Dossiê
Recepción: 15 Febrero 2023
Aprobación: 13 Abril 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.35.142-154
Resumo: Este artigo busca destradicionalizar e tensionar ima-gens-pensamentos do estado do Acre, por meio de memes da internet, operando na perspectiva curricular rizomática. Assim, dediquei-me aos estudos culturais relativos à constru-ção de significações sociais, buscan-do analisar a polifonia de saberes-poderes que falam com/pela/na Amazônia. Os Arquivos-platôs, nossos antígenos foucaultiano-deleu-zianos, foram coletados, tratados, debordados e mixados, a partir de uma malha fina arquivística-etnográfica. Memes da internet, que procuram dialogar com tais objetos multimodais e evocam práticas discursivas sobre a Amazônia, foram capturados. Esse desoutrizar desvela devires estéticos e revela um território de afirmação de sentidos e significados, do Currículo Rizomático na escola.
Palavras-chave: Currículo rizomáti-co, Memes da internet, Arquivos-Platôs.
Abstract: This article seeks to detraditionalize and problematize visual thinking about the state of Acre through internet memes operating in the rhizomatic curricular perspective. Therefore, cultural studies concerning the construction of social meanings were considered, seeking to analyze the polyphony of knowledge-powers that speak with, by, and in Amazon. The Plateau Archives, our Foucaultian-Deleuzian antigens, were collected, treated, unembroidered, and mixed from an archival science-ethnographic cross-data analysis. Internet memes that dialogue with these multimodal objects and evoke discursive practices about Amazon were captured. This de-othering unveils aesthetic becomings and reveals a territory of affirmation of senses and meanings about the Rhizomatic Curriculum in school.
Keywords: Rhizomatic curriculum, Inter-net Memes, Archives-Plateaus.
Resumen: Este artículo busca destradicionalizar y tensionar imágenes-pensamientos del estado de Acre, a través de memes de internet, operando en la perspectiva curricular rizomática. Encarné los estudios culturales, en relación a la construcción de significados sociales, buscando analizar la polifonía de saberes-poderes que hablan con/por/en la Amazonía. Este constructo fractal y depositario fue realizado a través de una investigación netnográfica, en el marco del Programa de Posgrado en Educación de la Universidad Federal del Estado de Santa Catarina (UDESC). Los Archivos Meseta, nuestros antígenos foucaultianos-deleu-zianos, fueron recolectados, tratados, bordeados y mezclados, a partir de una fina malla archivístico-etnográfica. Se capturaron memes de internet, que buscaban dialogar con estos objetos multimodales, que evocan prácticas discursivas sobre la Amazonía. Esta desotredad devela devenires estéticos y revela un territorio de afirmación de sentidos y significados del Currículo Rizomático en la escuela.
Palabras clave: Currículo rizomático, Memes de Internet, Meseta archives.
Rizomatizando curricularmente
Um brilho artificial no riso do outro, mais um signo emitido pelo zap, um bordão bastante comum no Brasil do Oiapoque ao Chuí, a menção da frase o Acre não existe (Globo, 2017). O Acre é um estado federativo, anexado da Bolívia ao Brasil há mais de um século, que teve seu apogeu com a exploração da borracha. Gerou relevantes divisas econômicas ao país. Depois desse boom do ciclo econômico da borracha, vivenciou batalhas sangrentas para definição de seus limites político-administrativos, que permanece até hoje com apenas um acesso terrestre. Não se chega ao Acre, a não ser por Rondônia ou pelo voo direto à capital do estado, Rio Branco.
O Acre é o fim da linha, é de onde eu desbordo, à margem da estória, um pequeno estado dos nove da região Norte, um pequeno notável dentro do Amazonialismo, a partir do qual operamos com a perspectiva curricular rizomática, procurando significações sociais por meio de nossos Arquivos-platô, os memes da internet. Destradicionalizar e tensionar imagens-pensamentos que nos atravessam pelos memes da internet, é algo quase indesviável dentro da pesquisa netnográfica, pois cotidianamente circulam capilarizados pelas redes digitais. Por isso, são coletados numa malha fina arquivística-etnográfica.
