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O filme “Zama”: estética e devires decoloniais
The “Zama” movie: aesthetics and decolonial becomings
La película “Zama”: estética y devenires decoloniales
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 35, pp. 87-100, 2023
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 02 Febrero 2023

Aprobación: 11 Abril 2023

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.35.87-100

Resumo: Este artigo traz uma análise sobre o filme “Zama” (2017), de Lucrecia Martel, ilustrando o pensamento em decolonialidade, desde a reescrita estética até sua proposta central, que constitui impressões fora da história hegemônica composta nos clichês dos tempos coloniais. As imagens forjadas no filme trazem outras provocações sobre os sentidos da “América Espanhola” do século XVIII. O figurino é inspirado nos padrões culturais de espanhóis, portugueses, escravos e alforriados, junto a pinturas corporais indígenas, assim faz com que o território colonial constituído no filme componha visualidades que repensam o deslocamento dos sujeitos, habitantes de um “entre-lugar”. A espera do personagem Zama, que deseja partir, é traduzida por signos que nos dimensionam ao hibridismo cultural que a América Latina herda, caracterizado pelas memórias, violências, afetos e resistência.

Palavras-chave: “Zama”, Lucrecia Martel, Decolonialidade, Estética.

Abstract: This paper presents an analysis of the film “Zama” (2017) by Lucrecia Martel, representing the thought in decoloniality, from the aesthetic rewrite to its central proposes, which constitutes impressions outside the hegemonic history composed in clichés of colonial times. The images forged in the film bring other provocations about the meanings of “Spanish America” in the 18th century. Through the clothing of Spaniards, Portuguese, slaves and freedmen, as well as indigenous body paintings, thus making the colonial territory constituted in the film compose visualities that rethink the displacement of subjects, inhabitants of an “in-between place”. The wait of the character Zama, who wants to leave, is translated by signs that dimension us to the cultural hybridity that Latin America inherits, characterized by memories, violence, affections and resistance.

Keywords: “Zama”, Lucrecia Martel, Decoloniality, Aesthetic.

Resumen: Este artículo presenta un análisis de la película “Zama” (2017) de Lucrecia Martel. Se trata de una propuesta de reescritura estética en el contexto del pensamiento decolonial, que constituye impresiones ajenas a la historia hegemónica compuesta por los clichés de la época. Las imágenes forjadas en la película traen otras provocaciones sobre los significados de la “América española” en el siglo XVIII. A través del vestuario de españoles, portugueses, esclavos y libertos, junto con pinturas corporales indígenas, surge el territorio colonial de la película, componiendo visualidades que replantean el desplazamiento de sujetos, verdaderos habitantes de un “lugar intermedio”. La espera del personaje Zama, obsesionado en marcharse, se traduce en signos que nos dan una dimensión de la hibridez cultural que la América ha heredado, fruto de memorias, violencias, afectos y resistencias.

Palabras clave: “Zama”, Lucrecia Martel, Decolonialidad, Estética.

Introdução1

Da janela vejo a tríplice fronteira de Foz do Iguaçu (Brasil, Paraguai e Argentina). Sempre que visualizo as margens do Rio Paraná imagino a paisagem sem as interferências da arquitetura contemporânea: seja nas pontes que ligam Brasil-Argentina ou Brasil-Paraguai; seja em moradas privilegiadas, pensadas para valorizar a vista; ou nos barracos emaranhados, sem opções a não ser restar à margem. Como era esse espaço sem as divisões fronteiriças políticas? Teríamos indígenas de um lado e outro do rio, mas como eram as relações? Como eram as pequenas embarcações que navegavam pelo Rio Paraná, dobravam à esquerda no Rio Iguaçu e deveriam ter muito cuidado ao avistar as Cataratas, a Garganta del Diablo?

