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“‘Armaria’, ‘armaria’, ‘armaria’, a bubônica!”: comportamentos e estratégias coletivas diante de uma epidemia de peste que assolou Exu, no sertão pernambucano, em 1935
“‘Armaria’, ‘armaria’, ‘armaria’, the bubonic!”: behaviors and collective strategies in the face of an epidemic of bubonic plague that devastated Exu, in the pernambuco hinterlands, in 1935
“‘Armaria”, ‘armaria’, ‘armaria’, ¡la bubónica!”: comportamiento y estrategias colectivas ante una epidemia de peste que ha sido en Exu, sertão pernambucano, en 1935
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 34, pp. 84-101, 2023
Universidade Estadual do Paraná

Temática Livre


Recepción: 30 Abril 2021

Aprobación: 01 Marzo 2022

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.34.84-101

Resumo: Este artigo pretende identificar os comportamentos coleti-vos e as estratégias de sobrevivência de uma comunidade do município de Exu, Estado de Pernambuco, diante de uma epidemia de peste bubônica que assolou a região no ano de 1935. Sem acesso à informação ou a serviços de saúde, a população assumiu o protagonismo no enfrentamento à letal moléstia, recorrendo à fé, crendices e saberes transmitidos pela ancestralidade. Como prática metodológica para reconstituir esse episódio recorremos à história oral, na qual o passado não é apresentado tal qual foi, pois não pode ser resgatado como se operássemos uma máquina do tempo, mas tecido a partir das reminiscências das testemunhas em seu lugar de fala no tempo presente. Esses relatos, além do apoio da documentação disponível, nos permitiram dimensionar a vulnera-bilidade de uma população pobre, isolada e distante dos centros de poder político diante de um mal devastador e desconhecido para ela.

Palavras-chave: Peste bubônica, Epidemia, Exu.

Abstract: This article intends to identify the collective behaviors and survival strategies of a community in the municipality of Exu, state of Pernambuco, in the face of an epidemic of bubonic plague that devastated the region in 1935. Without access to information or health services, the population assumed the leading role in facing the lethal disease, using faith, beliefs and knowledge transmitted by ancestry. As a methodological practice to reconstruct this episode, we resort to oral history, in which the past is not presented as it was, as it cannot be rescued as if we operated a time machine, but woven from the reminiscences of the witnesses in their place of speech in the present tense. These reports, in addition to the support of the available documentation, allowed us to measure the vulnerability of a poor population, isolated and distant from the centers of political power in the face of a devastating and unknown evil.

Keywords: Bubonic plague, Epidemic, Exu.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo identificar los comportamientos colectivos y estrategias de supervivencia de una comunidad del municipio de Exu, Estado de Pernambuco, ante una epidemia de peste bubónica que asoló la región en 1935. Sin acceso a información ni servicios de salud, la población asumió el papel protagónico en el enfrentamiento de la letal enfermedad, utilizando la fe, las creencias y los conocimientos transmitidos por los ancestros. Como práctica metodológica para reconstruir este episodio, recurrimos a la historia oral, en la que el pasado no se presenta como era, ya que no se puede rescatar como si manejáramos una máquina del tiempo, sino tejido a partir de las reminiscencias de los testigos en su lugar de habla en tiempo presente. Éstas relaciones orales, además del apoyo de la documentación disponible, nos permitieron medir la vulnerabilidad de una población pobre, aislada y alejada de los centros del poder político ante un mal devastador y desconocido para ellos.

Palabras clave: Peste bubónica, epide-mia, Exu.

Introdução

Desde meados do século 20, mais especificamente a partir da terceira geração da Escola dos Annales, quando historiadores passaram a buscar novos problemas, novas abordagens e novos objetos para a história, no dizer de Jacques Le Goff e Pierre Nora, a doença deixou de ser objeto apenas da medicina, passando a ser encarada como um fenômeno sociocultural, capaz de produzir - especialmente no caso das epidemias - impactos sociais, políticos, econômicos e culturais e promover profundas alterações na dinâmica da vida em sociedade.

Le Goff (1985, p. 8) ampliou o campo de abordagem da doença ao defender que ela “não pertence apenas à história superficial dos progressos científicos e tecnológicos, mas também à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades”. Dessa forma, ao longo dos séculos o conhecimento científico tem caminhado lado a lado com as práticas de cura preservadas na memória coletiva e transmitidas pela tradição oral. A doença é uma disfunção orgânica, mas também é percebida como uma punição pelos maus comportamentos humanos, especialmente em quadro de epidemia. Um castigo dos deuses em resposta à degradação moral humana e somente fórmulas mágicas, rituais, promessas e orações, além de uma boa dose de penitência, poderiam salvar o doente de um fim terrível (Sournia; Ruffie, 1984).

Entre as moléstias que atingiram a humanidade, talvez nenhuma outra seja tão carregada de simbolismo quanto a peste bubônica, a temível peste negra, responsável por dizimar um terço da população europeia no século XIV, conforme Delumeau (1989). Foi a partir da devastação causada por ela na Idade Média que outros eventos patológicos passariam a ser representados também como peste (Nascimento, 2014).

Revel e Peter (1988, p. 144) endossam que a peste se constituiu no arquétipo da doença para os antigos historiadores. Para esses autores, a doença infecciosa “é quase sempre um elemento de desorganização e reorganização social. [...] Ela torna mais frequentemente visíveis as articulações essenciais do grupo, as linhas de força e as tensões que o transpassam”.

Mais recentemente, dissecando o imaginário pandêmico, Lynteris (2020) apontou que as representações mentais das doenças de repercussão global, por terem um caráter estrutural, encontram-se na base dos fenômenos sociopolíticos que ocorrem em virtude das pandemias. Assim, para compreender esses fenômenos é imprescindível analisar essas representações.

Fazendo a crítica à maneira pela qual o mítico e o científico se entrelaçam e se cruzam no universo pandêmico, Lynteris (2020) defende que essas formas imaginárias foram institucionalizadas, ao longo dos anos, pelo Estado e pela estrutura midiática do capitalismo para forjar o domínio do humano sobre o não humano no mundo. Assim, reforça, o imaginário pandêmico é também um conjunto de ideias instituídas na medida em que faz parte do aparato biopolítico de preparação.

