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Alteridade na prisão: a extensão universitária e a não-violência do rosto
Alterity in prison: the university extension and the non-violence of the face
Alteridad en prisión: la extensión universitaria y la no violencia del rostro
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 35, pp. 41-51, 2023
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 14 Febrero 2023

Aprobación: 21 Marzo 2023

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.35.41-51

Resumo: Este trabalho faz parte de um estudo sobre alteridade na visão de quem decide afetar-se com outras realidades, de ordem social, por meio de ações extensionistas, que abrangem a pesquisa e o ensino, focando na importância da responsabilidade ética, da ação reflexiva intencional e da prática dialógica. Tendo como suporte teórico de interpretação a fenômeno-logia, a qual traz elementos da Filosofia da Alteridade, de Emmanuel Levinas (1906-1995), atrelados à reflexão sobre as práticas de alteridade vivenciadas nos círculos em movimento na Penitenciária Feminina de Foz do Iguaçu, no Paraná. Diante desse contexto, é possível responder se a extensão universitária promove a oportunidade de acessar o desconhe-cido e se, durante esse processo, preocupa-se com a não-violência dos rostos que habitam aquele outro lugar. A partir dessa questão central, a pesquisa busca evidenciar a relação com outrem como uma atitude ética e justa. Como resultado, podemos afirmar que a responsabilidade pelo “acolher”, por meio da ação, pertence a quem escolheu ver o rosto de outrem como ensejo à transcendência do Ser.

Palavras-chave: Não-violência, Exten-são universitária, Responsabilidade, Alteridade.

Abstract: This work is part of a study on alterity in the view of those who decide to affect themselves with other social realities through extensionist actions, focusing on the importance of ethical responsibility, intentional reflective action and dialogic practice. With phenomenology as a theoretical support for interpretation, it brings elements from the Philosophy of Alterity, by Emmanuel Levinas (1906-1995), linked to the reflection on the practices of alterity experienced in the peace-making circles held at the Foz do Iguaçu Women’s Penitentiary, in Paraná. In this context, it is possible to answer whether university extension promotes the opportunity to access the unknown and whether, during this process, it is concerned with the non-violence of the faces that inhabit that other place. Based on this central question, this research seeks to highlight the relationship with others as an ethical and fair attitude. As a result, we can say that the responsibility for “welcoming” the other through action lies with those who chose to see in the face of the other an opportunity for transcendence of the Being.

Keywords: Non-violence, University ex-tension, Responsibility, Alterity.

Resumen: Este trabajo forma parte de un estudio sobre la alteridad en la mirada de quien decide afectarse con otras realidades a través de acciones extensionistas, centrándose en la importancia de la responsabilidad ética, la acción reflexiva intencional y la práctica dialógica. Utilizando la fenomenología como soporte teórico para la interpretación, trae elementos de la Filosofía de la alteridad, de Emmanuel Levinas (1906-1995), vinculados a la reflexión sobre las prácticas de alteridad vividas en los círculos móviles realizados en la Penitenciaría de Mujeres de Foz do Iguazú, Paraná. Se busca responder si la extensión universitaria, oportunidad de acceder a lo desconocido, debe preocuparse por la no violencia de los Rostros que habitan ese otro lugar. A partir de esta pregunta central, se busca resaltar la relación con el otro como una actitud ética y justa. Así, podemos decir que la responsabilidad de acoger al otro a través de la acción recae en quien eligió ver en el Rostro del Otro una oportunidad de trascendencia del Ser.

Palabras clave: No violencia, Extensión universitaria, Responsabilidad, Actitud.

Introdução

Precursor da ideia de que a consciência intencional advém do encontro com o outro ser, Emmanuel Levinas (1906-1995), filósofo lituano-frânces e discípulo da fenomenologia husserliana, defendeu, na filosofia e para além, a exterioridade, a epifania do rosto e a vulnerabilidade como forma do Ser transcender, sendo a responsabilidade por outrem a excelência da proximidade ética (Levinas, 2010).

Conviver pode oportunizar a constante transformação dos seres e das relações. Já a proximidade pode ser o meio no qual continuamente buscamos outrem, que nos convida a ser um novo Ser. E temos, no mínimo, curiosidade de ver lugares desconhecidos, não habitados por nós. Inclusive, conhecer outras realidades faz parte da formação acadêmica, principalmente nos cursos das ciências humanas e sociais. Mas será que a curiosidade ou o desejo de conhecer outra realidade é suficiente para estarmos abertos a ela? Precisamos ser presença nessa outra realidade e, para isso, precisamos existir nela.

