Dossiê
Recepción: 16 Mayo 2023
Aprobación: 28 Julio 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2023.15.36.10-28
Resumo: A partir de narrativas auto-biográficas de professoras de Biolo-gia, construídas em um dispositivo de pesquisa-formação, apresentamos um exercício interpretativo, tendo como fio condutor a relação entre tempo e narrativa, proposta por Paul Ricoeur (2010). Na análise, entendemos que os acontecimentos apresentados ocorrem em tempos distintos, pois alguns já aconteceram (passado) e outros são apenas esperados (futuro), desdobrando-se no triplo presente: passado, que contém imagens-vestígios das profes-soras; o do presente, das histórias de vida, partilha e edição no grupo, alcançando compreensões relaciona-das à formação inicial; e o do futuro, que carrega imagens-sinais de projetos pessoais e profissionais.
Palavras-chave: Hermenêutica, Nar-rativas autobiográficas, Formação docente.
Abstract: This paper presents an interpre-tive exercise based on the relationship between time and narrative proposed by Paul Ricoeur (2010). It is grounded in autobiographical narratives of biology teachers constructed in a research-training device. In our interpretation, the events in the narratives refer to different moments: some have already happened (past), while others are expected to happen (future), unfolding in a triple present. The present of the past contains impression-images of the teachers’ past. The present of the present is the time of configuring life stories, sharing and editing narratives within the group, and reaching understandings related to initial education. Finally, the present of the future carries sign images of personal and professional projects planned by the teachers.
Keywords: Hermeneutics, Autobiographi-cal narratives, Teacher training.
Resumen: A partir de narrativas autobiográficas de profesoras de biología construidas en un dispositivo de investigación-formación, presentamos un ejercicio interpretativo teniendo como hilo conductor la relación entre tiempo y narrativa propuesta por Paul Ricoeur (2010). En la interpretación entendemos que los acontecimientos en las narrativas estuvieron presentes, pero algunos ya sucedieron (pasado), mientras que otros aún no han sucedido (futuro), desple-gándose en un triple presente. El presente del pasado contiene imágenes-vestigios del pasado de las profesoras, el presente del presente es el tiempo de la configuración de las historias de vida, de la compartición y de la edición de las narrativas en el grupo, alcanzando comprensiones relacionadas con la formación inicial, mientras que el presente del futuro lleva imágenes-señales de los proyectos personales y profesionales proyectados por las docentes a partir de la escritura de sus narrativas.
Palabras clave: Hermenéutica, Narrativas autobiográficas, Formación docente.
Contextualização
Em dezembro de 2023 os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, aqui denominados de Institutos Federais (IFs), em sua atual estrutura, celebrarão 15 anos de existência. São instituições centenárias, comprometidas com a Educação Profissional e Tecnológica (EPT).
Como marco mais recente, durante os dois mandatos anteriores do governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) houve diversas iniciativas voltadas a estabelecer reformas na EPT. Inclui-se neste período o desenho inicial da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), pela qual propôs-se a criação dos Institutos Federais e a transformação dos 31 CEFETs, 75 Unidades Descentralizadas de Ensino (UNED), 39 Escolas Agrotécnicas, sete Escolas Técnicas Federais e oito Escolas Vinculadas à Universidade em campi dos IFs (Pacheco, 2012).
A criação dos IFs aconteceu com a promulgação da Lei n. 11.892/2008, trazendo o compromisso dessas instituições com “a verticalização do ensino, oferecendo a oportunidade para que seus estudantes possam cumprir diferentes níveis e modalidades, da educação básica à educação profissional e educação superior” (Ferreira; Gastal, 2021, p. 196).
Com o advento da RFEPCT os IFs se consolidaram como mais um lócus de formação de professores (Camargo; Castro, 2016), pelo fato de possuírem a prerrogativa legal de ofertar uma parcela de, no mínimo, 20% de vagas em cursos voltados à formação de professores, sempre com foco no ensino de ciências e matemática (Brasil, 2008).
A imbricação dos IFs enquanto nova institucionalidade no cenário da formação de professores no Brasil foi o pano de fundo para o desenrolar de nossa pesquisa de doutorado. Realizamos uma abordagem (auto)biográfica, procurando perceber como professoras-egressas da Licenciatura em Ciências Biológicas elaboraram sentidos para suas experiências e como esses sentidos se conectam a formação inicial vivida no Instituto Federal. A externalização desses sentidos se deu a partir de narrativas autobiográficas, construídas durante um dispositivo de pesquisa-formação entre sete professoras de biologia. Essas docentes se dedicaram à escrita, à leitura-escuta, à edição e posterior, reescrita das narrativas em um processo síncrono de investigação e de formação.
A busca pela compreensão de si é um dos efeitos quando se trata da escrita narrativa autobiográfica, e sabemos por meio de Ricoeur (2011) que, o compreender não é realizado de forma direta, imediata e introspectiva. Senão, através da reconstrução de uma narrativa externalizada, mediada pela interpretação do outro, que por sua vez, participa e interfere sobre ela.
A compreensão só pode ser efetivada no interior da linguagem, por meio de desvios e mobilizando um conjunto de mediações interpretativas de conhecimentos diversos, como da linguística, psicanálise, história, filosofia e sociologia, corrente denominada por Ricoeur (2010) de “via longa”.
É por essa via longa, mediada pela noção de tempo e narrativa apropriada de Paul Ricoeur (2010) que realizamos interpretações das narrativas autobiográficas das professoras participantes. Na multiplicidade de sentidos dos textos autobiográficos buscamos recontextualizá-los a fim de alcançar a compreensão do outro e, ainda, compreendermos a nós mesmos.
Nosso objetivo, neste artigo, é apresentar esse exercício interpretativo das narrativas docentes tendo como fio condutor a relação entre tempo e narrativa depreendida de um dispositivo de pesquisa-formação. Almejamos ainda, sinalizar as contribuições da hermenêutica filosófica de Ricoeur (2011) para pensarmos as pesquisas e as práticas de formação de professores.
