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Da Síria bélica à Europa da paz: o discurso neo-orientalista em (auto) biografias de refugiadas sírias
Daniele dos Santos de Souza; Fernando Zolin-Vesz
Daniele dos Santos de Souza; Fernando Zolin-Vesz
Da Síria bélica à Europa da paz: o discurso neo-orientalista em (auto) biografias de refugiadas sírias
From warlike Syria to peaceful Europe: the neo-orientalist discourse in (auto)biographies of Syrian refugees
De la Siria guerrera a la Europa pacífica: el discurso Neo-Orientalista en las (auto)biografías de los refugiados sirios
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 36, pp. 79-93, 2023
Universidade Estadual do Paraná
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Resumo: Desde 2011, tem havido um aumento na publicação de (auto)bio-grafias de refugiadas sírias que abordam a jornada em busca de refúgio no Ocidente. Este artigo investiga o discurso neo-orientalista nas autobiografias “Nujeen” (2017), de Nujeen Mustafa e Christina Lamb, e “Borboleta: de refugiada a nadadora olímpica” (2022), de Yusra Mardini. O estudo busca compreender os efeitos de sentido dos enunciados neo-orientalistas nessas obras sobre a narrativa feminina do refúgio, que parte de uma Síria bélica em direção a uma Europa pacífica. O corpus consiste em trechos extraídos das (auto)biografias. A interpretação é fundamentada nas concepções foucaultianas de formação discursiva, enunciado, relações de poder, verdade e poder (Foucault, 2008, 2012). O referencial teórico conceitua o Orientalismo e o Neo-orientalismo, a fim de demonstrar como essas estruturas se relacionam com o corpus. Os resultados indicam que as obras analisadas contribuem para retratar o Oriente como bélico, enquanto o Ocidente é visto pacífico.

Palavras-chave: Neo-orientalismo, (Auto)biografia, Refugiada síria.

Abstract: Since 2011, there has been an increase in the publication of (auto)bio-graphies by Syrian refugee women that address their journey in search of refuge in the West. This article investigates the neo-orientalist discourse in the autobiographies “Nujeen” (2017) by Nujeen Mustafa and Christina Lamb, and “Butterfly: From Refugee to Olympian” (2022) by Yusra Mardini. The study aims to understand the effects of neo-orientalist statements in these works on the female narrative of refuge, which starts from a war-torn Syria towards a peaceful Europe. The corpus consists of excerpts extracted from the (auto)biographies. The interpretation is grounded in Foucauldian conceptions of discursive formation, enunciation, power relations, truth, and power (Foucault, 2008, 2012). The theoretical framework conceptualizes Orientalism and Neo-Orientalism to demonstrate how these structures relate to the corpus. The results indicate that the analyzed works contribute to portraying the East as warlike, while the West is seen as peaceful.

Keywords: Neo-orientalism, (Auto)biogra-phy, Syrian refugees.

Resumen: Desde 2011, ha habido un aumento en la publicación de (auto)biografías de refugiadas sirias que abordan su viaje en busca de refugio en Occidente. Este artículo investiga el discurso neo-orientalista en las autobio-grafías “Nujeen” (2017) de Nujeen Mustafa y Christina Lamb, y “Mariposa: De refugiada a nadadora olímpica” (2022) de Yusra Mardini. El estudio tiene como objetivo comprender los efectos de sentido de las enunciaciones neo-orientalistas en estas obras sobre la narrativa femenina del refugio, que parte de una Siria en guerra hacia una Europa pacífica. El corpus consiste en extractos de las (auto)biografías. La interpretación se basa en las concepciones foucaultianas de formación discursiva, enunciado, relaciones de poder, verdad y poder (Foucault, 2008, 2012). El marco teórico conceptualiza el Orientalismo y el Neo-orientalismo para demostrar cómo estas estructuras se relacionan con el corpus. Los resultados indican que las obras analizadas contribuyen a retratar a Oriente como un lugar de guerra, mientras que Occidente se percibe como pacífico.

Palabras clave: Neo-orientalismo, (Auto)-biografías, Refugiadas sirias.

Carátula del artículo

Dossiê

Da Síria bélica à Europa da paz: o discurso neo-orientalista em (auto) biografias de refugiadas sírias

From warlike Syria to peaceful Europe: the neo-orientalist discourse in (auto)biographies of Syrian refugees

De la Siria guerrera a la Europa pacífica: el discurso Neo-Orientalista en las (auto)biografías de los refugiados sirios

Daniele dos Santos de Souza
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Fernando Zolin-Vesz
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 36, pp. 79-93, 2023
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 16 Mayo 2023

Aprobación: 04 Septiembre 2023

Introdução

Milhões de indivíduos provenientes de diferentes cantos do mundo têm enfrentado a árdua realidade de se tornarem refugiados, sendo que a Síria está dentre os países de origem que mais colaboram para a expressividade dos números de migrações forçadas. Conforme dados do United Nations High Commissioner - UNHCR (2022), dos 104,5 milhões de refugiados até setembro de 2022, 6,8 milhões eram da Síria, seguida pela Venezuela (5,6 milhões) e pela Ucrânia (5,4 milhões). O conflito armado na Síria, desencadeado após a Primavera Árabe, uma série de revoluções ocorridas entre 2010 e 2011 no Oriente Médio e no Norte da África, tem sido um dos principais impulsionadores desse êxodo em larga escala. Apesar do fechamento das fronteiras, o deslocamento forçado de sírios tem persistido e se tornado fenômeno de tensões políticas, econômicas e sociais, que envolve questões como a integração cultural e linguística, além da busca por emprego e moradia.

