Temática Livre
Recepción: 17 Marzo 2021
Aprobación: 28 Febrero 2022
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.34.102-113
Resumo: Este artigo tem como objetivo propor uma leitura crítica de obras literárias de Murilo Mendes e de José Saramago, buscando perceber as implicações da noção de viagem na escrita dos escritores. Procuramos caracterizar os olhares que os escritores viajantes lançam sobre Portugal e suas paisagens congre-gando deslocamentos do corpo e/ou do espaço. Nesse sentido, tentamos compreender como a viagem se institui como um operador que permite um trânsito pelo espaço geográfico, pelo espaço literário, pela reflexão e pela passagem de um ao outro, usando como referência “Janelas verdes” (1989) de Murilo Mendes e “Viagem a Portugal” (1981) de José Saramago. Para analisar tais questões, buscaremos suporte nos conceitos referentes à tradução, à alegoria e à coleção de Benjamin; o papel da citação em Compagnon; de memória em Huyssen e de identidade e alteridade em Eric Hobsbawm.
Palavras-chave: Murilo Mendes, José Saramago, Viagem, Arquivo.
Abstract: This article aims to make a critical reading of literary works written by Murilo Mendes and José Saramago seeking to understand the implications of the notion of travel in their writings. One seeks to characterize the looks that traveling writers cast on Portugal and its landscapes bringing together displace-ments of the body and/or space. In this sense, one tries to understand how the journey is established as an operator that allows transit through geographic space, literary space, reflection and the passage from one another using as references “Janelas verdes” (1989) by Murilo Mendes and “Viagem a Portugal” (1981) by José Saramago. To analyze such questions, one will seek support in concepts related to concepts such as translation, allegory and collection related to Benjamin’s patterns; the role of citation in Compagnon; of memory in Huyssen and of identity and otherness in Eric Hobsbawm.
Keywords: Murilo Mendes, José Sarama-go, Traveling, Archives.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo proponer una lectura crítica de las obras literarias de Murilo Mendes y José Saramago, buscando comprender las implicaciones de la noción de viaje en la escritura de los escritores. Buscamos caracterizar las miradas que los escritores viajeros lanzan sobre Portugal y sus paisajes, reuniendo desplazamientos del cuerpo y/o del espacio. En este sentido, tratamos de comprender cómo el viaje se constituye como un operador que permite transitar por el espacio geográfico, por el espacio literario, por la reflexión y por el paso de uno a otro, tomando como referentes a “Janelas verdes” (1989) de Murilo Mendes y “Viagem a Portugal” (1981) de José Saramago. Para analizar tales interrogantes buscaremos apoyo en conceptos relacionados con la traducción, la alegoría y la colección benjaminiana; el papel de la cita en Compagnon; de la memoria en Huyssen y de la identidad y la alteridad en Eric Hobsbawm.
Palabras clave: Murilo Mendes, José Saramago, Viajes, Archivos.
Murilo Mendes e a construção da narrativa
Murilo Mendes, com seu projeto literário, constrói obras que tendem à complexidade, uma vez que são cerzidas por um conjunto de construções pessoais e afetivas, contextos vivenciados por ele e por toda a sociedade da época bem como por sentimentos dele e por pessoas ao seu redor, pelo arquivo próprio e pelo do semelhante. Sendo Murilo Mendes um dos escritores fundamentais para a legitimação do Modernismo Brasileiro, o estudo de sua obra e de suas relações afetivas e intelectuais nos faz conhecer os arquivos de uma memória pessoal que se torna coletiva. O estudo sobre o acervo muriliano merece consideração crítica tanto por ser a maior coleção de Arte Moderna de Minas Gerais quanto por dar projeção internacional à cidade natal do poeta (Juiz de Fora) e outrossim por dar a conhecer o acervo pessoal e cultural de um intelectual que possibilita o conhecimento e o desenvolvimento de pesquisas sobre outros poetas, críticos, artistas e intelectuais. Pensar teoricamente esse intelectual em trânsito através de sua interseção com outros artistas e com textos relacionados a arquivos individuais e coletivos revela-se um exercício crítico instigante e uma rede de possibilidades de leituras que amplia o campo das reflexões sobre o intelectual alegorista-colecionador, de que Murilo é um exemplo paradigmático.