O processo de me reconhecer como humana, à medida que a outra me possibilita isso, demanda certo conhecimento que, ao mesmo tempo, é ação e reflexão sobre essa realidade desconhecida, pois como “presenças no mundo, os seres humanos são corpos conscientes que o transformam, agindo e pensando, o que os permite conhecer ao nível reflexivo [...] podemos tomar nossa própria presença no mundo como objeto da nossa análise crítica” (Freire, 1981, p. 72).

A prisão é um mundo que ninguém sonhou, ela é “um destino reservado a outros” (Davis, 2020, p. 16). Entre o mundo da prisão, um lugar periférico, e o mundo da universidade, um lugar de privilégio, existe o que podemos chamar de entremundos. A experiência com a extensão universitária pode ser, então, uma ponte, uma oportunidade de superar a distância por meio do convívio original como uma atitude hermenêutica.

Por meio do suporte teórico de interpretação da fenomenologia e dos pensamentos de Emmanuel Levinas (1906-1995) e a partir dos contributos da Filosofia da Alteridade, foi possível refletir em uma fenomenologia da alteridade. O procedimento metodológico que utilizamos foi o qualitativo, por meio do trabalho de campo na prisão e de entrevistas com mediadoras de práticas de alteridade experienciadas por meio de círculos em movimento na Penitenciária Feminina de Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná.

Considerando que o objeto de estudo é o fenômeno do acolhimento do rosto e a compreensão de que o ato de acolher é um processo em permanente construção, no qual todo o sujeito pode e deve ser percebido como inacabado e inconcluso, como alguém capaz de ressignificar a existência a partir da intersubjetividade (Tonatto, 2021). O objetivo que orientou este trabalho foi procurar responder se a extensão universitária deve preocupar-se antes com a não-violência dos rostos que habitam aquela outra realidade. A partir dessa questão central, refletir sobre a responsabilidade ética, a ação reflexiva intencional e a prática dialógica durante todas as etapas de implementação de um projeto de extensão.

Para nortear as análises, utilizamos principalmente as seguintes obras de Levinas: “Entre nós” (2010), “Violência do rosto” (2014) e “Totalidade e infinito” (2015), que nos permitem pensar acerca da relação ética na intersubjetividade, não apenas no campo da filosofia, mas também na Educação, em que existem muitas searas abertas quando se trata da responsabilidade diante de outrem. Nessas obras, Levinas traz a ideia de rosto em sua filosofia para falar de outrem na sua singularidade e define a “alteridade do outro, aqui, não resulta da sua identidade, mas constitui-a: o outro é outrem. [...] Produz-se nas múltiplas singularidades” (Levinas, 2015, p. 250).

O artigo está estruturado em quatro tópicos: o primeiro apresenta os procedimentos metodológicos; o segundo, o projeto de extensão “O vento no seu rosto traz histórias para contar: histórias de vida de mulheres que convivem no sistema prisional”; o terceiro, a discussão sobre a responsabilidade, a abertura e a sensibilidade diante de outrem e, o último, a análise sobre as práticas de alteridade como uma ação reflexiva e intencional também no espaço prisional.

Procedimentos metodológicos

Para apreender os sentidos dados ao fenômeno do acolhimento e experienciar o espaço e o tempo vivido no projeto de extensão no espaço prisional feminino, entrevistamos em profundidade para este estudo seis mediadoras envolvidas nas atividades na penitenciária.

O compartilhamento dessas vivências aconteceu através da memória, da reflexão e do aprendizado fornecido pelas mediadoras durante as entrevistas. Esses momentos de reflexão entre entrevistada e entrevistadora foram gravados e transcritos para o estudo, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), sob Parecer n. 4.084.252.

Além do material empírico reunido por meio das entrevistas, utilizamos também os registros pessoais das mediadoras e as fichas de recuperação de aprendizagem, preenchidas por algumas delas logo após as experiências dos círculos em movimento. Trata-se, portanto, de um material secundário de análise, mas de grande contribuição para o estudo.