Ao longo de nosso percurso investigativo fomos sendo interpelados por muitas questões hermenêuticas, que tentaremos elaborar neste texto, são elas: como interpretar o que as professoras narraram? Como resistir à tentação de nos impor aos textos e interpretá-los a partir dos nossos pré-conceitos e pré-compreensões? Como não buscar as marcas psicológicas das docentes e se abrir ao mundo dos seus textos? São perguntas legítimas à luz da hermenêutica filosófica de Ricoeur e que, nos parece interessar a todas as ciências humanas. Essas provocações guiaram não apenas o processo de interpretação das narrativas, mais do que isso, conduziram a compreensão geral de nossa pesquisa.
Narrativas em Ricoeur e as narrativas docentes
Com base em Paul Ricoeur, ao nos depararmos com as narrativas, tanto orais quanto escritas, as lemos como textos, e por isso, verdadeiros mundos repletos de sentidos e referências. Assim, no encontro do leitor com o mundo do texto está o esforço interpretativo em direção à compreensão. E compreender requer habitar as realidades criadas pelo mundo dos textos, com toda a força de redefinição do real, ou seja, sua força poética.
Para Ricoeur (2010) texto e narrativa se entrecruzam e fazem parte de um mesmo plano interpretativo, funcionando como meios para se chegar à compreensão de si e do outro. A grande preocupação de Ricoeur foi a de elucidar a experiência humana através das mediações da linguagem e dos símbolos, em especial em elucidar o texto enquanto discurso escrito (Gentil, 2010, p. XIII-XV).
Ricoeur (2010) tem como tese central a ideia de que “é a narrativa que torna acessível a experiência humana do tempo, o tempo só se torna humano através da narrativa”, como explica Gentil (2010, p. XI) no prefácio de “Tempo e narrativa”, volume I. Partindo da poética de Aristóteles, o filósofo toma as narrativas “em termos do mythos (enredo, trama, intriga) da tragédia, como um ‘tecer da intriga’” (Gentil, 2010, p. XIV). No contexto de nossa tese, as narrativas autobiográficas também foram tomadas como mythos (trama), por serem fruto de um ato configurante.
Existem três motivos que assemelham narrativa e o tecer de uma intriga, segundo Ricoeur (2010). Tais razões marcaram a noção de narrativa de nossa pesquisa:
1) As narrativas colocam em uma história acontecimentos diferentes em um todo: as narrativas realizam a mediação entre acontecimentos ou incidentes individuais e uma história tomada como um todo. As narrativas fazem “mais do que relatar acontecimentos em sua ordem de aparecimento” (Ricoeur, 2010, p. 245), elas os organizam “numa totalidade inteligível, de modo que se possa sempre perguntar qual é o ‘tema’ da história” (Ricoeur, 2010, p. 114). A composição da intriga, e por extensão a narrativa, é a operação que tira de uma simples sucessão de episódios uma verdadeira configuração. Em resumo, as narrativas autobiográficas não buscam exaurir os acontecimentos, o que fazem é agrupar alguns deles com outros, excluindo alguns como destituídos de pertinência.
2) As narrativas realizam a composição de fatores heterogêneos em uma totalidade: as narrativas ao configurarem uma história compõem “juntos fatores tão heterogêneos como agentes, objetivos, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados etc.” (Ricoeur, 2010, p. 114). Isto é, para Ricoeur (2010, p. 257), “o ato de apreender conjuntamente em um único ato mental coisas que não são experimentadas juntas ou nem podem sê-lo, porque estão separadas no tempo, no espaço ou de um ponto de vista lógico”. É na narrativa que os fatos ganham existência e importância, entrando em cena com vistas a produzir explicações causais, ou seja, “faz prevalecer o ‘um por causa do outro’ sobre o ‘um depois do outro’” (Ricoeur, 2010, p. 286).
3) As narrativas fazem uma síntese do heterogêneo: as narrativas guardam duas dimensões temporais, uma cronológica que remete à dimensão episódica e a segunda, não cronológica, que expressa a configuração em uma história. Podemos então dizer que uma narrativa combina, em diferentes proporções, episódios particulares em uma sucessão configurada de uma história.
Essas três marcas refletiram na nossa percepção das narrativas das docentes, tratando de não desconectar os textos da totalidade, mas inserindo os diferentes episódios narrados dentro de um espaço-tempo criado pelas próprias histórias. Foi a junção entre cenário-contexto-configuração que nos deu o subsídio para entender por que determinados acontecimentos foram selecionados pelas professoras e outros não, contribuindo para fazer avançar a interpretação.
Compreender o texto se constitui como uma maneira de acessar a experiência trazida para a linguagem, “em última instância, o mundo e sua temporalidade que ele estende diante de si” (Ricoeur, 2010, p. 134).
Durante sete encontros desenvolvemos um dispositivo de pesquisa-formação enquanto lugar-tempo para compreendermos os processos formativos de professoras-egressas da Licenciatura em Ciências Biológicas do IF Goiano - campus Ceres, tendo por base suas narrativas autobiográficas.
As sete licenciadas, ao se inserirem em um coletivo e serem confrontadas por suas histórias de vida, fizeram emergir alguns sentidos. A articulação entre investigação e formação se fundamentou em Suárez (2018), ocorrendo: a) a produção de narrativas; b) partilha e a edição entre pares dessas narrativas; c) intensa implicação dos pesquisadores com o processo, ao realizarem a mediação e os questionamentos provenientes do ouvir/ler os textos. Frisamos ainda o aspecto formativo do dispositivo que deu a possibilidade de empoderamento e encorajamento das participantes de tomarem para si a responsabilidade por suas formações e o compromisso em levarem adiante os projetos pessoais e profissionais percebidos ao longo dos encontros.
