Temática Livre
Recepción: 15 Marzo 2021
Aprobación: 08 Octubre 2021
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.34.127-140
Resumo: O presente artigo analisa dois filmes do cinema brasileiro do nicho animado em que as cores e traços determinam posições, bem como, a historicidade de seus personagens, maneira na qual diretores e roteiristas se utilizam do lúdico para expor determinadas mazelas sociais. Desta forma, busca-se relacionar os contextos socioeconômicos e raciais com os aspectos técnicos das produções.
Palavras-chave: Cinema, Brasileiro, Animação.
Abstract: This article analyzes two films of Brazilian cinema in the animated niche in which colors and lines determine positions, as well as the historicity of their characters, the way in which directors and screenwriters use entertainment to expose certain social problems. Thus, we seek to relate the socioeconomic and racial contexts to the technical aspects of the productions.
Keywords: Cinema, Brazilian, Animation.
Resumen: Este artículo analiza dos películas de animación del cine brasileño. En éstas, los colores y las líneas determinan posiciones, así como la historicidad de sus personajes. Se analiza la forma en que directores y guionistas utilizan la alegría para exponer ciertos problemas sociales. Se busca relacionar los contextos socioeconómicos y raciales con los aspectos técnicos de las producciones.
Palabras clave: Cinema, Brasileño, Animación.
Introdução
A sétima arte sempre foi um campo fértil no que tange as representações, independentemente do gênero estas produções tem a tendência de expor determinadas tensões sociais. Isso se deve tanto as diversas possibilidades de criação e (re)criação por meio dos filmes.
Sobretudo em referência ao cinema de animação no Brasil que já data de mais de cem anos e tem na heterogeneidade de gêneros e narrativas sua força, uma vez que, se permitiu alcançar dispares públicos. Tendo seu início pautado pelo desenvolvimento de produções para um público majoritariamente infantil: com comerciais e curtas metragens, posteriormente alcançou o feito de realizar longa-metragens com maquinários, desenhistas e narrativas tipicamente brasileiras se adequando as necessidades dos novos consumidores que surgiam com a universalização de acesso a diferentes meios de comunicação.
Desta forma, películas animadas passaram a ser destinadas também ao público adulto, e apesar de contar com traços e personagens similares aos encontrados em produções infantis se dispunham a dialogar com assuntos caros a uma sociedade conhecidamente desigual e ainda em dívida com seu passado escravocrata. Sendo assim, ao propor a análise dos filmes “O menino e o mundo” e “Uma história de amor e fúria” lançados na década de 2010 busca-se discorrer não somente sobre os feitos técnicos, mas também, pela construção de roteiros que direta e/ou indiretamente correlacionam questões inerentes a sociedade brasileira a estes aspectos.
Histórias de um Brasil desigual: “O menino e o mundo”
O longa-metragem animado “O menino e o mundo”1 foi lançado nos cinemas brasileiros em 2014 em 17 salas pelo país. O número limitado de salas exibindo a película fez com que a bilheteria do filme não fosse tão expressiva, cerca de 35.000 pessoas. Ainda assim, o trabalho realizado pela equipe responsável pela conclusão do filme foi reconhecido pela sua ótica dispare das produções de gênero lançadas nos últimos anos. A estreia em outros países lançou luz à obra brasileira, fazendo com que este fosse indicado a prêmios importantes da categoria, dentre eles o Festival de Cinema de Annecy do mesmo ano.
Tendo sido vencedor nas categorias do referido festival levando consigo o prêmio do Grande Público, e o prêmio Cristal de longa-metragem. Também foi reconhecido no ano de 2015, no Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, tendo levado os prêmios de Melhor Filme de Animação e Melhor Filme Infantil. Já em 2016, foi indicado ao Annie Awards, levando o título de Melhor Animação Independente. Neste mesmo ano, foi indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação e, apesar de não ter levado o prêmio, alavancou a animação brasileira a outro patamar. Com direção de Alê Abreu, “O menino e o mundo” foi realizado no estilo 2D e computação gráfica. A construção das personagens, bem como dos cenários, foi feita com lápis de cor, giz de cera e colagens.