A partir de suas reflexões, conscientes e críticas, quanto às atitudes e aos ensinamentos provindos da experiência/vivência dos círculos, buscamos produzir um roteiro de perguntas que nos levasse a compreender como elas foram afetadas pela presença da mulher encarcerada e a humanidade daquelas mulheres que convivem na privação da liberdade.

Realizamos uma cartografia de escolhas para reconstrução da realidade, por meio de três dimensões interligadas entre si: dimensão técnica, ideológica e científica (Minayo, 2007). A dimensão técnica diz respeito à escolha do objeto e aos instrumentos investigativos. A dimensão ideológica, à escolha da base teórica, movida por intenções de pesquisa de um sujeito. A dimensão científica, à compreensão de como os sentidos dados à experiência transformam-se em um objeto do conhecimento.

“O vento no seu rosto”: extensão universitária numa prisão feminina

O projeto de extensão “O vento no seu rosto traz história para contar: histórias de vida de mulheres que convivem no sistema prisional” foi realizado na Penitenciária Feminina de Foz do Iguaçu - Unidade de Progressão (PFF-UP), do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (DEPEN), em 2019, vinculado à Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).

Os objetivos principais desse projeto eram proporcionar práticas de alteridade, de respeito à diversidade, de construção do diálogo e de reconstrução das trajetórias de vida. A proposta previu oficinas de yoga, encontros de alteridade (círculos em movimento) e aulas-oficinas, destinados a todas as mulheres (trabalhadoras e mulheres em situação de privação de liberdade) da PFF-UP.

As oficinas de yoga foram previstas para reduzir a ansiedade das participantes, aumentar a concentração, a paciência e o autocontrole. Além disso, possibilitar melhorias na qualidade de vida das mulheres que vivem e trabalham dentro do ambiente prisional, a partir do desenvolvimento da consciência corporal.

Os encontros de alteridade foram os círculos em movimento, prática inspirada nas obras: “Processos circulares: teoria e prática” (Pranis, 2010); “Círculos de justiça restaurativa e de construção de paz: guia do facilitador” (Pranis, 2011); e “Guia para facilitar círculos em movimento em comunidades escolares” (Boyes-Watson; Pranis, 2015). Essas práticas, círculos sistematizados para a escuta sensível de histórias, foram desenvolvidas de uma forma a contribuir para a presença do diálogo, com a mediação de facilitadoras.

O grupo de mediadoras era formado por uma estudante de graduação, duas estudantes de pós-graduação, especialização e mestrado, uma docente do curso de História, duas Técnicas-Administrativas em Educação (TAE) e uma colaboradora externa à Unila, da área do direito, com formação e experiência em mediação de conflitos.

Desde a escrita desse projeto de extensão, a Filosofia de Emmanuel Levinas foi utilizada como aporte teórico e conceitual, especialmente no que dizia respeito ao compromisso e à responsabilidade com o outro ser humano. Ou seja, com a humanidade contida nele e até nos princípios de alteridade presentes nas entrelinhas dos círculos em movimento propostos dentro da concepção da Justiça Restaurativa, como a possibilidade de abertura e diálogo.

Os encontros realizados na penitenciária incluíram também outras metodologias trazidas pelas mediadoras. É possível ter como exemplo o encontro que foi adaptado às vicissitudes do projeto, baseado na genealogia do feminino e da interseccionalidade, em que o exercício proposto por uma das mediadoras foi praticado com a intenção de trazer as trajetórias de vida ao coletivo e a montagem da linha do tempo de cada participante, o que permitiu que as mulheres presentes descobrissem os pontos em comum entre suas histórias e pudessem avançar na construção de laços sororais entre elas no lugar onde convivem.

É preciso reconhecer que as ações extensionistas no contexto prisional são fruto de uma série de desdobramentos e decisões políticas com objetivos institucionais e normativos que são mais lógicos e racionais do que emocionais e humanistas. Além disso, muitas vezes acabam se concretizando com o pretexto de docilizar os corpos, e é o que pode ser chamado de uma violência do rosto.