Para ele, as pandemias têm uma dinâmica irracional, aparecendo e desaparecendo, sem que se estabeleça uma explicação de causa/efeito, e as narrativas pandêmicas - sejam ficcionais ou históricas - se repetem ciclicamente.

No conjunto de imagens, emoções e sentimentos que constroem a representação social de uma doença, os fenômenos epidêmicos, por serem comuns em diferentes culturas e sociedades, têm suscitado respostas e acionado emoções similares ao longo da história, a despeito das diferenças no tempo e no espaço: o medo do contágio e da morte, a fuga dos lugares infectados, a estigmatização, a busca de culpados e o apelo às explicações transcendentais são elementos comuns em sociedades atingidas pelo flagelo.

Tais repercussões da peste sobre a coletividade estão fartamente refletidas na cultura, de uma forma geral, e na literatura em particular, com uma gama de publicações sobre o tema, algumas clássicas como “Decameron”, de Boccaccio; “A peste”, de Albert Camus, e “Diário de um ano da peste”, de Daniel Dafoe.

Quase seis séculos depois da devastação promovida na Europa medieval pela peste negra, um foco primitivo da zoonose1 na província de Yunnan, na China, foi reativado em 1894, espalhando a infeção por via marítima, a partir do porto de Hong Kong, para outros continentes. Em 1899, a peste desembarcou na América do Sul, área até então considerada indene (Brasil, 2008), chegando ao Brasil pelo porto de Santos (SP) e se espalhando para outras cidades portuárias do país. No Recife, desembarcou em 1902, trazida pelo vapor Gundillic, que vinha de Trieste, Itália.

A peste trouxe consigo medo, insegurança e as tensões referidas por Revel e Peter (1988). No Rio de Janeiro, então capital federal naquele ano de 1900, autoridades sanitárias das esferas nacional e estadual se digladiavam através da imprensa, em discordância quanto aos protocolos e medidas restritivas que deveriam ser adotados. Nem sempre a preocupação com a saúde pública prevalecia sobre os interesses de ordem econômica (Nascimento; Silva, 2013), mas a representação da peste no imaginário coletivo como uma doença potencialmente mortífera falou mais alto em defesa das medidas de contenção.

Quando a fase portuária da doença foi superada com a adoção de quarentena de navios, desinfecção dos focos, isolamento de infectados e até extermínio de ratos, a peste rumou para o interior do país por linha férrea. Onde não havia trem, seguiu caminho no lombo de muares, que transportavam mercadorias infestadas de ratos e pulgas contaminados até as cidades e povoados. Foi assim que chegou até Exu, distante 640 km da capital pernambucana, em 1919, ano em que os primeiros casos da doença foram registrados pelas autoridades de saúde. O município teve surtos de peste nos anos de 1925, 1935, 1936, 1938, 1944, 1945, 1946, 1948, 1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1961, 1964 e 1965, mas três eventos se destacaram: as epidemias de 1925, 1935 - de maior magnitude - e a de 1938 (Tavares, 2007)2.

Se até então as manifestações da doença no Brasil tinham sido atenuadas3, naquele município, incrustado na vertente sul da Chapada do Araripe, o impacto seria muito mais significativo. A configuração ambiental, fatores socioeconômicos e até os costumes da população iriam criar as condições ideais para elevar a doença à categoria de enzootia, com a presença constante do agente infeccioso circulando na região e se disseminando para outras localidades.

Em 1935, o município de Exu contava com uma população de 20.837 habitantes, espalhada em uma área de 1.242 quilômetros quadrados, segundo o Anuário Estatístico de Pernambuco Ano IX (1935-1936) (Pernambuco, 1938). A peste atingiu mais violentamente o distrito de Tabocas, localizado na encosta da chapada, a 18 km da sede do município, onde moravam em torno de duas mil pessoas. O distrito não contava com meios de transporte automotivos e a comunicação com o mundo exterior era precária. A única agência postal localizava-se na sede do município. Em compensação, era rico em café, cana-de-açúcar e árvores frutíferas como manga e laranja.

Muitas famílias pobres viviam em casas de taipa e piso de terra batida. Outros viviam em habitações que também serviam de paiol para armazenar a colheita de cereais. Os alimentos atraíam ratos comensais sinantrópicos4, que entravam em contato com roedores silvestres em áreas de plantação ou capinzais próximos às residências. Nessa interação, a fauna silvestre, sensível ao bacilo da peste, foi infectada e, por sua vez, também passou a infectar ratos comuns, criando um círculo vicioso que favorecia o retrocesso da doença para o ambiente doméstico (Freitas, 1998). Essa população também costumava caçar e consumir roedores como o preá, especialmente em tempos de estiagem severa.


Imagem 1:
Localização de Exu no mapa de Pernambuco
Fonte: Wikipédia (2022).


Imagem 2:
Mapa de Exu com distritos
Fonte: Google Maps (2022).

Todos esses fatores convergiram para que Exu fosse atingido severamente pela segunda maior epidemia de peste ocorrida em Pernambuco, com 437 casos registrados e 195 mortes (Silva Júnior, 1942), números que podem estar subnotificados, como alerta Barreto (1946). No período entre 1934 e 1937 eram registrados somente os casos tidos como positivos, pois não se utilizava ainda a classificação de “suspeito”. A repercussão da doença no Estado também é atestada numa publicação da Organização Mundial de Saúde de 1954, na qual Robert Politzer identifica Pernambuco como o Estado de situação mais crítica no nordeste entre os seis pesquisados.

Com as condições preenchidas para desencadear uma tempestade perfeita, em um dia entre março e julho5 de 1935 a peste caiu como um raio sobre o distrito de Tabocas, “como uma chuva de flechas abatendo-se de súbito sobre os homens pela vontade de um Deus encolerizado”, para usar as palavras de Delumeau (1989, p. 113) ao descrever o sentimento aterrador diante da peste negra na Europa medieval. Os moradores ficaram atordoados com a virulência da infecção, que fazia a vítima arder como fogo e até perder a razão antes de capitular, vencida pelo sofrimento sem remédio. O rosário de súplicas dos sertanejos aos céus se multiplicou diante daquele mal avassalador e ainda não identificado, que causava pavor e perplexidade por sua letalidade quase instantânea.

