Dossiê
Recepción: 27 Enero 2023
Aprobación: 28 Marzo 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.35.101-122
Resumo: A partir da perspectiva decolonial, o presente estudo é composto de reflexões teóricas sobre a influência do colonialismo na produção de desigualdades sociais e, consequen-temente, educacionais, no espaço urbano da cidade de Guarapuava, no Paraná, e sobretudo as produzidas em torno da ideia de “raça”, conceito empregado para diferenciar sujeitos e hierarquizar as relações sociais. Para tanto, partimos da análise das origens de Guarapuava, discorrendo sobre seu modelo constituído por urbanização e territorialização, concepções, conceitos, planos e práticas de produção e uso dos espaços. Por meio dos aspectos históricos, despertamos o entendimento acerca das desigualdades consolidadas na sociedade latino-americana de que o fenômeno urbano é um acúmulo de bens culturais, assim o resultado que temos é cumulativo de todos os acontecimentos históricos, visto que a urbanização é uma das tendências globais mais nítidas e que, no decorrer do tempo, vai adquirindo determinadas especificida-des.
Palavras-chave: Colonialismo, Urbani-zação, Desigualdades socioespaciais, Desigualdades educacionais.
Abstract: The present study is composed of theoretical reflections from the decolonial perspective on the influence of colonialism in the production of social and, consequently, educational inequalities in the urban space of the city of Guarapuava, in Paraná, especially those produced around the idea of “race”, a concept used to differentiate subjects and to rank social relations. For that, we start from the analysis of the origins of Guarapuava, discussing its model constituted by urbanization and territorialization, concept-tions, concepts, plans and practices of production and use of spaces. By means of the historical aspects, we come to know - regarding the consolidated inequalities in Latin America society - it is an accumulation of cultural goods. Hence, the result we have is cumulative of all historical events, since urbanization is one of the clearer global trends and which, over time, acquire certain specificities.
Keywords: Colonialism, Urbanization, Socio-spatial inequalities, Educational inequalities.
Resumen: El presente estudio se compone de reflexiones teóricas desde la perspectiva decolonial sobre la influencia del colonialismo en la producción de desigualdades sociales y, en consecuen-cia, educativas en el espacio urbano de la ciudad de Guarapuava, en especial las producidas en torno a la idea de raza, utilizada para diferenciar sujetos y jerarquizar las relaciones sociales. Para ello, partimos de la historicidad local para analizar el modelo de urbanización y territorialización frente a las prácticas sociales de uso de los espacios. En efecto, consideramos que el fenómeno urbano es una acumulación de bienes culturales en el mantenimiento de intereses locales, ya que la urbanización de Guarapuava corrobora con la preservación de jerarquías globales y que los procesos educativos necesitan contribuir a develar la segregación socioespacial imputada desde el origen étnico y racial, ilustrada por la historicidad de las relaciones sociales locales.
Palabras clave: Colonialismo, Urbaniza-ción, Desigualdades socioespaciales, Desigualdades educativas.
Introdução
Ao refletir sobre a história das Américas, enfocamos, consequentemente, sobre a história do Brasil, traduzida sob a forma de pluralidade étnica, acompanhada por um processo de exclusão social e segmentação socioespacial, cujas interpretações muitas vezes pautaram-se na inferioridade do brasileiro, em detrimento dos povos estadunidense e europeu. Essa perspectiva parte da ideia excludente oriunda do colonialismo, fenômeno que deixou traços comuns entre os países latinos, nos quais as desigualdades se prolongaram, dando continuidade ao passado colonial, que transcorreu no decorrer do tempo e dura até hoje.
Ao entender que há uma permanência das relações coloniais, Djamila Ribeiro (2010) evidencia que as identidades nacionais construídas de modo a separar os indivíduos, passando pelo desinteresse da cultura de grupos étnicos oprimidos, resultaram em lacunas nos processos de colonização, devido à imposição da visão de cultura do colonizador.
Na literatura antropológica, Raoul Naroll (1964) denota que o termo “grupo étnico” é geralmente usado para designar uma comunidade que compartilha valores culturais fundamentais realizados com unidade manifestada em formas culturais, através de membros que se identificam e são identificados por outros e que constituem uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem.
Essa divisão social existe há séculos, e é exatamente a falta de reflexão sobre o tema que constitui umas das bases para a sua perpetuação, que pode ser observada nos conhecimentos incorporados nas ações rotineiras devido aos vínculos afetivos e identitários, que em muitas ocasiões originam os padrões de poder.
Entre as consequências desse processo estão a marginalização, a discriminação, o preconceito e a segregação, e como vêm beneficiando historicamente determinados sujeitos em face de outros, fruto das heranças coloniais na América Latina, cujo conhecimento é marcado geo-historicamente com valor atribuído e um determinado local de origem.
Ainda em concordância com Djamila Ribeiro (2010), o privilégio social ao resultar no privilégio epistêmico deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas pela perspectiva do poder, enaltecendo ainda mais situações persistentes de colonialidade.
É insultuoso que numa sociedade as pessoas não conheçam a história dos povos, dos saberes, das práticas e dos enfrentamentos que auxiliaram na sua construção.
Essa cólera, mesmo que não explicitada diretamente no texto, vem à tona ao longo da discussão por meio das questões que envolvem identidade e pertencimento, conceitos primordiais frente às estratégias de inclusão e resistência. Mesmo após o período escravocrata brasileiro, ainda podemos perceber nítidos reflexos estruturais de desigualdade sociorracial nesse processo secular, organizado a partir da inferiorização de indígenas e negros, através do tratamento sub-humano, fator preponderante para a dicotomia que vem acompanhando as minorias e sustenta a naturalização de condutas desiguais.
Para Aníbal Quijano (2005), com as imposições da ordem capitalista, esses grupos sociais historicamente criminalizados foram sendo desprezados nos processos de urbanização da cidade, que ignorou e ignora a existência do outro, fato diretamente relacionado com a globalização. Foram inúmeras as características trazidas para o processo de urbanização, emergidas essencialmente do processo de constituição da América e da propagação do capitalismo eurocentrado; tal processo foi marcado com a distribuição racista de mão de obra e das formas de exploração do capitalismo colonial, associando a população branca ao salário e aos postos da administração colonial.
Numa formulação mais detalhada e mais ancorada na experiência da América Latina, alguns autores estabelecem uma distinção entre colonialismo e colonialidade. Para Aníbal Quijano (1988), a colonialidade é entendida como um fenômeno histórico amplamente complexo em detrimento do colonialismo, constituindo-se enquanto dimensão global e que se estende aos dias atuais. O termo diz respeito a um “padrão de poder”, mencionado anteriormente, que atua por meio da naturalização de hierarquias étnicas que podem propiciar e facilitar a reprodução das relações de dominação.
Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (2007), sobre o conceito de “decolonialidade”, abordam que é necessário transcender certos discursos acadêmicos e políticos, pois a hierarquização de populações étnico-raciais, formadas durante vários séculos de expansão colonial europeia, não se transformou significativamente com o fim do colonialismo. Esse processo certamente transformou as formas de dominação na modernidade, mas não a estrutura das relações centro-periferia, evidenciadas pelas formas eurocêntricas de conhecimento, pelas hierarquias raciais e pelos processos culturais/ideológicos que favorecem a subordinação frente ao capitalismo.
Essas indagações trazem para a discussão sujeitos destituídos de possibilidade de participação e de reconhecimento enquanto protagonistas nos processos de transformação histórica e de expansão e ocupação territorial latino-americana e aqui, especificamente falando, no processo de expansão e urbanização da cidade de Guarapuava. Esses complexos fenômenos são articulados com as desigualdades estruturais e seus efeitos no direito à educação, que, por sua vez, será evidenciada enquanto instrumento de possibilidade de mudança, a começar pela valorização das diferenças culturais presentes ao longo da história da cidade.