Nestes devaneios de um tempo da história oral, muito dela perdida no genocídio indígena que marca a colonização na América Latina, nos resta a imaginação e as “metáforas” como necessidades criativas para lidarmos com contextos de violências, afetos e memórias, em uma “invenção da América” (Pereira, 2007). Junto a isso, também podemos ler de modo crítico alguns relatos de viajantes controversos nesse período de conquistas, como Cabeza de Vaca (1999), aparentemente um dos primeiros homens brancos a ver as Cataratas do Iguaçu em 1542; ou posteriormente os relatos de Moisés Bertoni, imigrante suíço que veio para região da Tríplice Fronteira, passando pelos três países, Argentina, Paraguai e Brasil, registrando seus estudos naturalistas, indigenistas, e experiências nas formações de colônias no século XIX (Portz, 2020).

A partir desse preâmbulo sobre as possibilidades de memórias e desvendamento de um continente que é “inventado”, precisamos lidar com as perspectivas de narrativas e a possibilidade de criação imagética para um pensamento que se constitui progressivamente em decolonialidade. Assim, trago alguns apontamentos sobre a obra da cineasta argentina Lucrecia Martel, com destaque para “Zama” (2017). Neste filme, Martel recria o espaço da colônia situada na região del Chaco paraguaio em fins do século XVIII. A ambientação de época da película compõe o imaginário que formamos do período: uma ostentação europeia em decadência em meio ao clima tropical, tudo provocando a sensação de fora dos eixos ou deslocamento. Este desconforto do entre-lugar colonial é traduzido na narrativa e direção de arte. Além dos cenários com construções que sucumbem a força da natureza, o filme consegue denotar o efeito de que os homens brancos, que administram um local usurpado, não fazem o menor sentido naquele espaço. Essas impressões se fortalecem em cenas onde circulam, negros, escravos ou alforriados, indígenas e europeus (todos aparecem em algumas ocasiões semi-nus ou com trajes incompletos) junto a animais domesticados por dentro e por fora de prédios do vilarejo, do que seria Asunción naquela época.

“Zama”: existencialismo em decolonização

O filme “Zama” (2017) é baseado no romance homônimo de 1956, do autor argentino Antonio Di Benedetto, se passa em meados de 1790. A cineasta Lucrecia Martel estava em viagem pelo Rio Paraguai quando decide adaptar “Zama”: fora durante as filmagens do fashion-film2 “Muta” (2011), uma espécie de suspense sci-fi, rodado todo dentro de um enorme barco de luxo, repleto de modelos em corpos alongados e pernas longuíssimas que saíam de dentro das paredes, como insetos se arrastando, cujos rostos nunca vemos. Foi neste contexto de imersão dentro do rio, enquanto lia o romance “Zama”, que resolve cinematizar3 a obra. O filme possui destacada caracterização de época nos espaços e personagens em uma América colonial do século XVIII. A diretora diz dessas transposições em montagens de época para o cinema, que possuem as mesmas formas do criar um filme de ficção científica:

Martel dice que su film puede ser tan artificioso como 2001, Odisea del Espacio (Stanley Kubrick, 1968). La directora insiste en que se pueden esperar realidades alternativas en la ciencia ficción y, sin embargo, se exige la indicialidad y la precisión para las películas de “época”, algo aún más complejo para un pasado difícil de recuperar, como el mundo de las colonias en América. Para Martel, el discurso histórico es esencialmente conservador, en particular para aquellos que han quedado excluidos de la historia occidental, como los indígenas y esclavos [...] En esta línea, Stanley Kubrick decía a propósito de su película Barry Lyndon (1975): “Una película histórica es comparable a una de ciencia ficción” (Dieleke; Bravo, 2018, p. 1).