Esse artigo identifica os comportamentos coletivos e as estratégias de sobrevivência mobilizadas pela população do distrito de Tabocas para escapar à provação imposta pela peste bubônica. Aponta que, apesar dos diferentes contextos históricos e geográficos, algumas atitudes se repetem no desenrolar de eventos dessa natureza pois, como lembram Nascimento et al. (2018), remontam a uma história dos saberes e práticas nas estruturas sociais, bem como à história das representações e das mentalidades.

Entretanto, não ignora as peculiaridades no enfrentamento a esse fenômeno em uma comunidade rural, longe demais dos grandes centros urbanos, em comparação às estratégias adotadas em outras cidades brasileiras, no início do século 20. Por fim, revela o quanto a pobreza e o isolamento podem tornar uma população vulnerável em um contexto de epidemia.

O assalto da peste

Se é consenso que a peste chegou ao Brasil pelo porto de Santos em 1899, fruto das intensas trocas comerciais, não se sabe ao certo de onde veio o bacilo que infectou São Paulo e Rio de Janeiro em 1900. Pode ter se originado de Portugal, da Argentina, do Paraguai. O que que se sabe é que a chegada e a rápida disseminação da doença na então capital federal foi facilitada pelo grande crescimento populacional e intensa atividade comercial, aliados à falta de saneamento e a uma precária estrutura de armazenamento de alimentos, segundo Nascimento e Silva (2013a). Naquele ano, a peste matou 295 pessoas no Rio de Janeiro (Silva Júnior, 1942).

No Rio Grande do Sul, além da falta de saneamento comum em quase todas as grandes cidades do país, as moradias insalubres também contribuíram decisivamente para acelerar o contágio. Sede do mais importante porto do Estado, a cidade de Rio Grande foi atingida por duas grandes epidemias, em 1903 e 1904. Entretanto, apesar dos mortos que se acumulavam, o governo estadual não adotou políticas públicas de higiene, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, como medida de enfrentamento. Conforme aponta Silva (2009), as autoridades locais optaram por negar a crise sanitária, uma vez que a saúde pública não era prioridade no Estado.

É importante registrar que quando a peste chegou ao Brasil já havia cura para a doença. O soro antipestoso, criado pelo cientista franco-suíço, Alexander Yersin, em 1898, já estava sendo produzido no Brasil desde 1901 pelo Instituto Soroterápico Federal (atual Fundação Oswaldo Cruz), criado justamente com a finalidade de combater a peste bubônica (Nascimento; Silva, 2013a). Mas a medicação, como se verá adiante, estava longe do alcance das comunidades rurais do interior nordestino.

Em Pernambuco, as notícias de que a peste bubônica estava rondando o Sertão novamente6 começaram a surgir na imprensa local no dia 10 de julho de 1935, quando o Diário de Pernambuco divulga que o Ministério da Educação e Saúde Pública tinha destinado a verba de 150:000$000 (150 contos de réis) para custear o Plano de Inquérito e Pesquisa sobre a Peste no Nordeste, a fim de obter conhecimento sobre aspectos epidemiológicos para elucidação das fontes e dos veículos de transmissão, além da distribuição geográfica da doença.

Oficialmente, o primeiro registro de morte no município de Exu é de 30 de julho de 1935, conforme lavrado no 1º Livro de Óbitos (1888-1964) do Distrito de Viração, o único da região naquele tempo. Mas as notícias circulando na imprensa indicam que Maria Maríoza de Souza, de 16 anos, não teria sido a primeira vítima da epidemia no distrito de Tabocas. Possivelmente, apenas a primeira que a família teve condições de superar 17km de uma de estrada quase intransitável a cavalo - único meio de transporte disponível - até o cartório de Viração.

A documentação relativa à epidemia de 1935 no Sertão pernambucano é escassa. Além de algumas poucas certidões de óbito encontradas no cartório do distrito de Viração, de números (talvez nem tão precisos) de morbimortalidade registrados em boletins de órgãos de saúde, de legislações aprovadas para a liberação de verbas destinadas ao enfrentamento da doença no Estado de Pernambuco, há somente matérias veiculadas em jornais, atestando a veracidade do fato, e os testemunhos de atores sociais, diretamente envolvidos no evento.

São essas memórias, ou fragmentos delas, que recuperamos aqui. Memórias de pessoas desconhecidas, que testemunharam um acontecimento traumático, responsável por desorganizar a vida social e alterar crenças e comportamentos. Embora dolorosas, não foram esquecidas. Estavam somente à espera de quem se dispusesse a ouvi-las e registrá-las para que ocupassem seu devido lugar na história, afastando o risco do apagamento de uma das maiores epidemias de peste já ocorridas no Brasil.

O apagar da memória desse evento com o desaparecimento de seus guardiões, já com idade avançada, anularia a contribuição que essa experiência pode trazer para a compreensão de como se dá o processo de adoecimento na perspectiva de quem adoece e de como esses grupos sociais reagem quando as estruturas de poder estão ausentes e a morte se avizinha como sentença inelutável.

As testemunhas foram ouvidas, pelos menos em três ocasiões diferentes, entre os anos de 2016 e 2018, em suas casas, no distrito de Tabocas e na cidade de Exu. Conforme a proposta de Guimarães Neto (2005), tentamos armar as ligações possíveis desses relatos com outras fontes, acontecimentos e práticas, considerando as diferenças de contexto. Privilegiando a postura de mais escutar que falar, colhemos relatos épicos, nos quais a dimensão do medo adquire maior relevo, norteando um conjunto de estratégias na busca por sobrevivência em meio a um cenário de incerteza e abandono.