Em entrevista concedida para a revista Exame (Demartini, 2016), Alê Abreu mencionou buscar que sua obra não remetesse as amarras do mundo adulto, o que permitiu com que o filme fosse pautado na subjetividade infantil, atingindo crianças e adultos. Primeiramente os desenhos eram elaborados com os materiais supracitados, depois eram realizadas modificações e/ou inclusões de natureza semelhante ao que foi esboçado. Após isto, era realizado o trabalho de impressão e, posteriormente, um novo desenho era realizado por meio digital.

A inclusão das diferentes técnicas tinha como objetivo propiciar com que a leitura do filme pudesse ser realizada de diferentes formas. Quando uma colagem era vista no longa, além da impressão superficial de ser um trabalho discrepante dos demais até então mostrados, permitia com que aquele cenário fosse percebido como um significado de determinados personagens.

O filme se passa em dois ambientes específicos, a zona rural e a cidade. É na zona rural que conhecemos o menino protagonista do longa e vemos que sua relação com a natureza e a família é intensa no que diz respeito às sensações e descobertas. Logo somos apresentados aos pais da criança, que dialogam sobre a ida do pai para a cidade. Apesar de sabermos que estão mantendo uma conversa, não é possível compreender uma palavra do que é dito.
O dia da partida chega e o pai da criança vai em busca de possíveis oportunidades empregatícias. Para a agonia da criança os dias se vão e a alegria se esvai juntamente com as lembranças dos bons momentos vividos com a presença de todos na simples casa do campo. Almejando encontrar seu pai e levá-lo de volta para casa, o menino pega uma mala, coloca alguns pertences nesta e adentra o mesmo trem com destino a um local desconhecido, o centro urbano. Uma vez que o garoto se distancia de sua terra, novas experiências se abrem à sua frente.
O menino entra em contato com ideias libertárias e autoritárias, além de se ver “protegido” por personagens sem nome, que participam de forma ativa e passiva nas aventuras pelos campos de algodão e escadarias da favela. As aventuras mencionadas nada mais são do que subjetividades criadas pela criança para enfrentar as problemáticas neste ambiente hostil. Um exemplo disto é uma enchente enfrentada pelo personagem junto ao pequeno cachorro, que poderia ter vitimado ambos, mas é assimilada como uma grande aventura marítima.
Após a ida da criança para a cidade, está se vê acolhida primeiramente por um catador de algodão, aparentemente já idoso, que leva consigo um cachorro. E, posteriormente, por um jovem trabalhador da indústria têxtil, que aspira por tempos prósperos. Essa conclusão vem não somente pela expressão facial deste personagem, mas também pelo afeto que mantém pelo seu instrumento e sua arte.

Uma vez que a criança adentra ao ambiente urbano, diferentes ambientes lhe são apresentados por meio de descobertas invocadas por ele mesmo. O diretor não poupa o espectador da poética na construção estética destes locais. Mesmo com um número incontável de barracos, a favela, ainda assim, é recheada de cores, que se ausentam do centro urbano opaco e sem vida.
No final, percebe-se que a busca da criança, agora um adulto, foi em vão, pois, em meio a tantos corpos explorados e descartados por uma sociedade capitalista e racialmente estratificada, seu pai era somente mais um em um ciclo vicioso de violência e enfrentamentos. Embora “O menino e o mundo” não tenha sido voltado à discussão da temática racial, este se destaca pela exposição de sintomas de uma sociedade que vivencia a estratificação de seus cidadãos.
O filme chama a atenção para as desigualdades sociais, que remetem diretamente aos sintomas de uma sociedade capitalista, consumista e excludente nos âmbitos social, econômico e intelectual. Refere-se também, por intermédio das cores e traços idealizados, ao papel da força militar nesta sociedade, a qual, por sinal, é responsável pelo alto índice de mortalidade de jovens negros no país atualmente.
A forma com que se impõem com suas máquinas compostas por armas em meio as ruas da cidade são uma crítica válida ao papel da polícia nestes ambientes, principalmente se estes forem compostos por personas negras e pobres. Tais questões do tempo presentemente delimitam as relações assimétricas entre os personagens, mesmo sem evidenciar características raciais de quaisquer que sejam eles.