No dispositivo de pesquisa-formação, conforme Dominicé (2010), assumimos os desafios de estabelecer uma nova relação entre investigadores e os sujeitos da investigação. Em nome dessa nova relação, concebemos as licenciadas não como meras participantes da pesquisa, mas como coinvestigadoras, verdadeiras analistas de seus processos formativos. E isto se realizou no coletivo, pelo qual investigadores e investigadas estiveram comprometidos com a formação e a produção de conhecimento.
Dentro do dispositivo encontramos em Passeggi (2011) diálogo profícuo com tempo e narrativa de Ricoeur (2010). Dessa maneira, no grupo de nossa pesquisa percorremos três instâncias: a primeira, semelhante à mímesis I (pré-figuração do tempo), corresponde ao momento de evocação de memórias de forma aleatória; a partir disso, na segunda, ao modo da mímesis II (configuração do tempo), é produzido o enredo da história ou a própria narrativa; essa narrativa é reinterpretada na terceira unidade, que seria a mímesis III (refiguração do tempo), momento em que se compartilha com o grupo e se distancia da obra buscando pelos sentidos aberto pelo mundo do texto. Essas três mímesis, segundo Ricoeur (2010), representam um círculo que se repete e cresce, formando a imagem de uma espiral que unifica narrativa e tempo (Imagem 1).

Tomando a teoria psicanalítica como exemplo, Ricoeur (2010, p. 128) demonstra como “a história de uma vida procede de histórias não contadas e recalcadas na direção de histórias efetivas que o sujeito poderia assumir para si e ter por constitutivas de sua identidade pessoal”. O sujeito busca essa coerência entre a história potencial ou incoativa e a história expressa ou efetiva que conta para si e para os outros. Portanto, em uma perspectiva ricoeuriana não é incomum que falemos em “história (ainda) não contada” enquanto história potencial, sendo o correspondente de mímesis I.
Compartilhamos da concepção de que estamos sempre em vias de compreender o mundo e a nós mesmos a partir da escuta do que a linguagem nos conta, das simbolizações e significados dispostos na cultura. Ao narrar, o indivíduo faz aparecer uma história que expressa sua implicação com diversos referentes da linguagem, compondo os acontecimentos ou as pré-histórias em uma sucessão. Os acontecimentos integram-se em uma totalidade ou síntese de um apanhado de outras histórias, o que Ricoeur (2010) denominou de mímesis II.
Ao nos encontrarmos com as narrativas docentes ou o mundo do texto e compartilharmos com suas autoras uma determinada linguagem e historicidade, ouvimos o que aquelas narrativas estavam a nos dizer. Assim, no encontro do leitor com o mundo do texto está o esforço interpretativo em direção à compreensão. Isto se assemelha à fusão de horizontes debatida por Bleicher (2002, p. 164) a partir de Gadamer, na qual o “horizonte do intérprete funde-se com o significado de um texto, [...] sem assumir um ponto de partida fixo; é antes uma possibilidade que está aberta a mudanças, quando se encontra com um outro ‘objeto’”.
Na fusão o que se busca não é uma compreensão em termos do tema do texto ou a revelação das pré-histórias que lhes deram origem, mas as referências e os sentidos que o texto abre diante de si. O recontar da história pelo leitor a partir de sua interpretação do mundo do texto disposto pelo autor é o que guia a interpretação, e faz aparecer uma nova história, reconfigurada, o que Ricoeur (2010) chamou pelo signo de mímesis III.
Na mímesis III aquilo que o leitor ou ouvinte tem acesso é o texto, ou melhor, o mundo do texto configurado em uma história, não o autor e as suas intenções diretamente. A história configurada escapa às intenções de seu autor, abrindo-se à interpretação de quem a lê ou ouve, provocando o aparecimento de uma nova história, agora atualizada pelo olhar do outro. Portanto, a história configurada mantém sua função mediadora entre o tempo prefigurado (na mímesis I) e o refigurado (mímesis III) pela interpretação do outro.
Em nosso estudo, colocamos em movimento o círculo hermenêutico durante o dispositivo de pesquisa-formação com as professoras participantes, detalhado na seção seguinte. Nessa vivência houve o estreitamento entre autobiografia e heterobiografia, de modo que, as professoras passaram de um tempo prefigurado (mímesis I), contendo o acervo de suas pré-histórias (histórias em potencial) para um tempo configurado (mímesis II) pela escrita ou narração de suas autobiografias, que só ganharam sentido à medida que foram postas à leitura ou à escuta no coletivo, e assim, o outro a sua maneira refigurou o tempo (mímesis III).
A hermenêutica filosófica de Ricoeur delineia um projeto de busca por compreender o humano em suas variadas expressões na linguagem, especificamente na construção de textos narrativos, os quais estão constantemente demandando interpretação e serem o meio para se chegar à compreensão de si e do outro. Aqui, nos parece residir uma força da obra de Ricoeur para a abordagem (auto)biográfica.
O dispositivo de pesquisa-formação
Nossa inspiração primeira para o dispositivo veio da “documentação narrativa de experiências pedagógicas” de Suárez (2010, 2018), passando pela proposta de “biografias educativas” de Josso (2010), pelos “ateliês biográficos de projeto” de Delory-Momberger (2006) e pelo trabalho com “grupos reflexivos” de Passeggi (2011). Colocamos em diálogo essas diferentes formas de prática de pesquisa e de formação, considerando que estão unidas por terem as narrativas como meio para emergir os sentidos atribuídos à experiência vivida pelo sujeito.
Em Suárez (2010) apreendemos a importância do narrar-se em um grupo, enquanto forma de construção de um espaço horizontal de co e autoformação combinando instâncias de trabalho coletivo e individual. Isso se consolidou no grupo das professoras no processo de ler-comentar-interpretar as narrativas autobiográficas de forma colaborativa entre pares.
A proposta de Josso (2010) também enfatiza o trabalho coletivo, mediante a produção de biografias educativas, caracterizadas como narrativas focadas na formação e nas aprendizagens do autor. Para Josso (2010), mais importante do que os acontecimentos narrados é a forma como o sujeito se projeta e dá sentido a sua história e a reflexão empreendida na construção do texto.