Em meio a tal cenário, as (auto)biografias de refugiadas sírias têm se difundido no mercado editorial, permitindo uma compreensão mais profunda da migração forçada de sírios e da complexa relação entre o Ocidente e o Oriente. Conforme Souza (2018), a profusão desse mercado editorial se verifica na publicação de obras (auto)biográficas, como “The Battle for Home: The Memoir of a Syrian Architect” (2016) de Marwa al-Sabouni, “The home that was our country: a memoir of Syria” (2017) de Alia Malek, “Nujeen” (2017) de Nujeen Mustafa e Cristina Lamb, “Uma esperança mais forte que o mar” (2017) de Melissa Fleming, “Diários de Raqqa” (2017) de Samer, “O menino de Alepo” (2017) de Sumia Sukkar, “Querido Mundo” (2017) de Bana Alabed, “The boy on the beach” (2018) de Tima Kurdi, “The unwanted: stories of the Syrian refugees” (2018) de Don Brown, “Once we were strangers” (2018) de Shawn Smucker, “Other words for home” (2019) de Jasmine Warga, “Borboleta: de refugiada a nadadora olímpica” (2022) de Yusra Mardini, dentre outros.

As produções (auto)biográficas centradas na experiência de grupos que saem de um Oriente rumo ao Ocidente não é um fenômeno inédito, visto que tem se confirmado como uma temática recorrente após 2001, principalmente no que diz respeito às mulheres muçulmanas (Bastos, 2016). Com o acirramento da Guerra Civil na Síria a partir de 2011 e o sequente fluxo de deslocamentos forçados da Síria em direção a países ocidentais, em aparente acompanhamento ao movimento anterior de publicação de (auto)biografias de mulheres muçulmanas, as (auto)biografias de refugiadas sírias têm causado interesse e fascínio naqueles interessados em conhecer, aprender e estar diante da dor do outro. O êxito de tais produções (auto)biográficas, disponibilizadas em livrarias físicas ou virtuais de alcance global, com a publicação das mesmas em diversos idiomas, evidencia um interesse internacional por esse tema, revelando um fenômeno que transcende fronteiras predefinidas. Dessa forma, notamos que a temática da “crise humanitária dos refugiados sírios” adquire novas abordagens, explanações e tentativas de escrita da experiência de um coletivo, não somente de um indivíduo, por meio dessas obras literárias. Essas, por sua vez, conferem significado às relações entre o Ocidente e o Oriente e à condição de refugiado, permitindo visões multifacetadas sobre o mundo social contemporâneo.

Nesse sentido, para entender como tais (auto)biografias podem produzir sentidos sobre a relação Ocidente e Oriente, este artigo se dedica a investigar o discurso (neo)orientalista presente nas (auto)biografias intituladas “Nujeen: a incrível jornada de uma garota que fugiu da guerra na Síria em uma cadeira de rodas” (2017) de Nujeen Mustafa e Cristina Lamb e “Borboleta: de refugiada a nadadora olímpica” (2022) de Yusra Mardini. Para guiar o estudo proposto, a investigação se concentra na seguinte questão: Quais os efeitos de sentido dos enunciados neo-orientalistas presentes nessas obras sobre a narrativa feminina do refúgio? Propomos uma perspectiva transdisciplinar, que atravessa teorias de diferentes áreas do conhecimento, bem como um percurso metodológico de estudo do discurso que considera a (auto)biografia como uma materialidade discursiva capaz de produzir efeitos de verdade não somente sobre vidas particulares, mas sobre um coletivo.

Para isso, organizamos o artigo nas seções: “Estudo do discurso e (auto)biografia: explorando caminhos analíticos”, no qual desenvolvemos possíveis caminhos para a abordagem analítica transdisciplinar, a partir da concepção foucaultiana de discurso, para examinar os efeitos de sentido presentes na obra selecionada; “Neo-orientalismo e a narrativa feminina da vida em fuga”, no qual apresentamos de forma suscinta de que modo o discurso orientalista (Said, 2016) e o neo-orientalista (Dabashi, 2017) são percebidos nas (auto)biografias das refugiadas sírias, destacando como esse discurso é construído historicamente para produzir efeitos de verdade na relação entre o Ocidente e o Oriente; “Da Síria à Europa: a produção de verdades sobre o refúgio sírio nas (auto)biografias Nujeen (2017) e Borboleta (2022)”, na qual analisamos os excertos selecionados, a fim de investigar quais os efeitos de sentido dos enunciados neo-orientalistas presentes nessas obras sobre a narrativa feminina do refúgio que parte de uma Síria bélica rumo a uma Europa da paz.

Estudo do discurso e (auto)biografia: explorando caminhos analíticos

As (auto)biografias desempenham um papel crucial na suposta produção e busca por relatos autênticos capazes de atrair o leitor e convencê-lo de que a história relatada de fato ocorreu no mundo real. Tais obras utilizam procedimentos como a assinatura, a afirmação da identidade do autor, o estilo de escrita e o efeito contratual, que exige uma determinada forma de leitura (Lejeune, 2014). O leitor se convence da veracidade do relato antes de folheá-lo, já que a seção ou prateleira em que se encontra na livraria física ou virtual, elementos na capa que apontam ser aquela uma escrita de si, dentre outros, já provocam o interesse do leitor em conhecer a singularidade daquela outra vida. Surge sempre a curiosidade de descobrir o que outra pessoa escreve em seu diário, mas é, em geral, para si mesmo que o autor escreve seu diário íntimo (Lejeune, 2014).