A escritura de Murilo Mendes vem ao encontro da metáfora da “tesoura e cola” expressa por Antoine Compagnon em seu livro “O trabalho da citação” (1979), consistindo basicamente na ideia de que a leitura e a escrita são derivações do recorte e da colagem, uma vez que nas práticas da escrita e do discurso usamos elementos adquiridos na leitura.
Partindo da metáfora de Compagnon, têm-se como grande exemplo as obras de Murilo Mendes, que, em sua maioria, reúnem suas próprias experiências, materializando o campo mnemônico na tangibilidade de uma escrita que repousa no papel. “Janelas verdes” (1989), por exemplo, obra na qual Murilo percorre Portugal com um olhar introspectivo e que visa à retomada da memória individual e histórica, faz uso de trechos de sua trajetória de vida pondo lado a lado artistas, políticos, escritores, poetas, historiadores, lugares e memórias. O que o leitor pode perceber é que um livro-museu1 vai sendo construído.
Em sua narrativa, Murilo Mendes, por meio do humor e da ironia, busca confrontar a imagem formada sobre Portugal nas décadas de 1960 e 1970. Como já se observou nas notas colocadas ao fim do livro, o intuito do autor era de não se render à imagem romântica e construída de um país rústico e ancestral.
A ideia de transformar a museologia clássica num elemento moderno acompanha Murilo em quase todas as suas obras (“Convergência”, “Retratos-relâmpago”, “Poliedro”, “A idade do serrote”), principalmente em “Janelas verdes” (1989) - pela ironia - num tom mais irreverente ainda. Ele molda o formato de sua obra como em um museu clássico, separando seus capítulos em setores e nomeando seu livro como um dos museus mais conhecidos de Portugal. Entretanto, quando se começa a ler, a expectativa de encontrar o que seria formalmente um museu se desfaz, uma vez que o que se encontram são cidades e pessoas organizadas unicamente com a vontade e as preferências de Murilo.
Um autor quando escreve deixa lançar no papel suas impressões, suas marcas, seu rastro, sua trajetória de pensamento. Quando Murilo escreve em forma de museu, ele quer que seu livro transcenda o banal e o material, evocando o sentimentalismo como parte da memória, seja ela compartilhada ou privada ele pretende que sua obra o identifique como o escritor e como a pessoa que vive amalgamados um ao outro. Museus são responsáveis por evocar uma época, a história sobre determinados povos, objetos e significações; tudo que é posto ou exposto é importante para a compreensão do passado, do presente ou do futuro; tudo que é apresentado é significativo e auxilia no entendimento do projeto literário de Murilo Mendes em sua totalidade.
Outro aspecto que diferencia o livro-museu de Murilo Mendes é o fato de haver uma conotação poética e sentimental, um olhar atento de um viajante mais vigilante ainda. Murilo perpassa os detalhes característicos das cidades que visita, insere-se na cultura expressa por aquelas pessoas nativas do lugar, fazendo de sua viagem um conjunto de experiências.
No setor I de “Janelas verdes” (1989), a seção A se inicia pela cidade de Guimarães, onde temos referência a Dom Afonso Henriques e ao nome do reino que apresenta uma discordância em relação à história oficial. Outra curiosidade em relação ao fragmento é o fato de o viajante, ao invés de se deter no acervo turístico da cidade, comenta sobre os doces próprios da região, principalmente aqueles preparados com ovos: “Quando se levantará em Portugal e em todos os países um monumento ao ovo, mais digno de reverência do que tantos príncipes, estadistas e guerreiros sistemados no mármore ou no bronze?” (Mendes, 1989, p. 1.365).
