Dossiê
Viado na escola: racismo e homofobia em trajetórias de vida-formação de professores negros
Faggots at school: racism and homophobia in the life and education paths of black teachers
Queer en la escuela: racismo y homofobia en las trayectorias vitales y formativas de los profesores negros
Viado na escola: racismo e homofobia em trajetórias de vida-formação de professores negros
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 36, pp. 57-70, 2023
Universidade Estadual do Paraná
Recepción: 16 Mayo 2023
Aprobación: 20 Junio 2023
Resumo: O artigo discute questões relacionadas à formação de professores negros/viados no Território Sertão do São Francisco, entre os estados da Bahia e Pernambuco. A (auto)biografia configura-se como dispositivo central na perspectiva adotada, pois revela o lugar das compreensões aqui pretendidas. Para isso, os sujeitos da investigação produziram narrativas sobre suas próprias trajetórias de vida, por meio de entrevistas (auto)biográficas, nas quais, sem roteiros estruturados, foram convidados a dizer sobre si mesmos, como tornaram-se professores. Narrar, aqui, é gesto político-científico de inscrição da presença dos sujeitos no mundo, pois lhes possibilita diversos modos de compreensão da realidade, por meio do questionamento e aciona-mento da memória. Acontecimentos, lugares e pessoas tecem a trama sobre o dizer-se viado, negro, professor. Nessa perspectiva metodológica, os conheci-mentos se produzem na experiência do vivido pelo corpo que se diz no mundo em uma temporalidade biográfica. Aqui, estamos interessados em como o racismo e a homofobia estão presentes nessas trajetórias.
Palavras-chave: Formação de professo-res, (Auto)biografias, Negros, Viados.
Abstract: This article discusses issues related to the teacher development of black/queer teachers in the Sertão do São Francisco territory between the states of Bahia and Pernambuco. The (auto)bio-graphy is configured as a central device in the adopted perspective because it reveals the place of the intended understandings. Thus, the research subjects produced narratives about their life paths through (auto)biographical interviews, where, without structured scripts, they were invited to talk about themselves and how they became teachers. Narrating is, in this text, a political/scientific gesture of inscription of our presence in the world, for it enables us to understand reality in different ways, by questioning and triggering memory. Events, places, and people build the narrative plot about being a homosexual, a black person, or a teacher. In this methodological perspective, knowledge is produced in the experience of what is lived by the body that says itself in the world in a biographical temporality. We are interested in how racism and homophobia are present in these trajectories.
Keywords: Teacher education, (Auto)bio-graphies, Blacks, Faggots.
Resumen: El artículo discute cuestiones relacionadas con la formación de profesores negros/queer en el Territorio Sertão do São Francisco, entre los Estados de Bahia y Pernambuco. La (auto)biografía se configu-ra como un dispositivo central en la perspectiva adoptada, porque dice el lugar de las comprensiones aquí pretendidas. Para ello, los sujetos de la investigación produjeron narrativas sobre sus propias trayectorias de vida, a través de entrevistas (auto)biográficas, a las que, sin guiones estructurados, fueron invitados a decir sobre sí mismos, cómo llegan a ser profesores. Narrar es aquí un gesto político/científico de inscripción de nuestras presencias en el mundo, ya que nos permite diversas formas de entender la realidad, a través del cuestionamiento y el desencadenamiento de la memoria. Acontecimientos, lugares y personas tejen la trama narrativa sobre ser marica, negro, profesor. En esta perspectiva metodológica, el conocimiento se produce en la experiencia de lo vivido por el cuerpo que se dice en el mundo en una temporalidad biográfica. Aquí nos interesa cómo el racismo y la homofobia están presentes en estas trayectorias.
Palabras clave: Formación de professores, (Auto)biografias, Negros, Maricones.
Introdução
Este texto nasce das investigações sobre trajetória de vida/formação de professores viados que têm sido feitas no Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e História Oral (Grafho), grupo esse implicado em pensar os processos formativos por meio de diferentes modos de (auto)biografização dos diversos sujeitos que fazem parte das relações educativas escolarizadas e/ou não, na roça e/ou na cidade. Pensando, assim, a educação associada aos modos de narrar a vida que está diretamente implicada nas relações sociais/culturais de poder daqueles que dizem sobre si, estes, por sua vez, sempre socialmente elaborados.
Este texto é, então, resultado das investigações feitas com professores negros/viados quando tecemos compreensivelmente corpus investigativos produzidos em narrativas geradas por meio de entrevistas autobiográficas com professores negros/viados no Vale do São Francisco, nas fronteiras entre Bahia e Pernambuco. Neste trabalho, tratamos de como dois participantes da pesquisa percebem situações de homofobia e racismo na escola ao narrar suas próprias trajetórias de vida.