Como esclarece Guimarães Neto (2012, p. 18), os relatos orais “não devem ser pensados na perspectiva de restitui-los à sua totalidade [...]. São fragmentos que devem ser avaliados em sua potência multiplicadora de criar novos significados”. Dessa forma, os testemunhos de moradores de Tabocas foram analisados conforme suas condições de produção discursiva, circularidade e apropriações diversas, como orienta Montenegro (2010), levando em conta tanto os interesses que envolviam o entrevistado quanto o entrevistador. Buscamos fortalecer os aportes teóricos para dar amparo a essas fontes orais e ampliar a discussão sem, no entanto, nos alongarmos em “infindáveis considerações teóricas”, como recomenda Guimarães Neto (2012, p. 16).

Também adotamos a perspectiva de Montenegro (2010) de entender que não há como capturar, de forma absoluta, os significados, pois não há exata equivalência entre o dito e o vivido. No intuito de iluminar as ideias, optamos por reproduzir o modo peculiar de falar dessas pessoas na tentativa de apresentar com mais fidelidade a riqueza de suas expressões e a intensidade dos seus sentimentos mesmo após tanto tempo decorrido.

Não foi difícil para elas, apesar da idade avançada, acessarem as memórias da peste, visto que ainda habitam as mesmas terras onde o evento se deu e os elos entre os indivíduos desse mesmo grupo social continuavam mantidos. Conforme esclarece Halbwachs (1990, p. 36), a rememoração de experiências compartilhadas se opera a “partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente”. Portanto, na perspectiva desse autor, a capacidade de reconhecer e reconstruir lembranças só cessa quando o grupo é dissolvido ou perde o contato, não fazendo mais parte da mesma sociedade. Mas não foi o que ocorreu em Tabocas.

A partir das reminiscências desses atores que testemunharam o evento ou guardaram os relatos feitos pelos pais foi possível ampliar a compreensão do fenômeno patológico em seus aspectos socioculturais. Destacam-se, nesses relatos, a presença avassaladora do medo do contágio e da morte, o abandono de ritos e costumes, a sensação de desamparo, a condição de extrema pobreza, a disposição de fugir para escapar do flagelo e o apelo aos céus, na ausência dos homens de ciência, como único meio de salvação.

O medo do contágio e o abandono dos rituais

Conforme Delumeau (1989), a doença tem ritos que unem o paciente ao seu círculo social. Em caso de morte, esse círculo obedece a toda uma liturgia em que se sucedem a toalete fúnebre, o velório, a colocação do corpo no caixão, o cortejo até o cemitério e o enterro. A família e os amigos em volta do morto choram, lembram histórias vividas em comum, rezam. Todos esses elementos se constituem num rito de passagem “que deve se desenrolar na ordem e na decência” (Delumeau, 1989, p. 123).

Mas a ocorrência de uma epidemia aniquila todo esse processo. O medo do contágio supera o peso da tradição religiosa e já não há mais conforto para os que ficam nem rituais para os que partem. Foi esse temor, em variados contextos de epidemias registradas ao longo da história, o responsável por modificar os costumes em relação aos sepultamentos, conforme esclarecem Sournia e Ruffie (1984, p. 77), cada “um enterrava como podia [...]. Já não havia forças para chorar os que partiam. A amplitude da doença triunfava sobre eles”.

O medo de contrair a temível enfermidade levou a população de Tabocas a renunciar ao ato piedoso do velório, com toda a família em volta desfiando um terço de orações e pranteando o morto por, pelo menos, 24 horas antes do sepultamento, como mandava a tradição local. Pelo mesmo motivo, os enterros passaram a ser feitos fora do cemitério, como comprovam as certidões de óbito, localizadas no cartório do distrito de Viração. Todas enfatizam que a vítima foi sepultada em áreas conjuntas às casas de residência “tendo em vista tão contagiosa doença”. Enfim, o medo do contágio privava a população do que Delumeau (1989, p. 125) chama de ritos apaziguadores que acompanham a partida deste mundo, “das liturgias seculares que até então lhe conferiam, nas provações, dignidade, segurança e identidade”, aumentando a sensação de desamparo e de desespero.

José Pereira da Silva (Entrevista, 2017), mais conhecido como Zé de Libana, nome de sua genitora, testemunha essa quebra de liturgia no enterro da filha do patrão, falecida ainda na adolescência: “Ela morreu ligeiro! Adoeceu...adoeceu, não: caiu, morreu! Era uma doença infeliz”, rememora. Um caixão foi feito às pressas pelo pai, que levou o corpo da menina, com ajuda dos empregados, para enterrar no sopé da Chapada do Araripe, em meio ao cafezal. Como o pai da jovem era abastado para os padrões da localidade, a menina teve o direito de ser sepultada em um ataúde improvisado. O mais comum, conforme outra testemunha irá relatar mais adiante, era que as vítimas fossem enterradas numa rede, sem nenhuma cerimônia.

Essa morte instantânea, cuja vítima teve como morada final as plantações de café do distrito, não foi a única testemunhada por Zé de Libana, que tinha 106 anos quando foi entrevistado pela primeira vez, em 2016, e ainda estava completamente lúcido. Ele lembra de um conhecido, Crispim, também sucumbido rapidamente ante a peste e igualmente conduzido às plantações de café: “Foi gente como o diabo para os cafezeiros, para não levar para o ‘sumitério’, pois podia empestiar o ‘sumitério’ de doença também, né?”. Crispim não teve direito a velório nem mortalha, hábitos até então considerados sagrados pela população: “Era acabando de morrer e cuidando logo de enterrar [...] era só com a roupa do corpo mesmo”, lembra (Silva, Entrevista, 2017).

Essa morte fulminante, dessacralizada, destituída dos rituais que poderiam torná-la suportável está tão vívida na memória de Zé de Libana que ele recorre a uma metáfora para definir o sentimento de horror causado pela epidemia: “Foi como um ‘rasteiro’ assim, matando. O ‘cabra’ tava bonzinho, caía (adoecia) e não demorava nada”. Também narra, de uma forma quase poética, a evolução célere da doença: “Dava uma febre de repente que o ‘cabra’ ficava da qualidade de fogo e se apagava logo. Eu nunca vi uma doença daquela na minha vida. Só vi aquela”, afirma (Silva, Entrevista, 2017).

