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Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção (I)
José González-Monteagudo; Rodrigo Matos-de-Souza
José González-Monteagudo; Rodrigo Matos-de-Souza
Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção (I)
Biographical and narrative approaches in training, research and intervention (I)
Enfoques biográficos y narrativos en formación, investigación e intervención (I)
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 36, pp. 6-9, 2023
Universidade Estadual do Paraná
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Dossiê

Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção (I)

Biographical and narrative approaches in training, research and intervention (I)

Enfoques biográficos y narrativos en formación, investigación e intervención (I)

José González-Monteagudo
Universidad de Sevilla (US), España
Rodrigo Matos-de-Souza
Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 36, pp. 6-9, 2023
Universidade Estadual do Paraná

O uso de histórias de vida, documentos pessoais e narrativas nas Ciências Sociais remete ao primeiro terço do século XX e se confunde em muitos momentos com o giro subjetivo pelo qual passaram as Humanidades no período. Inicialmente, as abordagens biográficas foram amplamente utilizadas na Sociologia e na Antropologia. A partir das décadas de 1970 e 1980, o uso desses métodos se espalhou por uma ampla gama de campos, alcançando maior legitimidade como forma de produção de conhecimento sobre aspectos que as ciências sempre tiveram dificuldades em observar: a subjetividade, os pequenos números populacionais, a vida íntima, a percepção e a representação dos sujeitos sobre o mundo etc. (González-Monteagudo, 2011).

Os documentos (auto)biográficos e da experiência representam um material indispensável para as Ciências Sociais, pois contêm as informações mais relevantes sobre as transformações dos indivíduos e grupos em um ambiente social específico e sobre a avaliação subjetiva que esses indivíduos e grupos fazem das práticas, experiências, contextos, interações e significados que vivenciam diariamente. Em um texto clássico, publicado há mais de 60 anos, Mills (1998) afirmou a necessidade de situar a pesquisa social no ponto de interseção entre história, estruturas sociais e biografia: “Para entender a biografia de um indivíduo, temos que entender o significado e o sentido dos papéis que ele desempenhou e desempenha; para entender esses papéis, temos que entender as instituições das quais ele faz parte” (Mills, 1998, p. 157 e 174).

Este Dossiê tem como objetivo refletir a riqueza, a pluralidade e a originalidade das abordagens biográficas e narrativas na atualidade, em especial na realidade brasileira, pois há neste país um acúmulo de massa crítica sobre a pesquisa (auto)biográfica que não encontra precedentes nem equivalência. Há algumas explicações possíveis: a tradição oral das matrizes indígena e negra, que encontram eco na narrativa e na ideia de que um sujeito pode representar algo além de um si mesmo, um grupo, uma coletividade; certa abertura para a pesquisa qualitativa em Ciências Humanas para o trabalho com contingentes populacionais pequenos, uma quase tradição nacional; a presença da entrevista qualitativa e, cada vez mais, narrativa, como instrumento de coleta muito frequente nas pesquisas em Ciências Sociais e Humanas; e concretamente, a existência da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOGRAPH) e da realização do Congresso Brasileiro de Pesquisa (Auto)Biográfica (CIPA), há mais de 20 anos. Tais fatos indiciam no conjunto, mas não explicam sozinhos as mais de 3.000 teses desenvolvidas nos últimos 20 anos sobre as temáticas pesquisa (auto)biográfica, pesquisa narrativa e história de vida no país (CAPES, 2023). Às vezes é preciso dizer o óbvio, mas é justamente do Brasil que sai o maior quantitativo de citações para os autores do campo.

Os artigos aqui incluídos fazem referência a três temas específicos e eleitos pelos organizadores dentre as muitas proposições que o dossiê recebeu: metodologias e epistemologias da pesquisa (auto)biográfica; identidades, diferenças e outros modos de vida; formação de professores. Essa perspectiva tripla pode nos ajudar a entender melhor as contribuições das abordagens narrativas e os desafios que elas enfrentam no contexto atual de fortes questionamentos e debates em relação ao conhecimento, à formação, à cidadania, à comunidade, ao feminismo e a igualdade racial, de gênero e de sexualidade.