Os sujeitos da investigação são então nomeados por meio de uma metáfora, com o objetivo de proteger seus nomes para que não ocorra nenhum tipo de exposição no que diz respeito à divulgação do conteúdo de intimidade das pessoas envolvidas. Desse modo, esses sujeitos são chamados por nós de Pérolas, cada uma com uma cor, mas todas no mesmo contínuo de identificação, como numa espécie de fio de conta, objeto litúrgico nas religiões de matriz africana que comunica a partir de suas cores os orixás daquele e daquela que se adorna com tal objeto. Mesmo com isso, as cores não foram escolhidas com o intuito de identificar os orixás dos sujeitos, haja vista que nem todos pertencem ao culto dessas divindades.
Ao longo das narrativas, percebe-se um processo de estranhamento de si, em trajetórias marcadas pela descoberta da homofobia e do racismo, por meio de sistemas de violências estruturais e cotidianas que enfrentam durante todo o percurso da vida/formação, de diferentes modos, dentro e fora da escola. Ainda na infância, são lançados numa dupla diáspora, aquela que se vive inclusive nos seus quilombos, nos seios das relações familiares e comunitárias. O corpo negro/viado vive sob a égide de duas estruturas de violências que o torna vulnerável não somente dentro de casa, mas também em instituições e lugares como a escola.
O (auto)biográfico
Os estudos (auto)biográficos têm se apresentado terreno fértil para questões investigativas que dizem sobre os processos de individuação dos sujeitos. Isso por meio de uma aproximação radical com o corpo provocado a dizer sobre si, numa espécie de estímulo a fazer brotar o testemunho da vida vivida, para que, com isso, produzamos narrativas tecidas nas experiências do vivido pelos corpos que narram. Essas experiências são inevitavelmente históricas e sociais, elas inscrevem o ser que fala sobre si no mundo por meio da temporalidade biográfica. Esta “é uma dimensão constitutiva da experiência humana, por meio da qual os homens dão forma ao que vivem” (Delory-Momberger, 2016, p. 136), dão sentido à sua presença no mundo.
O biográfico é lugar de produção e distribuição de significados discursivos, singulariza e, ao mesmo tempo, produz seres sociais. O método (auto)biográfico é esforço de recuperar a dimensão sócio-histórica-cultural e subjetiva do vivido pelo indivíduo, o sujeito autobiográfico.
A atividade biográfica realiza assim uma dupla e complementar operação de subjetivação do mundo histórico e social e da socialização da experiência individual: ela é ao mesmo tempo e inseparavelmente aquilo por que os indivíduos se constroem como seres singulares e é por isso que se produzem como seres sociais (Delory-Momberger, 2016, p. 138).
As investigações (auto)biográficas percorrem os caminhos por onde se fez/fazem as vidas e as aprendizagens dos sujeitos investigados, num processo de socioindividualização. Por meio delas, é possível observar como os corpos se inscrevem por meio das marcas sóciohistóricas que os atravessa, uma vez que nos fazemos com os outros, em modos de socialização, de subjetivação, de identificação e produção de identidades. Nossas narrativas estão carregadas de significados e sentidos partilhados, sóciohistoricamente e culturalmente construídos. As trajetórias de vida são marcadas por traços de geração, de classe, de gênero, de raça, de sexualidade que se manifestam de diferentes formas em diversos espaços e situações de sociabilidade vividas pelos indivíduos.
O método (auto)biográfico (Souza; Meireles, 2018; Passeggi; Souza, 2017) tem sido bastante importante nas investigações em formação de professores e professoras, especialmente por seu valor heurístico. Esse método não se limita ao desvelamento dos momentos formativos de nossas vidas, pois ele próprio tem uma dimensão formativa potente. Ao promover a conexão e interação entre o conhecimento escolar, a história de vida e o desenvolvimento profissional/intelectual, o sujeito autobiográfico produz entendimentos de si e assim melhor se engaja na elaboração do seu próprio eu, recriando-se em alicerces instaurados no comprometimento consciente e responsável do seu agir no mundo. Essa abordagem metodológica possibilita que o sujeito seja ator e autor da sua própria história, assim como afirma Souza (2007, p. 69):
Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes. A centralidade do sujeito no processo de pesquisa e formação sublinha a importância da abordagem compreensiva e das apropriações da experiência vivida, das relações entre subjetividade e narrativa como princípios, que concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria história.
Essa perspectiva investigativa se faz possível devido ao surgimento de concepções científicas que, ao escapar das grandes narrativas, interessam-se por elaborações de conhecimentos localizadas nos lugares onde se vive a vida, em itinerários ordinários que são dotados de sentido por aqueles que narram sobre si num tempo (auto)biográfico. Tais narrativas podem ser consideradas recriações do vivido numa tentativa de invocação daquilo que se é, são re/elaborações permanente, com possibilidade de atualização, assim como traz Bolivar (2012). É anúncio. É devir a ser.
Esse método nos ajuda, assim, na construção de compreensões acerca das histórias dos sujeitos em seus contextos, observando as interações do singular ao universal. A (auto)biografia rompe com modelos investigativos que preconizam o distanciamento do pesquisador com os outros sujeitos da investigação. Em estudos (auto)biográficos esses outros recuperam seu lugar de protagonismo na produção do conhecimento pretendido, deixam de ser objetos e passam à condição de também pesquisador, tornam-se investigadores dos seus próprios processos formativos.