Mas fazer extensão é uma forma de acolher os problemas da sociedade e se responsabilizar por eles. Por meio da extensão universitária acontece a mobilização de vários setores da sociedade, o que gera intervenção na esfera cultural e educacional de diferentes segmentos da sociedade civil (Andrade, 2019). Segundo o Plano Nacional de Extensão Universitária, que buscou ressignificar a atividade como um processo acadêmico que considerasse as exigências da realidade pelo fim das desigualdades sociais, objetivou-se a garantia da bidirecionalidade entre a universidade e a sociedade e solicitou que as universidades priorizassem as práticas relacionadas a resolução de problemas sociais urgentes (FORPROEX, 2001).

A reintegração social é um dos desafios mais complexos que nossa sociedade tem a solucionar. Os projetos de intervenção crítica da sociedade civil em espaços carcerários, incluindo ações extensionistas universitárias, têm sido um caminho para a transformação desses espaços. A sociedade, ao assumir a necessidade de práticas de reintegração social de maneira crítica e responsável no contexto penitenciário, poderia contribuir para uma nova política com relação à prisão e à pessoa presa (Braga, 2012).

A sociedade enxerga a necessidade de encarceramento não como um desejo de justiça, mas, sim, como uma necessidade de vingança e, por isso, as práticas vivenciadas na prisão são tão punitivas e violentas. Porém, “uma justiça cujo mérito é espezinhar o preso, o quanto possível, e destituí-lo, progressivamente, de tudo: valores pessoais, referências sociais, autoestima, condição humana” (Sousa, 2004, p. 9) é, sobretudo, violência.

Nesse sentido, o projeto de extensão buscava justamente transgredir o paradigma do modelo punitivo para iluminar o caminho da humanização, em direção às estratégias de sociabilidade positiva no espaço prisional. A ideia era apoiar outras sociabilidades entre as pessoas que ali conviviam e na nossa transformação também, como pessoas responsáveis pelo acolhimento da outra. Com os círculos, desejávamos o sonho da não violência, da responsabilidade afetiva, do amor e da justiça.

Responsabilidade, a abertura e a sensibilidade diante de outrem

O acesso ao universo prisional e àquelas mulheres foi visto de uma maneira crítica pelas mediadoras, porém, considerando os objetivos para com elas e não para com o sistema, pudemos acomodar o desenvolvimento das atividades dentro da penitenciária como uma possibilidade de encontro, abertura e acolhimento com a alteridade e com a humanidade daquelas mulheres que encontravam-se na condição de privação de liberdade.

Antes da realização das atividades, foi preciso garantir um espaço seguro para o compartilhamento das histórias e trajetórias de vida das mulheres em situação de privação de liberdade e proporcionar condições mínimas para que fosse possível que elas se sentissem realmente acolhidas pela vivência.

O acolhimento do rosto, na perspectiva da Filosofia da Alteridade, se apresenta como um apelo, seria como realizar uma inversão, um movimento capaz de dar lugar a um outro ser que não é mais o mesmo, é “outramente outro” (Levinas, 2011). “O rosto do outro é a sua maneira de significar” (Levinas, 2014, p. 28). Ele habilita para uma outra compreensão da própria subjetividade humana.

Assim, Levinas propõe com a sua filosofia uma mudança radical na relação com outrem, na qual a ética antecede a ontologia para edificar um novo humanismo. Seria como uma “inversão humana do em-si e do para-si, do ‘cada um por si’, em um eu ético, em prioridade do para-outro [...] reviravolta radical produzir-se-ia no que chamo encontro do rosto de outrem” (Levinas, 2010, p. 242). Surge, então, a necessidade da relação face a face, ou seja, da intersubjetividade, para inaugurar a renúncia do Eu em direção à exterioridade, à outrem, ao infinito.

E é o desejo por outrem que dá origem ao encontro face a face e nele ficamos suspensas à liberdade de escolher agir com ética. Nas relações éticas, caminhamos para a transcendência, ou seja, para o infinito. Mas, “Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é, pois, pensar um objeto, mas, pensar o que não tem os traços do objeto é na realidade fazer mais ou melhor do que pensar” (Levinas, 2015, p. 36).

A relação com outrem de maneira ética acontece por meio da abertura. Nela, estão contidos os sentimentos de amizade e as demonstrações de afeto, contudo, ela nasce no apelo do desconhecido que exige humanidade nos olhos de outrem que clamam por justiça. Essa aparição do vulto de outrem é que nos faz refletir sobre a responsabilidade (Levinas, 2015). A alteridade já se inicia nesse primeiro contato, quando as escolhas a tomar ocorrem a partir de quando se há consciência do compromisso e responsabilidade por outrem. Essa preocupação marca a existência da ética em primeiro lugar.