Para além da intimidade do relatado em um diário, as (auto)biografias de refugiadas sírias parecem ser publicadas como o relato da vivência de um coletivo e não somente de um indivíduo. Desse modo, o que convenceria o leitor é tanto a possibilidade de aquele ser de fato um relato legítimo sobre o refúgio sírio, ou ainda sobre o oriental e o Oriente, como também uma oportunidade de conhecer o drama dessas histórias excepcionais. Nas diferentes obras autobiográficas que exploram a saga dos refugiados sírios, a verdade emerge como um tesouro que ilumina e legitima essas narrativas. A possibilidade de ler e conhecer o relato daqueles que ousaram fugir de sua pátria, contato por eles, confere visibilidade a tais obras, marcando suas trajetórias na memória coletiva como existências autênticas e legítimas. Contudo, o que verdadeiramente cativa os leitores que adquirem e mergulham nessas obras é a convicção inabalável de que o grupo coletivo de refugiados sírios é como ali estão retratados e a fuga ocorreu precisamente como é contada ali.

O caminho analítico que propomos não visa questionar se os eventos de fato ocorreram no mundo tangível, mas sim nos dedicamos a investigar os efeitos de verdade produzidos. E o que seriam esses? Inspirados pela concepção foucaultiana de verdade, compreendemos que o regime de verdade é peculiar a cada sociedade e a cada campo do saber, permeando e impulsionando certos discursos e saberes. É esse regime de verdade que molda a distinção entre enunciados verídicos e falsos, e, além disso, delineia quem detém a autoridade para proclamar o que é considerado verdadeiro. Ou ainda,

por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha (Foucault, 2012, p. 13).

Desse modo, a partir da concepção foucaultiana de verdade, ampliamos o estudo do discurso nas (auto)biografias de refugiadas sírias para além da materialidade linguística dos enunciados. Consideramos que a escolha do gênero (auto)biográfico já se insere no “conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, ou seja, as (auto)biografias, constituídas como a escrita daqueles que vivenciaram o que é relatado, se dotam do estatuto de verdade que desempenham por serem consideradas um relato da própria vida. A publicação das mesmas pressupõe a alcunha da não-ficção - são verdadeiras e reais. As refugiadas são as pessoas que deteriam a autoridade para contarem, comprometidas com a verdade, sobre a experiência feminina do refúgio sírio.

Além da autoridade do escritor que narra a própria história, é importante também analisar a figura do coautor - quem é esse e por que tais obras são escritas em coautoria? Notamos que em “Nujeen” (2017), a presença de Cristina Lamb como coautora também traz ao texto o estatuto de verdade amplificada por sua autoridade: ela é uma mulher ocidental, escritora britânica e conhecida por ser também correspondente de guerra, além de ter sido coautora de um dos principais best sellers de (auto)biografias de mulheres muçulmanas, a obra “Eu sou Malala: A história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã” (2013), da paquistanesa Malala Yousafzai.

A posição de poder ocupada por Cristina Lamb, e por coautores ocidentais de modo geral, permite que verifiquemos as múltiplas facetas em que se produz a autoridade para narrar e escrever sobre a vivência do outro e, principalmente, para fazer tais obras circularem no mercado editorial internacional. Importante destacar que a publicação da escrita de si é considerada um privilégio de certas classes, cabendo a outras o silêncio, visto que “a palavra é concedida a eles - ou seja, tomada deles para ser convertida em texto” (Lejeune, 2014, p. 131), e assim ser escrita por aqueles que têm autoridade para escrevê-la, talvez recriá-la, e permitir que sejam postas em circulação.

Para o estudo dos excertos, de modo a analisar quais os efeitos de sentido dos enunciados neo-orientalistas presentes nas (auto)biografias de refugiadas sírias, propomos um estudo do discurso que não se limita à análise da materialidade linguística. Amparamos a análise nas concepções foucaultianas de formação discursiva, relações de poder, verdade e poder (Foucault, 2008, 2012). Exploramos a investigação dos efeitos de sentidos ao examinar os enunciados que contribuem para a construção de significados específicos no contexto histórico atual, delimitado a partir do início da Guerra Civil na Síria, em 2011, a 2022. A abordagem analítica envolve a busca de regularidades que emergem dos textos, selecionando trechos que se relacionam com a questão proposta, para então serem analisados à luz do referencial teórico que aborda o discurso neo-orientalista.

Inserimos tal pesquisa no tempo/lugar de múltiplas abordagens, que ultrapassam os limites de uma única disciplina, mas inspirados pela perspectiva de uma Linguística Aplicada que contempla outras narrativas sobre quem somos, colocando em destaque vidas marginalizadas e contribuindo para a construção de um agenda anti-hegemônica (Moita Lopes, 2006). Tal percurso analítico implica a compreensão do mundo por uma perspectiva não ocidentalista, além de problematizar os modos de produção de conhecimento e entender que a crítica à episteme ocidentalista envolve o entendimento sobre quem é o sujeito nela inscrito (Moita Lopes, 2006).