Os sintomas descritos por Zé de Libana não contrariam os manuais de medicina, órgãos de saúde pública e registros historiográficos. Segundo o Manual de Vigilância e Controle da Peste do Ministério da Saúde (Brasil, 2008), após um período de dois a seis dias de incubação, o paciente infectado apresenta febre alta (39 a 40 graus), calafrios, cefaleia, dores generalizadas, mialgia, anorexia, confusão mental, congestão das conjuntivas, pulso rápido e irregular, podendo ocorrer dissociação pulso-temperatura, taquicardia, hipotensão arterial, prostração e mal-estar geral. Delumeau (1989) informa que, na Europa medieval a peste bubônica matava num espaço entre 24 e 30 horas após a manifestação. Com febre muito alta e olhos brilhantes, o infectado ficava avermelhado, “da qualidade de fogo”. Um fogo que logo se extinguia.

A lembrança da moléstia fulminante, que não distinguia jovens de idosos, também assombra o promotor de Justiça aposentado Givaldo Peixoto de Carvalho (Entrevista, 2017). Como pessoa letrada, filho de fazendeiro abastado e morador da zona urbana, ele fala de um lugar socialmente privilegiado em relação aos demais.

Embora tivesse apenas dez anos de idade quando a epidemia ocorreu, ele rememora com clareza o dia em que um criador de gado, conhecido como Zé Nelo, passou pela Fazenda Maniçoba - de propriedade dos pais de Givaldo - levando consigo o filho morto em uma rede, em busca de um cemitério onde pudesse enterrá-lo: “O filho dele, que estava na Serra do Mulungu, onde plantava mandioca, adoeceu e morreu em 24 horas. De um dia para outro, morreu”, conta, demonstrando espanto diante da letalidade da doença: “Ele trouxe o rapaz numa rede e passou lá em casa. Ninguém sabia o que era (a enfermidade)”7 (Carvalho, Entrevista, 2017).

A instantaneidade da morte e o medo do contágio adquirem relevo no episódio envolvendo uma mulher identificada como Herculana, rememorado por Maria Batista Filha (Entrevista, 2017), que tinha sete anos quando a epidemia ocorreu. Ela conta que a enferma estava tão debilitada que teria sido enterrada ainda viva, em cova rasa, no Sítio Toco Preto, ao lado da casa onde morava: “Quando foi mais tarde, ela chegou toda molhada, na chuva. Todo mundo se assombrou e disse: ‘ai, ai, ai, meu Deus, é Herculana! Ela tá viva!’”. Com leve variação, esse relato é reiterado pelo agricultor José Antonio Pereira (Entrevista, 2016), 84 anos na época em que concedeu entrevista.

Embora tivesse apenas um ano quando a epidemia ocorreu, Zé Caboré, como é conhecido na comunidade, apresenta-se como guardião das recordações transmitidas pelo pai e avô. Aceitamos o seu relato porque, como Halbwachs (1990), acreditamos que a memória individual não está separada da memória coletiva, pois todos fazem parte da mesma comunidade afetiva e dividem a vivência de um acontecimento real.

O Sítio Toco Preto, onde a mulher teria sido enterrada viva, era o endereço da família de Zé Caboré desde 20 anos antes da epidemia, quando a família se mudou do Ceará para Pernambuco. O episódio era transmitido oralmente, de geração a geração. Eis o relato: “Meu pai contou que adoecia tanta gente que uma ‘boca’ de noite morreu uma mulher. A cova já tinha sido cavada. Quando foram botar ela dentro, não cobriram porque já era tarde. No outro dia, ela amanheceu sentada na cova. Para eles, ela já tinha morrido” (Pereira, Entrevista, 2016).

O quanto há de imaginação e de realidade no episódio relatado por Maria Batista e Zé Caboré é difícil determinar. Mas, em última instância, ele se constitui em uma representação social da peste, percebida pela coletividade como uma doença tão contagiosa e letal que o pavor da contaminação e da morte dolorosa afrouxou os laços de solidariedade e induziu a comunidade a abandonar até rituais considerados sagrados. A pressa em se desfazer do suposto cadáver contaminado, por pouco, não acentuou a tragédia.

Segundo Zé Caboré, o único gesto solene dispensado ao morto era a colocação de uma cruz sobre a cova, o que também ajudava a sinalizar o local, identificando onde estava sepultado: “Mas depois não ligavam mais para nada. Ninguém acha mais essas covas. Tem até casa feita em cima delas”, acrescenta, informando que um cemitério foi improvisado num curral, nas imediações do vilarejo, no auge da mortandade: “Depois construíram o outro (o oficial) em cima” (Pereira, Entrevista, 2016). Assim, essas vítimas da peste foram sepultadas pela segunda vez, sem nome nem reverência, e apagadas da história.

O agravamento da epidemia levou o bispo Dom Idílio Soares a deixar a sede da diocese, em Petrolina, e permanecer em Exu por 22 dias, entre os meses de setembro e outubro, para prestar assistência à população mais pobre, conforme relata o padre Francisco Cavalcante no livro “Dom Idílio, bispo dos pobres” (1999). Givaldo Peixoto lembra do bispo no município e relaciona a presença dele ao medo que a população tinha de contrair a doença durante os sepultamentos. Segundo ele, a autoridade religiosa também estava ali para recompor os rituais fúnebres: “Ele enfrentou o problema dos enterros porque as pessoas estavam com medo de sepultar os mortos”, rememora Givaldo (Carvalho, Entrevista, 2017).

O medo do contágio também pode ter sido responsável pela mudança de algumas práticas administrativas locais. Cerca de dois anos após a epidemia, o prefeito de Exu, Romão Sampaio, sancionou o Código de Posturas Municipais (Lei n. 10, de 17 de maio de 1937), que determinava, no artigo 77 do 11º capítulo, que a inumação de pessoas falecidas de moléstia contagiosa deveria ser feita a dois metros de profundidade.

Também houve mudanças no âmbito estadual. Em setembro de 1935, o governador de Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, enviou à Assembleia Legislativa um Projeto de Lei (PL) de autoria do Departamento de Saúde Pública que dispunha sobre a Regulação dos Cemitérios em Pernambuco. A mensagem do governador foi publicada na edição do jornal “Diário da Manhã” do dia 07 de setembro de 1935. O artigo 20 do PL previa que, em caso de epidemia ou calamidade e com a devida autorização do Departamento de Saúde Pública, seria permitido o enterramento em vala comum. Nesse caso, para além do medo de contaminação, parecia haver o entendimento de que a mortandade provocada pela epidemia poderia levar os cemitérios ao colapso.