Preocupamo-nos, então, em como sujeitos negros/viados se constituem docentes. Como as narrativas autobiográficas, mobilizadas por meio do acionamento das memórias, constituem sentido e, com isso, aprendizagens sobre ser professor. Por isso, a memória é instrumento importante. Memórias são inevitavelmente sociais e coletivas, são flutuantes, sofrem transformações, pois estão em feitura permanente. As flutuações ocorrem no momento mesmo em que a memória é articulada. A memória é constituída de acontecimentos - vividos pessoalmente ou por tabela - por pessoas, personagens, lutas, conflitos, que dizem sobre o sujeito que narra e os outros que também fazem parte da narrativa (Pollak, 1992). Garimpar a memória é lugar potencial de produção do conhecimento aqui pretendido.
Essa memória é alvo de análise e compreensão no momento mesmo de narrar o vivido, de acionar uma sequência de momentos e eventos, organizando-os de modo a construir sentidos sobre a vida, sobre si e o grupo. Análise e compreensão que se manifesta, inclusive, no momento de decidir o que deve ou não ser dito, o que deve ou não ser silenciado. A memória é, inevitavelmente, acionada, invocada em nossas narrativas sobre trajetórias de vida-formação. Assim o “narrar é enunciar uma experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos um significado” (Souza, 2007, p. 66).
“Eu tinha algo ali diferente”: estranhamentos de si
Percebemo-nos viado num processo de estranhamento de si, numa sensação de inadequação, como se não fossemos completamente parte do lugar. Essa percepção vem como num gesto de desobediência no movimento mesmo do cogitar não ser heterossexual. Pérola Preta nos diz que, desde muito cedo, na infância, conviveu com uma sessão de estranheza de si. Tinha nele algo diferente dos demais, parece que fugia a uma regra, desviava daquilo que se esperava dos garotos também negros como ele e que viviam na mesma comunidade. A questão racial naquele período não era percebida por ele, pois sua sociabilidade se limitava à comunidade majoritariamente negra. Assim como já nos chamou atenção Veiga (2019), um corpo negro/viado vive numa dupla diáspora.
Desde a retirada forçada dos povos africanos dos seus territórios de origem, impulsionada por uma complexa engenharia da escravidão moderna, os povos negros ainda hoje vivenciam a diáspora, pois foram obrigados a viver em países antinegros(as), o que instaurou em suas subjetividades uma sensação permanente de não lugar, de medo e vigilância das inúmeras possibilidades de violências vividas. No Brasil, a violência contra esses povos funciona como alicerces de um Estado erguido para privilegiar os homens brancos, inclusive com esforços estatais em políticas migratórias de branqueamento da nação durante a primeira metade do século XX, marginalizando ainda mais as populações negras recém-saídas da escravidão e oferecendo subsídios financeiros aos recém-chegados da Europa: “A subjetividade negra é diaspórica por trazer em sua memória corporal e genealógica a saída de seu lar, de seu espaço de segurança, de si e da cosmogonia de seu povo” (Veiga, 2019, p. 81).
O homem negro/viado vivencia, assim, uma dupla diáspora, pois a sensação de insegurança e de não lugar se instaura mesmo diante daqueles que com ele vivenciam a diáspora enquanto povo. Isso ocorre porque os padrões brancos heteronormativos regulam de modo colonizador as subjetividades dos negros que internalizam a masculinidade branca na tentativa de serem reconhecidos homens. Para Veiga (2019, p. 83), essa segunda diáspora é ainda mais nociva, “posto que essa segunda barreira à aceitação acontece em seus próprios quilombos, ou seja, em sua família, em sua comunidade, e até mesmo nos movimentos negros”.