Historicizando a colonialidade em Guarapuava
Assim, partimos aqui para o surgimento de Guarapuava, palavra cuja origem vem do guarani: gwá rá, significa mamífero ou carnívoro da família dos canídeos, das regiões abertas da Argentina, Paraguai e Brasil; puava significa bravo, espantadiço, arisco (Marcondes, 2010).
Conforme aponta Márcia Terezinha Tembil Marques (2000), em “De onça a rouxinol: A favela e a cidade (1950-1999)”, Guarapuava foi marcada com as características predominantes do contexto colonial. Com a chegada da família real ao Brasil, expediu-se um documento definitivo, a “Carta régia de 1º de abril de 1809”, com as tônicas de povoar e civilizar advindas das ordens reais do príncipe regente D. João VI, ao então governador da Capitania de São Paulo, Antonio Joseph da Franca e Horta.
O teor do documento versava sobre construir e como deveria ser o povoamento dos campos de Guarapuava, um dos poucos lugares do país a receber condenados a degredo interno ao longo do século XIX, não somente pelas adversidades que o lugar propiciava aos “condenados”, mas também devido às necessidades e dificuldades que a coroa tinha de que essas terras fossem ocupadas.
A presença portuguesa era fundamental para a guarnição da fronteira, que, após a expulsão dos jesuítas pelos paulistas em cumprimento às ordens do Marquês de Pombal, tinha se convertido em “terra de ninguém”, habitada por tribos indígenas, a aguardar um conquistador definitivo, conforme encontrado em “A prisão sem muros: Guarapuava e o degredo no Brasil do século XIX”, escrito por Francisco Ferreira Junior (2012). Na obra o autor destaca que o degredo servia tão bem como política povoadora para as colônias quanto como forma de exclusão dos elementos sociais indesejáveis que ameaçavam a ordem e a hierarquia vigentes, o que reestabelecia o equilíbrio social.
Ao longo das leituras acerca do degredo no processo de colonização da América Latina, deparamo-nos com a seguinte afirmação:
Quando os portugueses tinham dúvidas sobre a hospitalidade dos habitantes de alguma terra desconhecida, faziam primeiro desembarcar um degredado; caso fosse ele bem recebido, seria este um grande passo à frente no conhecimento e conquista dos nativos. Caso fosse “assado em fogo lento”, ou morto a flexadas [sic], era somente um criminoso a menos (Pieroni, 1991, p. 44).
Fabio Pontarolo (2010) faz uma abordagem sobre a trajetória de vida dos degredados remetidos para a povoação de Guarapuava, ao sul da então capitania de São Paulo, durante a primeira metade do XIX, recebendo um novo lugar no interior da ordem social da povoação e consequentemente na hierarquia social, constituindo-se numa espécie de colônia para degredados. Além destes, havia também náufragos e desertores das mais diversas expedições, que passaram a conviver com os nativos, participando do processo de ocupação e organização produtiva da área, cujo sucesso dependia enormemente do controle exercido sobre as populações indígenas que ali viviam.
Foi fundamental nesse empreendimento colonizador a atuação do padre Francisco das Chagas Lima, personagem revestido de autoridade, cuja influência se dava sobre os povos indígenas, povoadores e até mesmo com o comando da expedição e que, conforme determinação da Carta Régia de 1809, foi encarregado de catequizar esses povos originários nos Campos de Guarapuava. Debateu-se à época sobre as maneiras de tratamento, desde a sua integração por meio da civilização até o extermínio, debate este que resultou em embates com os demais povoadores, devido às posturas tomadas por Padre Chagas.
A colonialidade do poder enquanto impeditivo da construção da participação política e civil democráticas calou povos indígenas e negros; até mesmo europeus degredados foram condenados e abandonados pelos seus próprios conterrâneos em nosso território, principalmente devido à escassez de recursos humanos existente na metrópole.
É difícil provar que os primeiros degredados tenham chegado a Guarapuava com a expedição colonizadora, pois nenhum documento desse período, além da Carta já comentada, faz menção a eles. Segundo Francisco Ferreira Junior (2012), apenas em 1812 cogita-se, das entrelinhas das memórias do Padre Chagas, que os primeiros degredados, de origem militar, tenham chegado a Guarapuava.
No entanto, nos períodos de escassez demográfica nos países europeus, que se repetiam desde a época medieval, observa-se a dificuldade de recrutamento, que não tardou a gerar consequências nas práticas punitivas europeias. A escassez de homens mostrou-se tão séria que o exército foi reforçado com criminosos. De fato, na Inglaterra, no período de guerras no século XVIII, o exército foi considerado um tipo de organização penal, apropriado para errantes, extravagantes e ex-condenados. O alistamento militar era uma saída para qualquer condenado evitar a execução.
Entre seus preceitos catequéticos, Padre Chagas estabelecia limites entre o contato moderado entre povos tradicionais e soldados, com vistas à manutenção de redes de parentesco e sólidas relações étnicas; no entanto, ele realizou mais de uma dezena de casamentos mistos entre mulheres indígenas e soldados ou degredados desde que chegou aos Campos de Guarapuava. Essas uniões originaram povoadores casados, designados a viver dentro do aldeamento e organizar o trabalho nas roças, realizado principalmente pelas mulheres indígenas aldeadas, conforme aponta Fábio Pontarolo (2010).
Cristiano Augusto Durat (2006) afirma que os casamentos entre mulheres pertencentes aos povos originários com luso-brasileiros, em sua maioria membros do exército, e com degredados teve objetivos diferentes: o primeiro visava à ocupação do território por meio do poderio militar; o segundo tinha por finalidade realizar a reinserção de indivíduos degredados à sociedade de fronteira, através das disposições da Carta Régia de 1809. Além desses, era pertinente adaptar os índios às regras da sociedade ocidental e tentar eliminar a poligamia.
No entanto, é importante falar também de um terceiro termo: “vadio”. De acordo com Gottdiener (1993), a cidade é produzida pelo sistema de organização social que envolve forças: econômicas, políticas e culturais, incluindo forças estruturais e modos voluntários de comportamento. Também é abordado pelo autor que as relações capitalistas não se refletem diretamente em formas urbanas específicas, já que o espaço resulta do desenvolvimento histórico contínuo do sistema capitalista, e não de alguma relação isolada ou característica específica que ele assume em algum momento.
Assim, a desvalorização acentuada das pessoas que não participavam das relações de produção capitalista é parte da nova ética do trabalho. O espaço produzido é, então, entendido para além de suas relações com a força de trabalho, mas como um espaço em que as relações sociais de produção ganham destaque. Por esse motivo, o ócio e a vadiagem passam a ser perseguidos. Essa perseguição se estendeu cada vez mais, e o termo “vadio” passa a incorporar a maioria das pessoas que não se inserem na produção capitalista, além de ser bastante utilizado para designar as pessoas livres “não brancas” nesse período. Essas três categorias (criminosos, militares e vadios), como encontramos em muitos escritos, foram consideradas alheias a todo o processo colonizador.
Em 1819, a partir da instalação da Freguesia de Nossa Senhora de Belém, houve a expansão do povoado. Sua constituição se deu a partir da fundação da igreja Nossa Senhora de Belém. As residências da elite, do clero, das autoridades militares e das pessoas que possuíam algum título de nobreza se localizavam próximas à igreja matriz, dando início ao centro e compondo uma estrutura econômica, política e ideológica. De acordo com Eduardo Hoornaert (1984, p. 80),
Herdamos, pois, do passado uma Igreja ideologicamente marcada por uma imagem errada da evangelização: ela aparece como obra de gente branca, bem-educada e formada, de classe privilegiada, sobre gente negra, morena e mestiça, pobre [...]. Séculos de colonialismo formaram esta imagem que não corresponde de maneira nenhuma ao que nos ensinam os primeiros documentos da história cristã.