O filme “Zama” começa e termina com as águas do rio: metáforas para a importância dos sistemas fluviais nessa região sul das Américas; para o que as águas trazem, levam, afundam, fluem ou estagnam. Don Diego de Zama olha para o além rio à espera de algo: o personagem principal é um representante sul-americano da Espanha imperial (um criollo4 nascido na colônia) indicado para um posto nos confins do interior do Paraguai, é um provinciano desalentado, frustrado e apegado a um débil sentimento de superioridade cultural aos que o cercam. Podemos pensar na história como uma espécie de drama existencial kafkiano de um homem incapaz de conseguir sua transferência para a metrópole em Buenos Aires, tudo está sempre na iminência de algo que nunca se completa. Os governadores da província vão sendo trocados ao longo do tempo, também os superiores de Zama funcionários do império, e a burocracia ineficaz nunca resolve sua demanda que vai sendo esquecida, ignorada...

A estética do filme pode ser lida através de uma perspectiva decolonial: como uma “diferença colonial” que é um termo cunhado por Walter Mignolo (2007) na obra “La idea de América Latina”, pois remete à esta ideia de uma américa “inventada” pelos colonizadores ao invés de “descoberta”. Assim, os mundos possíveis de “Zama” “estão formados por capas de tempo heterogêneo que convivem e reescrevem o passado colonial americano. As obras nos fazem pensar sobre a função política da arte” (Dulci; Lopez, 2019, p. 419).


Imagem 1:
Personagem Zama
Fonte: IMDb (2017).

A caracterização dos personagens não é fiel às roupas que se utilizavam na Colônia, sobretudo nessa região do chamado El Chaco Paraguayo. No entanto, a inspiração em uma moda francesa do século XVIII, pouco anterior a Revolução Francesa, pode ser vista no figurino de um modo contrastante com a ambientação sempre degradada e fora da ordem das construções. Para isso, Lucrecia Martel recria um clima, não pela fidelidade em reconstituir, mas pela experiência estética que essas aparências nos remetem. Isso funciona como um princípio de deslocamento, algo fora dos eixos que conduz a uma atmosfera de sonho aprisionante. Esses anacronismos são propositais para provocar o efeito do filme, metáforas do desconforto colonial. De acordo com Pereira (2007), em abordagem sobre a “invenção da América”, temos as metáforas como necessidades criativas para lidarmos com contextos de políticas, violências, afetos e memória. Para recompor nosso arsenal simbólico temos as “únicas armas de que sempre dispusemos, e que agora devem ser revalorizadas: a imaginação e a palavra poética, para enfim chegar a interferir na construção de uma nova utopia real e possível” (Pereira, 2007, p. 22).

A mescla de elementos é absoluta e beira o absurdo: um lugar perdido no “fim do mundo”, onde se misturam escravos, alforriados, indígenas, servos, espanhóis de sangue que são tratados de modo distinto dos nascidos na colônia, animais como mulas e cavalos; todos vagueiam entre construções com pinturas sempre deterioradas. Tudo parece imundo e degradante, e ainda temos os elementos completamente inapropriados do vestir europeu no território tropical. A estética do filme descreve uma decadência e um barroquismo: em um cenário de cores, muitas vezes contrastantes, paisagens naturais, construções grosseiras ou pinturas desgastadas; assim como as vestes e as perucas, que parecem nunca estarem no lugar, traduzindo uma agonia em nosso olhar. Esses elementos narram, junto à espera do personagem Dom Diego, seu cotidiano angustiante, coalescente entre uma expectativa e desilusão. A atmosfera beira o pesadelo, aquele entre-lugar do qual não se consegue sair, fazendo com que o espaço e o tempo tomem a forma de sua própria espera.