Neo-orientalismo e as (auto)biografias de refugiadas sírias

O fenômeno do sucesso das (auto)biografias de refugiadas sírias no mercado editorial ocidental nos levou a investigar o modo como tal gênero literário tem se constituído como um elemento privilegiado e que, embora trate sobre o Oriente e seja escrito por mulheres sírias, surge de um Ocidente para um Ocidente. Isso se evidencia na multiplicidade de idiomas europeus em que as obras são publicadas e, no caso de “Nujeen” (2017) e “Borboleta” (2022), não foram publicadas na língua materna das autobiografadas. Além disso, há também a presença de coautoras europeias que facilitam a circulação de tais obras nos países ocidentais. E, conforme evidenciamos na seção de análise, há marcas textuais que apontam que tais (auto)biografias se direcionam para o deleite do leitor ocidental. Tais evidências se relacionam com o modo de produção orientalista e, considerando o momento histórico pós-Onze de Setembro, impulsionado pela Primavera Árabe, o Neo-orientalismo.

Said (2016) estabelece as bases conceituais do Orientalismo, explorando de modo inter-relacionado e complementar os significados acadêmico, imaginativo e o discursivo. Enquanto o sentido acadêmico abrange estudos que se concentram no Oriente e resultam em teorias, livros e conhecimento acadêmico, o sentido imaginativo é mais abrangente, delineando o Orientalismo como um “estilo de pensamento fundamentado em uma distinção ontológica e epistemológica entre o Oriente e (em grande parte) o Ocidente” (Said, 2016, p. 29). Já o terceiro significado, o do discurso, permeia e conecta os outros sentidos, permitindo uma análise das formações discursivas que moldam esse estilo de pensamento, sob uma perspectiva foucaultiana, conforme empreendida pela tese saidiana. O discurso orientalista se edifica a partir de enunciados associados e entrelaçados em uma regularidade discursiva, que se manifesta quando o tema é o Oriente, outorgando ao Orientalismo poder, autoridade e estabelecendo-o como um campo passível de análise.

Segundo Said (2016), a cultura europeia exerceu uma influência dominante e produziu discursivamente representações do Oriente nos âmbitos político, sociológico, militar, ideológico, científico e imaginativo, com o propósito de contrastá-lo com o Ocidente e, assim, conferir identidade e fortalecimento à cultura europeia. Para Said (2016), a dicotomia Ocidente e Oriente é uma construção que se retroalimenta, ou seja, ao ilustrar o Oriente como primitivo e bélico, enfatizam-se as características modernas e pacíficas do Ocidente. Importante ressaltar que as entidades Ocidente e Oriente não dizem respeito a uma divisão do globo terrestre em um Oeste e um Leste ou a localizações geográficas específicas, mas aos conjuntos de sociedades que passaram por processos (econômicos, políticos, sociais e culturais) semelhantes (Hall, 1996).

Conforme aponta Said (2016), a lógica orientalista se refletia a partir da disseminação consciente da geopolítica em diversas produções, as quais podiam ser geradas no âmbito do intercâmbio entre diferentes formas de poder - político, cultural, intelectual, moral. Amparados pela tese saidiana, compreendemos que as obras literárias, como as (auto)biografias que aqui analisamos, são criações permeadas por uma multiplicidade de interesses. Em relação aos fenômenos sociais nos quais a linguagem desempenha um papel central, consideramos que as (auto)biografias de refugiadas sírias podem também serem atravessadas por interesses políticos, culturais, morais ou intelectuais, ainda que não abordem diretamente questões relacionadas a esses campos específicos.

Nesse sentido, a complexidade da questão da autoria dessas (auto)biografias se relaciona com os interesses mencionados. Lejeune (2014) também entende que a escrita colaborativa pode estar relacionada ao jogo de poder inerente às estruturas hierárquicas. Considerando que tais obras partem de um grupo considerado marginalizado pela ótica ocidental, o posicionamento das coautoras ocidentais em conjunto com o status das refugiadas, posicionam as autobiografadas com relação ao Oriente de modo a produzir autoridade a ambas autoras (a ocidental, que tem a suposta autoridade, em um modo de produção ocidentalista, para produzir conhecimento sobre o oriental; e a oriental, que vivenciou os eventos relatados), o que pode se traduzir na autenticidade e legitimidade de tais obras.

Além da autoria, o público alvo de tais obras também demarca os interesses envolvidos na disseminação das mesmas pelo mercado editorial ocidental. Entendemos que são direcionadas para o deleite do leitor ocidental, o qual tem a oportunidade de aprender sobre a Guerra na Síria, os costumes sírios e islâmicos, bem como consumir a dor alheia - a qual já é consumida através de outras mídias, como os noticiários, vídeos e fotos sobre a guerra e o drama de refugiados (Sontag, 2008). Além disso, tais obras também permitem que tais leitores rompam com estereótipos que associam muçulmanos, árabes, pessoas advindas do Oriente Médio e Norte da África, como os sírios, às retóricas próprias do pós-Onze de Setembro, que associavam tais grupos ao terrorismo.

Dabashi (2017) aponta que eventos como a queda das Torres Gêmeas em 2001, a sequente Guerra ao Terror e a Primavera Árabe em 2010, significaram novos estágios epistemológicos, capazes de romper com o Orientalismo. Se antes os orientais eram representados discursivamente como homens inertes, com turbantes e montados num camelo, tais eventos mudaram tal perspectiva representacional, trazendo estigmas como terrorista, a perspectiva de serem uma iminente ameaça ou ainda a percepção de estarem mais perto (ou dentro) do solo ocidental. Tal momento pode ser compreendido como o Neo-orientalismo, que age com as tecnologias do mundo contemporâneo, com as configurações de poder de uma era pós-colonial e que transforma também as representações sobre a mulher oriental e muçulmana.

