Espere, espere, eu apoio os alemães! É o caminho mais barato [...]. - Vamos levar vinte e cinco divisões. Como mercenários, não receberão pensões para veteranos. Milhões de dólares. - Mas, mas, mas... e quanto aos japoneses? Oitenta e cinco milhões de japoneses! Estes são os soldados ideais. - O que os torna ideais? - Por que eles são ideais? - Por quê? Eles são completamente ignorantes. - Bem, você sabe, ignorância, no final, nunca foi uma vantagem até agora” (Proshchay..., 1951).
18 Armand Howard - “Tudo bem, eu vou, mas antes de sair direi: não somos a Embaixada da Paz, somos a Embaixada da Guerra. Este é o lugar onde as mentiras são inventadas e enviadas para a América. O ódio a todos os soviéticos, à democracia da Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, Bulgária, Hungria!” (Proshchay.... 1951).
19 Outros filmes cumprem o mesmo objetivo de disseminar a versão oficial dos fatos. Em “Serebristaya pyl” [Pó de prata], 1953, de Pavel Armand e Abram Room, repete-se o discurso oficial sobre a questão racial americana. Os motins raciais da minoria negra e os linchamentos e massacres que ocorriam sob o olhar das autoridades complacentes ou cúmplices, especialmente contra essa mesma minoria, e todo o sistema de apartheid que vigorava nos Estados Unidos periodicamente tornavam-se manchete. “Serebristaya pyl” desmonta a versão estadunidense e os acusa diretamente de serem continuadores da obra nazista de purificação racial. O sabor anfibológico que deixa é de que os EUA do século XX são a Rússia czarista do século XIX, com seus pogroms frequentes e perpetradores que gozavam da simpatia do regime - uma mensagem agradável ao Kremlin. Elementos da propaganda americana antissoviética também são invertidos, ao serem aplicados aos próprios Estados Unidos: falso Estado de Direito e corrupção judicial, Estado policialesco, gangsterismo ao serviço do terror político, fanatismo político-religioso, etc. Sud chesti [Tribunal de honra], 1948, também de Abram Room, se insere no noticiário de repressão aos cientistas soviéticos que se contactaram com pesquisas ocidentais sem autorização. “V mirnyye dni” [Em dias de paz], 1950, de Vladimir Braun, nas constantes violações da fronteira soviética.
20 Apesar da rigidez geral do realismo socialista do stalinismo tardio, o gênio de Kalatozov não deixou de figurar. Toropova vê a influência do gênero noir, como os encasacados e sombrios agentes nazi-americanos. Kalatozov deixou claro sua atração pela arte americana durante sua residência em Hollywood entre 1943-45. Em seu informe considerou “Cidadão Kane” o melhor exemplo dessa arte (Toropova, 2020).
21 Apenas no primeiro dia o filme angariou 200 mil espectadores. Pudovkin não o considerava do gênero espionagem e sim o de ainda maior apelo na URSS detektiv, na medida em que Masha encontra provas da traição ocidental. A comissão do estúdio tentou pôr entraves no roteiro. Acreditava que a revelação de que a nazi Martha era uma soviética turvaria a distinção do herói positivo do realismo socialista diante do público (Toropova, 2020).
22 As dúvidas do diretor sobre a natureza e a realidade do regime de Stalin teriam se tornado claras ao seu círculo íntimo ainda nos anos 1930, ao apontar que o surto e pânico de prisões durante a Yejovschina e a subsequente reabilitação nos primeiros anos de Beria à frente da polícia secreta, revelariam que o sistema vitimava inocentes e agia com terror. Tais afirmações estariam no relatório do NKVD feito sobre o diretor a partir da denúncia de espiões voluntários no corpo técnico do estúdio (Argumentum, 2018).
23 O próprio Stalin criticou o filme diante do Comitê Central em 9 de agosto de 1946. Uma nova seção promoveu uma condenação pública, que ressoou fortemente nos ataques da imprensa ao cineasta, que em breve morreria do coração (Neuberger, 2019).
24 Os livros de entrevistas com veteranos e veteranas da guerra da Nobel Svetlana Aleksiévitch mostram passagens em que humor negro, advertência, terror gratuito e ameaça se entrelaçam.
25 Os militares Walter Bedell Smith (1946-48) e Alan Goodrich Kirk (1949-51) sucederam ao famoso diplomata de carreira William Averell Harriman (1943-46). Mas apenas Kirk corresponde ao personagem do filme de Dovjenko como alguém da inteligência do exército, ansioso por espionar as forças armadas soviéticas. Na realidade, Kirk foi diretor do Escritório de Inteligência Naval durante a Segunda Guerra. A relação Kirk parece se impor, já que o embaixador fictício anterior, Robert Divers, teria atuado durante a guerra, assim como Averell Harriman. A imagem de um Roosevelt “bom” apesar de sua equipe permanece. Divers teria sido forçado a assumir um papel democrático pelo falecido presidente, o que ia contra seus verdadeiros sentimentos acerca do regime soviético, da condução da guerra e da paz.