A questão do racismo neste filme não fica evidente, uma vez que, por ser uma obra nascida pelas mãos de um homem branco, não encontra lugar na narrativa, mesmo ao dialogar com temas como a fome e o desemprego, que, em suma, atingem com mais ferocidade a parcela negra da população. Não menos importante, os aspectos técnicos foram cruciais para causar o impacto necessário em cada cena construída. A questão linguística do filme, longe de ser uma problemática, contribui para que se suscite novas formas de compreensão para além da língua falada. Sendo assim, a linguagem no filme é vista como uma das tantas formas de comunicação existentes
nosso estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, isto é, que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; que somos também leitores e/ou produtores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes... Através de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagens (Santaella, 1983, p. 10).
Utilizando-se do mundo fantástico, o diretor representa, por meio de traços, cores, gestos e musicalidade na película, as variadas formas de linguagens as quais um indivíduo está sujeito dado ao seu lugar social. Ao optar por criar ambientes e personagens que dialogam com a multiplicidade humana de se comunicar e interpretar ideias e mensagens por entre sonhos e fantasias o diretor constrói um produto sociocultural que tem como aspecto relevante na construção de personagens, suas relações com a sonoridade do ambiente que os cerca.
A trilha sonora, neste caso, é um elemento conciso, tendo importância por situar as singularidades pertencentes a cada ambiente. Dando ênfase a detalhes que poderiam passar despercebidos, mas que indicam valor e dão expressão de naturalidade as imagens. Chion (1994) reflete sobre a contribuição do som para a produção animada, dialogando acerca da sincronização e a pontuação de ações dos personagens, tal qual a trajetória musical na película.
Desta maneira, quando a criança acolhe literalmente as notas musicais multicoloridas soltas pelo seu pai e as guarda, a imagem remete a inércia e lentidão constante dos olhos que podem deixar com que estas desapareçam no céu, se comparada a agilidade identificada no ouvido, que ao identificar qualquer nota semelhante corre para se aproximar, imprimindo rápidas sensações visuais a memória.
A proporcionalidade dos personagens diferencia os personagens dado seu pertencimento a determinada camada social. Os mais pobres, nos quais se encontram o núcleo familiar do menino e dos subsequentes personagens que o auxiliam em sua jornada, têm uma cabeça protuberante e as demais partes do corpo finas como os primeiros traços esboçados por crianças.

Conforme postula Blair (1994), as proporcionalidades dos personagens criam diferentes tipos de personagens, podendo estes ser compreendidos como “vilões” e “mocinhos”. Ao utilizar o peito e ombros largos para os mais abastados, a obra de Alê Abreu expõe outros aspectos que levaram o pai a se afastar da família, sendo um deles a fome. Ambos representam por meio de frames da alimentação dos personagens o quanto este elemento se faz pertinente não só na manutenção e consequente permanência de todo um núcleo familiar, como também, enfatiza a problemática envolta na alimentação sem nutrientes e prejudicial à saúde difundida de forma consciente por grandes conglomerados alimentícios.
Já a miséria que acomete as camadas mais pobres da população é vista na simplicidade das brincadeiras realizadas por um grupo de crianças em meio ao lixão, bem como quando o protagonista e o jovem artista param para refletir em meio a carcaças de carros e sujeira.
A mercantilização do trabalho também é colocada em foco na película, não só pela promessa de emprego que leva o pai do menino a este local, mas também pela forma com que a empresa lida com seus funcionários ao anunciar que estes já não são mais necessários com a junção de dois panfletos, um com trabalhadores sorridentes e o outro com estes sendo avisados de sua dispensabilidade.
Por ser contada através dos olhos do pequeno, as relações humanas, o enfrentamento da violência e ao status quo são vistos por meio da musicalidade. Neste caso, os espaços públicos são aproveitados de forma a ser considerados como locais de expressão dos cidadãos, seja ela uma expressão autoritária e/ou libertadora.