A busca da cura

Enquanto o socorro médico não chegava em Tabocas, a população recorria aos saberes antigos e práticas de cura, transmitidas de geração a geração, na tentativa de sobreviver à peste. Temendo se contaminar ou perder alguém da família para a temível doença que matou rapidamente a filha do patrão e o conhecido Crispim, Zé de Libana resolveu pedir ajuda a um raizeiro, morador do Sítio Recanto.

Depois de preparar uma mistura de ervas - Zé de Libana lembra apenas da inclusão da quina-quina, usada para combater processos inflamatórios - com bebida alcoólica, o curandeiro recomendou muito banho e muita cachaça como medida terapêutica. A beberagem feita de cachaça com ervas também já tinha sido recomendada pelo patrão Antonio, que possuía um depósito com pipas cheias de aguardente em casa e disponibilizou o produto para consumo do empregado e sua família. Zé de Libana seguiu a prescrição à risca: “Tinha um açudão no (sítio) Recanto... nós ‘tomava’ banho, tomava a ‘meizinha’ e ia para casa. Nós tivemos sorte: ficamos dentro de casa e não tivemos nada. Todo dia nós ‘varria’ a casa, botava meizinha, até que terminou (a epidemia)” (Silva, Entrevista, 2017).

O relato deixa entrever a preocupação com a higiene - tanto nos banhos receitados pelo curandeiro, quanto na disposição de manter a casa limpa - e a adoção da quarentena, autoimposta por instinto de preservação. Mesmo sem acesso à orientação médica, a família adotou o distanciamento social, só saindo de casa quando percebeu que a doença tinha arrefecido.

Remédios caseiros também foram usados para socorrer Raimundo Batista. O irmão mais velho de Maria Batista foi acometido de uma febre alta, que provocou um súbito desvario: “Ele caiu no ‘mato’, como se tivesse enlouquecido, com uma íngua muito grande8. Escapou por milagre de Deus, porque não era pra morrer”, recorda (Batista Filha, Entrevista, 2017).

Raimundo apresentou sintomas clássicos da peste como ínguas, febre alta e confusão mental. Na ausência de atendimento médico, foi tratado pela família com remédios à base de ervas e óleo de rícino, substância extraída da mamona e usada como laxante, que a população acreditava ter o poder de “limpar” o organismo. Os laxantes, segundo um estudo comparado das representações sociais da peste na Europa e da gripe espanhola no Brasil feito por Santos (2004), também eram usados na Europa medieval, além de mercúrio e arsênico: “Não tinha remédio de doutor. Ninguém se receitava. Doutor era só para rico”, lembra Maria Batista Filha (Entrevista, 2017), que viu muitos conhecidos sucumbirem à doença.

Mesmo depois que profissionais de saúde acorreram ao município, a população não dispensou as práticas e saberes legados pela tradição. Givaldo Peixoto lembra que houve uma grande campanha para acabar com os ratos e cada um usou as armas que dispunha: “Eu me lembro que meu pai atirava de espingarda com pólvora nos cantos da casa para matar as pulgas: Puff! Fazia aquela fumaçona! Enchia a casa de fumaça”, conta, recorrendo a uma onomatopeia para reforçar a narrativa: “Não tinha inseticida, essas coisas, não” (Carvalho, Entrevista, 2017).

Todas essas terapêuticas, à exceção do isolamento autoimposto por Zé de Libana e família, devem ter se mostrado inócuas ante uma doença tão letal. Como se deu na Europa medieval, quando a população incendiava casas ou usava perfumes para limpá-las, acendia fogueiras nas praças com aromáticos ou usando pólvora (como fez o pai de Givaldo para matar as pulgas), nada disso era eficaz contra a peste. Assinalam Sournia e Ruffie (1984) que tampouco os tratamentos propostos aos pacientes - sangrias, dietas extravagantes e os remédios mais nauseabundos - tornavam-nos menos contagiosos ou aumentavam suas parcas possibilidades de cura. Quando os moradores de Tabocas depararam com essa realidade, compreenderam que só restava fugir ou apelar aos céus em busca de salvação.

A fuga e o apelo aos céus

Depois que a filha faleceu, o patrão de José de Libana resolveu partir para Juazeiro do Norte, Ceará, deixando sua casa e seus bens aos cuidados do empregado. Avaliou que seria a forma mais segura de evitar novas perdas: “Ele ficou muito desgostoso por ver a filha morrer tão depressa”, lembra Zé de Libana. A casa estava bem provida de víveres e o patrão autorizou o consumo da comida e da cachaça, usada depois para fazer a beberagem contra a peste: “Ele tinha medo de ficar dentro de casa e morrer ‘mais’ a mulher” (Silva, Entrevista, 2017).

Maria Batista também recorda que muitas pessoas foram embora de Tabocas e que outras tantas deixaram de visitar parentes e amigos moradores do distrito por medo de contrair a “febre de caroço”, como a doença também é denominada na região. Adotaram, ainda que sem qualquer orientação de autoridades sanitárias, o distanciamento como forma de proteção, estratégia que deve ter poupado muitas vidas. Conforme assegura Delumeau (1989, p. 123), foram as medidas cada vez mais eficazes de distanciamento social que fizeram regredir o flagelo da epidemia na Europa: “O tempo da peste é o tempo da solidão forçada”.

Quem ficou no distrito, na ausência do socorro dos homens da ciência e de seus medicamentos, resolveu apelar à piedade divina por meio de um intercessor já bem conhecido pelas vítimas da peste desde o flagelo que acometeu a Europa medieval: São Sebastião. Só ele, que morrera crivado de flechas, poderia livrar a população do flagelo, que se assemelhava a uma chuva de flechas caindo dos céus para punir os homens por suas iniquidades, conforme analogia feita por Delumeau (1989).