Sergio Fajardo (2007) destaca que, além de estar geograficamente localizada num ponto estratégico na rota do tropeirismo, a região era um atrativo para a passagem dos tropeiros devido à pecuária ser atividade em destaque no município. Nas regiões por onde estes passavam foram fundados muitos povoados e cidades. Esses fatores proporcionaram à região um avanço econômico decorrente das atividades comerciais que se desenvolveram entre os habitantes locais e os tropeiros que por ali passavam.
Nesse processo, houve aumento significativo de capital no povoado. A partir dessa circulação do capital, muitos fazendeiros da região enriqueceram; com isso, ficou ainda mais evidente a hierarquização das moradias: aqueles que tinham maior poder aquisitivo passaram a construir casas no núcleo urbano, modificando a configuração urbanística do lugarejo. A casa do fazendeiro na cidade representava o símbolo da sua riqueza, adquirida por meio do comércio de gado.
Para José Carlos Radin e Gentil Corazza (2018), o crescimento do novo povoado foi muito lento nas primeiras décadas; um dos fatores que influenciou essa lentidão foi o declínio do tropeirismo devido à construção das estradas de ferro. Contudo, logo passaram a ser desenvolvidos na região outros tipos de atividades econômicas, que também tiveram seu auge e contribuíram no desenvolvimento da cidade que temos hoje, destacando os ciclos da erva-mate e da madeira.
Relações próximas entre a segregação territorial e a educação
Quanto às camadas marginalizadas, Márcia Terezinha Tembil Marques (2000) aponta que residiam no que Padre Chagas denominava de “Quarteirão dos pobres”, cuja localização estava na periferia do espaço urbano. Nesta área viviam aqueles que não possuíam escravos, nem animais, aqueles que ficaram à mercê das disputas de poderes, dependendo do direito que eles tinham às terras e do resultado de interesses maiores, pois, devido às poucas possibilidades de representação junto a um poder maior, sua posse sobre a terra não era senão uma concessão que poderia ser eliminada a qualquer momento.
Vale dizer ainda que, nesse momento histórico, a Freguesia de Nossa Senhora do Belém de Guarapuava não contava com nenhuma administração local, além das autoridades eclesiástica e militar, sendo esta última responsável pela proteção necessária ao desenvolvimento da lide colonizadora e por todos os serviços públicos necessários para o bom funcionamento do povoado, como destaca Francisco Ferreira Junior (2012).
Dessa maneira, vemos que a povoação de Guarapuava não se constituiu somente por grandes autoridades e fazendeiros que hoje estampam nomes de ruas da cidade, mas sim, em sua maioria, por pessoas marginalizadas, escravos e condenados. Ao nos depararmos com degredo na constituição de nossa cidade, percebemos que essa é uma história de continuidade, afinal percebemos que as categorias de degredados, antes mencionadas, se desdobraram nas várias possibilidades políticas de aproveitamento de sujeitos pelo império.
Nas primeiras décadas de povoamento, como foram os casos de Ezequiel, jovem que viera do Rio de Janeiro para cumprir oito anos de degredo em Guarapuava e que por vinte anos ministrou aulas particulares, e Francisco José Ferreira de Bittencourt, de origem francesa, que residiu em Florianópolis (SC) e foi condenado a também cumprir degredo em Guarapuava. Francisco e sua esposa Bibiana Birriel Bittencourt, de origem espanhola, prestaram serviços como professores interinos desde 1836 até 1861, quando ele foi nomeado para uma classe masculina e posteriormente exerceu o cargo de agente do correio. Estes foram “aproveitados” para a missão, devido a não haver professores nomeados e nem escolas, em um período quando somente os meninos aprendiam a ler.
De acordo com Nelson Piletti (1994), a educação no Brasil Colonial organizou-se, de início, em torno dos jesuítas, os quais dedicaram-se a duas principais tarefas: a pregação da fé católica e o trabalho educativo. Assim, concomitantemente, ensinavam as primeiras letras e a gramática latina e também a doutrina católica e os costumes europeus. No entanto, Françoise Jean de Oliveira Souza (2010) argumenta que, com a instauração da política pombalina e consequente expulsão dos jesuítas, o Estado português passou a contar com a atuação de religiosos pertencentes a outras ordens da Igreja para o trabalho com os povos originários, com subordinação direta ao governo português, devido a receberem a côngrua anual como funcionários.
Ainda de acordo com o autor, a divisão hierárquica da Igreja se constituía da seguinte forma: o alto clero era formado por arcebispo, bispos, cabido e Câmara Eclesiástica; o baixo clero, composto por capelães, párocos (vigários) e coadjutores. O padre capelão tinha uma das posições mais inferiores da hierarquia católica, posição que foi ocupada pelo padre Chagas Lima desde a sua convocação à expedição de 1810 até o ano da fundação da paróquia Nossa Senhora de Belém, em 1818.
Françoise Souza descreve as diferenças entre os quatro tipos de padres capelães. Existia o capelão doméstico, que era uma espécie de funcionário dos grandes proprietários de terras e que deveria ser responsabilizado pela catequização dos escravos e pela educação dos filhos do senhor. Também havia o capelão, que era contratado pelas irmandades, e o padre capelão, que tinha por atribuição as tarefas religiosas nas localidades bastante afastadas da paróquia. Por fim, também existia o padre capelão que acompanhava as tropas em suas investidas, tanto por terra como por mar.
O padre Chagas Lima pode ser caracterizado em suas funções como uma mescla das duas últimas categorias, pois, ao mesmo tempo que atendia as regiões de difícil acesso com relação à paróquia, também ocupava a função de religioso das tropas. Todavia, em meio ao processo de mudanças políticas, o padre Chagas Lima, nomeado 1º capelão da real expedição e colonização dos Campos de Guarapuava, em 1810, e vigário da referida nova “Paróquia de Nossa Senhora de Belém da Aldeia da Atalaia”, em 1818, participou ativamente do processo de ocupação dos Campos de Guarapuava, assumindo por diversas vezes funções que não diziam respeito apenas às questões catequéticas e religiosas.
Segundo Gracita Gruber Marcondes (2010), naquele tempo os professores, mesmo sendo raros, também desempenhavam outras funções, como ocorreu com o professor Fortunado José de Carvalho Lima, de quem falaremos mais adiante. Em 1843, criou-se uma classe masculina de primeiras letras e, em 17 de julho de 1852, ocorre a autonomia municipal; o povoado de Nossa Senhora de Belém foi elevado à categoria de Vila, com o Plano de Urbanização elaborado pelo Padre Francisco Chagas. Neste mesmo ano, instalou-se a Câmara Municipal, onde todos os problemas passaram a ser debatidos pelos vereadores.
Ainda de acordo com a autora, no dia 19 de setembro de 1859, quando aconteceu o primeiro júri em Guarapuava, foi designado como promotor público o professor Fortunado José de Carvalho Lima, que ministrava aulas em sua casa desde 1854. As meninas no início não aprenderam a ler, não tanto devido às dificuldades de locomoção a cavalo de uma fazenda para outra, mas principalmente pelo tabu de que mulher teria que receber ensinamentos sobre trabalhos de agulha e prendas domésticas, uma educação que visava apenas preparar para ser boa mãe, casta e submissa, tornando o nível de instrução das mulheres nulo ou quase nulo, devido aos costumes sociais que não permitiam à mulher exercer funções públicas.