O Acre é esteticamente limítrofe para moradores do Sudeste, já que possui apenas cento e cinquenta mil quilômetros quadrados. Isso não representa muito se comparado ao tamanho territorial da Amazônia Brasileira - milhões de quilômetros quadrados. O Acre corresponde a um décimo da área territorial do Amazonas - o maior estado em extensão territorial da região Norte, e possui apenas vinte e dois municípios - abrigando oitocentas mil pessoas. Além disso o Acre tem um corredor étnico-ambiental protegido que abrange quarenta por cento da área do estado. Enfim...uma das áreas de maior relevância na conservação do mundo - um dos hotspots1, ou seja, uma área de preservação permanente do globo - o que ainda se torna ainda mais complexo com a constituição de uma tríplice fronteira do Peru, da Bolívia e do Brasil, considerado também um grande vértice geográfico de varadouros do tráfico de drogas e de entrada de migrantes latino-americanos.
O Acre é um lugar no “fim” da malha rodoviária à direita da bacia do Rio Madeira, um lugar de alteridades de ambientalistas, patrões e de seringalistas, um lugar da chegada do “estranho”, um lugar da origem da empresa seringalista, e hoje de madeireiras e fazendas de gado de corte, uma encruzilhada nas fronteiras nos confins do humano, um lugar transfronteiriço, um epicentro de acontecimentos históricos, um misto de culturas ameríndias e de culturas de colonizadores. Para destradicionalizar e tensionar este olhar que repousa na tela azul, transbordamos linhas de percepção e limites político-administrativos, tensionamos variadas imagens-pensamentos, ultrapassamos e transitamos pelos pixels “para fora” de nós (um corpo-coletor buscando rotas, lendo as “coisas” das imagens), um exercício de rizomatismo Deleuziano, na tentativa de mostrar o Acre nutrido em leituras dos memes da internet, de acontecimentos midiáticos que circulam nas redes de WhatsApp, uma abandono de nós sabedores.
O Acre aqui não é uma tela na qual leio e escrevo, é um mapa mental que é ativado na memória visual de acontecimentos e de memes da internet. São tecno-imagens que significam grafias humanas e trabalham através de desvios e sensibilidades circundantes, muitas vezes, que seguem sendo financiados por grandes grupos econômicos, por trás de grandes projetos geopolíticos e de poder ilegais na Amazônia. Atente-se... um dos maiores ativos econômicos do mundo capitalista, a Amazônia vem sendo recriada há séculos em formas culturais e leituras contemporâneas, o que vem que se alimentando da mixagem de narrativas colonizadoras.
Amazonialismo, um neologismo, por que não? Por que isso? A linguagem é a viva construção diabólica de um pesquisar e de um amazonear no digital, que tem buscado escapar do óbvio e do falocentrismo, permeando o novo cenário - que é dinâmico e não mais procura se aquietar, são micro-incêndios sobre diferentes maneiras de (re)ver esse país profundo, em que nos deparamos nas aulas-espelho-intencionalidades e visualidades dos discursos hegemônicos com os quais nos mesmos confrontamos.
O Amazonialismo é um fruto artístico e acadêmico também de batalhas linguísticas, retratado na análise de obras como as de Edward Said, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Enrique Dussel ou Durval Muniz, em leituras apocalípticas que nos ajudam a (re)compor o que é rizomático por natureza, assim como vista na historiografia da “Amazônia”, um lugar de alteridades, por outras vias, como nos apresenta Albuquerque (2016), no verbete “Amazonialismo”, na obra “Uwakürü: dicionário analítico”, do qual se afirma que há sobre a região uma ampla produção de textos, obras e imagens de diferentes áreas do conhecimento, cujos temas/objeto têm como foco a Amazônia.
Amazônia, construída sobre a determinação geográfica que condiciona a diversidade cultural às diferenças do ambiente físico, como nos apresenta Laraia (2001). Essa determinação, sustentada pela Modernidade/Colonialidade, preza pela linearidade, seja ela histórica, cultural, nas artes, ou em diversos âmbitos, para justificar a superioridade da cultura eurocêntrica, reduzindo a nada o que não for semelhante à cultura dominante.
O “nada” se materializa na narrativa que inventa “a Amazônia” ou “uma Amazônia” ou uma “cultura amazônica”, com base e fundamentos na Modernidade/Colonialidade. Base e fundamentos que tendem para a homogeneização como “referência de lugar, identidade, vivência ou existência de incontáveis seres humanos e não-humanos, naturais e não naturais” (Albuquerque, 2016, p. 79). A “cultura amazônica”, nessa perspectiva, converte-se a significantes marcados pela invenção, idealização, com traços complexos do acorde perfeito da colonialidade: poder/saber/ser.