Em seus relatos, as testemunhas não relacionaram a doença a um castigo divino nem culparam estranhos que, porventura, tenham visitado a comunidade, como ocorre em contextos de epidemia desde a peste de Atenas, narrada por Tucídides. Mas acreditavam que ela não ocorria apartada da vontade do Todo Poderoso. Assim, só a intercessão celestial poderia interrompê-la: “Ainda lembro que minha mãe nos ensinou uma música para afastar a doença de nossa casa que dizia assim: sois mártir de Cristo, meu santo varão, livrai-nos da peste, São Sebastião!”, canta Maria Batista Filha (Entrevista, 2017), apresentando o ritual de proteção, executado diariamente em sua casa nos tempos da epidemia.

O desespero levou a população a oferecer mais que músicas e orações ao orago em troca do fim da calamidade. Até o advento da peste, Tabocas tinha como padroeira Nossa Senhora da Assunção, credora de grande devoção popular. O mês de agosto, dedicado a ela, era marcado por festividades e celebrações religiosas que superavam o período natalino: “Tinha forró, festa. Na derradeira noite, tinha baile na luz do lampião”9, rememora Maria Batista Filha (Entrevista, 2017).

Mas o medo não respeita convenções nem cede terreno à alegria. Entregues à própria sorte, os moradores, capitaneados pela matriarca Rufina Alves de Castro, resolveram fazer uma promessa extrema ao santo em troca da salvação. Se o mártir afastasse a peste do distrito, passaria a ocupar o posto de padroeiro, sendo destituída Nossa Senhora da Assunção.

Como garantia de cumprimento do voto, dona Rufina foi a cavalo até Juazeiro do Norte (CE), distante cerca de 60 quilômetros, buscar a imagem de São Sebastião para entronar na igreja local. Na volta ao distrito, foi recebida com festa pela população esperançosa: “O povo foi encontrar o santo com zabumba, fogos e tudo. Quando chegou, botou na igreja. A peste já tava se acabando. Depois se acabou e nunca mais voltou... ‘armaria’, ‘armaria’, ‘armaria’, a bubônica!” recorda Maria Batista Filha (Entrevista, 2017) que, mesmo passados mais de 80 anos, não pronuncia o nome da moléstia sem se benzer e invocar, três vezes, a proteção de Maria Santíssima. Para ela, como para tantas vítimas da peste ao longo dos séculos, nominar o mal seria suficiente para trazê-lo de volta. Até sua morte, dois anos após a última entrevista, Maria Batista mantinha na parede de sua casa a imagem de São Sebastião, como uma salvaguarda permanente contra o retorno da temível moléstia.

A epidemia modificou os hábitos religiosos da população de Tabocas. Depois que a peste arrefeceu, os moradores decidiram ajustar os termos da promessa e São Sebastião passou a dividir o posto de padroeiro com Nossa Senhora da Assunção. Desde então, o município tem duas datas importantes de festividades religiosas: janeiro, dedicado a São Sebastião, e agosto, de louvor a Nossa Senhora da Assunção. Em se tratando de evitar a peste, devem ter chegado à conclusão que era melhor pecar por excesso de devoção que por menosprezo a uma santa. Especialmente quando a doença permanece endêmica na região, mesmo após tantas décadas de dormência. Como alerta Camus (2010), “a qualquer hora a peste pode acordar seus ratos e mandá-los morrer em uma cidade feliz”. No caso da Chapada do Araripe, é mais provável que sejam os roedores silvestres - embora em menor número atualmente, mas hospedeiros do bacilo de Yersin - os responsáveis por desempenhar esse papel.

Considerações finais

Ao longo desse artigo, mostramos como uma comunidade pobre, isolada, sem assistência de saúde nem acesso a transporte ou meios de comunicação reage diante de um fenômeno patológico que coloca em risco sua sobrevivência. Identificamos que, embora em contextos distintos e a despeito das distâncias no tempo e no espaço, algumas atitudes diante da doença, especialmente quando adquire a dimensão de uma epidemia, não apresentam muitas variações. O medo da morte, exacerbado pela instantaneidade e letalidade da doença, coloca homens e mulheres diante de dilemas comuns, conforme aponta Nascimento e Carvalho (2004).

Enquanto nos grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro houve uma rápida mobilização das autoridades para adotar medidas sanitárias que contivessem a infecção e reduzissem o risco de contágio, naquela comunidade pobre e isolada, sem qualquer meio de comunicação com o mundo exterior nem transporte automotivo, o socorro demorou a chegar, obrigando os moradores a improvisarem suas estratégias de defesa.

Se os comportamentos verificados em Tabocas ante a epidemia mais se aproximam daqueles testemunhados em cidades medievais que nos centros urbanos contemporâneos, isso se deve ao atraso em que tal comunidade vivia, sem acesso à informação, desprovida da atenção do poder público e entregue às suas próprias crenças. Podiam estar no século 20 do ponto de vista cronológico, mas o nível de desenvolvimento social e tecnológico situava a comunidade em outro tempo histórico, quando ainda nem havia cura para a peste bubônica.

A partir dos conhecimentos adquiridos provavelmente pela tradição oral10, os moradores de Tabocas tentaram dar significados ao fenômeno e mobilizar estratégias para confrontá-lo. Ao perceberem o potencial de contágio da moléstia, abandonaram rituais considerados sagrados, como o hábito de velar os mortos e toda liturgia religiosa envolvida no sepultamento. Buscaram a salvação em ervas e nas práticas de cura naturais; alguns fugiram, outros se isolaram. Na ausência do amparo médico e científico, resolveram apelar aos céus, através de santos já reconhecidos como intercessores junto ao divino em quadros de devastação provocados por uma epidemia. Enfim, a seu modo, mobilizaram um conjunto de práticas já empregadas por outras populações em outros contextos históricos e geográficos.