Essa, antes era percebida como a odalisca no exótico e secreto harém, mas passa a ser percebida, em decorrência das produções Neo-orientalistas, como a mulher escondida em uma burca preta e à espera da salvação ocidental (Abu-Lughod, 2012; Bastos, 2016). Com o grande contingente de refugiados sírios em países ocidentais após o recrudescimento da Guerra Civil na Síria em 2011, o Oriente se torna cada vez mais próximo e, assim, as refugiadas sírias, em especial as muçulmanas, também estão mais inseridas nas sociedades de destino. Há os que continuam a vê-las como mulheres que precisam de salvação para se libertarem de seus véus, sob a perspectiva da retórica da salvação de mulheres muçulmanas (Abu-Lughod, 2012), como também há os que as percebem como estranhas e transportadoras de más notícias (Bauman, 2017).

As obras aqui analisadas têm como essência a capacidade de contar um fenômeno ainda em evolução. Tanto “Nujeen” (2017) quanto “Borboleta” (2022) fazem parte de um conjunto de produções que de alguma forma testemunham o processo histórico contemporâneo. Além disso, por serem protagonistas de suas próprias histórias, as narrativas possuem um valor significativo de autenticidade, na perspectiva foucaultiana, e de veracidade, especialmente para os leitores ávidos por relatos da vida real.

Da Síria à Europa: a produção de verdades sobre o refúgio sírio nas (auto)biografias “Nujeen” (2017) e “Borboleta” (2022)

“Nujeen” (2017) e “Borboleta” (2022) centralizam suas narrativas em torno dos momentos que antecedem a Primavera Árabe, o início da Guerra na Síria e travessia em direção ao continente europeu. As autobiografadas são mulheres cisgêneros, muçulmanas, com perfis marcadamente diferentes entre si e ambas eram menores de idade quando buscaram refúgio na Europa. É importante notar que a excepcionalidade marca as (auto)biografias de refugiadas sírias, visto que, embora sejam comercializadas como relatos que falam de um coletivo, é a singularidade de suas histórias que as torna atraentes para o mercado editorial e leitores ocidentais.

“Nujeen” (2017) traz a história de Nujeen Mustafa, uma adolescente de 16 anos que atravessou em uma cadeira de rodas sobre um bote lotado o Mar Mediterrâneo. A (auto)biografia é narrada em primeira pessoa e destaca a vida de Nujeen como pessoa que se desloca em cadeira de rodas, é impedida de ir à escola pela família por questões logísticas, mas é autodidata. Em “Nujeen” (2017), o contexto da Síria antes e durante a guerra é apresentado de modo bastante didático, com dados e conceitos que permitem ao leitor aprender sobre a Síria. A obra é enriquecida com fotografias do arquivo pessoal da família Mustafa, que retratam a infância de Nujeen, seus pais vestidos com trajes tradicionais curdos, além de imagens dos destroços causados pela guerra. Também são registradas fotos da chegada das irmãs em Lesbos, da travessia da fronteira sérvio-húngara e do cotidiano na Alemanha.

Assim como “Nujeen” (2017), também há um relato singular e excepcional em “Borboleta: de refugiada a nadadora olímpica” (2022) que conta a história de Yusra Mardini, uma jovem nadadora que atravessou o Mar Egeu aos 17 anos em um bote e se tornou uma heroína, juntamente com a irmã Sara Mardini, ao salvar a vida dos 18 refugiados que estavam no bote. A jornada de Yusra a levou a se tornar uma figura emblemática como membro da primeira Equipe Olímpica de Refugiados do Comitê Olímpico Internacional nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016. “Borboleta” (2017) ganhou vida nas telas cinematográficas com o filme “As Nadadoras”, que teve sua estreia em algumas salas de cinema e na plataforma Netflix em novembro de 2022. Embora a primeira edição em língua inglesa credite Josie Le Blond como coautora da obra, tal menção não se repete nas edições posteriores ou na versão em língua portuguesa publicada no Brasil. Considerando que a coautoria ocidental pode posicionar a (auto)biografia de refugiadas sírias em espaço de circulação privilegiado, importante ressaltar que Josie Le Blond, ao menos até 2022, é escritora sênior do Departamento de Comunicação Global das Nações Unidas, além de já ter sido escritora da UNHCR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e ter sido escritora fantasma da autobiografia “They don’t teach this” (2019) de Eniola Aluko.

Ambas obras trazem excertos que constroem a narrativa feminina do refúgio sírio como a trajetória que parte de uma Síria bélica rumo a uma Europa da paz, produzindo efeitos de sentidos que se associam ao discurso neo-orientalista.

Um dos momentos abordados em ambas obras (e também em diversas outras autobiografias de refugiados sírios) é o apontamento do Cerco de Daraa como o evento estopim tanto para início da Primavera Árabe no país quanto da sequente Guerra Civil na Síria:

Excerto 1: Cerco de Daraa

O catalisador foi a prisão, no final de fevereiro, de um grupo de adolescentes que havia pichado os muros da escola com palavras contra o governo. Al-Shaab yureed eskat el nizam! - o povo quer derrubar o regime! -, eles descreveram como a multidão havia gritado no Cairo. “Fora, Bashar!”, dizia outra pichação. Uma terceira estava sendo escrita: “Você é o próximo, doutor”, quando as forças de segurança pegaram os pichadores. Alguns dias depois mais de 10 adolescentes foram capturados, totalizando 15 jovens levados para a Direção de Segurança Pública local - eu disse que temos várias polícias secretas -, que estava sob o controle do general Atef Nageeb, primo do presidente, de quem todo mundo morria de medo (Mustafa; Lamb, 2017, p. 49).