As formas baseadas nessa tríade (poder/saber/ser), que se relaciona com o mercado, o progresso, a indústria, o desenvolvimento, marcam a narrativa que constitui a “Amazônia”, como um “campo ambíguo, catalisador de imagens e de discursos contraditórios, que podem ser mobilizados para servir interesses muito divergentes” (Pimenta, 2004, p. 5). São discursos de poder que podem mobilizar saberes, currículos e formações, todos baseados em interesses divergentes e convergentes na Modernidade.
Nesses termos, “outro” espaço toma forma e materialidade nessa narrativa, o espaço geocultural acreano e amazônico, que constitui “o outro geográfico, o outro cultural, o espaço das ausências que estão sempre em maior destaque do que as permanências geradas pelo fazer humano” (Silva, 2020, p. 36). É um espaço narrado a partir das suas ausências, do vazio, da barbárie e de bárbaros não-humanos. É o lugar do “nada” e do “atraso” na cultura, na educação, nas artes. O discurso de poder da racionalidade de progresso que legitima a violência colonial, a homogeneização cultural e a destruição da diversidade.
Exploramos os memes da internet como nossos Arquivos-platôs2, em uma rotina sistemática de pesquisa e análise destes objetos multimodais, decalcando imagens-pensamentos que desenham curricularmente o Amazonialismo, este currículo rizomático, no qual, ao porvir de tantos atores sociais e poderes capilarizados, o Acre surge como este pequeno notável.
Mimetizando o Acre
O primeiro meme (Imagem 1) a ser mixado curricularmente é o de Bruno Borges, o conhecido menino do Acre, que desapareceu por alguns meses até voltar para casa. Conta a história de um garoto de classe rica abrigado em terras indígenas, que fez sucesso nos canais de televisão, em programas como o Fantástico da Rede Globo, uma batalha épica de narrativas consensuais e contraditórias. Uma gama imagética de discursos, interpretações e imaginações sobre seu caso - sumiço -, que até virou na época uma propaganda da marca de eletrodomésticos Brastemp, referente ao caso, uma desventura messiânica que foi logo colocada em xeque, do qual se produziram milhares de vídeos e versões sobre seu paradeiro.
Bruno deixou na época catorze livros escritos em seu quarto, numa casa nobre da cidade de Rio Branco, a capital do estado, em uma língua desconhecida, além de uma estátua de ferro do filósofo italiano Giordano Bruno, comprada e negociada pelo seu primo por cinco mil reais, elementos que (des)conversam com as mitologias da região Amazônica. Um mês já passado de sua volta à sua casa na capital de Rio Branco, e um livro produzido que vendeu milhares de exemplares na internet, o fato curioso de Bruno Borges ainda permanece nos vídeos sensacionalistas do Youtube - revisitado aqui, uma dúvida fica: uma empreitada midiática? Uma experiência de imersão solitária na floresta amazônica de um jovem privilegiado que pode ser considerado um jovem filósofo, um desaparecimento orquestrado em narrativas visuais da Amazônia e seus mistérios, um fato midiático que circulou e trouxe holofotes ao estado do Acre - uma marolinha de especulações, atenções e curiosidades que repovoam até hoje as ambiências da internet.

Um feixe de mistério no ar que mira o forjamento de uma imagem-pensamento, o irreal que não (re)existe ao insistir de mais cliques curiosos, um blend alquímico de (tec) significados com as imagens da Amazônia, um flerte com a nova marca identitária (será?), um novo nicho de mercado para o espetáculo midiático, uma sensação de ridículo com os amigos de Bruno Borges (que até já sabiam), algo que se (re) vela uma novela caricata de fatos estapafúrdios e seres conectados a esse fio sensacional. O Acre vira uma paródia-crônica episódica no jornal nacional da Rede Globo, dentro da expressão do que podemos compreender com o verbete Amazonialismo, que representa para Albuquerque, um conjunto de “conhecimentos” ou narrativas que inventa, descreve, classifica, cataloga, analisa de forma supostamente objetiva/científica a Amazônia (Albuquerque, 2016).