A estética reescrita

De acordo com Dieleke e Bravo (2018), “Zama” de Martel compõe novos mundos, que ao invés de buscarem uma reconstituição imprecisa, reescrevem o passado colonial. Tais como as “eras imaginárias” de Lezama Lima (1982), traduções de vivências poéticas dos povos. A ambientação do filme traz cenários ricos em elementos que apontam determinado tempo histórico: objetos, vestes, perucas e móveis, que convivem com outros que não pertencem à mesma época:

El film reescribe el mundo colonial y revela lazos con el presente: los esclavos ya no existen pero sí los refugiados africanos sin ciudadanía, como los senegaleses contratados para representar la esclavitud y que comparten con los esclavos coloniales una posición subalterna. El mundo indígena ha cambiado pero no ha desaparecido por completo: las lenguas que el film registra pertenecen al habla contemporánea americana y documentan un acervo lingüístico que aunque no haya desaparecido todavía, se encuentra en peligro de extinción, y que Martel decide reponer en la historia, sin traducción, otorgándole una fugaz visibilidade (Dieleke; Bravo, 2018, p. 7).

Este efeito, de trazer as línguas indígenas sem tradução ou legendas, coloca o espectador no mesmo lugar estrangeiro e “sem-lugar” que o personagem Zama, desconfortável. Em uma determinada cena, algumas mulheres indígenas junto a crianças estão tingindo tecidos, e têm os braços esverdeados mergulhados na tinta. Suas vestes bastante esfarrapadas denunciam uma interferência “civilizatória” se mesclando à nudez natural. Ao conversarem entre si, sem tradução para o espectador, e de certo modo rindo de Zama, estão em uma posição de poder e naturalidade, contraposta ao desconforto e falta de pertencimento do personagem. Esta cena revela mais um indício da identidade criolla de Zama: nascido na colônia, não pertencia aos povos originários e também era descartado por espanhóis e portugueses.


Imagem 2:
Mulheres indígenas
Fonte: IMDb (2017).

As vestes femininas da “nobreza”, contemporâneas ao período somente na França e não na colônia, são completamente inadequadas ao espaço que ocupam, compondo uma espécie de corte de Versalhes zumbi.


Imagem 3:
Atriz Lola Dueñas no filme “Zama”, detalhe do figurino e peruca
Fonte: IMDb (2017).

Além disso, temos uma caracterização que constrói o ambiente onírico e aflitivo a que Zama parece condenado: o chapéu tricorne usado pelo personagem, remonta seu uso desde o século XVI, e aqui convive com chapéu bicorne, existente desde o século XVIII e popularizado por Napoleão Bonaparte. Este estilo de chapéu foi adaptado pelo movimento do cangaço no Brasil, remetendo sempre a figura de Lampião, bordado com estrelas e moedas. O filme traz bandos de bandoleiros ou aventureiros, que além dos chapéus citados, portam o chapéu del gaucho com abas largas, apontando a proximidade regional ao pampa (região que ocupa parte do Rio Grande do Sul no Brasil, Uruguai e Argentina). Todas estas composições complexas constroem o todo do filme.


Imagem 4:
Cenas do filme “Zama”, detalhes dos chapéus
Fonte: IMDb (2017).

As caracterizações indígenas merecem particular destaque. A fabulação de suas aparências concebidas para o universo criado por Lucrecia Martel é inspirada em culturas indígenas diversas, mesclando regiões, línguas, hábitos e tempos: forjando memórias para compor uma poética “transcriadora” (Campos, 2011), ou seja, que cria e traduz estéticas em novas formas. A concepção estética de “Zama” para o cinema encontra o pensamento de Diana Araújo Pereira (2007, 2014) que se refere, sobretudo, à produção literária e poética sobre uma (re)invenção de América Latina, que clama por metáforas para traduzir um imaginário de memórias, violências e hibridismos. Para Pereira (2007, p. 8), desde o próprio continente, alguns escritores procuram “refundar e redescobrir o tempo presente no qual estão inseridos, como uma contemporaneidade em constante diálogo com a memória do passado, e com uma ‘memória do futuro’ forjada desde a conquista pelas marcantes ‘utopias’ suscitadas tanto no imaginário europeu como no próprio imaginário latino-americano”.