Delory-Momberger (2006) apresenta os “ateliês biográficos de projeto”. Neste, a narrativa é o momento inicial do processo de produção de uma história de vida. Após isso, o coletivo busca a compreensão do texto. A autora se aproxima de Ricoeur (2010) ao falar que essa compreensão é de tipo hermenêutico e requer certo distanciamento crítico que a existência do grupo permite, funcionando esse como “espaço de objetivação crítica e de compreensão que a proposta de formação dá acesso e que o grupo de formação realiza coletivamente” (Delory-Momberger, 2006, p. 363). Vinculamo-nos a tal concepção na medida em que compreendemos que na coletividade se efetiva a necessária distância da narrativa.
Com sentido semelhante, na prática de formação empreendida por Passeggi (2011, p. 150) em grupos reflexivos, busca-se “envolver os participantes (professores, pesquisadores, formadores em formação) em um projeto comum de partilha com o outro da experiência vivida, para compreender a si mesmo e ao outro como sujeitos históricos”.
Os encontros com as sete professoras também foram responsáveis pela produção dos dados da investigação, constituídos tanto por narrativas orais quanto escritas. As narrativas orais foram extraídas da gravação das falas das professoras durante os encontros, sendo posteriormente transcritas. As narrativas escritas foram constituídas pelos textos autobiográficos das docentes e suas reescritas em torno de duas temáticas principais.
Realizamos gravações em áudio dos sete encontros do grupo, totalizando 421 minutos de conversas. Um smartphone1 foi posicionado no centro da roda de conversa para que as falas das docentes pudessem ser capturadas e utilizadas como fonte de informações para pesquisa. Logo após os encontros, procedemos à transcrição das falas, um processo demorado e que exigiu paciência. Esse processo durou três meses, resultando em 80 páginas de texto. Para facilitar a leitura e seleção dos trechos, dividimos a transcrição por encontro e utilizamos cores diferentes para identificar cada professora. Além disso, fizemos anotações laterais para guiar nossa interpretação das narrativas orais e estabelecer relações com as narrativas escritas e com os nossos referenciais teórico-metodológicos.
As professoras produziram em média três narrativas escritas, sendo que pelo menos uma das versões consistiu em uma reescrita baseada nas edições propostas pelo grupo. No total, foram escritos vinte textos, sendo dez de cada tema: “Como cheguei até aqui?” e “Minha vida no IF Goiano”. Utilizando esse extenso material, incluindo as narrativas escritas e as transcrições das narrativas orais dos encontros, procedemos à reconstrução das histórias das docentes, seguindo uma abordagem semelhante ao estágio III da mímesis proposto por Ricoeur (2010). Parte desse processo interpretativo é apresentado na seção a seguir.
O triplo presente nas narrativas docentes
Como interpretar o que as professoras narraram? Como resistir à tentação de nos colocar, de nos impor aos textos, de interpretá-los a partir de nossas pré-compreensões? Reconstruir a trama que entretece as narrativas docentes foi um longo caminho. Nesse processo, (re)lemos incansavelmente os textos produzidos em busca de fazer emergir o mundo que as histórias abririam diante de nós.
A trama emergiu de nosso esforço de integrar os dados narrativos “em um conjunto coerente, no lugar de separá-los por categorias” (Bolívar, 2002, p. 18, tradução nossa). Este autor segue dizendo, “aqui o processo recursivo se move dos dados obtidos a emergência de uma determinada trama argumental”. Foi em função da trama reconstruída que selecionamos algumas partes das narrativas e determinamos também a ordem e a finalidade dos trechos evidenciados.
Na história reconfigurada, tecemos um enredo que articulou tempo e narrativa, inspirados em Ricoeur (2010). Percebemos a temporalidade instaurada pelas narrativas entendendo que articulam as três dimensões do tempo - passado, presente e futuro. Para refletir sobre o tempo, outra vez recorremos a Ricoeur (2010) que, longamente, tratou do assunto em “Tempo e narrativa”.
Na configuração do tempo narrado, onde quer que os acontecimentos estejam (passado ou futuro) só estão na narrativa de modo presente, logo, as narrativas são configuradas a partir do tempo presente, e no presente o passado é reelaborado e o futuro é previsto (Ricoeur, 2010).
Na análise da articulação entre tempo e narrativa, Ricoeur (2010) coloca em suspeição a validade de se conceber o tempo por meio da simples passagem: passado, presente e futuro, como mera sucessão do que já foi, do que está sendo, e do que ainda não foi, respectivamente. A aposta do filósofo é a de que o tempo se presentifica em quem enuncia, emergindo a importância do presente articulado com os outros tempos da seguinte maneira: presente do passado, presente do presente e presente do futuro (Ricoeur, 2010).
Ricoeur (2010, p. 21) considera que a narrativa traz à linguagem o tempo, de forma que o passado e o futuro estão presentes: “Estamos, com efeito, prestes a considerar como seres, não o passado e o futuro como tais, mas qualidades temporais que podem existir no presente sem que as coisas de que falamos quando as narramos ou as predizemos ainda existam ou já existam”.
O convite de Ricoeur (2010) para pensarmos que o passado e o futuro estão presentes nas narrativas foi um exercício interessante, ainda mais quando se tem em mente que na escrita das narrativas autobiográficas o que se ativa em primeiro plano é a retrospecção. Para o filósofo (2010, p. 22) “a narração implica memória”, logo os elementos narrados são retirados da memória. O passado é lembrado não na forma como aconteceu, mas por meio de imagens, como vestígios deixados pelos acontecimentos que permaneceram no sujeito, na forma de imagens-vestígios (Ricoeur, 2010).
As narrativas também antecipam um futuro anunciado no presente, que se dá em concomitância à reelaboração do passado e aos acontecimentos presentes. Isso confirma o aspecto preditivo das narrativas autobiográficas, tendo em vista que “temos das coisas futuras uma ‘pré-percepção’ que nos permite ‘anunciá-las de antemão’” (Ricoeur, 2010, p. 23).