A igreja evangélica que Pérola Preta frequentou, por meio do seu discurso teológico do pecado, foi um bloqueador da experimentação sexual na adolescência. Seu desejo sexual parecia ser algo não possível de exercício, pela ameaça de contrariar uma vontade superior, divina. Ameaça essa que precisava ser então reprimida, pois, caso contrário, já não se era um bom cristão. A comunidade religiosa foi um espaço de sociabilidade importante durante sua infância e adolescência, pois em periferias como a que ele cresceu, a igreja acaba sendo um dos poucos espaços de sociabilidade para além da família; esta que também não se apresentava como espaço seguro para conversar sobre essas questões, estranhamentos e inadequações: “Eu tinha algo ali diferente. Mas devido estar na igreja né, tinha toda aquela coisa de que era pecado e tudo mais. Eles não davam liberdade a essa sexualidade, a gente não conversava sobre isso, minha mãe não tinha abertura pra falar sobre essas coisas então, e eu ia só vivendo... isso não era aflorado, isso era reprimido por mim” (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
Ele ainda nos diz que, ao chegar à adolescência, aquela sensação de estranheza ficou ainda mais aguçada. Todos os outros garotos estavam vivendo suas primeiras experiências sexuais, os colegas estavam todos namorando as meninas, mas para ele era difícil, não conseguia estabelecer esse tipo de relação com elas. A interdição do namoro para os jovens pela igreja acabava sendo estratégica, pois de algum modo, justificava a ausência de uma parceira, tudo não passava de uma postura de obediência a Deus: “mas aí, chegou a adolescência, aí veio aquela… de todo mundo namorando e tudo mais, e eu que não...não dava certo, eu até tentava ficar com uma menina aqui, outra ali...mas não dava! E também não podia por conta da igreja né?! Não podia namorar, não tinha essas coisas” (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
Pérola Vermelha também se lembra de sentir, durante a infância e adolescência, essa sensação de estranheza. Como se estivesse algo fora da ordem natural das coisas, como se houvesse em si o inabitável, aquilo que não podia ser. Rotas de fuga foram então traçadas na busca dos caminhos certos destinados por Deus aos homens. Algumas experiências sexuais com mulheres foram vivenciadas nessa busca, tais experiências faziam parte do comportamento esperado pelo grupo, “era importante fazer exibições públicas de uma parceira nas festas e atividades sociais” (Pérola Vermelha, Entrevista, 2021).
A igreja também cumpriu um importante papel pastoral de repressão moral da sua sexualidade, pois, segundo o seu discurso, ela escapava ao modo correto esperado por Deus. Um deus que é anterior à nossa vontade, que deve inclusive orientar o nosso desejo, fiscalizador dos nossos atos por meio de sua onipresença: um deus que tudo vê, tudo julga e condena. Deus que prescreve os modos corretos de ser, no amago mesmo da natureza do gênero e do sexo, nossa mais radical “verdade” no mundo. Um deus que, com isso, tem o poder de nos colocar no caminho certo, de retificar quaisquer desvios.
Tinha muito aquela questão da igreja, que era pesada, muito pesada, assim, eu não me arrependo de ter feito parte da igreja, acho que teve um processo bacana assim enquanto pessoa, de ética e tudo mais, mas ao mesmo tempo foi um período muito ruim, de reprimir isso sabe?! Porque tipo, era uma visão muito louca de que era pecado, então eu ficava muito indignado assim com Deus: ‘Por que eu sinto isso? Por quê?’ Sabe?! Até pedir a Deus pra tirar a vida, sabe?... Porque, eu não aguentava mais... porque eu já sabia. Então quando eu via as pessoas pregando e falando sobre aquilo, parecia que estavam falando comigo, de mim, então, nossa...era algo muito ruim (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
Esse processo de estranhamento diante dos discursos e das práticas religiosas é povoado de sofrimento ao corpo estranho, pois o impelem a negar a própria sexualidade, o próprio desejo, isso por medo de não ser aceito no grupo, numa tentativa de se manter sob o amor e proteção do núcleo comunitário e familiar. Esse sofrimento se manifesta de tal modo, chegando a se cogitar a morte como única solução possível para fazer parar aquilo que se sente.
O Grupo Gay da Bahia (Oliveira; Mott, 2020) notificou no ano de 2019 um número de 32 suicídios entre a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais (LGBTQIA+) no Brasil, sendo que 12 ocorreram entre a população gay, o que corresponde a 37% do número de ocorrências registradas. 40,62% das vítimas LGBTQIA+ de suicídio estão entre 14 e 34 anos, ou seja, parte significativa dessas pessoas é jovem. Os dados produzidos pelo Grupo Gay da Bahia são importantes, mas ainda precários dado às condições de registro destes, haja vista a falta de política estatal na produção desse tipo de informação. Por isso, esses números tentem a ser ainda maiores em termos reais.
O fenômeno do suicídio acomete muitos da nossa comunidade LGBTQIA+, a recusa da família e da comunidade religiosa em acolher suas identidades de gênero e sexuais é um dos motivos que mobilizam tal ato de violência. No ano de 2018, o jovem paraibano Yago Oliveira foi encontrado enforcado dentro do quarto. Meses antes, ele usou as redes sociais do Facebook para desabafar sobre os problemas de homofobia vividos dentro de casa, das violências sofridas numa família de Mórmons.
Esses processos de estranheza, que produzem sofrimentos, manifestam-se no confronto com o “grande homem”, narrativa que se impõe ideal sobre os diversos modos de constituição de masculinidade. Dissidentes sexuais, homens negros e periféricos são subalternizados por essa grande narrativa limitante da existência, que não comporta os diferentes modos de ser e viver no mundo. Essa narrativa se impõe a todos os sujeitos como único caminho possível a ser percorrido para uma legítima masculinidade.
Louro (2018) nos diz que a declaração do gênero (menino/menina) no momento mesmo do nascimento nos lança a uma viagem, processos se instauram para orientar os rumos e as direções do corpo que acabara de nascer. A nomeação se dá então por meio de uma lógica em que o sexo é uma natureza anterior à cultura. Desse modo, não devemos escapar a essa ordem “natural” do percurso, caso queiramos ser corpos que importam, caso queiramos a garantia de proteção e preservação da vida.