Investindo na potência de se explorar as imagens dos espaços públicos, a luta entre os pássaros que ganham vida por meio das notas soltas pelas flautas e armas, no céu, porém, acima da rua, mostra que a rua é um bem público pelo qual se é preciso lutar. Local onde certas demandas sociais causam mobilização popular, a rua se torna um ambiente de demanda política e de infraestrutura. Ressaltando que, quando as pessoas se unem nas ruas clamando por mudanças, estas podem ser relativas para criar uma nova uma nova expressão política e/ou manter a agenda vigente (Butler, 2014).
A narrativa se encerra de forma competente, compadecendo com a história de tantas outras crianças que vivenciam situação semelhante ao personagem. Sem escola, excluídas socialmente e, por vezes, separadas de figuras familiares por conta da situação de vulnerabilidade. Contudo, mesmo diante tantas adversidades, a mensagem reverbera sentimentos de esperança mesmo em meio às piores perspectivas. Tendo relevância por tratar de maneira singela elementos como a violência, a fome e o trabalho precário, cenário que atrapalha e impede com que a sociedade cresça em relação a inserção das minorias.
Uma história de amor e fúria: historicidade brasileira em lutas seculares
“Uma história de amor e fúria”, por sua vez, tem direção e roteiro de Luiz Bolognesi e foi lançado em 2013. Tendo sido produzido pela Buriti Filmes e Gullane, com coprodução da Mondo Cane Filmes, Lightstar Studios, Estúdio Luno e HBO Latin America Originals, foi distribuído no Brasil pela Europa Filmes. Foram investidos R$ 4 milhões no seu desenvolvimento, e em sua primeira semana de exibição arrecadou cerca de R$ 110 mil reais, tendo como público, neste período, 8.435 pagantes.

Foi vencedor do prêmio máximo durante o Annecy International Animated Film Festival no mesmo ano e também foi premiado em outros festivais de animação pelo mundo, dentre eles o Latin Beat Film Festival, realizado em Tóquio, levando o prêmio de melhor animação, tendo recebido o prêmio Especial do Júri durante o Expotoons, em Buenos Aires, e pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, em 2014, levando duas premiações, a de Melhor Longa-Metragem de Animação e Melhor Efeito Visual.
Longa-metragem animado de ficção científica, foi o primeiro do gênero de cunho adulto, com toques de histórias em quadrinhos e anime. A película foi realizada com dois métodos: o desenho tradicional com lápis e sobreposto e, posteriormente, com a utilização de computação gráfica. O longa retrata a história do Brasil através dos séculos, desde 1500 até o ano de 2096, ano este que, segundo a trama, haverá uma guerra devido à falta d’água para toda população, principalmente a carente.

O enredo gira em torno de um guerreiro nativo e imortal que vivencia na pele a opressão daqueles que são tidos como vencedores na história brasileira, além de lidar com a eterna busca pela sua amada. O filme discorre sobre a herança étnica que compõe o país e seu papel na construção deste país multicultural, desconstruindo a retórica de igualdade entre os grupos sociais existentes
Para os etno-simbolistas, o que dá poder ao nacionalismo são os mitos, memórias, tradições e símbolos de heranças étnicas e as maneiras pelas quais tem sido um passado popular, e pode ser redescoberto e reinterpretado pelas inteligências nacionalistas modernas. É desses elementos de mito, memória, símbolo e tradição de que as identidades nacionais modernas são reconstituídas em cada geração, à medida que a nação se torna mais inclusiva e como seus membros lidar com novos desafios (Smith, 1999, p. 9, tradução nossa)2.
A trama se inicia no ano de 1566 em Guanabara. O guerreiro tupinambá Abeguar, ao tentar fugir do ataque de uma onça, se joga de um penhasco abraçado à Janaína, seu interesse amoroso dos séculos subsequentes. Milagrosamente, o indígena consegue voar por conta da intervenção de uma divindade, Munhã, que lhe cobra, pelo dom concedido, a levar seu povo para a terra longe do mal. Com o dom da imortalidade, entretanto, se vê obrigado a acompanhar o extermínio de sua tribo. O guerreiro então retorna agora na pele de um homem negro livre, cansado da miséria e da opressão durante o período escravocrata, lutando na revolta ocorrida na então província do Maranhão entre os anos de 1838-1841, a Balaiada.