Como a memória evoca do passado imagens-vestígios, a expectativa também já existe na narrativa na forma de imagem, antecipando acontecimentos que ainda não ocorreram. São essas imagens que sinalizam, como “‘imagem-sinal’, as coisas futuras que são antecipadas, anunciadas, preditas, pré-percebidas, proclamadas de antemão” (Ricoeur, 2010, p. 23).
Sinteticamente, por meio de Ricoeur (2010), sabemos que as narrativas autobiográficas estão preenchidas por imagens-vestígios e imagens-sinais. Imagens-vestígios advindas do rememorar de um sujeito sobre sua vida, e as imagens-sinais, também proveniente da reflexão do passado e do presente colocadas sob a forma de expectativas lançadas a partir das experiências de vida do sujeito.
Nas narrativas, as professoras ressignificaram as experiências no tempo presente, recompondo-o junto ao passado e ao futuro. Não se tratou de um deslizar linear do passado, presente e futuro. Com efeito, apareceu uma composição não cronológica de acontecimentos que se deram em espaço-tempo diversos. Consequentemente, compreendemos nas histórias das professoras que os acontecimentos estiveram de forma presente, porém alguns já aconteceram, e por isso, voltam-se ao passado, outros ainda não aconteceram, portanto, projetam-se no futuro.
Inspirados em Ricoeur (2010), construímos uma trama que articulou tempo e narrativa, sendo o tempo desdobrado triplamente:
1) Presente do passado: Quais as imagens-vestígios recuperadas pela memória das narradoras? Incluímos aqui a infância, a escolarização, as primeiras professoras, a família, os percursos que as levaram a optarem pela Licenciatura em Ciências Biológicas.
2) Presente do presente: É o tempo da configuração das histórias de vida, da partilha e da edição das narrativas no grupo, alcançando compreensões relacionadas à formação, principalmente a experienciada na licenciatura do IF Goiano - campus Ceres.
3) Presente do futuro: Quais imagens-sinais as professoras projetaram a partir da escrita de suas narrativas? As histórias também realizaram uma prospecção, ao evocarem projetos de futuro. Isso se traduziu nas narrativas das professoras na forma de projetos de formação e profissionais.
De agora em diante, apresentaremos um exercício interpretativo das narrativas autobiográficas e, por conta de limitações de espaço, o recorte dará visibilidade aos aspectos marcantes das experiências das licenciadas.
As professoras-egressas da Licenciatura em Ciências Biológicas do IF Goiano - campus Ceres assumiram diversos papeis: no grupo foram as protagonistas, sem as quais o dispositivo de pesquisa-formação não teria sido possível; nas narrativas foram, ao mesmo tempo, autoras e personagens de suas histórias de vida; e de maneira geral, em nossa investigação-formação, atuaram como coinvestigadoras e coformadoras.
Coinvestigadoras não é apenas porque houve empenho pessoal em torno da autoinvestigação de suas trajetórias de vida, mas no contexto da nossa própria pesquisa. No estudo, as docentes intervieram desde o começo até o final, quando retornamos nossa interpretação das histórias para que pudessem editá-la, acrescentando, suprimindo, modificando trechos, ou fazendo sugestões à trama, tornando-as coparticipantes da interpretação.
As licenciadas atuaram ainda como coformadoras umas das outras, à medida em que partilhavam suas narrativas no grupo. Ao narrarem suas histórias iam se reconhecendo pelas semelhanças e, ao mesmo tempo, se diferenciando pelas nuances individuais dos percursos.
As professoras se formaram entre os anos de 2016 e 2017. Os encontros foram agendados em sábados letivos da pós-graduação, durante o intervalo do almoço, entre 11h e 13h, em uma sala de aula do campus Ceres. As licenciadas optaram por manter seus nomes próprios na versão final da tese e nas publicações futuras, são elas: Bianca, Cheila, Daianny, Edilene, Josiane, Marly e Tiessa.
O presente do passado
Nas passagens iniciais, as professoras evocaram imagens-vestígios de seus percursos escolares, aflorando as brincadeiras, a lembrança das cartilhas escolares, do processo de alfabetização e das primeiras professoras. Bianca2 contou:
- Fui uma criança tranquila, tive a infância cercada por brincadeiras. Fui para a escola com 6 anos. Era uma escola rural, onde uma professora só ensinava do pré a 4ª série.
Com vivência parecida em escolas rurais, Josiane reconheceu as brincadeiras e o conforto da proximidade com a sua casa como aspectos positivos vivenciados:
- Aos seis anos minha mãe resolveu me matricular para fazer o pré e como morava bem pertinho da escola conversou com a professora. [...] No intervalo os alunos não ficavam presos na escola, brincávamos de pique-bandeira na quadra do povoado, de pique-esconde aos arredores.
Na imaginação de crianças, algumas de nossas narradoras vestiam-se de professoras quando brincavam de escolinha. Essa brincadeira, enquanto um vestígio da infância apareceu nas memórias de Marly e de Cheila, ressignificando suas atuações na docência, no tempo presente:
- Nas brincadeiras de infância, adorava estar à frente de um grupo ensinando, dava aulas de ortografia. Lembro me bem o quanto frisava com os coleguinhas: “antes de P e B, só se usa M”, revelou Marly.
- Ainda quando criança carregava uma vontade enorme de ser professora. Tanto que pedi para meu pai um quadro de presente, e ele exagerado como sempre, fez um em uma parede toda para que eu brincasse de escolinha, ouvimos de Cheila.
A emoção da aprendizagem das primeiras letras, da formação das palavras e da alfabetização vieram remontadas pela lembrança da cartilha escolar, carinhosamente guardada por Daianny e relembrada, em detalhes, por Tiessa:
- Recordo-me de um dia especial em que aprendi a vogal “a”, a professora fez um desenho enorme das vogais e de suas junções com as outras, parecia que na minha mente de criança aquelas letrinhas criaram vida e se movimentaram no quadro.