Há um (trans)criar dessa história inventada que é permeada por tantas, repetidas, e absurdas referências, além de outras tantas imagens-pensamentos sobre a Amazônia, contaminadas pelas lentes do “utilitarismo”, mas que procuram desinfectar, e agem como reflexos imperfeitos de memórias, reações em cadeia teórica em um mundo simbólico, que abrem espaço aos eternos desconfortos imagéticos. Nas linhas limítrofes da escrita errática sobre a pesquisa netnográfica, temos um somatório de luzes-sombras de um agir-querer, um artesanato da escrita do doutorado na linha do currículo da diferença, uma consciência ampliada em fragmentos, relatos e retratos breves da Amazônia, uma nascente de um novo imaginário, uma memória curta ou mesmo uma anti-memória (nada é em vão), um rizoma aberto em que se tece a variação, a expansão, a conquista, a captura - uma busca por debulhar os Arquivos-platôs.
O cenário representa um varadouro amazônico de errância científica que adentra o campo da memória afetiva, visual e discursiva da região amazônica, de vozes audíveis, de cosmologias indígenas, de epistemologias e de futuridades abertas, de colapsos, de desvios e de (re)impactos com o esverdeamento das empresas, dentro de subjetividades nascentes - futuros consumidores ávidos, ou seja, um , um vivenciar de múltiplas e diferentes maneiras de “ser” ou “não ser”, que seria a única chance para todas as imbricações e relações que nos habitam (Deleuze; Guattari, 1997).
No contexto das águas fartas que jorram das adversas imagens-pensamentos (do Acre), em rios e vidas que serpenteiam em paisagens da região amazônica, um lugar sempre provisório, do imagear na perspectiva de Didi-Huberman, em seu argumento de que “o próprio arquivo age como lacuna, explorando consigo a sua natureza lacunar” (Didi-Huberman, 2012, p. 212), em que nos desbordamos, nesse sol que varre a tudo, nos meandros sentidos por Euclides da Cunha, que nos levam a (re)configurar frequências rizomáticas, em um horizonte artístico que mais tenta e erra, reavivamos olhares e maneiras de ver as populações amazônicas, decompondo memes, compondo parte da discursividade geográfica sobre a maior superfície hídrica do planeta.
Lidamos com imagens/imaginações em que olhos não conseguem somente registrar e processar o belo, mas que necessitam ser revisitados e tematizados pelo pesquisador, utilizando na base do procedimento de pesquisa netnográfica o arquivamento e a cartografia como modos de ação permanente nas redes, dos quais o arquivo digital é um pote de ouro ou também “poeira do tempo, em oposição diametral à jactância de metanarrativas impolutas” (Aquino, 2018, p. 43). Todo esse arcabouço constitui um pouso rasante na linguagem, sob as práticas discursivas, um constante (re)imaginar, um (re)mover, um (re)nomear das grafias da Amazônia, em uma terra de linguagens e identidades em multiplicidade.

O segundo meme (Imagem 2) sobre o Acre refere-se ao caso dos dinossauros na entrada da cidade de Rio Branco: a capital do estado. Uma proposta de atração turística do governo estadual, para a via que liga aeroporto-centro, em que foi sugerida a criação de uma estátua gigante de dinossauro, para turistas/visitantes que porventura cheguem ao Acre. Uma visão “estereotipada” do passado geológico e de vestígios arqueológicos que foram encontrados. Um caso estapafúrdio: Nada a se inventar então, um “achado” científico sem fundamento, a construção de dinossauros, que absurdo! Trata-se de um vídeo bastante popular que se refere à questão dos dinossauros no Youtube, e que viraliza nas redes, virando o epicentro dessa discussão. São pessoas em uma rave que dançam com cabeças de dinossauro, com isso o Acre alcança a notoriedade como fato e chacota nacional.
Nascente inenarrável de estéticas e discursos, os memes da internet da Amazônia, enquanto também uma região pensativa/imaginativa dos limites político-administrativos do Brasil, nossos Arquivos-platô nos levam a muitas fronteiras do pensar, pois retratam inclusive a Amazônia distribuída em uma área territorial de nove países da América do Sul - fazendo com que também estes países se refaçam discursivamente com a ego-trip de conservacionistas, uma luta de simbologias e visões, que ora convergem em finalidades economicistas dos viajantes/descobridores, ora em discursos hegemônicos de gestores/estadistas. O Amazonialismo parte da definição prévia ou julgamento prévio do que se convencionou como a expressão/grafia Amazônia: “um conjunto palavras, imagens e metáforas que consignaram as formas de sua invenção” (Albuquerque, 2016, p. 78).