O personagem retorna novamente, agora no ano de 1968, durante o período militar, novamente nutrindo uma paixão por Janaina, no entanto, dessa vez, não se encontram juntos como outrora, cabendo a este lutar contra as imposições do regime que teimam em separá-los. Após o regime militar, tem-se um salto temporal para o ano de 2096 na cidade do Rio de Janeiro, onde a trama se encerra com demasiado pragmatismo. Primeira animação comercial de ficção científica de cunho adulto, dialoga com propriedade sobre a colonização e o período escravocrata, sem poupar os espectadores de cenas sangrentas e nudez.
No que tange a representação por meio da criação dos personagens, a personagem Janaina em sua forma indígena apresenta alguns traços similares a fenótipos brancos, tendo um nariz extremamente fino, além de ter a cor da pele levemente mais clara que os demais personagens da tribo. Ainda em relação a cor da pele dos pertencentes às tribos, estas se diferem dos personagens brancos e, de fato, remetem à percepção europeia do branco. As crenças religiosas também são citadas no filme e, ainda que não sejam amplamente abordadas, podem ser vistas por meio da intervenção do Deus nos rumos da vida do personagem principal e pelo ritual indígena de conexão com outro mundo que antecede a explicação da influência divina.
Contrariamente ao filme anteriormente citado, a proporção dos personagens aqui encontrados é similar, gerando, assim, proximidade entre os protagonistas e seus algozes. No entanto, nestes dois primeiros períodos há aspectos marcantes na construção destes personagens. Sendo assim, das vestimentas dos estrangeiros em sua chegada as pinturas corporais dos tupinambás e tupiniquins, como também as roupas maltrapilhas dos homens livres e escravos que participaram do conflito armado até mesmo a violência com que os algozes atacam as comunidades e/ou grupos a qual o protagonista pertence.
No que diz respeito à representação do período escravocrata, nota-se homogeneidade na concepção dos personagens negros com os indígenas. As características físicas dos personagens principais têm similitude, os traços finos permanecem e há uma busca pelo clareamento destes que pode ser notada por meio da pele clara de ambos os personagens. Contudo, estranhamente Janaína e Manoel Balaio têm certo escurecimento da pele após se relacionarem, e a pele de seus filhos condizem com essa mudança.

Outro fato que suscita questionamentos é a forma com que a personagem Janaina é representada no período da colonização e no período escravocrata. É perceptível uma sensualidade para além do necessário, principalmente quando entra em contato com os personagens masculinos de Abeguar e Manoel Balaio. O que é uma problemática naturalmente encontrada e associada a personagens femininos de minorias étnicas.
A película retrata de forma sucinta a Balaiada, todavia, os personagens negros, apesar de não serem amplamente desenvolvidos, são percebidos como sujeitos pertencentes a nação brasileira naquele contexto histórico de exclusão e violência. O envolvimento de Luís Alves na supressão dos insurgentes contra o governo demonstra uma percepção atípica em produções animadas de como retratar um fato histórico. Além de destacar as possibilidades das películas de animação, “Ficções cinematográficas inevitavelmente trazem à tona visões da vida real não apenas sobre o tempo e o espaço, mas também sobre relações sociais e culturais” (Shohat; Stam, 2006, p. 263).
Sendo assim, a diversidade apresentada no filme contempla as diferentes experiências históricas em meio a cultura nacional. O fato de diretor e roteirista optarem por explanar, de forma ampla, o Brasil pelos séculos, realça a importância de se debater variadas perspectivas. Como aponta Stuart Hall,
é para a diversidade e não para homogeneidade da experiência negra que devemos dirigir integralmente a nossa atenção criativa agora. Não é somente para apreciar as diferenças históricas e experienciais dentro de, e entre, comunidade, regiões, campo e cidade, nas culturas nacionais e entre a diáspora, mas também reconhecer outros tipos de diferenças que localizam, situam e posicionam o povo negro. A questão não é simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferenças - de gêneros, sexualidade, classe (Hall, 2003, p. 327-328).