Apesar de Bibiana Birrier Bittencourt ter ministrado aulas interinamente desde 1836 para dezessete alunas em sua casa e Anna Joaquina da Purificação Lacerda ter sido nomeada como primeira professora pública de Guarapuava no ano de 1854, é possível comprovar, por meio dos documentos oficiais existentes nos cartórios, que poucas mulheres sabiam ler. Em 1856, Ana Joaquina da Purificação Lacerda pediu demissão da cadeira, sendo substituída oficialmente por Bibiana Birrier Bittencourt, que, em 1863, foi substituída pela filha do brigadeiro Rocha, Dra. Maria de França Camargo Loures. Já em 1867 chegaram os professores José Ferreira das Neves e sua esposa Dra. Leonídia Ferreira das Neves. Ele assumiu a classe masculina e ela ministrou aulas particulares até 1873, quando foi nomeada para a classe feminina, que mais tarde se tornou mista. A professora Leonídia lecionou por trinta e quatro anos e foi carinhosamente chamada de “Siá mestra”; a rua onde morou era batizada de “Rua da carioca”, hoje Profa. Leonídia. Em 1905, foi nomeada a Profa. Fernandina Camargo Amaral e, em 1907, Antonio Gomes de Oliveira. Em 1912, no governo de Xavier da Silva, foi criado o Grupo Escolar n. 4 e construído o prédio situado na Rua Capitão Virmond, que aglomerou as quatro escolas isoladas, passando a ser denominada, na década de 1920, Grupo Escolar Visconde de Guarapuava.
Até aqui constatamos que, ao longo da história, a educação sempre ocupou lugar de destaque nos discursos políticos; no entanto, a propagação da alfabetização no Brasil ocorreu no transcorrer do século XX, acompanhando a constituição lenta do sistema público de ensino. Até fins do século XIX, as oportunidades de escolarização eram muito restritas, acessíveis quase que somente às elites proprietárias e aos homens livres das vilas e cidades, correspondentes à minoria da população.
Otaíza Romanelli (1986, p. 30), nos traz a seguinte informação:
No Brasil, até o final da década de 1920, as camadas dominantes, com o objetivo de servir e alimentar seus próprios interesses e valores, conseguiram organizar o ensino de forma fragmentária, tomando o país como um todo, e ideal, considerando o modelo proposto de educação. Isso se deu mesmo quando essas camadas deixaram de ser as únicas a procurar a educação escolar. O fato é que o toque aristocrático e o caráter de classe que essa educação conferia não só concorriam para manter o status, pela natural distância social que ajudava a promover, como também, serviam de instrumentos de ascensão social aos estratos que, embora privados da propriedade da terra, se achavam em condições de assumir posições mais elevadas.
A ampliação do Grupo Escolar Visconde de Guarapuava foi de grande valia para a Vila, que possuía 373 alunos no ano de 1928, em conformidade com Maria Aparecida Crissi Knüppel (2007). A autora reflete acerca desse número sinalizando sobre a análise da história da educação guarapuavana durante a década de 1920; com isso, notamos a importância que aqueles que enalteciam as conquistas educacionais e que conheciam os problemas a serem superados davam ao Grupo Visconde de Guarapuava, visto que somente em 1934 é que o direito à educação aparece pela primeira vez na Constituição, artigo 149, que estabeleceu o seguinte: “a educação é direito de todos”, eliminado da Carta de 1937.
Nas duas maneiras de se olhar a educação em seu desenvolvimento do contexto de Guarapuava, o Grupo Escolar Visconde de Guarapuava era criticado quando o assunto eram suas instalações, que, em 1944, passou a funcionar em modernas fundações na rua XV de Novembro, mas elogiado quando nele se materializavam as esperanças formativas, período em que o direito à educação voltou para ficar, apesar de ainda não se transformar em realidade para grande parte do contingente populacional, conforme destaca Nelson Piletti (1994).
De acordo com Gracita Gruber Marcondes (2010), em 1945, foi criado o Ginásio Estadual de Guarapuava, que mais tarde passou à denominação de Ginásio Estadual Manoel Ribas, devido a um Projeto de Lei apresentado pelo deputado Antônio Lustosa de Oliveira. A instituição atendia a toda a região, mas não chegou nem perto de abarcar a totalidade de indivíduos; trabalhadores que jamais tiveram a oportunidade de estudar passaram a fazer parte das estatísticas históricas de analfabetismo em Guarapuava.
Uma dessas situações que expressam o nível geral da educação e que nos é muito cara diz respeito ao contingente populacional, que, por diferentes motivos, não teve oportunidade de iniciação escolar ou a ela teve acesso apenas limitado. Na maioria das vezes, não tiveram acesso à escola, ou por optar pelo trabalho para poder sobreviver, ou porque foram discriminados e, ao final de alguns anos, dela foram excluídos. Ao deixar a sala de aula, entram para o levantamento dos “evadidos”, quando, na verdade, além de excluídos simbolicamente, pois não tendo sequer aprendido a ler e escrever, foram impedidos de ter acesso ao conhecimento que a escola promete socializar, mas que não cumpre ao não atender a grande parcela populacional.
Assim, a injusta distribuição de bens materiais, culturais e de educação é justificada na maioria das vezes pelos indivíduos sociais pelas “diferenças”: julga-se que uns são mais capazes do que outros, uns se esforçam mais do que outros, uns tem mais méritos do que outros. Os outros são os que fracassam na escola e no trabalho, por consequência são condenados ao analfabetismo e a posições subalternas.
Esse debate não é sobre capacidade, mas sobre oportunidades, e essa é a distinção que os defensores da meritocracia parecem não fazer, pois, ao ignorar as diferenças, a escola pode vir a privilegiar aqueles que já possuem domínio cultural:
A cultura do mérito, aliada a uma política que desvaloriza a educação pública, é capaz de produzir catástrofes. Hoje, em vez de combater a violência estrutural na academia, a orientação de muitos chefes do Executivo brasileiro é uniformizar as desigualdades, cortando políticas públicas universitárias, como bolsas de estudo e cotas raciais e sociais (Ribeiro, 2010, p. 48).
Em 1949, Maria Aparecida Crissi Knüppel (2007) traz, por meio do Decreto n. 9.161, a mudança do nome Grupo Escolar Visconde Guarapuava para Escola de Aplicação Visconde de Guarapuava. Depois que a Lei 5.692/1971 veio a público, a instituição passou a ser Escola Visconde de Guarapuava - ensino regular e supletivo de 1º grau, cuja alfabetização de adultos se faria mediante “o uso do Sistema Paulo Freire”. Esse educador, ao longo de toda a década de 1950, vinha acumulando experiência no campo da alfabetização de jovens e adultos em áreas urbanas e rurais em Recife. A ideia era a adequação do processo educativo às características do meio.
É justamente aí que a discussão vem ao encontro do que diz Vera Maria Ferrão Candau (2002), quando relaciona a dificuldade de se articular construção do conhecimento e o prazer no ensino, problemática também abordada por Adriana Beatriz Gandin (2001), ao constatar que determinadas estratégias foram e são capazes de desmotivar e hierarquizar diferentes culturas no meio escolar e, mais além, no meio urbano.
As aprendizagens de práticas sociais distintas se tornam assimiladas e reconhecidas se conseguirem criar sentidos ou se se vincularem aos que já operam nas constelações de aprendizagens. À medida que o indivíduo se desenvolve, amplia-se também esse ambiente do qual absorve a cultura, vindo depois dela a participar. Dessa maneira, compreender como as identidades são construídas e a forma como elas devem ser integradas é valorizar os conhecimentos que cada aluno traz, tornando o processo de ensino e aprendizagem pertencente ao seu universo simbólico. Pensemos nas vivências dos alunos como um conjunto de aprendizagem com traços específicos, que cada qual carrega como sendo fundamental para seu pertencimento.