Ao invés de registrar os detalhes da arquitetura de Guimarães, Murilo comenta sobre Almeida Garrett (1969), sobre a quantidade de janelas na cidade e sobre comportamento das moças rueiras do seu mundo contemporâneo em comparação com as do seu tempo de infância.
Ainda na seção A do Setor I, o fragmento “A serra do marão” é iniciado por um comentário sobre as semelhanças entre Portugal e Grécia no que tange a aspectos físicos, costumes, alguns produtos e objetos. A atividade de puxar as redes de pesca nas praias remonta, segundo Murilo, ao tempo homérico pelo movimento e ritmo, pelo tom sagrado:
é talvez um dos últimos espetáculos passíveis de se fazer remontar ao tempo homérico, pelo movimentar-se dos homens, mulheres e crianças reunidos coralmente, impelidos por um súbito dinamismo, espontâneos, agitando-se numa espécie de terror e entusiasmo sagrado, emitindo do íntimo dos corpos aquele escuro, prolongado ÓÓÓÓÓÓ que repercute na atmosfera de eletricidade e sal (Mendes, 1989, p. 1.369).
Em seguida, tem-se a descrição de elementos da serra e uma declaração de uma sensação constantemente aliada à natureza:
Por alguns momentos somos às imagens contínuas da civilização técnico-industrial, a tantos ícones estereotipados. Aqui a nossa energia de espírito pode operar sozinha, considerar algo que nos supera e transcende os dados concretos da realidade, embora não nos possamos isolar muito tempo da história, já que o jornal e as ondas de rádio nos penetram (Mendes, 1989, p. 1.369).
Nessa seção, o viajante passa ainda por Torres Vedras, Coimbra, Tomar, Leiria, Vila do Conde, Viana do Castelo, Évora, Algarve, Monte Gordo. O primeiro parágrafo do fragmento dedicado a Torres Vedras, após uma apreciação do nome, da localidade e da menção a locais “dignos de visitação” como o Chafariz dos Canos, as igrejas de São Pedro e Santa Maria do Castelo, temos o que o Murilo, em diálogo com Camões, considera “outra glória mais alta que se alevanta”, que são os pastéis de feijão. Nesse momento, Murilo retorna os comentários sobre a culinária como um dos aspectos mais importantes. No entanto, desta vez, seguindo o histórico que vinha colecionando nos dois parágrafos anteriores. Vale dizer que o desvio pelo humor, com a criação de um fato histórico referente ao General Arthur Wellesley, que mandou estocar pastéis de feijão atrás das fortificações, é um elemento de que o autor não se furta de fazer uso.
A seção C do Setor I é constituída por sete fragmentos. No primeiro, “A quinta da bacalhoa”, o que atrai o viajante são os azulejos: “Vamos ver azulejos? e seu apêndice natural, que é a quinta, restaurada no século XVI. Azulejos, azulejos, azulejos - branco, verdes, amarelos, azuis - inspiradores de, por exemplo, Vieira da Silva” (Mendes, 1989, p. 1.391).
O destaque que Murilo faz aos azulejos indica o quanto este elemento atrai o olhar do viajante. Isso é um contraponto a Lisboa onde a ação da natureza e as ações humanas destroem as casas azulejadas. A questão da modificação da paisagem construída ou natural ocorre também em outras partes. Contudo, a atenção que Murilo chama para o elemento cultural não é de nenhuma maneira uma surpresa, uma vez que os azulejos portugueses são tidos como uma das principais formas artísticas e arquitetônicas do país, que apesar de clássico, revela nas cores a alegria do lugar.
O Setor 2 está dividido em três seções, A, B e C: A em que estão presentes Nuno Gonçalves, Gil Vicente, Padre Antônio Vieira, Mariana Alcoforado. Na seção B são mencionados Bocage, Camilo Castelo Branco, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Miguel Torga. E, na seção C, são citados Antero de Quental, Camilo Pessanha, Florbela Espanca, Afonso Duarte, Vieira da Silva e Fernando Pessoa. Nesse último, podemos verificar que as seções têm certa cronologia.