Além disso, é bom que estejamos abertas à mudança do ser para não ser igual a ela: alterar-se, torna-se “outramente que ser” (Levinas, 2010), conforme a Filosofia da Alteridade preconiza, na qual a vulnerabilidade diante do rosto de outrem faz-se essencial para pensar uma nova sensibilidade ética, principalmente diante da dor e do sofrimento alheio. Assim, “O sujeito não é apenas afetado pelas coisas do mundo”, e sim o “sujeito é fundamentalmente afetado pela alteridade humana o que ocasiona uma alteração no sentido da constituição da subjetividade enquanto sensibilidade” (Levinas, 2010, p. 12).

Sofrer pelo outro é ser responsável por ele, suportá-lo, estar em seu lugar, consumir-se por ele. Todo o amor ou todo o ódio do próximo, como atitude refletida, supõe esta vulnerabilidade prévia, misericórdia; “gemidos de estranhas”. Desde a sensibilidade, o sujeito é para o outro: substituição, responsabilidade e expiação (Levinas, 2010, p. 101).

Nesse sentido, no decorrer do projeto, buscamos não objetivar o rosto das mulheres em situação de privação de liberdade, pois o nosso impulso maior era no sentido de apreender os ensinamentos que a relação ética com elas poderia suscitar. Portanto, o que fizemos por meio do projeto foi capturar o modo como estabelecemos o contato umas com as outras, no entremundos, por meio da intersubjetividade, da humanidade e da alteridade presentes nelas e nos círculos. Além disso, a importância do diálogo, da linguagem e da ética no acolhimento em espaço de privação de liberdade.

Práticas de alteridade, uma ação reflexiva e intencional

Como uma pesquisa qualitativa conduzida a partir de uma abordagem fenomenológica, na qual descrevemos as coisas e os fenômenos tal qual eles se manifestam, pudemos observar tanto a intemporalidade quanto a temporalidade das circunstâncias presentes no momento experienciado pelo grupo de mediadoras durante o período de execução do projeto de extensão.

Percebemos que a execução penal pode ser mais humanizada. Por conta disso, o propósito das práticas circulares de alteridade das pessoas presas e das policiais penais, público-alvo do projeto, foi o diálogo e a contação de histórias (trajetórias de vida) de mulheres que também devem ser importantes para a sociedade.

Partimos do pressuposto de que todas somos responsáveis pela distância entremundos, que a academia é responsável por ela também, a sociedade é parte também e ela deve começar a repensar e contestar dispositivos punitivos nas prisões: o desejo de punir, de vingar ou o de violência para com as mulheres em situação de privação de liberdade deve ser substituído por humanidade e justiça.

Quando interpretamos o discurso das entrevistadas por meio das análises de abordagem fenomenológica, a intenção não foi descortinar o que pensavam aquelas mulheres que participavam dos círculos, mas sim, como elas pensam a experiência coletiva envolvendo diálogo e o que aquela interação intersubjetiva manifestou.

Interessou-nos saber como se aborda outrem com alteridade por meio de uma ação extensionista, como acontece essa atitude nos encontros e como foi caminhar buscando ética e justiça na presença da outra, reconhecendo desde o início que a outra jamais seria alcançada.

Uma ação de extensão não pode existir apenas no mundo das ideias, porque deve se materializar. Projetos de extensão são baseados em diversas teorias, de ensino e de pesquisa, mas, o objetivo final é acontecer junto à comunidade, ou seja, vai além das fronteiras acadêmicas entre os pares que a elaboraram, precisam ser vivenciadas também pelo público-alvo:

Se eu só tivesse lido sobre as histórias delas, se eu tivesse participado de um círculo em uma associação de moradores com pessoas que ficaram presas, esta é uma experiência totalmente diferente. Eu acho que estar no lugar em que, naquele momento, era a realidade delas e fez com que essa experiência se materializasse e isso me impactou muito, saber como que era, não que eu tivesse curiosidade, mas é uma percepção que vem com sentimentos sobre aquele espaço, sabe? (Rebeca, Entrevista, 2020).