“A afirmação ‘é um menino’ ou ‘é uma menina’ inaugura um processo de masculinização ou feminização com o qual o sujeito se compromete” (Louro, 2018, p. 15). Instauram-se então normas, que são reiteradas permanentemente, de como deve ser aquele e aquela que foi anunciado(a) e nomeado(a) no instante do nascimento. Normas que, no entanto, não impedem que esses nascidos desobedeçam-nas ao longo da vida: “Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões. É em referência a ela que se fazem não apenas os corpos que se conformam às regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que as subvertem (Louro, 2018, p. 17).
Esse estranhamento narrado por Pérola Preta e Pérola Vermelha, principia, de algum modo, subversões ou inconformidades da ordem do gênero/sexualidade:
Tal lugar de estranheza se fazia inclusiva nas preferências de companhias, optando assim pela proximidade com as mulheres ao invés dos homens, como numa espécie de atravessamento não desejado das fronteiras do gênero [...].
E eu era muito assim, timidozinho, não conversava, não tinha amigos nessas escolas, assim, tinha alguns ali que iam comigo, né?! Geralmente meninas, sempre rodeado de meninas (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
A companhia das meninas também foi importante para o processo de socialização escolar de Pérola Vermelha. Acreditava que, com elas, os comportamentos ditos não masculinos eram recebidos com mais tranquilidade; era possível, inclusive, desmunhecar, quebrar a rigidez dos gestos das mãos e dos braços enquanto se falava: “Eu era um menino estranho no gesto mesmo das mãos” (Pérola Vermelha, Entrevista, 2021).
A produção do corpo viado está na encruzilhada do dito feminino/masculino, no movimento de estranhar-se diante da fronteira, de se posicionar logo ali onde se coloca o ebó, no centro da encruzilhada. A aproximação dos corpos “masculinos” das coisas e gestos ditos “femininos” produz uma desestabilização nas narrativas hegemônicas que ditam os modos corretos de ser homem e de ser mulher. O viado parece ser um borrão nas linhas que demarcam essas fronteiras. Estranhar-se, então, é também entalhar o modo binário de organização dos gêneros.
Corpos vulneráveis: racismo e homofobia na escola
A educação escolar foi forjada no processo de intensa urbanização e industrialização provocada pela modernidade. Nesse contexto, ela tornou-se lugar central na classificação dos sujeitos, inclusive em relação aos postos de trabalho. Uma instituição disciplinadora - assim como percebido nos estudos de Foucault (1987) - que controlam os corpos a fim de promover uma potencialização da sua utilidade produtiva ao tempo que esmorece a sua potência de ação política. Corpos esses possíveis de serem moldados aos fins desejados, manipulados no limite mesmo dos gestos, esquadrinhados, normatizados, idealizados, disciplinados.
A escolarização também tem sido tida como sinônimo de acessão social e econômica. Uma cultura da titulação tomou conta do ambiente escolar, os sujeitos empreendem então esforços no alcance das certificações necessárias ao exercício de funções no disputado mercado de trabalho. Os sistemas de ensino funcionam como selecionadores do mercado; o valor do conhecimento é desconsiderado em detrimento do valor da titulação que se oferece.
Os currículos têm sido então forjados e orientados por prescrições que são externas ao contexto escolar. Prescrições que pouco ou nada dizem da realidade imediata vivida pela comunidade. Tais prescrições imperam, de tal modo, que a vida moral parece está sendo negligenciada aos propósitos da escola. Parece que uma vida ética não tem sido seu lugar de interesse; uma política de cuidado com as comunidades e com os seus diferentes sujeitos não tem sido o foco de implicações dessas instituições escolares. Parece, inclusive, que esse sistema de prescrições tem nos impedido de pensar essa vida moral e ética na escola, negligenciando, assim, uma série de violências vividas pelos sujeitos que fazem parte das comunidades escolares. Inclusive violências de sexo, gênero, sexualidade promovidas pelo heterossexismo, pela heterossexualidade compulsória e pela heteronormatividade, assim definidas por Miskolci (2020, p. 47-48):
Hetorrossexismo é a pressuposição de que todos são, ou deveriam ser heterossexuais. Um exemplo de heterossexismo está nos materiais didáticos que mostram apenas casais formados por um homem e uma mulher. A heterossexualidade compulsória é a imposição como modelo dessas relações amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. Ela se expressa, frequentemente, de forma indireta, por exemplo, por meio da disseminação escolar, mas também midiática, apenas de casais heterossexuais. Isso relega à invisibilidade os casais formados por dois homens ou duas mulheres. A heteronormatividade é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero.