Podemos pensar neste diálogo entre imaginário, passado, presente e futuro, nos indígenas que surgem “vestindo” o corpo inteiro de uma pintura vermelha, aterrorizando os homens brancos apreendidos pela tribo para um estranho ritual. Este estilo, de pintura corporal total em vermelho ou negro, foi documentado recentemente em 2008, em tribos isoladas5 identificadas no Brasil (Survival, 2008). No filme, este visual adquire uma potência representando domínio e força dos indígenas perante o invasor, observamos essa inversão no olhar perturbador dos personagens capturados, o que testemunha a resistência nativa, que de fato existiu, e é muitas vezes apagada da história.


Imagem 5:
Indígenas isolados no Brasil vistos do ar, durante uma expedição do governo brasileiro
Fonte: Survival (2008).


Imagem 6:
Indígenas - filme “Zama”
Fonte: IMDb (2017).

Capturados, Zama, Vicuña Porto e os outros são levados ao local dos índios, onde se realiza o ritual vermelho. Neste, a tinta vermelha que pinta os corpos se mistura com o sangue que escorre da cabeça de Zama e dos outros. Há dois corpos de homens brancos que sangram e parecem mortos. Na cena deste ritual não há nenhuma referência espacial: os enquadramentos esquartejam os corpos, e a montagem pontua o suspense na medida em que não é possível ver nenhuma ação completa, ou seja, com começo, meio e fim. Os movimentos das personagens são curtos, nunca terminam. Esses procedimentos de montagem e enquadramento são característicos de uma linguagem própria ao cinema de horror que, desvinculando-se do livro no qual o filme se inspira, insere a obra de Martel em uma tradição horrífica na qual a perspectiva, a transparência e o eixo cinematográficos, são postos, assim como as personagens, em ameaça (Santos, 2019, p. 83).

O amálgama de referências e fabulações apresentados em “Zama” poetiza esse espaço estranho e desconhecido que foi a América do “descobrimento”. O flerte com os filmes de horror, que as pesquisadoras Fernanda Santos (2019) e Natalia Barrenha (2013) apontam nas obras de Lucrecia Martel, aqui poderiam ser associados ao horror folk6. Ao invés de pensarmos o horror provocado pelos europeus no genocídio continental indígena, Martel coloca o homem branco aterrorizado com os rituais nativos. A atmosfera densa do filme em ambientações soturnas, que citam elementos de horror, fantasmagoria e misticismo, poderiam ser metáforas e mesmo uma ironia ao horror presente no próprio processo colonizatório espanhol, o qual sofreu essa região. Em determinada cena, o filme traz máscaras indígenas nos moldes de elementos folk, presente em filmes como, “O homem de palha” (1973) e outras obras com esse imaginário de folclore, plantações, rituais e culturas pagãs. Essas caracterizações soam bastante próximas dos indígenas da Tierra del Fuego, Patagônia (argentina e chilena), a extinta etnia dos Selk’nam, documentados em pesquisas da antropóloga franco-norte-americana Anne Chapman (2002a, 2002b).


Imagem 7:
Indígenas “Ciegos” - filme “Zama”
Fonte: IMDb (2017).

Chapman (2002a, p. 21) traz em seus estudos o relato da última nativa selk’nam, Kiepja, falecida em 1966: “El modo de vida de los selk’nam es el más antiguo de la humanidad: el de la edad de piedra, el Paleolítico de los cazadores, recolectores y pescadores. Con Kiepja desapareció todo testimonio directo de su cultura. De los pocos sobrevivientes de su grupo, ella era la de mayor edad y la única que había vivido como indígena”.

Além disso, os livros de Anne Chapman (2002a, 2002b) trazem os últimos registros fotográficos dessas tribos em seu rito chamado Hain, em que cada pintura corporal e máscaras representam diferentes espíritos. As fotografias foram feitas na década de 1920, pelo padre e antropólogo Martin Gusinde, que registrou o ocaso dos selk’nam, yámanas e kawéskar nos arquipélagos patagônicos.