Independente disso falo/escrevo de lugares vistos “de dentro” e “de fora” da Amazônia, de lugares nos quais nossas mentes inquietas se movem nas linhas a reinventar um escrever “com e por entre coisas, bagunçando o mundo...” (Godoy, 2019, p. 149). Um (re)inventar nossos olhares, vivificando novas palavras, agenciando-nos num corpo sem órgãos, micropolitonal, como diria metaforicamente o grande artista Tom Zé, sobre a canção funk “tô ficando atoladinha”3. Uma promiscuidade teórica de um olhar que (sempre) nomeia para se (des) entender na presença do outro, para (des)marcar territórios (re)inventados em nossas imaginações musicais, nossas pesquisas nutridas na netnografia.
Se o perder nos leva a caminhos, por nos (re)configurar para um dia encontrarmos, “sempre devemos interrogar nossas fontes e colocá-las sob o crivo de constante problematização” (Albuquerque, 2016, p. 77). Se quisermos desenhar o Amazonialismo como esse grande currículo rizomático de acontecimentos e clusters imagéticos-discursivos, temos os memes da internet para considerar e reimaginar a Amazônia, já que também “podemos imaginar o quanto nossas narrativas de pertencimento a identidades nacionais, regionais, locais estão impregnadas dessas fantasias” (Albuquerque, 2016, p. 77).
Há deslocamentos e atravessamentos daquilo que já tinha (re)visto em imagens, distorções e ruídos mentais que (sobre) levam à produção do pensamento rizomático, uma teia dos “sonhos” do Acre vista por meio de memes da internet, uma jangada lançada ao mar da internet. A ampliação do que se vê e do que já não se pode ver, criando várias formas de (d)escrever, assim como o (re)criar novos significados, semânticas de pesquisa, novas formas/objetos para discussão. O que se pode incorporar de um “todo” que nos cerca? O que se pode então ampliar de um “resto” que nos sobra? O que significará rever um ter que já, não é? O (per)furar de nosso inquietar com o mover de nossas entrelinhas perceptivas.
Para o autor Gerson Albuquerque (2016), o Amazonialismo é um somatório de forças, imagens e pensamentos, que pode ser criado por sujeitos de diferentes espaços/tempos, compondo suas invenções, como referenciais de marcos fundadores que tecem noções acerca de uma palavra (Amazônia). Temos intensidades, prolongamentos e narrativas do saber, na internet, que recriam a realidade amazônica, espetáculos do absurdo jogo democrático, a escrita errática dessa cópia imperfeita, um costurar no Amazonialismo, uma realidade que apre(e)ndem com a gramática social.
O terceiro meme (Imagem 3) se refere à interrogação: o Acre existe? - e é uma dança feita em Rio Branco - capital do Acre (provavelmente feito em um sítio no meio rural!), na qual um grupo de homens (re)editam a música “This is America” do artista americano Childish Gambino. A circulação desse vídeo na internet alcançou milhares de usuários das redes sociais digitais. Outras versões até surgem no Youtube, uma replicação mimética da criação do mesmo feito. Edições mais simples surgem com a mesma ideia acreana. Um experimentar sem intenção que viralizou e que multiplica um manusear de coisas e um experimentar, uma vivacidade que segue conhecida no desdobramento da forma, como afirma Godoy (2019) no prefácio de “O livro dos afetos”, descrevendo o artista plástico Marcelo Grassmann.

Podemos pensar esse fenômeno como um invento de um norte (nexo) conceitual de discussão, que seja furo e/ou expressão no terreno “plantado”, que comunique a vazão da questão do Amazonialismo, que encare as leituras dos projetos de poder e os transcreva em fábula poética-política, para além do significado de “vazio” demográfico, expressão que mais aparece na leitura da região. (Res)significar a Amazônia, que já é um desafio, coloca a evolução de sentires em fios soltos das narrativas históricas, atravessadas pela leitura de “Rizoma” de Deleuze e Guattari (1995), e, pelo princípio da conexão e da heterogeneidade, nos projeta a desdobrar esses projéteis para o Brasil. São cadeias intersemióticas de multiplicidades da Amazônia que aglomeram atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos.