Questões como as de raça, gênero e sexualidade, que afetam imediatamente os corpos dos sujeitos da comunidade escolar, têm sido deixadas de fora daquilo que é tido como prioridade nas elaborações curriculares. Isso pode ser observado na ausência dessas questões em documentos oficiais que orientam as construções curriculares, mas também em situações pedagógicas vivenciadas na escola, quando estas se furtam de problematizar violências vividas imediatamente no chão da escola, nas relações cotidianas. Dessa forma, negligenciam a produção de sujeitos morais, no sentido de que consigam desenvolver uma cultura das diferenças, orientada por uma forma de estar no mundo no cuidado com a vida e o bem-viver do outro.
A escola não tem sido um espaço seguro para muitos dos alunos e alunas, e também para professores e professoras. Parece que nem todos(as) têm sua cidadania plenamente assegurada nessas instituições, nem todos(as) são sujeitos de direitos, haja vista que esses corpos não estão protegidos nas relações escolarizadas. Em 2019, em uma escola municipal onde Pérola Vermelha trabalhava, ela foi surpreendida com um caso de agressão homofóbica de extrema violência. A mãe de um dos seus alunos, ao descobrir sua orientação sexual, autorizou o irmão mais velho a espancá-lo para que assim ele se corrigisse, abandonasse essas posturas “inadequadas” para a condição de homem. Uma espécie de surra corretiva, mobilizada pela crença de que a homossexualidade é um desvio moral, resultado de uma educação imprópria, possível de correção pela violência.
O aluno chegou à escola com o corpo marcado, com escoriações provocadas pelo instrumento de tortura utilizado por seu irmão na agressão corretiva. Ao saber do caso, quando Pérola Vermelha foi procurada pelas colegas de classe do aluno, ela fez uma escuta sensível com o agredido. No entanto, ao falar com a gestão escolar sobre o assunto, e solicitar um diálogo com a família, inclusive como ato pedagógico de sensibilização da construção de outros entendimentos sobre a homossexualidade, isso lhe foi negado: “O silêncio institucional foi estarrecedor, amedrontador inclusive. A gestão da escola optou em silenciar diante do ocorrido, não acionando medidas protetivas para aquele sujeito violentado” (Pérola Vermelha, Entrevista, 2021).
Nogueira (2020) nos diz que a escola moderna se realiza moralmente pleiteando uma espécie de dessexualização dos corpos. “A criança” torna-se então um princípio universal que homogeneíza alunos e alunas, seres incorpóreos. Dessexualização essa que escamoteia e invisibiliza uma série de violências motivadas pela naturalização das localizações binárias de gênero e raça:
Essa pretensa homogeneização e dessexualização faz parte das condições discursivas em que se tecem os exercícios da docência em sua vocalização das práticas pedagógicas quando são interpelados sobre os fundamentos que organizam as regras deontológicas da profissão. Sob esse discurso simulado e hipotético, entretanto, abrigam-se as desigualdades sociais que se produzem e reproduzem em meios escolares como o racismo, o sexismo, a homofobia, entre outros (Nogueira, 2020, p. 113).
Essas violências de gênero, sexualidade e raça acompanham os sujeitos da pesquisa ao longo de todo o percurso formativo, inclusive na universidade. Elas se estabelecem de diferentes modos, desde a agressão física, no silêncio institucional, até a construção de narrativas curriculares estigmatizadoras dos gays. No componente curricular História Moderna, cursado na universidade durante a graduação de Pérola Vermelha, por diversas vezes, ele afirmou ter presenciado a professora desqualificar reis absolutistas europeus afirmando que estes eram afeminados, avidados e por isso não dispunham das qualidades de um homem para governar: “Essas afirmativas nos levavam a entender que o fato de ser gay nos tornava pouco apto ou não apto a ocupar postos de governança. A turma sempre ria e se divertia com tais afirmações que diziam da impossibilidade do corpo gay ocupar tal posto, pois se aproximava das qualidades do feminino, estas impróprias para o cargo de governança (Pérola Vermelha, Entrevista, 2021).