A falta de recursos financeiros para bancar o Ensino Superior foi algo comum às narradoras, sendo uma realidade frequente a tantos outros estudantes em nosso País. Uma realidade que carrega outros marcadores como a posição geográfica e a questão de gênero. Assim, o IF Goiano, bem como toda a RFEPCT, ao expandirem suas unidades por diferentes regiões do Brasil, ofereceram a oportunidade para que estudantes, como essas professoras, pudessem investir em suas formações. A interiorização do ensino reavivou, no presente, os sonhos do passado, deixados de lado pelas circunstâncias da vida.
Foi Marly quem nos narrou cenas da época de construção da Escola Agrotécnica Federal de Ceres (EAFCe)3. As obras da antiga escola lhe chamaram a atenção pela grandiosidade e pela novidade a ser instalada na cidade e região. Marly impactada pela construção da EAFCe se lembrou da sua infância, recordando os pensamentos que lhe sobrevieram:
- Eu na minha imaginação de criança, pensava comigo: Será que um dia vou estudar lá?
Ao mesmo tempo, olhou ao seu redor, ponderou suas condições familiares na época e refletiu:
- Vai demorar tanto que não vai dar tempo, isso devido que, estudos na minha cultura familiar era só até o segundo grau, hoje o Ensino Médio.
De 1995 até 2008, ao tornar-se campus do IF Goiano, a instituição sofreu profundas alterações. Passou a oferecer cursos superiores, dentre eles a Licenciatura em Ciências Biológicas. É a partir desse importante marco que as professoras passaram a ter algo em comum: serem estudantes dessa licenciatura. Mas, aqui já é assunto da próxima parte da trama.
Presente do presente
A formação inicial na Licenciatura em Ciências Biológicas foi o grande tecido sobre o qual as narrativas foram construídas. O “presente do presente” foi tempo do narrar a vida e a formação, remontando as imagens das professoras enquanto estudantes-licenciandas.
Passou certo tempo para que Marly começasse a enxergar no IF Goiano uma oportunidade formativa interessante e viável, o que se deu após três anos atuando como doméstica e ter começado a trabalhar na limpeza de um Colégio da cidade de Ceres. Depois de algum tempo, Marly foi promovida à auxiliar de Educação Infantil, e isso serviu de propulsão para iniciar o Ensino Superior, cursando Pedagogia à Distância numa faculdade particular. Tudo ia bem até que:
- Nas reuniões pedagógicas comecei a observar o quanto a escola tinha dificuldade com professores de disciplinas específicas, foi daí que comecei a cogitar a ideia de cursar Biologia, narrou Marly.
Aos olhos de Marly, uma brecha se abriu para que caminhasse em busca de formação, agora tornando-se licenciada de Ciências e Biologia. Ser estudante do IF Goiano interpôs algumas dificuldades no caminho dessa professora. A realidade de um curso presencial era outra: aulas de segunda a sexta-feira, no período noturno, contrapondo-se à flexibilidade da Pedagogia EaD. Na realidade do curso noturno, como conciliar a nova rotina com o trabalho e a família?
Conviver com a múltipla jornada foi um aspecto bastante comum compartilhado nas histórias de vida. Pelo acúmulo de tarefas, Cheila sentia-se sobrecarregada. Além de morar a 60 Km de distância da faculdade:
- Trabalhava durante muito tempo de segunda a sábado das 07:00h às 17:00h, tomava um banho (quando dava tempo) e ia para o ponto para pegar o ônibus e ir para Ceres. Tinha aula até as 22:45h, chegava em casa por volta de 00:00h. E assim seguia.
Sobre a múltipla jornada, Edilene partilhou sua dificuldade quando começou a cursar a licenciatura. A filha era pequena, o trabalho exigia esforço e ainda precisava estudar à noite.
Ainda contando mais um pouco sobre as aventuras das professoras para chegarem à licenciatura. Daianny, motivada por professores de Biologia do Ensino Médio, passou a ter esse curso em seu horizonte, viabilizado pela existência do IF Goiano em Ceres. Porém, revelou que essa licenciatura não era sua primeira opção:
- Sempre gostei de comunicação e tinha o desejo de fazer comunicação de rádio e TV, uma vez que trabalhava na locução em uma rádio há três anos. Porém, devido às condições financeiras não serem tão favoráveis [...], resolvi prestar o vestibular para o curso de licenciatura em Biologia.
Durante a graduação, nas trajetórias das professoras, o incidente crítico marcante foi a reprovação, que teve papel reorientador das trajetórias. Especificamente para Bianca, é como se a chave da fortuna tivesse sido virada, e de episódios infelizes, a reprovação e um ano a mais de curso, se produzissem acontecimentos felizes - Programa de iniciação à docência, extensão, monitoria, projetos. Essa virada lhe trouxe novas oportunidades.
Edilene e Tiessa trouxeram à lembrança as mudanças sofridas pela licenciatura com o passar o tempo, o que ocorreu em paralelo às suas vivências. Edilene foi da terceira turma do curso de Ciências Biológicas e pareceu ter sentido na pele as transformações dessa licenciatura:
- Tínhamos um laboratório para realização de aulas práticas, mesmo assim, nos foi muito útil e enriquecedor.
Contou que viu:
- Grandes conquistas ao longo do curso como, um bloco para o curso, laboratórios específicos e então, ter o reconhecimento pelo MEC, obtendo conceito 4.
Levou algum tempo para que as professoras pudessem se identificar com a profissão para qual estavam se preparando. Embora tivessem ingressado em uma licenciatura, ficou claro, ao longo das conversas, que realizaram esse curso, primeiramente, porque o IF Goiano passou a existir como possibilidade viável em seus contextos.