A cadeia de multicodificação da Amazônia é bastante complexa, pois remonta ao traçar da cobiça e do sensacional, do esvaziamento cívico de identidades nacionais, que não só permitem a continuidade de extensões, determinações, grandezas e dimensões, mas faz um tecer de “faz de conta” de fatos midiáticos. O projeto colonial-moderno é uma metanarrativa impoluta que se solubiliza nos retratos (in)trópicos da vida amazônica e dos discursos de saber-poder, que têm seu próprio metabolismo transformado em visões, segundo Albuquerque (2016, p. 79), “na ‘linha abissal’ que separa o ‘moderno’ do ‘não-moderno’, o ‘civilizado’ do ‘não-civilizado’ o ‘existente’ do ‘não-existente’”, parafraseando Boaventura do Santos, na obra “Para além do pensamento abissal”.
Só me resta duvidar que youtubers sejam considerados “papas” da linguagem social da internet, que discursos ambientalistas em grupos de WhatsApp salvem o planeta. Um riso do outro não cura e não salva, mas adoece, ou mesmo inaugura o pensamento rizomático, e multiplica diariamente forças invisíveis, ideações suicidas, arquétipos do poder. São alertas ao spam mental, um idioma social até então desconhecido pela escrita errática, que se constitui como “um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais” (Deleuze et al., 1995, p. 18).
Arquivos-platô: a chave-mestra da arquivização-cartografia
Uma questão central no desenvolvimento desse desdobrar dos Arquivos-platô é que diferentes olhares e sentires de nós mesmos (dedicados ao exercício de investigação) em relação à Amazônia são constantemente recriados e recolonizados(as) por paisagens fílmicas, assim como em imagens-clichês de produtos da empresa Natura, nas quais o Amazonialismo é um grande rizoma. Esse grande rizoma prescinde de ser analisado na pesquisa netnográfica de memes da internet, suas projeções, visões e significados, que enxertam aos estudos etnográficos/autobiográficos dedicados ambiências virtuais, possibilidades de pesquisar esse mosaico de intensidades e variações no (re)tratar da Amazônia.
Incluímos, nesse espaço de interpretação/interjeição, também os produtos digitais que por ventura se relacionem com a construção social de projetos/visões, na ordem de seus tempos de visibilidade, que vão nomeando e definindo, como os contornos e limites do que se entende como Amazônia.
Os memes do Acre são esse agenciamento maquínico, figuras de expressão para a simplificação desse retratar da região, que nos leva à discussão do Amazonialismo, como uma “força” de imagens-natureza e de visões de mundo “homogeneizantes”, que surgem como uma proposta de investigação do doutoramento. Os memes esmiúçam réplicas, simulacros e figuras das realidades amazônicas, que perduram nos Arquivos-platôs das redes digitais, viralizando/significando a invenção de multiplicidades, alargando este corpo sem órgãos, parafraseando Gilles Deleuze. A fim de operar a chave teórico-metodológica arquivística-cartográfica, foi necessário enveredar pelos meandros da Internet, para assim como propõe Aquino (2018), atuar com o objetivo de mapear a concretude da superfície dos ditos como enunciados que foram passíveis de registro, mapeando suas conexões estratégias, suas emergências, suas descontinuidades e seus tempos de duração.
Memes são tecno-imagens, objetos multimodais que falam por muitos ecos, o que exige, segundo Chagas (2020), cumplicidade e comunidade. Quem os faz, circula e consome, compartilha signos, informações, valores, códigos e identidades, e têm, portanto, papel significativo para retratar a Amazônia, para a criação de significados e posturas, em relação ao amazoniar. Para Daniel Dennet, um meme é “um pacote de informações com atitude” (apud Chagas, 2020, p. 26), no qual está contido, nesse conteúdo digital que circula, um conjunto de forças e expressões, que buscam ilustrar/retratar elementos culturais, sociais e de imaginários da mente humana.
Rastreando a expressão fenotípica dos memes da internet no Brasil, se observa a circulação desses veículos de informação na política, enquanto potentes instrumentos de propagação e disseminação de posturas e valores, dentro das ambiências virtuais, nas quais, nos últimos anos, a Amazônia e suas problemáticas regionais adentram, nesse conjunto de expressões linguísticas/discursivas, que nos impinge seus prolongamentos discursivos e imagéticos, que desenham um grande rizoma em constante refazimento, uma construção coletiva, identitária e política do Amazonialismo. Para Chagas (2020, p. 18), “se somos todos ou não filhos do caos, o fato é que os memes, sem dúvida nenhuma, são uma linguagem que veio para ficar”. A circulação de conteúdos digitais que tangenciam e/ou incidem sobre a construção do Amazonialismo, surge da linguagem: da ficção televisiva, da publicidade, dos produtos naturais, dos quadrinhos e tantas outras linguagens. Os memes da internet seguem sendo utilizados como recursos estratégicos na mão de políticos e de grupos de poder, haja vista a esquizofrenia bolsonarista, numa espécie de obsessão “sem sentido” pela destruição da cultura nacional.