Metodologias e epistemologias da pesquisa (auto)biográfica

As abordagens (auto)biográficas não podem ser reduzidas a um conjunto neutro e protocolar de questões técnicas aplicáveis à pesquisa ou à formação. A natureza inovadora, crítica e pioneira dessas abordagens reside justamente em seu potencial de questionar epistemologias e metodologias a partir de uma perspectiva qualitativa crítica, disruptiva, criativa, transformadora e desobediente (Matos-de-Souza, 2022). O universo biográfico-narrativo está contribuindo para a renovação da produção, disseminação e aplicação do conhecimento tanto em questões básicas e teóricas quanto no desenvolvimento de novas práticas sociais e formativas. Nesse contexto, parece oportuno aprofundar o diálogo do campo biográfico com o neomarxismo, a teoria crítica, a hermenêutica, o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, os estudos culturais, o feminismo, os estudos decoloniais, a história oral e a psicologia narrativa. Está claro que o pluralismo epistemológico e metodológico é uma característica central do campo biográfico. Desse ponto de vista, é necessário reconhecer a grande importância das diferenças nos estilos de pesquisa em termos de tradições disciplinares, metodologias de pesquisa específicas em contextos nacionais e institucionais. Além disso, é importante observar que o campo narrativo está se tornando cada vez mais interdisciplinar, internacionalizado e ligado a debates políticos e éticos sobre memória e testemunho. A formação de redes nacionais e internacionais com foco em perspectivas biográfico-narrativas é uma das características centrais a impulsionar a interdisciplinaridade do campo (González-Monteagudo, 2008).

Identidades, diferenças e outros modos de vida

O sujeito da narrativa clássica é também o sujeito da ciência clássica: homem, branco, cisgênero. Esta afirmação identifica o personagem mais frequente de tudo o que foi pensado e desenvolvido pelos seres humanos no ocidente e em suas periferias, da medicina à literatura. A preocupação com este sujeito ocupou todas as formas de produção humana o que gerou uma distorção no que chamamos de pesquisa científica, cujos resultados expressam suas constantes, variáveis e inclinações e do ponto de vista representacional, são seus sofrimentos, interesses e crises que foram desenvolvidos enquanto elementos das narrativas ocidentais. A (auto)biografia não fugiu a este destino, é também uma forma de representação desse homem. No entanto, desde a segunda metade do século XX, sobretudo em países nos quais a ideia de dominação desse personagem vem sendo questionado pela emergência de outros grupos e outros corpos, esta lógica vem sendo questionada, transformando o lugar antes estável do sujeito da ciência e representação em terreno em disputa. Movimentos como os Estudos Subalternos, os Estudos Culturais, o debate pós-colonial africano, a decolonialidade e os estudos ch’ixi na América Latina, os estudos contracoloniais e o feminismo negro, só para ficar nos mais populares, questionam o lugar de invenção do humano e as formas como se representou a ideia de humanidade a partir do homem branco e cisgênero. Não se trata de uma luta apenas representacional, mas, para esses grupos, uma questão de vida e morte, pois seus corpos podem ser obliterados, suas vozes silenciadas e sua história apagada no simples abaixar da guarda (Matos-de-Souza; Medrado, 2022; Matos-de-Souza, 2021). A Pesquisa (Auto)Biográfica, justamente por sua ocupação com as narrativas dos sujeitos pode contribuir para que exista mais um espaço de luta de grupos epistemologicamente marginalizados pela ciência moderna, que constitua mesmo outras formas de se narrar o vivido, a partir de problemas e questões que não foram pensadas e, podemos dizer, foram solenemente ignoradas pelas narrativas hegemônicas.

Formação de professores

Por fim, voltamo-nos para os professores, que são o foco da terceira parte deste Dossiê. Após os estudos da década de 1970 sobre o chamado paradigma do pensamento do professor, a pesquisa da década de 1980 sobre o conhecimento prático e as teorias implícitas dos professores conformaram o precedente imediato para o uso de narrativas pessoais em relação na formação de professores (González-Monteagudo, 2008). Os estudos de Ivor Goodson, no continente europeu, sobre a vida e o trabalho dos professores nos apresentaram a uma perspectiva incontornavelmente (auto)biográfica. Há três décadas, Goodson comentou que era surpreendente a pouca atenção que os pesquisadores educacionais davam à vida dos professores. Essa falta de atenção contrastava com a importância que os professores atribuem ao desenvolvimento de suas vidas, o que se reflete consistentemente nos diálogos entre os professores. No mesmo período, no Brasil, Denice Catani (Catani,1991; Bueno, Catani; Sousa, 1998) desenvolvia uma aproximação do que viria a ser chamado de pesquisa (auto)biográfica em sua perspectiva de pesquisa-formação de professores ao se interessar pela forma como os professores eram inventados e como se inventavam no texto (auto)biográfico. É importante perceber este movimento de produção epistemológica, que, como nos alerta Cucicanqui (2018), pode se dar por diferentes vias, foi se movimentando em diferentes partes do mundo para o reconhecimento das vidas dos professores como fenômeno a ser observado.