Pérola Preta, por sua vez, relata uma violência vivida quando criança na escola. Segundo ele, o fato de ter dado risada de uma repreensão feita pela professora a outra aluna despertou nela um ataque de fúria que a fez arrastá-lo pela orelha até uma sala onde deveria ficar de castigo, privado de liberdade. Ao ser empurrado para dentro dessa sala, Pérola Preta bateu com a cabeça na porta, o que lhe causou uma pequena lesão. Essa situação de violência foi bastante traumática e lhe gerou medo de voltar para a escola. Isso aconteceu em uma pré-escola particular que sua tia estava custeando, pois sua mãe não dispunha de recursos para essa finalidade. Ele ainda lembra que era o único garoto negro da turma:
Aconteceu um episódio quando eu estava no pré aqui, teve uma professora que ela reprimiu alguma aluna, alguma coisa assim, e aí eu fui dar risada e aí ela puxou a minha orelha e me empurrou, assim levou de castigo né e me botou numa salinha… eu estava até comentando essa história um dia desses com o pessoal lá do trabalho. E aí, ela me empurrou pra dentro da sala e eu bati na quina da porta, e aí... Criei um galo na cabeça, aquela coisa... Na hora ela não viu, ela não percebeu, mas eu entrei lá e quebrei um bocado de coisa, aí tinha máquina de datilografia que a gente estava mudando o estoque esses dias do trabalho e aí encontramos essa máquina e eu encontrei uma máquina dessa lá na salinha e tal, tal fui e contei a história, e aí eu quebrei a máquina, quebrei um bocado de coisa, e aí eu fiquei meio que com trauma de ir pra escola, e aí eu comecei a estudar com oito anos de idade... Então eu fiquei desde que aconteceu que eu tinha seis anos e só vim começar a estudar com oito anos (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
Durante a entrevista, Pérola Preta põe-se a pensar sobre essa memória como também manifestação de violência racista. O fato de ser um aluno negro - inclusive o único da turma - parece explicar a enérgica violência para repreendê-lo de um possível comportamento indesejado, visto que o mau comportamento da aluna branca não foi tratado do mesmo modo: “É, complicado, e é algo realmente a se pensar. Porque realmente assim, tipo... não tinha porque, não tinha porque ela me levantar da cadeira, puxar pela orelha. Foi, foi bem foda” (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
Pérola Preta também relatou outra situação de racismo durante a realização de um estágio no Serviço Social do Comércio (SESC) quando ainda estava na universidade. Dessa vez, o racismo se manifestou na interdição da estética adotada por ele:
Teve uma época que eu trabalhei no SESC, eu fui estagiário lá, nesse período, foi o quê? Foi em 2018, foi… começou em 2018, eu tinha um cabelo black, um blackão! E aí… e tipo assim, do nada… um black não porque eu achava… nada relacionado à questão do negro, era porque eu queria ter um black e aí fui, só que eu fui, do nada assim decidi colocar uns turbantes, umas coisas assim mais, não sei... Me deu vontade, resolvi colocar, achava bonito, mas assim, não tinha uma questão minha, até que uma amiga minha disse assim: “Rapaz a pessoa tem que ser muito empoderada pra usar um turbante” e aí eu digo: “Eu sou!”. E aí, eu ia de turbante pra o SESC, até que a minha coordenadora me chamou e aí puxou lá umas cláusulas lá que tinha de uns negócio lá que não tinha nada a ver, ela tentou me convencer e aí eu senti que foi racismo da parte dela, e ela tava a todo o momento dizendo: “Olha eu não sou uma pessoa racista, e não sei o quê...”, mas eu via claramente que ela estava incomodada... Eu digo: “Olha, o uso do meu turbante é a mesma coisa de uma professora estar usando o colar dela, de eu usando uma tiara, é um acessório meu”. Aí disse: “Não, mas daqui a pouco os alunos vão querer usar o seu turbante ou vão querer aparecer aqui e aqui a gente tem um padrão”, e olha que lá... [incompreensível] segundo ela… Eu digo: “Não, eu não imaginei que fosse ser tão complicado assim, até porque aqui tem um teatro o pessoal anda aqui de saia direto, o pessoal da diretoria e tudo mais e ninguém nunca reclamou, então...e eu sempre usei o meu turbante em qualquer espaço que você me ver…”, porque eu andava mesmo, em todo lugar, era shopping, todo lugar tinha que tá de turbante, então não vejo nenhum problema com isso, e aí ela pediu, e eu disse: “Olha tudo bem, se você quer que eu tire”. Aí ela: “Não, não é questão minha”. Aí eu disse: “Olha isso aqui que você está me mostrando…”, que era as regras lá dos técnicos e num sei o quê, não tinha nada a ver, tava se referindo a roupas curtas…, aí tinha uns exemplos e não tinha nada a ver com os acessórios. Eu digo: “Olha é um acessório é um acessório” (Pérola Preta, Entrevista, 2021).
As categorias raça e racismo se fazem aqui imprescindíveis, elas se estabelecem como fios condutores de todo um processo de subalternização de imensos grupos humanos no mundo. Alinhavam estratégias de dominação que se fazem na reivindicação de um modo mais verdadeiro de ser humano e, com isso, hierarquiza e desqualifica o diferente. Desencadeiam assim investidas classificatórias que tentam naturalizar as desigualdades entre os diferentes grupos humanos. Como é possível perceber em discursos científicos que aproximam os povos e os corpos negros à natureza, tendo-os assim como selvagens, aquém das capacidades do homem branco colonizador, este dotado de maior desenvolvimento cultural.
A invenção das raças se deu então num esforço de explicar o lugar socioeconômico-cultural dos sujeitos, de modo a naturalizar esse mesmo lugar, e reproduzir com isso estruturas de desigualdades. A raça nasce como argumento científico chancelado pelas ciências naturais e biológicas e marca a invenção da própria ciência moderna.