Por meio das entrevistas, foi possível reconhecer que a Filosofia da Alteridade contribuiu nas reflexões sobre cada etapa do projeto, cada círculo e cada atividade proposta. Como pensamos sobre os nossos desejos em estabelecer uma relação intersubjetiva com a outra, o quanto ético e responsável essas relações poderiam se tornar ou o quanto poderíamos nos esforçar para que elas não fossem ações violentas e silenciadoras, mais do mesmo, com domínio da exterioridade, assimilação/aniquilação da diferença e aprisionamento do Eu em si Mesmo.

Para Levinas (2015, p. 222), a “epifania ética consiste em solicitar uma resposta (que a violência da guerra e a sua negação mortífera apenas pode tentar reduzir ao silêncio), não se contenta com ‘boas intenções’”. Mesmo em um projeto de extensão, o que observamos foi que é preciso ultrapassar as intenções heroicas de desempenhar um papel para se entregar verdadeiramente à vontade viva, que assegura sua interioridade, mas que respeita outrem na sua, por meio da relação ética.

Após a reflexão das mediadoras, consciente e intencionalmente, é possível afirmar que o acolhimento não foi percebido por elas como um ato heroico, e sim como justiça às mulheres em situação de privação de liberdade. Além disso, as mediadoras relataram a presença do afeto por meio da prática circular, além de uma abertura por parte delas com relação a nós, o que gerava satisfação no grupo, ou seja, fruição.

Com base na leitura da obra “Totalidade e infinito”, de Levinas, o conceito de fruição - ou, ainda, gozo da vida - pode ser entendido como uma condição de alegria do viver, aquilo que nos faz querer ser e viver. Somos seres que buscamos constantemente a felicidade do ser, e a “fruição é a própria produção de um ser” (Levinas, 2015, p. 140).

O desejo metafísico necessita dessa fruição, egoísta e satisfeita neste primeiro momento para a “tomada de significação a partir da qual se levantará a possibilidade da sua expressão” (Levinas, 2015, p. 89). Para Levinas, essa expressão é a palavra e “a palavra é ensinamento”, ela aparece no rosto de outrem e ganha significação a partir da reflexão. Mas, se a reflexão não existir, “O ‘para si’ fecha-se sobre si e, uma vez satisfeito perde, toda a significação” (Levinas, 2015, p. 88). Acabamos por não inaugurar um novo ser, retornamos ao eu mesmo.

Nos discursos das entrevistadas houveram manifestações de que era preciso se despedir dos preconceitos do mundo exterior sobre aquelas mulheres assistidas pelo projeto e, além disso, elas entendiam que isso não era uma tarefa simples, visto que não era como se despir de um figurino no camarim. Inclusive, em alguns momentos, elas refletiam sobre o medo de estar naquele espaço, principalmente porque existe, historicamente, representações sociais sobre esse público.

As entrevistadas relataram que faziam ideia de que essas mulheres tinham suas vidas perpassadas por violências, que suas histórias revelariam pontos em comum na trajetória delas, em especial do motivo de elas estarem ali, de terem sido julgadas e condenadas pelo sistema. Conforme observado nos discursos, podemos dizer que o que nos moveu em direção a esse encontro também foi a consciência do abismo social entre elas e o grupo de acadêmicas.

O encontro face a face com elas e a intersubjetividade iniciada ali, no primeiro encontro, nos permitiu a consciência reflexiva e intencional. Uma consciência que não é mais fechada em si mesma, mas uma consciência que não aceita mais a separação dos mundos, que nos coloca a responsabilidade por elas. Isso porque a responsabilidade acontece à medida que o ser humano vai se relacionando e se abrindo à outrem (Levinas, 2015). Então, a responsabilidade não é apenas um atributo da subjetividade humana, mas, sim, ela vai acontecer a partir da intersubjetividade.

Para o grupo, pensar dialeticamente na transformação das realidades e em suas próprias ações, não resta senão o recurso de refletir os temas que lhe afetam no mundo, diante daquela situação e daquelas circunstâncias dadas. E a experiência por meio de projetos de extensão pode oferecer-nos uma infinidade de sentidos sobre a realidade, sentimento de pertencimento ao lugar e intencionalidade da consciência.

Conhecer as histórias daquele lugar, mesmo que contadas posteriormente por pessoas que viveram a experiência de estar em uma prisão, para ela, não tem o mesmo significado de estar lá, não é igual aos sentidos que ela pôde dar sobre o que representou o encontro com mulheres que estavam naquele momento vivendo o lugar, a situação e as circunstâncias.