De certo modo, Murilo assenta ao sentimento de identidade portuguesa assim como relaciona sua própria nacionalidade ao lugar em que está inserido, buscando uma identificação própria ao longo de toda a viagem, seja em fragmentos que denotam a necessidade de uma volta à memória nacional, ou até mesmo nas citações ao seu sogro Jaime Cortesão, historiador português, que muito o inspirara ao longo da vida.
Da mesma forma que os azulejos portugueses levam aos poucos e de forma gradual as cores para a cidade de elementos medievais representando muito mais que um elemento decorativo por sua importância e caracterização histórica, Murilo constrói, a partir de um molde classicista, obras cheias de inovações e vitalidade.
Murilo Mendes e a apropriação do arquivo do outro
Em “A tarefa do tradutor”, Walter Benjamin (2008) defende a autonomia de obras traduzidas, sendo a fidelidade na liberdade das traduções para com os originais primordial para uma constituição livre e subjetiva. A tradução se mostra como uma construção de apropriação do arquivo do outro, afirmando-se quase que como uma redenção, indo além do texto original, conseguindo ultrapassar os limites do pragmatismo, suplementando o original e conservando as intenções.
Quando o conceito de tradução de Benjamin e o de colagem de Compagnon são postos lado a lado, consegue-se observar que ambos fazem uso do que é coextensivo ao outro, agregando identidade e originalidade.
A apropriação do arquivo do outro acontece o tempo todo, afinal, recortamos, colamos e traduzimos até mesmo nas relações pessoais. Apropriamo-nos do arquivo do outro e transformamos ressignificando nosso arquivo pessoal. Murilo Mendes, por exemplo, faz questão de rememorar pessoas que fizeram parte de sua vida, que ressemantizaram sua trajetória como intelectual e escritor, adentrando seus arquivos para construir sua marca enquanto autor.
Murilo Mendes é o grande colecionador-alegorista que agrega obras, lugares, experiências, intelectuais, escritores e poetas num mesmo cosmos. Colecionando esses elementos e pessoas, Murilo cria seu próprio acervo, que diz muito mais sobre sua formação enquanto escritor do que necessariamente sobre o acervo em si. De acordo com Walter Benjamin (1993), em seu texto “Um discurso sobre o colecionador”, os objetos colecionados inspiram o melhor do colecionador, eles o inspiram e o moldam. A metáfora das janelas na obra “Janelas verdes” (1989) homenageia, obviamente, o famoso museu português, mas, também, pensa esse objeto como símbolo de um significado maior: quando abertas, torna-se possível ver o que está de fora, como o que está de fora ver o que está dentro. O mesmo acontece com o espólio intelectual de Murilo Mendes, quando ele expõe os poetas/romancistas/músicos/artistas/políticos de sua escolha dando visibilidade a eles.
José Saramago e sua (re)identificação com Portugal
José Saramago, em 1979, aceitou o convite para escrever um livro a partir de viagens por todas as regiões de Portugal. A obra não é um manual de viagem ou um guia turístico, entretanto apresenta características e situações parecidas. Para escrevê-la, Saramago viaja por diversos lugares para visitar igrejas, museus, patrimônios históricos, casas de poetas já mortos, túmulos, parques e praias. Ele visita alguns locais que talvez não fossem tão almejados por turistas comuns como, por exemplo, Vilarinho de Samardã, local em que viveu Camilo Castelo Branco, como pode ser percebido no excerto que se segue:
Hão-de perdoar-se ao viajante estas fraquezas: vir de tão longe, ter mesmo à mão de ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual sua beleza, uma serra lendária, e correr, em alvoroço, a duas pobres aldeias, só porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco. Uns vão a Meca, outros a Jerusalém, muitos a Fátima, o viajante vai à Samardã. Por esta estrada seguiu, a cavalo ou de traquitana, o doido do Camilo quando jovem. Em Vilarinho passou ele, palavras suas, «os primeiros e únicos felizes anos da mocidade» Foi aqui que viveu e morreu Camilo Castelo Branco. O viajante sabe que a verdadeira casa ardeu em 1915, que esta é tão postiça como os merlões do Castelo de Guimarães mas espera que lá dentro alguma coisa o comova tanto como o chão natural que as muralhas rodeiam. O viajante é homem muito agarrado à esperança (Saramago, 1981, p. 44).