A identificação com a docência foi acontecendo aos poucos. Na vida de Edilene, esse momento somente ocorreu no Estágio Curricular Supervisionado II, desenvolvido no Ensino Médio:
- Na fase de regência me identifiquei como professora, o quanto eu poderia contribuir em uma educação de qualidade, a minha capacidade ia além do que imaginava, relatou Edilene.
As histórias de vida das professoras revelaram o quanto a instalação da Licenciatura em Ciências Biológicas no campus Ceres do IF Goiano veio alterar suas trajetórias. A imersão nessa formação inicial provocou mudanças em seus contextos imediatos, impactando não apenas suas trajetórias profissionais, mas também pessoais, reluzindo em outras pessoas.
Até o momento da formatura, Josiane e Cheila foram as primeiras em suas famílias a cursarem o Ensino Superior. O IF Goiano e sua existência em Ceres contribuiu enormemente para isso. Na vida de Josiane, a conquista do diploma representou superar a escolaridade de seus familiares e o desestímulo dos colegas de escola. Quanto a isso escreveu:
- Meu pai frequentou a escola o suficiente para escrever seu nome, minha mãe não terminou o Ensino Fundamental e minha irmã mais velha apenas concluiu o Ensino Médio.
Na história de Marly, o avançar nos estudos pareceu reverter a projeção que sua imaginação de criança havia criado, bem como as limitações impostas por sua cultura familiar. Tradicionalmente, em sua família, os estudos se restringiam ao Ensino Médio.
Chegar a esse ponto da trama nos faz refletir como se deram os processos formativos das professoras. A busca em chegar a uma forma própria se espelhou nos desejos de se autonomizarem diante das contingências. Autonomização que veio acompanhada da superação da escolarização dos seus familiares. Autonomização frente a falta de recursos financeiros, encontrando na gratuidade do ensino do IF Goiano a oportunidade para levarem adiante seus projetos formativos. Autonomização frente às dificuldades de desempenharem os papeis sociais, de mães, esposas, estudantes e trabalhadoras.
Presente do futuro
As docentes fizeram aparecer nas narrativas imagens-sinais que prenunciaram as professoras que querem ser ou que já estão sendo. Nitidamente, a imersão na Licenciatura em Ciências Biológicas em Ceres foi fundamental para que elas viessem a enxergar a docência com outros olhos, ainda que, tivessem ingressado com o desejo de serem biólogas, espelhando-se nos estereótipos televisivos, algo posto por Tiessa, Josiane e Edilene.
A docência foi um mundo que, aos poucos, foi sendo habitado pelas narradoras. Essa profissão tornou-se também fonte de realização pessoal. Cheila confessou que desde a infância se projetava como professora, carregando a vontade de um dia se tornar uma.
Para Cheila, a prática docente se iniciou antes mesmo da formatura, ao dar aulas na escola onde havia concluído o Ensino Médio. Sobre sua escolha, revelou:
- Hoje trabalho como professora e sou extremamente apaixonada pela profissão.
A opção de Cheila em fazer a formação inicial no IF Goiano delineou um projeto profissional futuro que se dá em conexão ao que foi experienciado no curso. Essa professora almeja prosseguir investindo na carreira, por isso cursou a especialização no campus, e ainda deseja o mestrado e o doutorado.
Durante o funcionamento do nosso grupo da pesquisa, Daianny, Josiane e Tiessa ainda não atuavam como professoras. Todas demonstraram o interesse de que um dia isso viesse a acontecer. A professora Daianny fez um pequeno ensaio ao brincar de escolinha. Com uma carteira escolar velha escanteada em sua casa, todas as vezes que a vizinha analfabeta a visitava, ela lhe ensinava as letras e a formação de palavras. Pareceu-nos que esse acontecimento teve força suficiente para manter vivo o desejo de Daianny em mudar de área de atuação e cursar Pedagogia.
O desejo de tornar-se professora no futuro floresceu em Josiane quando ela conseguiu vencer os desafios dos Estágios e ganhou confiança suficiente em sua prática docente.
Durante a graduação, Tiessa também foi se identificando com a docência:
- Não somente pelas disciplinas teóricas do curso, mas sim, quando tive que colocar em prática todo o conhecimento que vinha sendo adquirido ao longo do curso nos estágios dos Ensinos Médio e Fundamental.
O futuro anunciado pelas professoras foi reorientado à medida que a formação foi avançando e que novas possibilidades foram abertas pelo IF Goiano. Do Ensino Médio nasceu a vontade de cursarem o Ensino Superior. Da licenciatura almejaram tornarem-se professoras de Ciências e Biologia. Da Especialização veio a certeza de que outras oportunidades formativas virão pelo IF Goiano. Então, o mestrado e o doutorado são possibilidades cuja convicção de que irão se concretizar tem ressonância na própria vivência dessas sete professoras junto ao IF Goiano.
As professoras levam em suas biografias marcas dos processos educativos vividos, e nisso, o campus Ceres teve papel fundamental. Refletimos com Delory-Momberger (2009), que os projetos profissionais e pessoais das docentes incorporam os objetivos e valores que representam a instituição, bem como seus modelos e projetos educativos. São projetos que apontam o crescente e constante esforço de investimento dos IFs na verticalização do ensino, ofertando novas oportunidades para que estudantes prossigam, restituindo-lhes a esperança de que conseguirão alcançar as projeções preditas em suas histórias no tempo presente.
Post-scriptum
O termo post-scriptum remete àquilo que ainda não foi dito. É acrescido depois do texto principal, servindo para trazer informação relevante ao final da escrita. Utilizamos desse recurso para tecer algumas reflexões sobre o dispositivo de pesquisa-formação e sinalizar contribuições da hermenêutica filosófica de Paul Ricoeur para o dispositivo e o processo de pesquisa como um todo.
Ao nos assumirmos como escritores para reconfigurar as histórias de vida das professoras experimentamos viver na pele dos romancistas, tipo Amós Oz (2019). E assim, ao ouvir e ler as narrativas fomos tomados pela curiosidade de um escritor. Escrevemos e experimentamos entrar na pele dessas personagens.