Os temas mais comuns explorados em relação aos professores a partir de perspectivas biográficas são: vida cotidiana, aprendizado da profissão, ciclos e desenvolvimento da carreira docente, pensamento dos professores, atitudes em relação a mudanças e reformas educacionais, formação permanente (González-Monteagudo, 2008). A presença desses temas na narrativa dos professores evidencia tanto aspectos formativos e deformativos de suas escolhas profissionais, bem como, os processos de incertezas e precarização pelo qual passam os docentes ao longo de sua atuação nas instituições de Ensino Superior. Muitas das angústias desses profissionais, inclusive, advêm do hibridismo de sua atuação que, como docentes, precisam também atuar como pesquisadores, extensionistas e gestores em suas instituições lidando com as exigências e os estandares de produção desenvolvido por pessoas distantes de seu fazer diário. Esta é uma temática de constante renovação e provocadora de outros e novos enfoques narrativos.

Este Dossiê, portanto, anuncia algumas provocações ao (auto)biográfico que nos incitam a ver o campo com alguma renovação e novo alcance. Por isso, pedimos ao leitor que aborde as produções do Dossiê “Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção” com um olhar inquieto, de quem vê algo e se sente incomodado, e que desse incômodo saiam novas perguntas, outras escritas, outros artigos a movimentar nosso campo. É disso que precisamos neste momento, de exercícios genuínos de crítica, que gerem na pesquisa (auto)biográfica alguma tribulação.

Por fim, se você notou a enumeração no título do dossiê, saiba que recebemos um número enorme de submissões e, por isso, haverá um segundo volume a ser lançado no primeiro quadrimestre de 2024 dando continuidade a esta iniciativa. Até logo.

Material suplementario
Referências
CAPES. Catálogo de Teses e Dissertações. Capes. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3Esolbw. Acesso em: 08 set. 2023.
BUENO, Belmira Oliveira; CATANI, Denice Barbara; SOUSA, Cynthia Pereira de (Orgs.). A vida e o ofício dos professores: formação contínua, autobiografia e pesquisa em colaboração. São Paulo: Escrituras, 1998.
CATANI, Denice Barbara. Pedagogia e museificação. Revista USP, n. 8, p. 23-26, 1991.
CUCICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo Ch’ixi es posible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
GONZÁLEZ-MONTEAGUDO, José. Des approches européennes non francophones en histoires de vie. Note de synthèse. Pratiques de Formation/Analyses, n. 55, p. 9-83, 2008.
GONZÁLEZ-MONTEAGUDO, José. As Histórias de vida em educação: Entre formação, pesquisa e testemunho, In: SOUZA, Elizeu Clementino de (Org.). Memória, (auto)biografia e diversidade: questões de método e trabalho docente. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2011, p. 59-96.
MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo. El Colonialismo revisitado por la memoria. In: GARCÍA, Oscar Armando Jaramillo; SEDEÑO, Jhonnatan Moisés Curiel; RAMÍREZ, Isabel Redondo (Orgs.). Territórios, comunidades e prácticas: una lectura em clave decolonial. Pereira: Corporación Universidad Libre Seccional Pereira, 2021, p. 21-41.
MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo. A desobediência epistemológica da pesquisa (auto)biográfica: outros tempos, outras narrativas e outra universidade. Revista UFG, v. 22, n. 28, p. e22.72988, 2022.
MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo; MEDRADO, Ana Carolina Cerqueira. Dos corpos como objeto: uma leitura póscolonial do “Holocausto Brasileiro”. Saúde em Debate, v. 45, n. 128, p. 164-177, jan./mar. 2022.
MILLS, Charles Wright. La imaginación sociológica. México: F.C.E, 1998.
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