Na década de 1950, visando a resultados políticos, econômicos e sociais, houve a chegada de imigrantes com distintos processos de integração social e cujas evidências são de baixa integração; eles se associam ao rápido crescimento econômico, com distanciamento evidente em relação à população local, não só em relação à cultura, mas sobretudo à moradia. Descendentes de alemães, iugoslavos, romenos, húngaros, italianos e japoneses são considerados o grande diferencial para a inserção econômica de Guarapuava no poder público, auxiliando na modificação substancial na vida da cidade, uma vez que implicou transformações nas bases produtivas e na posse da terra.
Antes disso, porém, outros imigrantes já haviam se fixado na região, como africanos, portugueses, poloneses, ucranianos, russos, holandeses, franceses, austríacos, árabes, sírio-libaneses e suábios do Danúbio, povos cujas contribuições não foram mencionadas no decorrer da história, mas, em cada canto, em cada rua, em cada esquina, em cada distrito estão seus descendentes, miscigenados preservando suas origens, nos aspectos culinários, arquitetônicos, folclóricos, religiosos, entre outros, mencionados por Gracita Gruber Marcondes (2010).
Segundo Márcia Terezinha Tembil Marques (2000), o desencadeamento em Guarapuava do processo de “hierarquização socioespacial” separou os centros comerciais. Essa foi, na verdade, a constante de toda a vida colonial, retratada por Paulo Freire (1967): o indivíduo à mercê do poder dos senhores das terras, dos governadores gerais, dos capitães-gerais, dos vice-reis, enfim, que raramente ou nunca conseguiu interferir na constituição e na organização da vida comum, dificultando, assim, o desenvolvimento das aglomerações urbanas: “Aglomerações urbanas em que teria exercitado, se florescidas desde o início de nossa colonização, sob o impulso da vontade popular, posições diferentes. Posições democráticas de que teriam nascido e se desenvolvido outras disposições mentais e não as que se consubstanciaram e nos marcam ainda hoje” (Freire, 1967 p. 84-85).
Roberto Lobato Corrêa (2004) atenta para a complexidade da ação dos agentes sociais e as práticas que levam a um constante processo de reorganização espacial através da incorporação de novas áreas ao espaço da cidade, de tal modo que possibilite a recolocação diferenciada da infraestrutura e da mudança, coercitiva ou não, de conteúdo social e econômico de determinadas áreas da cidade:
Quem são estes agentes sociais que fazem e refazem a cidade? Que estratégias e ações concretas desempenham no processo de fazer e refazer a cidade? Estes agentes são os seguintes: a) os proprietários dos meios de produção, sobretudo os grandes industriais; b) os proprietários fundiários; c) os promotores imobiliários; d) o Estado; e e) os grupos sociais excluídos (Corrêa, 2004, p. 12).
Esses agentes, juntamente com o Estado, são capazes de remodelar o espaço da cidade, o que pode ocasionar distinção de recursos em determinados territórios, originando elementos que podem ser influenciados por estes, por meio do efeito vizinhança; nesse caso, a capacidade de apropriação dos recursos se distingue nos diversos grupos sociais.
A trajetória e o contexto socioespacial e educacional no município são complexos e permitem identificar um cenário de conflito que se revela nas intervenções do poder público municipal, que, ao perceber o crescimento da periferia pela população empobrecida, interveio com o principal objetivo de conduzir ações de impacto, visando garantir ganhos políticos e promover a habitação popular, distante dos setores de bairros mais bem equipados.
Disso resultou a concentração da renda e a baixa qualificação da população carente, o que ajudou a promover ainda mais a periferia depauperada. O rumo da organização do espaço urbano garantiu a manutenção da desigualdade interna, em termos de acesso aos bairros mais bem equipados, gerando um forte contraste entre o centro e a periferia, fato que acelerou ainda mais com o regime militar instaurado no país em 1964, tornando os ricos ainda mais ricos e os pobres sempre mais pobres.
A propriedade da terra foi negada àqueles que nela trabalhavam, e as rendas urbana e rural, distribuídas desigualmente, acentuaram as desigualdades. Nesse período, assim como nos demais setores da vida social, a educação brasileira também passou a ser vítima do autoritarismo. Reformas foram efetuadas em todos os níveis de ensino, impostas de baixo para cima, sem a participação dos maiores interessados: alunos, professores e outras organizações, conforme escrito por Nelson Piletti (1994).
Em meio a esse período, o militar e Governador Ney Braga, ao criar o Curso Científico, por meio do Decreto-Lei n. 10.911, de 10 de fevereiro de 1963, trocou o nome Ginásio Estadual Manoel Ribas para Colégio Estadual Miguel Bohomoletz, retornando a Colégio Estadual Manoel Ribas em 31 de dezembro de 1966, com a assinatura do Governador Paulo Pimentel. Em 1975, o governador Jayme Canet Júnior autorizou o funcionamento do Complexo Escolar de Guarapuava - Ensino de 1º e 2º graus, resultante da fusão do Colégio Estadual Manoel Ribas, da Escola Normal Secundária Professor Amarílio, criado em 1948 e destinado à formação de professores primários de nível médio, e do Colégio Comercial Estadual de Guarapuava, dando origem ao atual Colégio Estadual Carneiro Martins - Ensino Médio e Profissional.
A origem dessa modalidade é apontada por Dante Henrique Moura (2007), afirmando que tinha “uma perspectiva assistencialista com o objetivo de amparar”, de forma a atender àqueles sem condições sociais satisfatórias, para que não continuassem a praticar ações contrárias aos bons costumes.
O autor elucida ainda que as elites intelectuais acataram a ideia de que a educação do povo, particularmente quanto ao ensino profissional, seria a principal ferramenta para prevenir a contestação da ordem e de mobilizar a força de trabalho para a produção industrial-manufatureira. No entanto, a história da educação profissional se entrelaça com a própria história brasileira, dada sua importância no eixo do desenvolvimento econômico, social, profissional e humano, que acompanhou as necessidades específicas de cada época.
Em 1972, concomitante ao período em que o Colégio Francisco Carneiro Martins abre suas portas e que ocorre a autorização de funcionamento da Escola Manoel Ribas Ensino de 1º grau em novas instalações, as eventuais manchetes que retratavam as transformações econômicas de toda a região e o forte poder político em nível do Estado passaram a dividir espaço com aquelas que retratavam as ocupações originadoras das favelas, que, enquanto espaço isolado da cidade, geraram atrasos preocupantes na compreensão de que as estruturas estão relacionadas, afetando a participação ativa dos sujeitos na produção do espaço urbano, que está evidenciado na tese de Joseli da Silva (1995).
Para Erminia Maricato (1999), a condição jurídica totalmente ilegal de propriedade do lote serve para definir o que é favela. Outras denominações, segundo a autora, são utilizadas, como “ocupação”, ideia que assumimos e já citada nesse estudo. Assim, o aumento da concentração de população na cidade, a maioria proveniente do campo, fez com que essas pessoas, ao chegar à cidade, acabassem por trabalhar em empregos informais, que não lhes proporcionavam, muitas vezes, sequer o suficiente para suprir suas necessidades básicas, e tivessem que construir suas próprias habitações, muitas vezes irregulares, o que intensificou a crise social e habitacional: “Diferente do que ocorreu na maior parte das cidades brasileiras, em que os núcleos de favela começaram a surgir em espaços centrais pela proximidade dos locais de trabalho, em Guarapuava o que se observou foi um maior número de favelas em regiões periféricas, à beira de rodovias” (Marques, 2000, p. 59).