Conforme esclarecem Revel e Peter (1988, p. 144), um acontecimento mórbido tão impactante “pode ser o lugar privilegiado de onde melhor se pode observar a significação real de mecanismos administrativos ou de práticas religiosas, as relações entre os poderes ou a imagem que uma sociedade tem de si mesma”. No município de Exu, onde não havia recursos nem humanos nem financeiros para fazer frente a tamanho desafio, o que se pode identificar a partir dos relatos das testemunhas é que a falta de uma pronta resposta do poder público diante da desorganização causada pela doença, obrigou a população do flagelado distrito de Tabocas assumir o protagonismo no enfrentamento ao mal. Esses relatos projetam elementos comuns na historiografia das doenças: além do medo do contágio e da morte, a incerteza no porvir e o sentimento de abandono, derivado principalmente da falta de assistência médica, da ausência do poder público.

Embora homens e mulheres de todas as raças e classes sociais sejam suscetíveis à ação de vírus e bactérias, estudos diversos apontam o caráter seletivo das epidemias, que sempre atingem primordialmente os mais pobres, mesmo quando em teoria, suas condições de difusão são iguais, conforme assinalam Revel e Peter (1988). Esse entendimento é endossado pelo sanitarista João de Barros Barreto, que ocupou o cargo de diretor do Departamento Nacional de Saúde entre os anos de 1937 e 1945. Em seu Tratado de Higiene (1949), ele registra que, na epidemia de peste ocorrida no município de Crato (CE), a 66km de Exu, em 1936, cerca de 58% dos casos comprovados eram de moradores de casas muito precárias.

Em Tabocas, os muito pobres viviam em casas de taipa e os remediados usavam a habitação como paiol para armazenar a colheita. Essa situação favoreceu um convívio estreito de humanos com roedores, fossem sinatrópicos ou silvestres, estes últimos consumidos de bom grado pela população, especialmente em tempos de estiagem mais severa.

Como agravante, os moradores não tinham acesso à informação, posto de saúde nem sequer campanhas educativas, embora aquela não fosse a primeira vez que a doença se manifestasse no município. As autoridades sanitárias tampouco desconheciam os riscos que essas pessoas pobres, isoladas e longe demais da capital corriam. Em notícia veiculada no dia 24 de julho de 1935, o Diário de Pernambuco cobra do governo estadual ações mais enérgicas no combate à doença e lembra que “há focos permanentes de peste nos Sertões e, vez por outra, o mal recrudesce com incrível violência”. Apesar de o Brasil já produzir o soro antipestoso desde 1901, no Instituto Butantã e no Laboratório Manguinhos, essa terapêutica não estava disponível ou não chegou a tempo de evitar a tragédia.

A epidemia de peste bubônica de 1935 não atingiu apenas o município de Exu. Quase todo o Estado de Pernambuco, além do Ceará, Bahia, Alagoas e Piauí foram afetados pela infecção, que ainda fez vítimas em São Paulo. Mas Pernambuco foi o epicentro da doença, tendo Exu como área de maior incidência.

Embora seja um universo micro, os comportamentos coletivos e as estratégias mobilizadas pela população de Tabocas para tentar se salvar do flagelo também podem ser identificados em palcos mais amplos da existência humana. Por isso, seus relatos não devem ser ignorados. Como assevera Revel (1998, p. 12), “essas vidas minúsculas também participam, à sua maneira, da grande história, da qual dão versão diferente, distinta e complexa”. Ao narrarem suas vivências da epidemia, essas pessoas conferiram a um acontecimento solenemente desconhecido - a despeito de sua dimensão e dramaticidade - o estatuto de acontecimento histórico.

Fontes

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CARVALHO, Givaldo Peixoto de. Entrevista concedida à Claudia Parente. Exu, 27 dez. 2017.

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PEREIRA, José Antonio. Entrevista concedida à Claudia Parente. Exu, 29 dez. 2016.

SILVA, José Pereira da. Entrevista concedida à Claudia Parente. Exu, 25 jun. 2017.

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Referências

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Notas

1 De acordo com o Manual de Vigilância e Controle da Peste do Ministério da Saúde (Brasil, 2008), a peste bubônica é uma doença infecciosa, primordialmente de roedores, transmitida por pulgas infectadas pelo bacilo Yersinia pestis. O homem é contaminado acidentalmente quando, em atividade de caça, agricultura, comércio ou lazer, penetra no ambiente dos roedores reservatórios da doença.
2 O município é identificado como epicentro da doença pelo Manual de Vigilância e Controle da Peste, do Ministério da Saúde (Brasil, 2008), de onde ela se irradiou para municípios vizinhos e ainda afetou os estados do Ceará e Piaui.
3 Conforme Nascimento e Silva (2013b), entre 1900 e 1901, cerca de 500 pessoas morreram de peste na cidade do Rio de Janeiro. Ainda segundo Nascimento e Silva (2013a), quando a epidemia irrompeu em Hong Kong, em 1894, morreram em torno de 100 mil pessoas. Em 1896, na Índia, dizimou em torno de 1,3 milhão de pessoas, evocando as grandes epidemias da Idade Média.
4 Assim chamado o roedor “domesticado” que vive em contato com o homem.
5 Período em que a peste historicamente se manifesta na região. O primeiro registro de óbito no cartório do distrito vizinho de Viração, único na região em 1935, é de julho. A primeira notícia encontrada em jornal também. Mas dadas as dificuldades de deslocamento e a pobreza da população, não é possível afirmar que, de fato, o primeiro caso da doença tenha surgido neste mês.
6 Entre os anos de 1927 e 1928, uma epidemia de peste no município pernambucano de Triunfo fez mais de duas mil vítimas, entre mortos e infectados. Foi a epidemia mais mortífera já ocorrida no Nordeste segundo Tavares (2007).
7 Nenhuma das testemunhas lembra exatamente o momento em que a doença foi identificada, mas isso deve ter ocorrido após a chegada de profissionais de saúde ao município para atuar no enfrentamento à epidemia.
8 Com a expressão “cair no mato”, Maria se refere ao fato de o irmão ter corrido para a mata devido à confusão mental provocada pela doença, sendo resgatado por parentes e amigos. Quanto às ínguas, elas apareciam geralmente nas axilas ou virilhas.
9 Em 1935 ainda não havia energia elétrica no município de Exu.
10 Vale lembrar que o município de Triunfo, a cerca de 200 km de distância, já tinha sido atingido por uma epidemia de peste menos de dez anos antes, que fez mais de duas mil vítimas.


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