Ao narrar os eventos ocorridos com os jovens após escreverem no muro palavras contra o governo de Bashar al Assad, Nujeen (Mustafa; Lamb, 2017) ressalta o caráter pedagógico das (auto)biografias de refugiadas sírias. Ao descrever esse como sendo o marco inicial da Guerra na Síria, a obra contextualiza o leitor sobre os conflitos na Síria, em consonância com a Primavera Árabe, além de apontar para o modo operacional repressivo do ente estatal sírio, o qual, conforme narrado no excerto 1, age com violência para coibir as dissidências internas.

Conforme ressaltamos anteriormente, tais produções tem como público alvo o leitor ocidental, o qual, na maioria das vezes, conhece a Síria a partir de produções neo-orientalistas. Desse modo, entendemos que, a partir do excerto 1, também seja possível produzir efeitos de sentido sobre a relação Ocidente e Oriente. Conforme Said (2016) aponta, o Orientalismo produziu o Oriente como uma alteridade radical do Ocidente. Assim, a percepção do abuso e da desumanidade no Oriente poderia possibilitar a compreensão ao leitor ocidental de que é “lá”, no Oriente, onde ocorre a tortura injusta de adolescentes e a guerra, enquanto que “aqui”, no Ocidente, em oposição, há justiça e paz. Enquanto efeitos de verdade, tal noção pode ser compreendida como afiliada ao discurso neo-orientalista, visto que ignora as complexidades de ambas entidades. As construções neo-orientalistas estão fundamentadas na perspectiva ocidental, ou seja, emanam de uma consciência ocidental que detém poder e dominação em diversas áreas do conhecimento e não necessariamente encontram correspondência na realidade fática (Said, 2016).

O evento estopim é seguido por relatos que constroem discursivamente o território sírio como o espaço da guerra em ambas obras, conforme se verifica em “Borboleta” (2022):

Excerto 2: Uma granada na piscina

Não tenho tempo para registrar o que está acontecendo. Não consigo pensar em nada enquanto pego impulso para sair da água. Hordas de nadadores passam por mim, tremendo de choque e pânico rumo às portas. Quando chego à saída, me viro para trás. Olho para o teto e lá está: um buraco no telhado, exibindo um pequeno pedaço do céu. Desço os olhos para a água. Ali cintilando no fundo da piscina, há um objeto verde com um metro de comprimento, estreito, com um bulbo cônico que se afina e fica pontudo em uma extremidade. Uma RPG, granada lançada por foguete, que não explodiu. Encaro a bomba, incapaz de desviar os olhos. De alguma forma, ele atravessou o telhado e caiu na água sem explodir. Mais alguns metros em qualquer direção e teria atingido as telhas, matando todos em um raio de dez metros. Preciso de alguns segundos para me dar conta de que tenho sorte de estar viva. De novo (Mardini, 2022, p. 69).

Tal qual descrito pelo excerto 2 acima, no filme “As nadadoras” (2022), inspirado na obra “Borboleta” (2022), ocorre o mesmo evento em que uma granada cai na piscina. Durante o treino de natação, Yusra está alheia à realidade que se desenrola fora da piscina, sem perceber completamente o tumulto que se formou. No entanto, seu pânico surge quando ela nota que uma granada, de forma lenta e ameaçadora, está prestes a tocar o fundo da piscina. Com os constantes barulhos de bombas, mísseis, tiros e granadas, a guerra passa a ser percebida como parte da vida cotidiana. Conforme Yusra (Mardini, 2022, p. 68) narra, a guerra era cotidiana e a morte aleatória, pois estava presente e “caia do céu no meio da rua, no trânsito do meio-dia, sem aviso prévio”.

A construção do território sírio como o espaço da guerra se reflete nos relatos, como o excerto 2, que abordam a mudança dos cenários do dia-a-dia: a vida coletiva, não somente das refugiadas que narram suas histórias individuais, era tensionada pela violência presente. Tal tensão é construída nas obras como os impulsionadores para a busca de refúgio em outros países, de modo a fugirem da guerra. A assimilação do solo sírio com a hostilidade não é sem qualquer correspondência com a realidade, no entanto, ao analisar as obras selecionadas, não buscamos o estudo da veracidade, mas, a partir da abordagem foucaultiana, a verificação dos efeitos de verdade construídos pelas referidas obras.

Enquanto (auto)biografias, tais obras são percebidas como o testemunho de quem vivenciou tais eventos. No entanto, Whitlock (2007) argumenta que a associação do Oriente ao espaço bélico, hostil e bárbaro, pode funcionar em tais produções de modo a promoverem agendas e práticas discursivas específicas - ainda que essa não seja a intenção das autoras e coautoras. Para a autora, (auto)biografias como as que aqui analisamos, enquanto produções neo-orientalistas, podem ser instrumentalizadas tanto de modo a promover intervenções em debates sobre justiça social e direitos humanos, como também na indústria de comodificação global das diferenças culturais. Nesse sentido, enfatizar a violência pode funcionar como a leitura de tais obras enquanto testemunhos da dor, mas também suscitam questões sobre o porquê de o interesse ocidental por (auto)biografias de refugiadas sírias ter crescido tanto: é pela conscientização sobre o drama dos refugiados, é pelo entretenimento em estar diante da dor do outro (Sontag, 2008) ou pelo conforto que nos trazem por não sermos nós as vítimas (Bauman, 2017)? Perguntas como essas, aqui apenas como instrumentos provocadores, apontam para possíveis abordagens de estudo e investigação de (auto)biografias de refugiados sírios e mulheres muçulmanas.