26 Heine era incômodo aos nazistas por ter sido um socialista utópico, um judeu e um parente e amigo de Karl Marx - os dois moravam próximos no exílio francês. Era interessante aos soviéticos pela conotação política; como exilado ainda em vida, lembrava a opressão na antiga Alemanha, que na retórica soviética ressurgiria na Alemanha Ocidental sob ocupação aliada (curiosamente, estes afirmavam que a antiga Alemanha sobreviveria na Alemanha Oriental, que herdou os poucos resquícios da militarista Prússia). Em 1949 o recém-criado Estado de Israel apenas acabara de abandonar os laços de amizade com a URSS e a perseguição a médicos, burocratas e agentes judeus ainda não se iniciara a mando de Stalin. Se o filme fosse lançado alguns anos depois, talvez Heine fosse substituído por outro personagem odiado pelos nazistas. Os soviéticos não destruíam livros em autos de fé. Obras e autores poderiam ser proibidos, escritores poderiam ser obrigados a parar de escrever e, em especial publicar (como o anticomunista vestido a burguês Bulgakov), mas o autor de uma obra condenada poderia ser venerado por outra, aceita. Houve casos de condenação legal a comediantes e poetisas, durante o stalinismo tardio, que resultaram na proibição de publicação e trabalho na área (Werth, 1966). Execução de escritores se davam por acusações políticas e de traição, como as contra Isaac Babel.
27 Interessante notar a troca de acusações entre as superpotências realçando seus próprios tabus - enquanto sempre é o rival a saquear e violar, tal comportamento sempre é negado na própria tropa. Raras são as exceções no cinema. Entre os americanos destaca-se “Julgamento em Nuremberg” [Judgment at Nuremberg], 1961, de no qual uma jovem assedia o juiz Dan Haywood (Spencer Tracy) por cigarros e comida, ou “A ponte de Remagen” [The bridge at Remagen], 1969, onde aparece um caso de estrupo coletivo cometido por americanos. Entre os soviéticos, a pilhagem é sugerida em filmes como “Byl mesyats may” [Era o mês de maio], 1969, quando os soviéticos assam os porcos da fazenda alemã. Talvez o maior diferencial tenha sido a posição oficial. O silêncio americano contrastava com a inicial campanha incentivando a prática na Prússia, destinada a ser esvaziada e repovoada com russos, e proibida e ameaçada por Stalin ao se cruzar o Oder (Beevor, 2005, 2015). Gebhardt (2017) vê o quadro por outro prisma. Se o jornalista judeu Ilya Ehrenburg comandou a propaganda que pedia filhos para Stalin ao comentar o Lebensborn, as revistas americanas apresentavam aos soldados as mulheres alemãs como nazistas permissivas [talvez o próprio cinema nazista, desimpedido do moralismo do Código Hayes, tenha contribuído para essa imagem da mulher alemã]. A autora faz outros detalhes saltarem aos olhos. Os 11 mil estupros oficialmente cometidos por americanos foram em sua quase totalidade cometidos por negros e em território inglês ou francês. O que soldados brancos (e negros) fizeram em território alemão permaneceu no limbo. Gebhardt estima em 190 mil as mulheres estupradas por americanos, 50 mil por franceses, 45 mil por ingleses, 10 mil por belgas, 15 mil por soviéticos na Alemanha Ocidental e outras 860 mil na Alemanha Oriental. Uma estimativa muitíssimo maior para os americanos, e menor que a de 1,6-1,9 milhão de vítimas do Exército Vermelho (Beevor, 2005, 2015).
28 Alguns soviéticos saquearam mais que outros. Oficiais puderam estocar e enviar bens com mais facilidade. No entanto, os generais que mobiliaram toda a sua casa em geral enfrentaram o NKVD. Stalin considerou o comportamento vergonhoso (Medvedev; Medvedev, 2006).
29 Ambos saquearam o país em busca desses recursos. Werner von Braun chefiaria o programa espacial americano; Stalin estava ansioso pela tomada de Berlim também em razão do instituto nuclear em seus arredores e sua carga de urânio enriquecido (Beevor, 2005); o recém lançado AK-47 devia muito em design externo à STG-44; Sabre e Migs 15 e 17 baseavam-se em engenharia e desenho alemães.
30 E que, em boa medida, a mantém afastada do grande público até hoje, com a possível exceção da destruição promovida pelo bombardeio estratégico não apenas sobre objetivos militares, mas também em alvos civis de toda a Europa de Palermo e Nápoles a Hamburgo e Rostock, de Ploiesti e Pilsen a Caen e Brest. Beevor (2016) aponta para as atas administrativas das lideranças da RAF e USAAF que exigiam porcentagens específicas de destruição em cidades alemãs - área e não pontos estratégicos. Uma imagem muito distante da do alardeado bombardeio de objetivos militares com danos colaterais não intencionais e de dimensões esquecíveis sobre civis. Não se costuma lembrar da destruição de cinco paesi ao redor da milenar abadia de São Bento no Monte Cassino, do bombardeiro do sítio arqueológico de Pompeia, ou das cidades normandas, vitimando mais civis que os alemães na região até então, ou que os civis ingleses durante a Blitz alemã - o que ajuda a explicar o clima de desconfiança e hostilidade de muitos franceses diante de seus libertadores (Beevor, 2010).
31 O caso de Douglas Aleksandrov, preso de 1952 até a morte de Stalin em 1953 por espionagem pró-americana, estava longe da singularidade. As esposas do presidente da URSS, Mikhail Kalinin, e do chanceler Viatcheslav Molotov, foram enviadas para o gulag. Além de servir como instrumento de terror geral, significava a detenção do poder de Stalin sobre figuras de proa do regime (Fitzpatrick, 1999). Ambos fizeram apelos repetidos pela libertação. Não se pode descartar a prisão como forma de controlar o pai diretor, da mesma forma que a Dovjenko e seu diretor de fotografia. A própria família de Stalin foi atingida. O namorado de sua filha Svetlana, sua sogra e outros parentes da esposa Nadejda foram presos. Seu filho Vassily, ao se deixar capturar vivo pelos alemães na fronteira em 1941, poderia em teoria significar represálias a Stalin, segundo a Ordem 227 “Nenhum passo atrás, assinada pelo próprio secretário-geral no ano seguinte.


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