Saramago visita o local no qual Camilo Castelo Branco morou com o mesmo interesse que a cidade de Lisboa. Visita a casa em que viveu o poeta Teixeira de Pascoaes, como pode ser depreendido no recorte que segue:
Bateu à porta, espera que venham abrir: “Falha a viagem se não entro”. É que esta casa não é museu, não tem horas de abrir e fechar, mas sem dúvida há um deus dos viajantes bem intencionados, é ele que diz: “Entre”, e quando se apresenta não é deus nenhum, mas sim o pintor João Teixeira de Vasconcelos, sobrinho de Teixeira de Pascoaes, que abre todas as portas de uma casa toda ela preciosa romã e vai acompanhando o viajante até ao fundo do corredor. É de acreditar que os pedidos sejam satisfeitos, pois não faltam oferendas, pernas, braços e cabeças de cera, equilibrados sobre o túmulo, é certo que ocos, os tempos vão maus para cera maciça, e esta bem se vê que é adulterada. O viajante percorre a igreja e o claustro do que foi o convento e, seu coração, põe-se a amar Amarante (Saramago, 1981, p. 50).
As visitas às igrejas mostram que Saramago reconhecia a fé das pessoas e o contexto histórico, já que muitos dos templos apresentam uma arquitetura diferenciada ou mais simples com algum detalhe que merece atenção. Saramago era ateu, mas não se furtava a descrever e reconhecer a beleza das catedrais. Ao longo dessas viagens, não só registrava as grandiosas construções que existem em Portugal como os caminhos pelos quais passou. A passagem que se segue mostra o momento em que o narrador discorre sobre a paisagem em uma forte chuva:
Aí o viajante temeu. Já se via arrastado pela corrente, de cambulhada com as pedras soltas e as folhas mortas. Atravessou uma pontezinha frágil, e agora vai mais sereno, sobe o monte, o automóvel não dá parte fraco, e depois de mil voltas aí está Abadim. Não se vê vivalma, toda a gente recolhida, em casa a quem casa está, em abrigos de ocasião os que andam fora. A chuva diminuiu, mas ainda cai com violência (Saramago, 1981, p. 58).
Saramago, enquanto viajante, quer dar realce aos aspectos não convencionais de Portugal, apresentando sua cidade com um olhar ao mesmo tempo novo e local. Mostra as paisagens, as pessoas, envolve-se com o lugar, seja ele um castelo famoso, ou uma cidade desconhecida. Faz descrições, perscruta, escava, descobre e estuda com detalhes as particularidades de cada lugar.
“Viagem a Portugal” (1981) representa indubitavelmente a materialização do laço existente entre o escritor e o país, revisitando um ambiente conhecido pelo próprio autor, mas que se compromete em ainda (re)descobrir as curiosidades não vistas do país comum aos seus olhos. O enredo da obra gira em torno de uma viagem ainda mais interiorizada com uma capacidade igualmente penetrante entre o conhecer o local e a si mesmo.
De início, a obra pode se parecer com um manual ou até com um guia de viagem, uma vez que conta de fato com descrições detalhadas dos lugares. Contudo, pretendemos pensar nessa obra mais como um ensaio no que tange ao conceito de Adorno, isto é, “lugar entre os despropósitos”2. Vale dizer que nossa pretensão aqui não é a de demarcar a qual gênero literário a obra melhor se enquadraria, já que é livre para transitar entre os gêneros sem a criação de categorias estanques.
A obra em questão se encontra exatamente no equilíbrio entre objetividades e subjetividades e, em grande parte, graças ao narrador identificado como viajante, vamos sendo guiados pelas ruas portuguesas. Quando Saramago (1981, p. 18) escreve “para que nada se perca ou alguma coisa se aproveite”, ele está nos convidando a viajar por Portugal com esse narrador, mas, sobretudo, ensinando como viajar dentro de nós mesmos.