A narrativa de luta e resistência continua, no entanto, durante o regime militar. Agora na pele do estudante Carlos Estrada, que se encontra na linha de frente de um grupo chamado “Ação Democrática”, no qual o herói adentrou para ficar próximo de Janaina. E, assim como em seu passado, se vê obrigado a enfrentar os horrores implementados pelo grupo dominante. Contudo, neste período histórico, Cau, como também é referido, já não mais pertence a uma minoria étnica, já que passa a ser branco. No entanto, mesmo com a mudança, o personagem não deixa de sofrer os efeitos de um regime rígido e pautado na violência como forma de controle.
Ao ser capturado, passa a amargar todo tipo de violência, psicológica e física. As cenas do período na prisão culminam em uma favela do Rio de Janeiro e um diálogo pertinente sobre o passado enquanto construtor do futuro da população, interligando, assim, todos os períodos históricos demonstrados até então.
Também discute o papel da polícia como mantenedor da “ordem social” e do seu papel na qualidade de propagador da violência não só física, mas também a violência da exclusão, da pobreza, do cerceamento de acesso a direitos básicos a todos seus cidadãos, o que, de certa forma, propicia com que grupos paralelos ao Estado se estabeleçam, proporcionando em determinados momentos o que de fato era dever deste Estado ausente.
Desta forma, Luiz Bolognesi contradiz a literatura, bem como a recorrente exaltação a personagens nacionalistas, sujeitos históricos que pertenceram a grupos dominantes e só triunfaram mediante a opressão, e a concessão mínima a direitos básicos aos cidadãos brasileiros. Por meio de sua narrativa, através dos séculos, reinventa e dá voz a grupos frequentemente silenciados e/ou que se espera silenciar. O que se percebe com o renascimento constante do protagonista é que a luta pelos direitos, tal qual a democracia e a liberdade, a luta incessantemente pelo fim de uma desigualdade que está enraizada na perspectiva histórica do país.
Conclusão
Nota-se que ambos os diretores preferem abordar as dores enfrentadas por aqueles que são frequentemente atingidos pelas mazelas da segregação social, econômica e cultural por meio de suas visões de mundo, sendo estas primordialmente de homens brancos, os quais, por sua vez, não serão atingidos e/ou mesmo saberão do que se trata tais dores. Estes idealizadores falam sobre o outro a partir de seu lugar de privilégio na sociedade brasileira, mas escolheram dar vida a narrativas que discutem sobre as angústias, as agruras de um grupo social que, apesar de representar mais de 50% da população brasileira, não encontra iguais na indústria cinematográfica de animação do país.
Como brancos, dialogam com respeito a outra história brasileira que o racismo, na sua qualidade de estrutura, almeja apagar. Com protagonistas que anseiam pelo fim e/ou diminuição da desigualdade, que norteia as relações existentes reverberam, de formas díspares, a luta contra o racismo, ressaltando que essa luta não é somente de negros, mas sim de todos os pertencentes à sociedade.
Todavia, expressam cada um a seu modo, que os males que nos impedem de alcançar a equidade se fazem sucedem de diferentes formas, e é aí que o privilégio deve ser questionado. Obviamente, interessante a aqueles que gozam, a resistência negra se faz no campo da cultura e de produtos midiáticos como os filmes por meio da desconstrução.
Desconstrução dos papéis de subalternidade, desmitificação do personagem sem história e, ainda que vivenciemos a vulnerabilidade social, que está não seja um determinante nas narrativas fílmicas. Já que as cobranças por ações afirmativas para que haja ocupantes da raça negra nestes locais de comando, bem como em outros postos da indústria cinematográfica, sejam justamente para isso, para modificar a maneira de se pensar o negro no Brasil, seja este em uma produção adulta ou infantil.
A consciência de que a miséria, a fome, os baixos recursos financeiros, desemprego, enfim, não acometem este grupo por um mero acaso do destino, mas pelo fato de que, enquanto o Brasil se construía como nação, este grupo, outrora escravizado, foi deixado à margem da sociedade por aqueles que se utilizaram de seus corpos incessantemente por séculos, os culpabilizando a todo momento por uma condição que lhes foi imposta a força. Se os dias atuais são compostos por silenciamento, apagamento histórico e pobreza é para miná-los da percepção de que esta realidade não é natural a aqueles que descendem da realeza.
Fontes
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Notas