Após as vivências de um projeto de extensão, devem acontecer as reflexões. Filosoficamente, seria o recolhimento do Eu na sua morada, movimento no qual “sua casa abre-se e garante a interioridade, constitui-se num movimento pelo qual o ser separado se recolhe. O nascimento latente do mundo dá-se a partir da morada” (Levinas, 2015, p. 149). Esse recolhimento tira-nos da imersão e inicia um novo acontecimento: a busca pelo ensinamento primeiro, a ética.

Assim, a relação ética da alteridade “constitui-se num evento ético quando a acolhida acontece de maneira respeitosa, com o acolhimento da diversidade de outrem” (Tonatto, 2021, p. 143). A filosofia ocidental esteve por muito tempo preocupada em apropriar-se de outrem para torná-lo igual à Mesma ou ao Mesmo, desconsiderando as diferenças. Assim, enfrentamos, em diferentes espaços de convívio humano, inclusive na prisão, as relações excludentes que visam resistir à diversidade.

As mediadoras refletiram também sobre a importância da linguagem vivenciada nas práticas circulares, que pressupõe a escuta sensível e o diálogo horizontal. Na perspectiva levinasiana, é necessário, ao abrir-se à outrem em razão do acolhimento, preocupar-se com a linguagem do face a face, ou seja, do encontro singular e original com outrem, pois “a linguagem instaura uma relação irredutível à relação sujeito-objeto: a revelação do outro” (Levinas, 2015, p. 62).

Por meio dos sentidos dados pelas mediadoras às vivências na prisão feminina, nota-se que a responsabilidade ética, a ação reflexiva e a prática dialógica existiram como uma abertura à outra, mas foram fruto de uma decisão consciente e intencional do grupo. Para elas, a alteridade esteve presente no acolhimento das mulheres em situação de privação de liberdade, mas como ensinamento e desejo metafísico.

Algumas considerações

Este artigo é um recorte da tese de doutorado intitulada “O vento no seu rosto traz histórias para contar: o acolhimento e a alteridade na privação de liberdade de mulheres encarceradas”, defendida no ano de 2021, junto ao Programa de Pós-Graduação, Stricto Sensu, em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Foz do Iguaçu (PR).

Por isso, parte dessa perspectiva é defendida na tese sobre a ideia de alteridade proposta por Emmanuel Levinas. Compreendida como uma forma de ver o mundo a partir de outrem e não de Si mesmo, acreditamos que a alteridade manifesta-se a partir da proximidade e da sensibilidade ética para com o desconhecido.

A partir da reflexão de quem decide afetar-se com outras realidades por meio de ações extensionistas, como no caso do grupo de mediadoras, foi possível perceber a necessidade da atitude hermenêutica desde a concepção de um projeto de extensão até a prática. Atitude essa que necessariamente precisa envolver o diálogo e a linguagem, e que jamais pode representar a negação ou anulação das diferenças.

Reconhecemos que a aproximação entremundos por meio da extensão universitária nem sempre ocorre de forma respeitosa. O contato com o desconhecido, por vezes, pode acontecer de modo violento. Isso porque, ao invés da dialogicidade, do inter-relacionamento e da alteridade, diante da realidade alheia, sobrevém a transmissão, o messianismo e a invasão cultural.

A extensão pode ser uma oportunidade para acessar um local desconhecido, mas jamais pode ser usada para violentar rostos de quem ali existe e habita. Compreendemos, por meio da Filosofia da Alteridade, que a responsabilidade com a outra deve vir em primeiro em todas as situações, o que seria ético e justo, pois a não-violência é uma escolha individual, resultante da reflexão intencional.

Podemos escolher pela abertura, pelo acolhimento e pela escuta sensível à palavra de outrem. Seria, portanto, a presença da sensibilidade ética no encontro face a face o movimento que não nos permite o retorno a mesma pessoa.

Assim, podemos afirmar que a responsabilidade pelo acolher por meio da ação pertence a quem escolheu ver outrem como ensejo à transcendência do ser, pois, quando vejo a outra e ela pode ser ela mesma, com suas facetas, quando não vejo a nuca, mas o seu rosto, renuncio o meu Eu e também não sou mais a mesma.

Referências

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