La población selk’nam era probablemente de 3.500 a 4.000 individuos cuando, por el año 1880, los blancos comenzaron la ocupación de su territorio, la Isla Grande de Tierra del Fuego (Argentina y Chile). Desde el siglo XVI sus antepasados habían tenido contactos esporádicos con tripulantes y náufragos. No sabían de dónde venían. Pero según sus profetas (“padres de la palabra”), unos extraños, parecidos a aquéllos, los iban a destruir. Durante las últimas décadas del siglo XIX y hasta la primera del XX, los selk’nam fueron diezmados por los blancos. Muchos fallecieron de enfermedades transmitidas por éstos; otros fueron embarcados y llevados al continente. Ciertos cazadores de indios a sueldo, cometían por cuenta propia atrocidades sin nombre antes de matar a sus víctimas. Otros selk’nam murieron en guerras entre ellos mismos; esas luchas intestinas eran más frecuentes en esta época, pues a medida que los terrenos de caza iban siendo cercados por los ganaderos, el terreno restante era más y más disputado entre los mismos indígenas (Chapaman, 2002a, p. 22).


Imagem 8:
Ritual Hain - Indígenas etnia Selk’nam - Tierra del Fuego
Fonte: Chapman (2002a).

Desse modo, podemos observar complexas caracterizações apresentadas na película, em imagens que não necessariamente compõem a região del Chaco paraguayo no século XVIII, mas que resultam em imagens disruptivas dessa decolonialidade proposta, pois, se urge pensar a “invenção” desta América, que a inventemos com os nossos próprios e riquíssimos elementos originários.

“Zama”: em devir decolonial

O projeto do filme “Zama” levou ao todo dez anos para ser finalizado, o roteiro, também assinado pela diretora Lucrecia Martel, foi escrito ao longo de uns quatro anos. A autora foi provocada por uma instigante reflexão histórica para a fabulação do personagem Zama e seus cenários adaptados da obra literária homônima. A produção reuniu um elenco de diferentes países, como o protagonista, o ator espanhol-mexicano Daniel Giménez Cacho; os escravos interpretados por imigrantes senegaleses, vindos ao continente americano; e ainda na participação do brasileiro Mateus Nachtergaele, entre outros. Em entrevista, Martel comenta sobre a transposição de uma obra escrita à tela (García López, 2018), que passa antes pela tradução da obra literária ao roteiro e do roteiro para as imagens em movimento: traduções em corpos, cenários e figurinos, que por sua vez, resultam em imagens que formam um todo, isto é, a partir da montagem é dado sentido ao todo do filme (Deleuze, 1990). Martel cita esse processo, como deslocamento no tempo, “atravessado por uma compreensão anacrônica, a qual está presente no processo criativo da literatura e do cinema” (Dulci; Lopez, 2019, p. 419).

De acordo com Souza e Silva (2020, p. 150) “é imperativo estudar obras que subvertem a lógica colonial, adotando para isso também uma perspectiva anticolonial de leitura”. Em “Zama” observamos expressões estéticas como signos de resistência e transbordamento de identidades confinantes inventadas pela colonialidade. Uma resposta ao processo de escrita da história hegemônica proposto pelos colonizadores em que “povos originários e africanos escravizados viram suas línguas, memórias e sistemas conceituais serem encobertos por uma outra geopolítica do conhecimento que impôs línguas e marcos alheios a culturas extremamente diversas entre si, forçando uma homogeneização de grupos sociais sob os termos genéricos ‘índio’ e ‘negro’” (Xavier; Dávila, 2019, p. 473).

“Colonialismo” marca o período histórico de expansão territorial europeu, para além de estudos das chamadas “grandes navegações”, devemos investigar e desnudar o estabelecimento de colônias como movimento de controle dos saberes e fazeres dos colonizados. Ademais da brutal exploração e violência física, a violência cultural foi exercida por todo território explorado e suas consequências ainda constituem desencadeamento de feridas no racismo estrutural e no apagamento de costumes, saberes e mesmo de etnias.