O governo brasileiro atua na desinformação das principais problemáticas do meio ambiente, o que inclui o universo imagético da internet que (trans)forma as pautas da política em piadas, paródia e deboches. Os memes potencializam versões, imagens e discursos sobre os principais problemas nacionais na Amazônia. A imagem nacional do Brasil no exterior é uma vergonha ampliada, produzida pela ignorância de apoiadores e seguidores de Jair Bolsonaro, o que promove a subversão dos “reais” significados sociais e recolocam a questão do meio ambiente de maneira polêmica (Imagem 4).
Netnografando a pesquisa em Educação
Pensando a escrita errática dentro da perspectiva do currículo rizomático e do currículo como acontecimento, problematizando esse objeto multimodal, buscamos reinventar este primeiro salto à tese de doutorado. Trata-se de uma escolha arbitrária que permite movimentar-se, buscar referências, traçar insights, trançar conceitos, como disse a autora Corazza (2016, p. 99) em “Manual infame... mas útil, para escrever uma boa proposta de tese ou dissertação”, “unidades que nascem como duas rãzinhas que pulam de um lugar ‘desconhecido’, da psique à teoria e ao objeto bruto”.
O pequeno notável é o Acre como este conjunto desenvolvimental de memes da internet, que surgiu pelos Arquivos-platô, uma criação (in)ventada na tempestade da disciplina Cartografias intensivas em Educação, ministrada pela professora Ana Maria Hoepers Preve, inspirações foulcaultianas-deleuzianas, prolongamentos de um polvo semântico-semiótico (uma imagem do possível para esse movimento com os restos do mar social), um sequestro que se alimenta de memes que (re)projetam a Amazônia.
Para Deleuze e Guattari (1997, p. 11), “escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensor, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir”. Nessa linha, é o que tento por meio dessa escrita errática, que fala de um idioma desconhecido da Amazônia, que transita na reflexão e na produção do pensamento no currículo da diferença. Este trabalho é fruto de um deslocar, pela diferenciação em si, das formas, das forças, das cores, dos padrões de visibilidade e das expressões de um decepcionar com os clichês que perduram sobre a Amazônia. Para concluir, retomamos o autor que escreveu sobre Amazonialismo, e que nos serve de imagem rizomática: segundo Albuquerque (2016), este neologismo é um conjunto inventado de narrativas, epistemologias coloniais - sobre as gentes, culturas, línguas, sociedades, valores, crenças, fazeres, práticas, territórios inventados, produzindo espacialidades e temporalidades.
O Acre é o menor estado da região Norte, pouco conhecido, mas badalado, sobre o qual memes da região viralizaram, tornando uma cadeia intersemiótica do Amazonialismo, uma interlocução que viaja muito e viaja rápido porque viaja leve, como um meme. Para Chagas (2020), o meme, portanto, é a linguagem básica de uma cultura da velocidade, da disseminação e, ao mesmo tempo, da fragmentação de identidades e da tribalização do mundo. Quem aqui não se transportou entre imagens-pensamentos da Amazônia? O índio, as ervas, os rios, o urucum, os óleos, os artesanatos coloridos, a bolsa de borracha, o chá de Ayahuasca, as cerimônias, as medicinas indígenas, os (en)cantos da floresta, enfim, todo um repertório identitário/cultural (objetal) da região Amazônica que chega pelas imagens, e habitam os memes.
A questão da imagem é um problema estético-político (Cangi, 2019), a pesquisa com memes na Educação é um desafio, pois vai abrir certamente flancos que se dedicarão ao currículo rizomático, interceptando memes e conteúdos digitais, nossos Arquivos-Platô, que ao sabor dos acontecimentos-situações da pesquisa netnográfica, nos colocando a pensar sua expressão no campo da Educação, e nos engajar em demonstrar que produzir em experiências escolares possa ser um caminho para o escolar, numa dimensão contextual e discursiva em que os memes nadam de “braçada”.
Referências
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Notas