Hall (2013), ao estudar as relações raciais e étnicas na Inglaterra, pensando o deslocamento dessas categorias ao campo dos estudos sociais e culturais, diz-nos que tais categorias, por meio de discursos e práticas, mobilizam violências sistemáticas que subalternizam grupos humanos, garantindo assim a continuidade de relações de exploração:
Raça é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão - ou seja, o racismo. Contudo, como prática discursiva, o racismo possui uma lógica própria. Tentar justificar em termos de distinções genéticas e biológicas, ou seja, na natureza. Esse efeito de “naturalização” parece transformar a diferença racial em um “fato” fixo e científico, que não responde à mudança ou à engenharia social reformista (Hall, 2013, p. 77).
As características fisionômicas são marcadores raciais inscritos nos corpos dos sujeitos. O racismo, ao fixar as diferenças raciais por meio do seu efeito naturalizador, ao construir escalas de aproximação e distanciamentos dos grupos humanos à natureza, define características e capacidades sociais desses grupos: “A ‘negritude’ tem funcionado como signo da maior proximidade dos afrodescendentes com a natureza e, consequentemente, da probabilidade de que sejam preguiçosos e indolentes, que lhes faltem capacidade intelectual de ordem mais elevada” (Hall, 2013, p. 77). Tal aproximação se faz assim como esforço de animalização dos corpos negros, deixando-os de fora da produção do que seria a cultura, territórios onde habitam os humanos. A racialização dos grupos humanos no mundo tem se feito de modo a desumanizar os povos negros.
Almeida (2019) nos diz que o racismo pode ser compreendido sob três concepções, sendo elas: individualista, institucional e estrutural. A classificação apresentada pelo autor parte de três critérios: relação entre racismo e subjetividade; relação entre racismo e Estado; relação entre racismo e economia. Na primeira concepção, o racismo é visto como uma patologia, uma anormalidade de caráter ético e psicológico de grupos isolados. Habita, assim, o campo da irracionalidade e do crime, pode ser combatido com medidas jurídicas: “Sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo” (Almeida, 2019, p. 25, grifo no original).
Já na segunda concepção, o racismo não se limita a comportamentos individuais, pois ele atua por meio das instituições, estas, por sua vez, se orientam por lógicas de privilégios, determinando os acessos com base no pertencimento racial. Segundo essa lógica, as instituições produzem uma política de desvantagem racial. A terceira e última concepção observa que as instituições são racistas porque a sociedade também é. Por isso, o funcionamento das instituições pode resguardar uma ordem racista operando-se por práticas igualmente racistas: “Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional” (Almeida, 2019, p. 33).
Conclusões
As trajetórias de vida dos sujeitos desta pesquisa são atravessadas pelas violências de gênero, sexualidade e raça manifestadas em vários campos de interações dos indivíduos. A escola é um desses lugares de interação que se orientam em lógicas racistas e homofóbicas, numa espécie de império da branquitude e da heterossexualidade observada nos conhecimentos pretendidos curricularmente, nas memórias de violências vividas pelos sujeitos que dizem de um conjunto de interações possíveis no ambiente escolar.
O projeto de nação no Brasil, desde os primórdios da ocupação imperialista branca moderna, engendra-se em genocídio de muitos povos pretos e negros no mundo. A escravidão transatlântica abriu caminhos modernos de objetificação dos corpos, animalização do espírito e negação da alma de povos africanos sequestrados em seus territórios e traficados para as Américas sob a benção, inclusive, da igreja cristã. Uma desumanização que passou a ser adotada nos discursos das ciências que se desenvolveram nos séculos subsequentes ao ano de 1500 - início do processo de ocupação aqui no Brasil. No entanto, parece-nos que esse processo genocida de nação obriga a população negra a viver num contínuo diaspórico, pois vivem em perigo permanente nos territórios que ocupam. Esse fato faz-se extremamente evidente nos assustadores números de homicídios de homens negros, assim como da comunidade LGBTQIA+ no Brasil, onde se assassina, a cada 23 minutos, um jovem negro, onde, a cada 19h, um LGBTQIA+ é também assassinado. Esses índices deixam o negro/viado sob ameaça permanente, assim como já tem nos advertido autores como Veiga (2019).
As narrativas nos mostram que memórias de violências racistas e homofóbicas são partes importantes daquilo que nos dizem sobre como se tornaram professores, sobre o vivido na escola na condição de aluno e/ou professor. Acreditamos que a escola tem se relacionado com os corpos negros LGBTQIA+ de modo a reproduzir violências racistas e de gênero/sexualidade, ao ponto inclusive de interdição dessas questões no que é institucionalizado curricularmente. Pensar a formação de professores (as) deve ser também narrar nossas trajetórias de vida, dizer das questões que se inscrevem nas próprias carnes daqueles viados que se narram, tais como as questões de raça e gênero.
Fontes
PÉROLA PRETA. Entrevista concedida à Antonio Carvalho dos Santos Junior. Juazeiro, 21 mar. 2021.
PÉROLA VERMELHA. Entrevista concedida à Antonio Carvalho dos Santos Junior. Juazeiro, 26 mar. 2021.
Referências
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