Propor uma estética em decolonialidade é romper a continuidade da propagação do pensamento colonial. Isto é, pensar modos de viver, resistir e desconstruir padrões e conceitos subalternizados ao longo dos tempos, assim como, modos de construir uma crítica à “modernidade”. Os movimentos poéticos que então surgem, no cinema, literatura e demais artes, constituem-se em devir decolonial: um vir a ser da decolonização ontológica e dos saberes (Maldonado-Torres, 2007). Pois, assim surgem alternativas que visibilizam a riqueza do patrimônio cultural de povos subalternizados e durante muito tempo silenciados, exacerbando etnias como protagonistas de suas histórias e de suas expressivas linguagens.

Dulci e Lopez (2019) apontam que a obra literária de Di Benedetto, “Zama” (2008) traz uma compreensão histórica de uma experiência colonial, que funcionará como elemento indiciário para pensarmos ficção e imaginário de uma época: o autor se inspira em alguns elementos de um personagem verídico, o corregedor Zamalloa, nascido em Jujuy, Argentina, mas também reúne outras referências entre história e ficção. Assim, em conjunto, o livro e o filme, constroem momentos históricos e fabulatórios remetendo a:

um repertório que amplia a compreensão diacrônica sobre a colônia. Nesse sentido, deve-se ressaltar que o trabalho de transposição conduzido por Martel também mantém uma relação com outras obras que se deslocam ao passado, nos quais os diversos elementos composicionais da imagem oferecem soluções e revisões históricas que não falam só da colônia, mas igualmente de uma revisão atual sobre a colônia (Dulci; Lopez, 2019, p. 417).

La estética es abiertamente política y decolonizadora” (Mignolo, 2010, p. 18). Walter Mignolo (2010) situa o surgimento histórico da modernidade/colonialidade no século XVI. A chamada “modernidade” europeia só é possível e dependente da conquista das Américas e de seus povos, forjada na violência, exploração e usurpação, criou-se assim um “projeto de modernização”: “A ‘modernidade’ é uma narrativa europeia que esconde habilmente o lado mais sombrio, muitas vezes mais violento, da colonialidade” (Del Valle, 2020, p. 64).

Ao diferenciar colonialidade de colonialismo, Mignolo (2007) diz desse último que é referido aos processos e particularidades históricas de domínio colonial, processo de colonização, exploração e desbravamento. No entanto, a colonialidade caracteriza a condição em continuidade de submissão de povos que eram livres e agora formam outros estados nacionais; suas culturas, hábitos e línguas são subjugadas aos legados coloniais. Ou seja, a colonialidade se refere a essa interferência e hibridismo cultural e epistemológico do qual somos investidos desde a “descoberta” do continente: “Em termos filosóficos, a condição contínua da colonialidade significa que é possível teorizar suas muitas modalidades, como a colonialidade do conhecimento, a colonialidade do ser e a colonialidade da estética” (Del Valle, 2020, p. 64).

Ao trazer o filme “Zama” e as possibilidades de um imaginário que transmuta sentimentos em estética decolonizadora, estamos no campo da “aesthesis decolonial, Mignolo (2010) argumenta que a estética e as artes atuam tanto nos processos coloniais quanto decoloniais. O filme apresentado pode ser pensado como modo de resistência alternativa, para imaginarmos outras formas de representações, jogando com as estéticas que nos foram impostas, vide as vestes como signo de civilidades, junto a elementos enriquecedores da poética indígena em corpos pintados e ritualidades únicas. Como aponta Diana Pereira (2007), diante de tantas interrogações e incertezas, a América Latina deve recompor seu arsenal simbólico com suas próprias armas, como a imaginação e suas construções poéticas, seja em palavras escritas e oralidades ou em imagens.