O conceito de viajar, que segundo o narrador seria como “estar mais e andar menos” (Saramago, 1981, p. 56), não é necessariamente estar em um lugar novo, é o quanto do lugar se absorve, o quanto do lugar lhe reflete, o quanto do lugar atinge sua própria subjetividade. O próprio viajante percorre não só os principais pontos turísticos, como também lugares que não são nem cogitados por turistas. O viajante passa por seus trajetos conhecendo as pessoas, aprendendo as histórias e curiosidades, comendo as tipicidades e se inserindo no lugar enquanto viaja para dentro de si.
O autor se compromete em fazer com que o leitor faça parte da viagem histórica, detém-se em apresentar um povo por ele mesmo, uma cultura por ela própria e uma cidade que vai além dos elementos turísticos convencionais, com muitas histórias escondidas por entre as ruas estreitas. Assim, Saramago atribui outra identificação a Portugal. O viajante que ora se apresenta é um estrangeiro, dando-se a oportunidade de se maravilhar com as novidades ao passo que busca pelo reconhecimento da própria terra nos pequenos detalhes do cotidiano, já que não seria possível desvendar a cidade com tanto detalhamento e apreço com uma visão que não fosse nativa.
A importância da memória e os apontamentos sobre o descaso com que os portugueses tratam seus monumentos são elencados pelo narrador que faz questão de criticar a conservação da memória popular, quase como um apelo por reconhecimento, como no trecho abaixo:
Seria estimável a vizinhança se não fosse encher o rio e entrar na igreja. O viajante não sabe como as coisas lá dentro se passam em momentos tais, se têm os santos de levantar os mantos para não se molharem, mas uma outra coisa sabe, é que está escrevendo estas palavras, que parecem falta de respeito, para disfarçar a indignação que sente por ver que assim ao respeito se falta a preciosas obras de arte, condenadas à morte pela indiferença e pelo desmazelo. O viajante deve confessá-lo aqui, não precisa de imagens sacras para orar aos pés delas, mas precisa de que elas sejam defendidas porque são obra do génio do homem, beleza criada (Saramago, 1981, p. 160-161).
No trecho acima é possível identificar a revolta que cerca o viajante perante a impotência do estado de desmazelo da igreja. Saramago faz questão de se fazer presente em seu país natal, com um olhar não só afetivo, mas também criterioso. Quando o viajante se mostra observador ao ponto de repudiar a atitude desleixada dos locais, faz uma crítica a respeito do esquecimento da história e da importância do lugar, mostrando-se exatamente como um viajante e não apenas um turista3.
A viagem na escrita de José Saramago
Num mundo em que já não há muitas novidades para serem exploradas, pois quase todos os roteiros possíveis já foram traçados por meio das redes sociais e da internet, absolutamente nada parece ser tão interessante de ser visitado e conhecido fisicamente.
José Saramago dialoga de diversas formas com a cultura e com o imaginário nos quais está incluso. O autor apresenta uma visão que demonstra sua relação com o tempo e o espaço histórico de Portugal, envolvendo uma reação intelectual, e emocional perante o espaço em que se encontra. Assim, ao ler seu “relato de viagem”, percebe-se uma contextualização bem específica, visto que se trata de um discurso produzido numa determinada época e condicionado por um contexto. Os aspectos sociais bem como os locais visitados e os objetivos da viagem são bem explicitados pelo autor.
A descrição da viagem do narrador possui uma intenção didática, quase seguindo os parâmetros de um guia turístico, dado que conhece Portugal tanto no aspecto intelectual quanto no geográfico, cultural e político. Ele é o viajante, mas escreve da perspectiva de um guia turístico, ou seja, de alguém que já conhece o local. Observa-se que o autor segue o caminho pela nação portuguesa adentro, por suas terras, suas histórias e seu povo. Durante o percurso, o viajante encontra o espaço físico, o povo, a história, a arte - em especial as artes dos museus e das igrejas que o viajante mostra ter muito apreço. O viajante, durante seu itinerário, possui um olhar para dentro do país que vai carregando as memórias pessoais, reflexões, opiniões sobre o que vê e compreende acerca da paisagem, da geografia e da história, dentre tantas outras percepções.