As habitações irregulares na cidade de Guarapuava passaram a se constituir geralmente de lonas e pedaços de madeira, casas improvisadas, enquanto surgia uma supervalorização das áreas centrais da cidade. Com isso, a criação dos núcleos habitacionais municipais pelo poder público municipal, principalmente aqueles produzidos a partir da década de 1980, tem historicamente privilegiado a localização na periferia, o que reforça a distância e a dificuldade de comunicação com os demais espaços e grupos sociais que se localizam nos bairros mais centrais. Muitos núcleos habitacionais foram criados em áreas públicas que deveriam ser usadas para outros fins, como parques, escolas, creches e postos de saúde.
Desvelando o fazer guarapuavano
Para Paulo Freire (1967), o desenvolvimento envolve não apenas questões de política econômica ou de reformas estruturais, mas também objetiva a passagem de uma para outra mentalidade. Em Guarapuava, a partir da estratégia tanto dos agentes imobiliários quanto da prefeitura em “atrair” moradores da elite da cidade, as poucas favelas que existiram nas áreas centrais foram desapropriadas. Podemos considerar a construção do Parque do Lago um bom exemplo dessa desapropriação, que proporcionou a agregação de valor aos terrenos ao redor do parque.
O Projeto Parque do Lago, em área central da cidade, levou à desapropriação de muitas casas que se encontravam nos limites onde o parque seria construído. Aos que tinham a posse legal de imóveis no local, a prefeitura indenizou com valores que, no entanto, não permitiram a aquisição de outro imóvel nas proximidades, restando aos indenizados procurá-lo na periferia (Marques, 2000, p. 65).
Ainda de acordo com Paulo Freire (1967), a formação urbana e as forças determinantes que se consolidaram na estruturação do espaço fazem surgir, consequentemente, uma “educação” para a “domesticação”, para a alienação, uma “educação” para o homem-objeto. Essas forças distorcem a realidade e insistem em aparecer como defensoras das classes depauperadas, de sua dignidade e liberdade.
Anibal Quijano (1992) entende que de toda essa rede que cobre os territórios latino-americanos emergem as teorias decoloniais, desde o início do século XX, numa perspectiva crítica teórica, articulada por múltiplos pensamentos que objetivam libertar as noções e práticas do conhecimento, a partir de análises sobre os estudos de distinção de classes, etnicidade, gênero e estudos regionais, com enfoque nos questionamentos e na ressignificação da matriz da modernidade enraizada no colonialismo.
As tentativas de explicação e definição das diversas questões urbanas se relacionam com os diferentes campos de conhecimento que tratam da dinâmica “cidade e sociedade”. Nas ciências humanas, a tradição e a importância no entendimento dos múltiplos aspectos da urbanização não são recentes, como as pressões econômicas, o aumento da desigualdade socioespacial e consequentemente educacional, as redefinições da política urbana, a qualidade de vida da população e, aqui em específico, a construção de um novo pensamento, centrado na história e na realidade dos países do Sul, em oposição à busca incessante de replicação das práticas características da colonização.
O processo de segregação urbana e de desigualdade social estão intimamente ligados, de modo que refletem no processo ensino-aprendizagem, naquilo que se chama de desigualdade educacional. Não há como dizer que a educação acontece social e espacialmente de maneira igual quando consideramos as diferenciações existentes entre as áreas centrais e periféricas urbanas. Notamos que os alunos são distribuídos conforme a sua localização, perpetuando a estratificação social e influenciando na distribuição de oportunidades educacionais, partindo dos casos das instituições analisadas, Colégio Estadual Francisco Carneiro Martins, Colégio Estadual Cívico Manoel Ribas e Colégio Estadual Visconde Guarapuava - ensino fundamental e médio, até então denominada Escola Estadual Visconde de Guarapuava, cuja denominação veio com a publicação da LDB 9.396/1996, atendendo também a modalidade de magistério desde o ano de 2006.
Historicamente temos que a educação sempre foi vista como um subproduto cultural de dominação na sociedade brasileira, do centro para a periferia. Assim, a escolha das instituições de ensino foco desta pesquisa se deu devido à sua representatividade social, no passado e na contemporaneidade da cidade de Guarapuava, motivo também pelo qual, apesar de estarem na área central da cidade, atraem um número de estudantes oriundos dos bairros periféricos.
Além disso, muitos possuem a visão de que, ao matricular seus filhos em escolas centrais, estão os aproximando de indivíduos em melhor posição social, livrando-os da influência de “más companhias”, ou, ainda, há a ideia de homogeneizar o ensino, resgatando os valores e a ordem moral, que teriam sido corrompidos pelo processo de democratização, perspectiva hoje ofertada pelo Colégio Estadual Cívico Manoel Ribas, cujo 2º grau começou a funcionar em 1993, ano em que também passou a ser denominado dessa maneira.
Estar em uma sala de aula com estudantes entusiasmados e incentivados exerce uma influência no desempenho do aluno que ali se matricula, independentemente do efeito da sua própria motivação, segundo Cibele Comini César e José Francisco Soares (2001).
José Francisco Soares (2004) acrescenta que
Toda escola está inserida em um contexto social, sobre o qual não tem controle, mas que influencia fortemente as relações estabelecidas nos espaços escolares e, conseqüentemente, o processo de ensino/aprendizado. Esse contexto tanto cria restrições como oportunidades estruturais para a escola. Entre os fatores contextuais o seu local, isto é, a cidade ou o bairro merece especial destaque. Para a maioria das escolas, o seu local de instalação determina o tipo de aluno que será atendido, já que os sistemas públicos, freqüentemente, alocam o aluno à escola mais próxima de sua residência. Noutras palavras, para compreender uma escola deve-se começar por conhecer sua realidade “geográfica”. Mesmo no setor público brasileiro que aloca recursos às escolas de maneira central e, portanto, mais eqüitativa, os recursos materiais e humanos das escolas refletem sua localização. As escolas situadas nas periferias urbanas e que, portanto, atendem predominantemente a alunos de nível socioeconômico mais baixo, apresentam freqüentemente piores condições materiais, corpo docente menos qualificado e experiente do que as escolas públicas localizadas na região central das capitais (Soares, 2004, p. 86).
De acordo com Ricardo Corrêa Coelho (2009), um dos importantes problemas que afeta a rede escolar é a sua distribuição espacial: quanto mais elevados os níveis de vulnerabilidade social do entorno da escola, mais limitada tende a ser a qualidade das oportunidades educacionais oferecidas por ela, afinal, em nível de ensino médio, os eventuais efeitos da vizinhança se manifestam também pela deserção educativa, separando os que estão dentro e fora do entorno escolar:
A estrutura do espaço, as distâncias espaciais que unem e afastam os diferentes, desiguais, integrados e os excluídos, têm um peso fundamental na conformação de identidades, na aceitação e na apropriação de experiências, percepções e valores comuns, mas também na negação e na estigmatização, na construção imaginada do “outro”. A estrutura espacial contribui assim, para não mais socializar ou naturalizar a estrutura social e oferece ferramentas para resolver, de distintas formas possíveis, a coexistência com os “outros” num mesmo espaço urbano (Saraví, 2008, p. 186).
Dessa forma, explorar os fatores que contribuem para esse possível processo de desigualdade educacional é fundamental, bem como apontar onde e de que modo esse fenômeno está sendo produzido e reproduzido nas instituições de ensino, a partir da análise espacial do meio urbano através de uma investigação sociológica da educação, da cidadania e das representações sociais dos atores sociais estudados, neste caso, os alunos regularmente matriculados no 3º ano do ensino médio dos colégios centrais da cidade de Guarapuava, já mencionados, os componentes das equipes pedagógicas dessas instituições e uma amostra de 20 habitantes residentes no centro da cidade.