Considerações finais

Desse modo, este artigo trouxe algumas reflexões a partir do filme “Zama” da cineasta argentina, Lucrecia Martel. Desde o filme, o pensamento foi provocado pelas memórias imaginárias do “olhar o leito do rio”, seja da minha janela ou do personagem que procura um escape. Das histórias orais, perdidas ou fragmentadas, construímos poéticas do real, respirando alternativas para além da cultura ocidental que nos foi ensinada. Nas dobras da imaginação, nas brechas criativas, necessitamos de “metáforas”, seja na literatura, poesia ou no cinema. Assim, podemos compor e (re)inventar a latinidade.

O imaginário e as práticas artístico-culturais da América Latina contemporânea constroem poéticas, modos de pensar e criar o hibridismo de referências em fronteiras culturais que nos compõem. O cinema na América Latina vem potencializando experiências transversais entre linguagens que traduzem o tempo contemporâneo e seus trânsitos espaço-temporais. O fazer com arte, a poiesis, possibilita transpor fronteiras políticas, re(compor) cartografias e territorialidades. Com isso, busquei, em modos de expressão poéticos do vestir, caracterizar e compor cenários, pensar alguns signos da visualidade relevantes para o imaginário cultural Latino-Americano, provocando experiências estéticas e novas percepções históricas. Dessa forma, parece possível expor outros modos de “inventar” a América: traduzindo riqueza artística e saberes próprios em resistência nas práticas culturais; fragmentação e deslocamento identitário em transbordamento de fronteiras.

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ZAMA. Direção de Lucrecia Martel. Rio de Janeiro: Bananeira Filmes, 2017.

Notas

1 Este artigo é resultado parcial da pesquisa pós-doutoral “Fronteiras e estéticas no cinema latino americano - entre personagens, traduções e culturas” em desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
2 Curta-metragem ou produção audiovisual que traduz o conceito de uma marca de moda ou de sua coleção. Normalmente, circula no website da marca e em seus principais canais de comunicação.
3 Cinematizar é um “vocábulo autônomo que, no âmbito das relações entre palavra e imagem, reflita a noção de transcriação assim como ‘teatralizar’ faz nas artes cênicas” (Cunha, 2007, p. 12).
4 Criollo ou crioulo se refere ao indivíduo descendente de europeus, nascido em uma das colônias de ultramar. Na América espanhola, criollo designava o descendente de espanhóis nascido na América, o hispano-americano. Muitas vezes eram descriminados ao participar da administração colonial e da vida política na colônia (mesmo os mais ricos).
5 De acordo com a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), “povos indígenas isolados” são denominados os grupos com ausência de relações permanentes com as sociedades nacionais ou com pouca frequência de interação, seja com não-indígena, ou com outros povos indígenas. De acordo com alguns antropólogos o dito “isolamento” é decorrente de condições históricas opressivas, como fuga de massacres e escravização. O termo “isolados”, algumas vezes, pode confundir mais do que elucidar, pois negaria o processo histórico e remeteria à uma falsa ideia de que esses povos originários vivem em um paraíso idílico, fora da história e do tempo, quando a possibilidade é de que encontrem-se nestas condições por algum motivo violento do passado (Bonilha, 2020).
6 Folk Horror, também conhecido como terror rural, ou horror caipira no Brasil, refere-se a um movimento que se consolidou principalmente no cinema, mas que tem suas origens na literatura. Alguns dos expoentes no cinema podem ser vistos em “O homem de palha” (1973) de Robin Hardy ou “Colheita maldita” (1984), dirigido por Fritz Kiersch e adaptado do conto de Stephen King, entre outros. Algumas características que este subgênero reúne são: ambientes como comunidades ou vilarejos do meio rural, em geral isoladas; paganismo e bruxaria; rituais envolvendo elementos da natureza; e, muitas vezes, líderes de seitas e religiões, compreendendo forças místicas e ocultismo.


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