O momento da travessia é narrado em ambas obras como um deslocamento dramático, mas que colabora para a construção de uma imagem do Ocidente como um espaço da paz e da esperança. Era necessário atravessar a fronteira - o mar - para alcançar, assim, a liberdade.

Excerto 3: Aylan Kurdi

Centenas de pessoas estavam fazendo a travessia todos os dias, e havia outros dois botes não muito atrás de nós. Eu não me dei conta de que a morte chegara muito perto de nós. Bastaria que minha cadeira de rodas fizesse um pequeno furo no bote ou que uma grande onda nos atingisse para afundarmos. Foi isso que aconteceu a outra família Síria que atravessou mais cedo naquele dia. Nós não sabíamos, mas outro bote igual ao nosso havia cruzado aquelas mesmas águas agitadas um pouco mais ao sul da península de Bodrum para a Ilha de Kos. Levava 16 sírios, incluindo um barbeiro chamado Abdullah Kurdi, sua esposa Rehanna, e seus dois filhos pequenos, Ghalib, de 5 anos, e Aylan, de três. Como nós, eles eram curdos de Kobani e sonhavam começar uma nova vida na Alemanha. [...] No dia seguinte, a foto do pequeno Aylan Kurdi estendida em uma praia da Turquia com o rosto virado para baixo, a camisa vermelha e a bermuda azul correu o mundo (Mustafa; Lamb, 2017, p. 139-140).

O excerto 3 apresenta a travessia como uma experiência coletiva, antes de ser apenas um relato da vida individual de Nujeen e sua família, e que dependia da sorte, ou seja, o sucesso estava fora do controle humano. Ao retomar o menino Aylan Kurdi estendido na praia, figura que se tornou um dos principais emblemas do drama dos refugiados sírios, há a construção de imagens sobre o Oriente e a experiência do refúgio sírio, bem como sobre as sociedades ocidentais que acolhem (ou não) tais refugiados.

Para além do testemunho feminino de alguém que fugiu da Síria em uma cadeira de rodas, o relato se constitui como uma experiência compartilhada com um coletivo e que, conforme o excerto mencionado, era cotidiana, em grande fluxo de pessoas. Ao construir tal experiência como a de um coletivo, o excerto permite que o mundo oriental seja apreendido como um bloco homogêneo e monolítico, cujas trajetórias são compartilhadas de modo único por todos. Notamos que, do mesmo modo, os noticiários têm construído o fenômeno do refúgio sírio a partir de imagens de grandes grupos chegando ao solo ocidental, ou ainda nos campos de refugiados, de modo a invisibilizar as individualidades das pessoas retratadas. Interessante notar ainda que tais construções colaboram para o fortalecimento de enunciados que apontam para uma crise humanitária de refugiados, sem colocar em discussão a crise das próprias sociedades ocidentais ou uma noção que apontasse para um drama compartilhado entre essas e aqueles.

Enunciados que ressaltam apenas a chegada de grandes massas podem provocar como efeitos de sentido a responsabilização da crise humanitária: é uma crise deles, causada por eles a nós. Ao nomear a crise como “crise humanitária dos refugiados sírios”, podem ser produzidos efeitos de sentido sobre a relação Ocidente e Oriente, pois esse desequilibra a hegemonia daquele e, se antes era distante, está agora cada vez mais perto - no corpo estendido na praia, nos campos de refugiados, no dia-a-dia ocupando os espaços vários.

A tese saidiana considera a noção de um Ocidente pacífico como uma produção discursiva construída historicamente nos diferentes campos do saber. Essa concepção está relacionada com os discursos produzidos após o Onze de Setembro e é representada como “uma guerra entre dois mundos distintos: Ocidente e Oriente, muçulmano e cristão, tradicional e moderno” (Whitlock, 2007, p. 5). A imagem de um Ocidente seguro, em contraposição a enunciados que enfatizam uma Síria em guerra, colabora para a consolidação de discursos que se baseiam na diferença entre Ocidente e Oriente.

Nesse sentido, nas (auto)biografias é possível verificar como a vida nova no Ocidente da paz é construída:

Excerto 4: Uma jornada para uma nova vida

Desde que deixamos Alepo, havíamos percorrido mais de 5.700 km por nove países, fugindo da guerra para encontrar a paz - uma jornada para uma nova vida como o meu nome anuncia. De repente, tudo havia se transformado em quando, e não mais se. Eu olhei para os alemães e pensei que um dia falaria alemão como eles, viveria como eles, amaria como eles. Talvez até andasse como eles (Mustafa; Lamb, 2017, p. 195, grifos no original).

O excerto 4 constrói a Síria, ou a cidade de Alepo, como o ponto de partida da trajetória que parte de um Oriente bélico em direção a um Ocidente pacífico, conforme se expressa no trecho “fugindo da guerra para encontrar a paz - uma jornada para uma nova vida” (Mustafa; Lamb, 2017, p. 195). A polaridade entre as entidades constrói efeitos de sentido que apontam para saída da incerteza (se) para a concretização dos sonhos (quando), de modo a remeter o Ocidente como o espaço em que a paz é, enfim, encontrada e onde os planos podem se concretizar.

O desejo de se amalgamar com a sociedade de destino se expressa na comparação com os alemães: de modo a se afastar da hostilidade oriental, a refugiada ansiava ser tal qual os ocidentais: falar, viver, amar e andar como eles. Entendemos que tal desejo expressa a vontade de ser percebida como uma semelhante e não mais como uma alteridade radical, seja por ser refugiada, seja por ser advinda da Síria. Além disso, há ainda a produção de efeitos de verdade que levam ao entendimento de que alemães e sírios falam línguas maternas diferentes, como é sabido, mas também amam de modo diferente, sendo o modo sírio inferior ao alemão - ou a refugiada não teria razões para desejar amar e viver diferentemente.