A finalidade é discutir a educação para além dos muros da escola, trazendo à tona a estigmatização de grupos sociais socialmente segregados, estimulando uma educação prática que venha a objetivar a visibilidade de culturas historicamente silenciadas no contexto central urbano, visto que a segregação não é prejudicial somente ao grupo segregado.
Ao falarmos do acesso educacional, cultural e político, esse processo faz com que a sociedade desperdice um imenso potencial humano. As políticas segregativas restringem cada vez mais a circulação de grupos na cidade, seja no acesso ao mercado de trabalho, aos serviços públicos, aos recursos, aos equipamentos culturais e de consumo.
A limitação do convívio entre os diferentes grupos representa grave risco, sinalizando a manutenção dos estereótipos, que desde a lógica de exclusão e reinserção contida no degredo articulava, na teoria, centro e periferia, conquistas e colônias, punição e perdão, ajudando a hierarquizar. Degredar era uma forma de estigmatizar pessoas e grupos étnicos, numa época profundamente sensível aos sinais de prestígio social destes.
É possível afirmar que a escola tem cumprido sua função proporcionando o desenvolvimento do ser humano de forma integral?
Será que a própria escola, os Meios de Comunicação Social, e até mesmo certas religiões e certos pregadores não estão a serviço dos que têm o poder e, para eles se garantirem no poder, não estão tentando dizer para os outros que eles não prestam, são menos? Veja você como isso é importante: se você consegue convencer alguém de que ele não presta, vale menos, é ignorante, etc., você pode dominar totalmente essa pessoa, pois, ela já está dominada “na alma”, “na consciência”. Ela mesma já não vai querer subir, exigir mais, ter os mesmos direitos que os outros, pois ela já está convencida de que vale menos! Essa pessoa assim definida e convencida nunca mais vai dar trabalho para as outras pessoas! Ela interiorizou a imagem negativa que fazem dela os que têm poder e acabou acreditando na história de que ela, afinal, vale menos mesmo! (Guareschi, 1990, p. 17).
Ao não alcançar parâmetros estabelecidos de cultura que não é a sua, inconscientemente os indivíduos concordam e legitimam essa concepção de mundo, responsabilizando a si mesmos pelo fracasso escolar. Diante disso, é fundamental pensarmos no papel da educação frente ao antagonismo de interesses na produção do espaço urbano, estabelecendo uma relação entre o contexto da cidade em suas diversas nuances e explorando a relação entre espaço, cidade e educação, a partir do entendimento de que o aprendizado não pode ser limitado à sala de aula ou somente à instituição escolar.
A educação não tem como objeto real armar o cidadão para uma guerra, a da competição com os demais. Sua finalidade, cada vez menos buscada e menos atingida, é a de formar gente capaz de se situar corretamente no mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade humana como um todo. A educação feita mercadoria reproduz e amplia as desigualdades, sem extirpar as mazelas da ignorância. Educação apenas para a produção setorial, educação apenas profissional, educação apenas consumista, cria, afinal, gente deseducada para a vida (Santos, 2007, p. 154).
A função da escola vai muito além de suas paredes. Os problemas que afligem o espaço da cidade tomam proporções cada vez maiores, e a importância que a educação assume nesse processo resulta em índices satisfatórios de desenvolvimento humano. Assim, refletir os fenômenos oriundos da urbanização e seu impacto no sistema educacional é uma ferramenta para a prática pedagógica; em outras palavras, podemos dizer que a atuação da escola não influencia somente a comunidade escolar, mas sim a cidade como um todo. Ela deve conhecer seus arredores e contribuir no enfrentamento de situações que reprimem a participação social e política, garantindo oportunidades efetivas de participação de todos os cidadãos nos diferentes espaços e instituições sociais.
Não é preciso especular muito para descobrir que temos espaços concebidos como eternos e transitórios, legais e mágicos, individualizados e coletivos. Tudo o que diz respeito ao poder político é, na nossa sociedade, conotado como duradouro ou eterno e marcado pelos monumentos e palácios. O poder como ordenador supremo de um mundo penetrado por todo tipo de conflito situa-se naqueles espaços de confluência do tempo e de unidades sociais contraditórias ou problemáticas. Assim, nas cidades ocidentais, as praças e adros (que configuram espaços abertos e necessariamente públicos) servem de foco para a relação estrutural entre o indivíduo (o líder, o santo, o messias, o chefe da igreja ou do governo) e o “povo”, a “massa”, a coletividade que lhe é oposta e o complementa (Damatta, 1997, p. 40).
De acordo com Pedrinho Alcides Guareschi (1990), educar é ir ao encontro do outro por meio do reconhecimento mútuo. A escola deve se basear na historicidade das relações entre o conhecimento científico e o cotidiano, pois, em muitas situações, desconhece as referências dos sujeitos, afastando do seu discurso algumas narrativas e subjetividades; é onde o senso de alteridade perpassa e qualifica o senso de diversidade e pluralidade, no contato permanente e diário da comunidade escolar:
O conceito de lugar de fala discute justamente o locus social, isto é, de que ponto as pessoas partem para pensar e existir no mundo, de acordo com as suas experiências em comum. É isso que permite avaliar quanto determinado grupo - dependendo de seu lugar na sociedade - sobre com obstáculos ou é autorizado e favorecido (Ribeiro, 2010, p. 35).
Para Lana Cavalcanti (2008, p. 63), “existe uma forte conexão entre a produção desse lugar e a cultura das pessoas que nele vivem”, ou seja, a cidade é um lugar de formação. A convivência com a diversidade auxilia no entendimento acerca das diferenças e das identidades e no enfrentamento ao processo de segregação. Dessa maneira, é necessário criar mecanismos que não somente garantam o acesso das classes populares à escola e a permanência deles nela, mas que principalmente lhes assegurem participação efetiva e contemplem aspectos da vivência urbana, valorizando a cultura e as necessidades desses indivíduos, tornando possível, assim, a interação entre a escola e a cidade.
Quando se examina um grupo humano, uma família, uma escola, muitas vezes fazemos uma análise superficial do fenômeno, descrevendo apenas o que vemos, sem chegar à essência, à vida do grupo como grupo. E o que faz a vida do grupo, sua vivência, é aquele encadeado, aquela trama de relações que constitui a alma do grupo. A essência dum grupo é aquela rede de inter-relacionamentos que une ou desune os diversos elementos do grupo, mas que sempre tem a ver com o grupo como grupo, e não com as pessoas individuais (Guareschi, 1990, p. 35).
Para Djamila Ribeiro (2010), ao falar em educação e as relações existentes em sala de aula, enfatiza-se a perspectiva de incluir o outro e assegurar seu pertencimento a todos os espaços sociais sem subalternizá-lo, investindo nas possibilidades de transformar formas de viver preconceituosas com que nos deparamos desde os tempos mais remotos, trazendo a perspectiva histórica e suas consequências sob um debate estrutural, um sistema que vem beneficiando economicamente por toda a história uma parcela da população, enquanto outra, que é tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas:
no quadro específico das relações de poder entre grupos, desenvolvem-se e expressam-se atitudes negativas e depreciativas além de comportamentos hostis e discriminatórios em relação aos membros de um grupo por pertencerem a esse grupo. Entre os processos cognitivos que se desenvolvem neste tipo de relações sociais, destacam-se a categorização e a construção de estereótipos (Lacerda; Pereira; Camino, 2002, p. 166).