É perceptível que o autor possui grande admiração por obras do tempo antigo, demonstrando apego ao passado. Quando o viajante passa perto de uma ruína, ele demonstra bastante interesse pela história desta, como pode ser percebido nos fragmentos que se seguem:
Há realmente uma estética das ruínas. Intacta, Conímbria terá sido bela. Reduzida ao que hoje podemos ver, essa beleza acomodou-se à necessidade. Não crê o viajante que melhor pudesse ter acontecido a estás pedras, a estes excelentes mosaicos, que em alguns lugares a areia oculta, para sua preservação.
[...]
É este conjunto de edificações em ruínas, o elo misterioso que as liga, a memória presente dos que viveram aqui, que subitamente comove o viajante, lhe aperta a garganta e faz subir lágrimas aos olhos. Não se diga daí que o viajante é um romântico, diga-se antes que é homem de muita sorte: ter vindo neste dia, nesta hora, sozinho entrar e sozinho estar, e ser dotado de sensibilidade capaz de captar e reter esta presença do passado, da história, dos homens e das mulheres que neste castelo viveram, amaram, trabalharam, sofreram, morreram (Saramago, 1981, p. 94-124).
Para Saramago, o conceito de viagem não está na chegada, está no caminho percorrido. A viagem não é o movimento entre seu local de partida e a chegada ao destino. Em sua concepção, a expressão “vou viajar” não se refere ao percurso entre o local de onde se parte e o local ao qual se pretende chegar, mas, sim, na “aventura” que se inicia assim que se chega ao local pretendido. A composição do texto de Saramago acontece em dois registros temporais: o da viagem de fato (quando o viajante observa com atenção aquilo que vê e disso faz um registro em algumas fotografias e na memória) e no tempo da escrita, fazendo o uso de elementos dicotômicos entre objetividade e subjetividade, registrando as descobertas ou redescobertas, os acidentes do percurso, o que viu, ouviu e sentiu.
O percurso do viajante começa pela fronteira e de acordo com o tempo ele se encaminha para o interior. Logo, é um percurso cuja primeira cidade citada é Miranda do Douro, local no qual o viajante entra com um olhar minucioso. Ele vai passando de cidade em cidade, desde os menores vilarejos até as grandes cidades, trazendo à baila uma bagagem de conhecimentos pela arquitetura e pela arte sacra que é extensa, como pode ser visto no recorte a seguir:
Está primeira cidade de Portugal por onde vai entrando, com seu vagar de viajante minucioso, cuja se chama Miranda do Douro. Há-de pois recolher com modéstia as suas próprias veleidades, e decidir-se a aprender tudo. Os milagres e o resto.
[...]
a subir a Costanilha, diverge para outras caladas e varridíssimas ruas, ninguém às janelas, e por falar em janelas, descobre sinais de velhos rancores voltados para Espanha, mísulas obscenas talhadas na boa pedra quatrocentista. Dá vontade de sorrir esta saudável escatologia que não teme ofender os olhos das crianças nem os aborrecidos defensores da moral. Em quinhentos anos ninguém se lembrou de mandar picar ou desmontar a insolência, prova inesperada de que o português não é alheio ao humor, salvo se só o entende quando lhe serve os patriotismos (Saramago, 1981, p. 11-12).