Entendemos que a percepção da vida ocidental como superior a oriental, conforme relatado no excerto 4, refere-se ao acesso a um estilo de vida diverso do que a refugiada conhecia e vivia na Síria. O excerto 4 ratifica o discurso orientalista de que a identidade europeia se sobrepõe às demais, visto que não há a expressão do desejo da refugiada em viver suas próprias práticas socioculturais e identitárias no solo europeu. Ao contrário, há a vontade de ser tal qual os alemães e se integrar àquela que é construída pelo pensamento orientalista como uma cultura dominante sobre todas as outras. Tal concepção ignora, porém, a fragilidade e inatingibilidade de tal expectativa - o estilo de vida ocidental, tal como é inventado pelo Orientalismo, é um modelo inalcançável visto tratar-se muito mais de uma idealização e de uma produção discursiva do que de uma realidade prática e palpável.

Apesar disso, conforme aponta o excerto 5, a esperança de alcançar um futuro de paz é construído nas (auto)biografias de refugiadas sírias como um ideal coletivo daqueles que vivenciam a dor e o horror da guerra:

Excerto 5: Um futuro de paz

Ninguém escolhe ser um refugiado. Eu não tive escolha. Tive que deixar minha casa para sobreviver, mesmo que isso significasse um risco de morrer no caminho. Fugi do meu país há alguns anos. No entanto, enquanto você lê estas linhas, há outros jovens atravessando fronteiras perigosas, entrando em botes superlotados e frágeis, ou sendo trancados e recebendo comida imprópria até para animais. Eles, como eu, eram jovens normais com vidas comuns até que a guerra partisse seus mundos ao meio. Eles, como eu, estão procurando um futuro no qual a morte não caia do céu. Um lugar para viver os dias de calma após a tempestade. Agora, com a tempestade para trás eu me concentro nesse futuro de paz (Mardini, 2022, p. 307).

O excerto 5 aborda a questão do fluxo ainda constante de refugiados que se deslocam forçados pela guerra que continua na Síria, ao menos até 2023. Ao contrário do excerto 4, não há o desejo de se integrar à sociedade europeia até a dissolução da outridade oriental, mas, sim, a confirmação da condição de refugiado como uma situação imposta pelas circunstâncias e não como uma escolha. A normalidade não é posicionada em um Ocidente que ama e vive de um modo específico, mas na própria Síria antes da guerra. Tal excerto desestabiliza enunciados que apontam para um modo de vida ocidental superior ao oriental, visto que não é o fato de estar a Síria fora do espaço imaginativo ocidental que oprime a liberdade e a paz, mas, sim, a guerra - que pode ocorrer tanto lá, quanto cá.

Ao enfatizar que a guerra foi o ponto de transição, responsável pela mudança da vida normal para a “morte que cai do céu”, o excerto produz efeitos de sentido que desestabilizam enunciados que marginalizam os refugiados: todos estamos sujeitos às intempéries de termos a normalidade de nossas vidas abalada por circunstâncias exteriores, que nos obriguem à condição de refugiados um dia. Retomamos a noção apresentada no início desse artigo de que as (auto)biografias de refugiadas sírias não se restringem ao relato de histórias individuais, mas são construídas como relatos de experiências coletivas e compartilhadas. A concentração no futuro de paz não é mais apenas uma expectativa da refugiada individualmente, mas também deles que, assim como ela, buscam um lugar para viver a calma que vem após a tempestade.

Considerações finais

Se as (auto)biografias podem transformar as vidas singulares em fenômenos memoráveis, é possível que extrapolem também a escrita de si para uma escrita sobre nós, visto que é através da linguagem que podemos também produzir significados sobre o mundo em que vivemos. Os resultados apontam que as produções (auto)biográficas de refugiadas sírias relatam a experiência do refúgio sírio como uma história compartilhada, capaz de produzir sentidos sobre a relação Ocidente e Oriente.

Os efeitos de sentido dos enunciados presentes nas (auto)biografias “Nujeen” (2017) e “Borboleta” (2022) se associam ao neo-orientalismo que constrói discursivamente a narrativa feminina do refúgio como uma jornada que inicia em um Oriente bélico e hostil e se consolida com a chegada a um Ocidente pacífico. Tais entidades são assim construídas pelo discurso neo-orientalista, que ignora as complexidades envolvidas nas sociedades ocidentais e orientais - assim como há normalidade no Oriente construído como bélico, também pode haver a ausência da paz no Ocidente pacífico.

Embora possam ser comercializadas como versões de uma história única sobre o refúgio sírio, as (auto)biografias de refugiadas sírias se configuram como uma possibilidade de entendimento e relato sobre o testemunho de tal experiência, o que não exclui a existência do relato de vivências coletivas ou ainda de experiências diversas das que foram nelas narradas. Entendemos que tais obras nos permitem compreender as questões emergentes no mundo social contemporâneo, além de amplificarem as possibilidades de investigação de pesquisas sobre refugiados sírios e as sociedades de destino. As (auto)biografias aqui analisadas nos contam sobre a jornada de duas refugiadas sírias adolescentes, mas também produzem efeitos de sentido sobre a narrativa histórica de eventos que perpassam suas histórias individuais, além de contarem também sobre estilos de pensamento ainda fundamentados em dicotomias como “nós” versus “os outros”.

Material suplementario
Referências
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