A miscigenação é um elemento característico do processo de subjetivação do não branco; o resultado é a fuga identitária do negro miscigenado advinda das consequências da ideologia da democracia racial, que supostamente integra todos os sujeitos não brancos na igualdade abstrata de uma fictícia identidade nacional pluriétnica. Dessa forma, no colonialismo, uma parcela da população negra busca refúgio apoiando-se na miscigenação, em identidades que possuem o branco como modelo de aproximação para tentar fugir da inferiorização e da internalização subjetiva da percepção colonial.
As características de cada ser humano estão intrinsicamente relacionadas ao aprendizado, à apropriação do meio social. O comportamento e a capacidade cognitiva do homem têm por base sua história educativa, e esta sempre será a da época em que ele se insere. Assim, partimos da concepção de subjetividade socialmente construída, formada nas relações sociais. Para tanto, em concordância com os estudos de Leontiev (1978), a construção da subjetividade relaciona-se aos motivos que incitam as ações dos indivíduos e os sentidos dependem dos motivos, isto é, o sentido do processo de aprendizagem para o aluno é determinado por aquilo que o incita a conhecer, a aprender. A subjetividade, como desenvolvimento das funções pertencentes ao ser humano, é composta na mediação do conhecimento entre os sujeitos que ensinam e os que aprendem, nas relações educativas. Dessa forma, espera-se que a realidade social se torne problematizada e o processo de aprendizado mais significativo, tornando o aprendizado uma instância de promoção da própria cidadania. Como consequência dessa proposta, espera-se que os alunos tenham possibilidade de refletir sobre questões cruciais para seu desenvolvimento cognitivo e emancipação humana.
Encontramos em Candau (2002) que não se deve contrapor a igualdade à diferença, e sim à desigualdade, nem a diferença à igualdade, e sim à padronização, à uniformidade, a sempre o “mesmo”, à “mesmice”. Dessa maneira, articulando a discussão, notamos que grupos com traços culturais similares escolhem, por interesses específicos, sinais que os diferem de grupos distintos. Dessa forma, a reafirmação de traços constitui as constelações de aprendizagens em que as trajetórias sociais demonstram os agrupamentos significativos de quais aprendizagens estruturam determinadas identidades coletivas.
Carvalho, Nascimento e Paiva (2006) abordam quatro grandes eixos temáticos que precisam ser debatidos:
análise da relação entre indivíduo e sociedade em várias de suas formas de integração social;
discussão sobre cultura nas suas diversas manifestações;
reflexão sobre o Estado e a universalização dos direitos humanos e da realização da cidadania;
estudo sobre as formas da desigualdade social e a análise da sociedade brasileira para compreender a desigualdade estrutural que se verifica na sua formação social.
A educação deve acentuar a abertura para o reconhecimento da legitimidade, da diferença, para a reflexão acerca da produção de diferenças e semelhanças e, não menos importante, para a crítica das relações de poder que presidem suas produções. Ensinar implica procurar se valer das potencialidades pedagógicas oferecidas pela própria realidade, levando em conta que as ações preconceituosas em sala de aula muitas vezes tornam-se invisíveis no currículo, no livro didático e até mesmo nas discussões sobre direitos humanos na escola. Essa invisibilidade configura-se como uma das mais esmagadoras formas de opressão. Assim, torna-se inquietante notar que alguém que não pode ser ouvido(a), conhecido(a), reconhecido(a), considerado(a) e tampouco respeitado(a), pode ser desestabilizado(a) e estereotipado(a).
Para Moraes (2017, p. 60),
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Partindo do contexto do Brasil colonial, James Holston (2013) analisa o surgimento no país de uma cidadania cujos direitos são distribuídos de forma desigual, para categorias sociais distintas; dessa forma, inclusive e fortemente no âmbito escolar, decorrente de algum processo deliberado, intencionalmente dedicado a promover restrições.
Embora as constituições federais latinas prevejam a igualdade entre as pessoas nos seus textos, a prática é diversa, afinal cotidianamente milhares de pessoas são afetadas pela segregação promovida e autorizada pelo poder público, determinada por níveis combinados com a conjuntura política em relação à demarcação do espaço sobreposta pelas exigências da “burguesia” de não conviver com a população pobre, mantendo um centro restrito à elite guarapuavana, conferindo ao espaço sentido e conteúdo, garantindo produção diferenciada, fragmentando a cidade e ampliando a diferença de apropriação do espaço pelos diferentes grupos.
A educação deve ser elaborada e posta em prática pensando nessa realidade, nas necessidades dos sujeitos a que essa educação se destina e levando em conta as especificidades do alunado, constituído, na grande maioria, por “trabalhadores (às vezes desempregados) ou filhos de trabalhadores que vivem no interior de condições socioeconômicas marcadas por inúmeras restrições” (Klein, 2003, p. 11).
Em concordância com Adriana Beatriz Gandin (2001, p. 33),
Quando pensamos nossa escola, precisamos pensar-lhe antes as estruturas e, sabendo o que queremos como grupo, propor modificações estruturais para vivenciar o que se pretende. De pouco adianta propor o desenvolvimento do espírito crítico e criar estruturas que sublinham a obediência, a submissão e quase impossibilitam o pensamento autônomo. Ponha o peixe na água e poucos cuidados serão necessários para que ele cresça bonito e forte; tire-o da água e para que ele sobreviva você terá que utilizar um extraordinário equipamento, com resultados precários.
As modalidades diferenciadas de ensino-aprendizagem se inserem numa discussão em que está presente a dimensão do reconhecimento de grupos sociais diferenciados e sua integração às questões emergentes da Educação. A Sociologia tem muito a acrescentar, sobretudo na realidade especificamente guarapuavana, em que as desigualdades são prementes em várias instâncias. Pensar em novos espaços de atuação é dar visibilidade a experiências na prática.
Considerações finais
Para educar e nos educarmos são necessários o acolhimento e o reconhecimento, desdobrando-se segundo uma perspectiva de transformação cultural, social, psicológica, política, individual e coletiva. Todavia, os debates desencadeados no campo da educação, a partir das provocações e das explorações das teorias e dos movimentos que oferecem possibilidades instigadoras e promissoras, devem ser pensados em relação aos temas de emancipação e de transformação social; só assim alcançaremos a equidade.
Partindo do exposto, o processo histórico socioeducacional pelo qual Guarapuava passou é marcado por lutas e discussões. Num viés sociológico, entende-se que a educação é o procedimento pelo qual acontece o desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral, objetivando uma melhor conexão com o meio social, tendo a escola por finalidade formar seres para o exercício da cidadania.
Assim, para compreender os efeitos que o entorno traz para o meio escolar e as políticas de alocação de matrículas adotadas pelas redes públicas escolares, é necessário explorar o fenômeno da segregação urbana e sua relação com a segregação escolar, a fim de combater a estigmatização de regiões periféricas em detrimento das áreas centrais, somada à luta por ações afirmativas e investimento na escola pública periférica, valorizando a produção cultural das comunidades nos processos educativos para ter como resultado consequências positivas na identidade e na autoestima dos moradores, bem como nos índices escolares, e enfatizando a importância de programas em que alunos desenvolvam atividades com grupos distintos, sejam práticas sociais educativas, serviços comunitários, programas de extensão, entre outros.
O ensino deve contemplar a dinâmica dos fenômenos sociais, explicando-a para além do senso comum, de modo que favoreça uma leitura da sociedade à luz da ciência, permitindo que a dimensão analítica do conhecimento sociológico estabeleça um diálogo contínuo com as transformações socioeconômicas, culturais e políticas contemporâneas, contribuindo no preenchimento de lacunas existentes ao longo da história de Guarapuava.
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