Em “Viagem a Portugal”, tem-se uma obra com aparência de guia de viagens. No entanto, o “guia” vai sutilmente não seguindo o modelo pré-estabelecido para esse gênero; os mapas são apresentados por meio de uma ironia fina de um país em transformação. Ele atravessa a fronteira entre Espanha e Portugal no primeiro capítulo do livro, o que pode ser interpretado como uma maneira de o autor se distanciar de Portugal a fim de se desapegar das paisagens conhecidas. O viajante faz um percurso que vai do Douro para o Minho, de Trás-os Montes para o Ribatejo e do Alentejo para o Algarve. Ao cruzar a fronteira, ele pronuncia inicialmente um “sermão aos peixes” (provável referência ao “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, de Padre Antônio Vieira) e, já no hotel, agradece pela visita que tem da janela, por não se tratar de um quintal com varais, mas, sim das margens espanholas do Douro:
Esta tarde é de Outubro. O viajante abre a janela do quarto onde passará a noite e, no imediato relance de olhos, descobre ou reconhece que é pessoa de muita sorte. Podia ter na sua frente um muro, um canteiro enfezado, um quintal com roupa pendurada, e havia de contentar-se com essa utilidade, essa decadência, esse estendal. Porém, o que vê é a pedregosa margem espanhola do Douro, de tão dura substância que o mato mal lhe pôde meter o dente, e porque uma sorte nunca vem só, está o Sol de maneira que a escarpada parede é uma enorme pintura abstracta em diversos tons de amarelo, e nem apetece daqui sair enquanto houver luz (Saramago, 1981, p. 12).
Durante o seu percurso, outro aspecto que o viajante descreve são as condições climáticas, já que além de comporem a natureza do país, são elementos que integram um ambiente no qual transparece o sentimento do viajante em relação a tais condições e à natureza resultante da conjunção de elementos naturais e culturais com a perspectiva pessoal do viajante.
O amálgama entre Murilo Mendes e José Saramago
Murilo Mendes e José Saramago se dedicam a questões muito parecidas, como o enigma do viajante, que se apresenta para cada um de uma forma diferente. Contudo, os recursos que ambos utilizaram na construção das obras, os paradoxos nos quais se inserem, e os meios de inserção da própria trajetória em obras ficcionais, tornam-os muito parecidos.
No que tange a aspectos personificados, Murilo o faz de maneira muito mais frequente, quando utiliza dos próprios amigos e familiares na construção de uma obra. Enquanto Saramago sutilmente coloca um pouco de si no viajante/narrador sem nome, permite, assim, que o público se identifique e o identifique em uma complexa relação entre autor e obra, onde já não se sabe de forma subjetiva quem deu origem a quem.
Murilo, por refletir suas próprias afetividades e jornadas individuais em obras como “Janelas verdes” (1989), solidifica por meio da palavra escrita sua própria constituição pessoal, seus pensamentos, seus sentimentos, suas afetividades. Saramago, em “Viagem a Portugal” (1981), está fisicamente alocado em Portugal, fazendo uso de analogias verdadeiras e fictícias num entrelace bastante curioso.
A forma como cada autor faz uso da metáfora da viagem favorece esse tema clássico da literatura que mobiliza o princípio da mobilidade cultural. Os dois escritores apresentam uma escrita atravessada pela viagem como realidade ou metáfora, seja como modo de descobrir-se outro, seja como forma de construir o “eu”. Murilo exemplifica a dissolução das fronteiras, o bônus do mundo globalizado, a fusão cultural que se torna tão dinamicamente intrínseca às camadas mais profundas do ser. Saramago, por outro lado, busca (re)conhecer um país já comum a ele, dando a oportunidade de dividir a visão local e global com a visão do desconhecido, do novo, do viajante que se surpreende como cada detalhe e que enxerga na viagem a oportunidade de inventar o “outro” enquanto recria o “eu”.
O que o leitor pode ver é que embora existam diferenças quanto à forma das obras de cada autor e quanto à maneira como os assuntos são tratados, ambas escritas se identificam num pluralismo. Essa identidade entre as obras dos dois escritores - seja ela expressa por murilogramas4 relacionados à afetividade, seja por uma identidade que aproxima o personagem do (des)(re)conhecido - faz com que o leitor não seja também o mesmo que regressa ao final da leitura.
Referências
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Notas