No dispositivo de pesquisa-formação, tomamos o cuidado de deixar as professoras livres para escreverem sobre si mesmas. Apenas direcionamos o tamanho dos textos, nem curtos demais, a ponto de se tornarem ininteligíveis e nem longos demais, para não serem cansativos ao leitor. Chamou-nos a atenção o fato de que muitas escreveram seus textos à mão. De modo que, concordamos com Oz (2019) ao dizer que as histórias, tanto quanto as maçãs são feitas de coisas que não vemos (como água, sol, terra, adubo), mas que estão presentes de modo transformado, e então, pudemos ler em cada letra a emoção ressignificada pelas mãos de quem as teceu.
A principal dificuldade com a escrita relatada pelas docentes foi a de selecionar, dentre suas pré-histórias, aquelas que faziam sentido para a totalidade do que gostariam de narrar. Ao longo das escritas se defrontaram com as questões: O que foi importante para minha formação? O que os pesquisadores querem ouvir? O que vai ser mais relevante para a pesquisa?
No processo de narrar-se as docentes foram depreendendo alguns efeitos que a escrita de si produz, como o retorno a si mesma. Escrever tem a ver com a saída de si mesmo, pondo-se à leitura e interpretação do outro, e ao mesmo tempo, representa um retorno a si mesmo. E isso acontece pela função que a escrita autobiográfica exerce no rememorar e no reviver da experiência. Essa contemplação do passado não é uma atividade qualquer, é produtora de sentidos que são ressignificados pela escrita na perspectiva do presente.
Na busca por escreverem aquilo que o pesquisador queria ouvir, as licenciadas se deram conta de que falar de sua formação inicial, foco principal dos textos, não seria uma simples seleção e ordenação dos acontecimentos exclusivamente vividos na graduação, mas traria marcas familiares, profissionais.
Na partilha das narrativas, as professoras foram percebendo elementos contrastantes em suas histórias. Durante esse processo, ressaltaram as diferenças e as similaridades, chegando à tomada de consciência de si mesmas e do outro. Oz (2019, p. 142) assinala que o leitor de um texto literário também toma consciência, “tanto do que é estranho quanto do que é conhecido”.
A escuta e a edição se complementaram durante o dispositivo de pesquisa-formação. A complementariedade se evidenciou quando as participantes passaram para uma prática de indagação sobre as narrativas, que se deu por meio da experiência de editar, e esta é uma experiência vivida no corpo, conforme De La Fuente (2007). Dizer que editar é uma experiência corpórea, é relacioná-la com a escuta e ao uso dos cinco sentidos.
Na edição das narrativas, o grupo enfrentou um desafio que consideramos ser uma questão que cabe a hermenêutica filosófica de Ricoeur (2011): Como estar próximo tomando distância e se estranhando diante da história do outro? Como estar distante da história estando próximo do outro? Quando as professoras passaram a interpretar coletivamente suas narrativas, buscaram superar dialeticamente esse distanciamento, trazendo para perto o que parecia distante, passando a pertencer à história do outro. A autonomia dos textos narrativos foi determinante para a escuta e, mais ainda, para a edição, é o que nos diz De La Fuente (2007, p. 9, tradução nossa), “a relação entre indagadores está mediada por textos”.
A edição aconteceu através da mediação dos textos que foram interpretados coletivamente. No grupo de nossas professoras, editar implicou distanciar-se do que se ouviu, estranhando-se, e uma vez instalado um espaço de confiança, permitiu que o outro pudesse participar da história, fazendo “proposições interpretativas feitas com prudência” (Barbier, 2004, p. 97). A confiança foi facilitada pelas indagações respeitosas e propositivas das professoras sobre as histórias umas das outras, ao mesmo tempo em que a distância tomada diante do texto permitiu as múltiplas interpretações.
Pelo viés da hermenêutica filosófica de Ricoeur (2011) percebemos que durante a edição o que se fez foi um convite à participação do outro na história, assim, a entrada e a interpretação do outro na narrativa tornou esse indivíduo participante da biografia alheia. Essa relação leitor-texto ou melhor, mundo do texto-mundo do leitor exerce influência sobre o modo como o narrador-sujeito interpreta sua existência.
A partilha das narrativas e as inúmeras leituras cruzadas no grupo nos permitiram ter a certeza de que a presença do outro amplia a visão que temos de nossa própria história, novamente pela distância e pela pertença.
Na história que contamos sobre a vida e a formação das professoras não quisemos esgotar sentidos, muito menos, ousamos definir quem são elas ou julgar suas decisões e escolhas. Por se tratar de uma compreensão parcial, sentimos como Oz (2019) que, bem no fundo do coração as coisas não saíram do jeito que enxergamos ou ouvimos ou lemos. Para Oz (2019, p. 32), em “todo livro há pelo menos três livros: o livro que você leu, o livro que eu escrevi, que tem de ser diferente do livro que você leu, e também um terceiro livro: o livro que eu escreveria se tivesse força o suficiente. Asas o suficiente”.
Neste texto, nos dedicamos a reconfigurar as narrativas de nossas professoras travestindo-nos de romancistas. Compusemos, como diria Oz (2019, p. 12), “uma história, que, com certeza, é feita de uma soma de encontros e experiências e atenções”. E pela hermenêutica filosófica, sabemos que entre as nossas intenções projetadas na escrita e a leitura realizada pelo leitor há espaço para a abertura de muitos outros mundos. Fica o convite!
Fontes
FARIA, Bianca Patrícia de. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
MOTA, Daianny de Souza da. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
PIRES, Cheila Aparecida Pires. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
RIBEIRO, Marly Aparecida dos Santos. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
SENA, Josiane Aguinelo Lima. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
SILVA, Tiessa Lorraine Miguel da. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
SOUZA, Edilene Maria Batista de. Entrevista concedida à Gustavo Lopes Ferreira. Ceres, 2018.
Referências
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Notas