Dossiê
A constituição do professor universitário do curso de Direito: uma análise de narrativas de formação
The building of the Law professor in Higher Education: a analysis of narratives of teaching development
La constitución del profesor de Enseñanza Superior en el curso de Derecho: un análisis de las narrativas de formación
A constituição do professor universitário do curso de Direito: uma análise de narrativas de formação
Revista NUPEM (Online), vol. 15, núm. 36, pp. 114-126, 2023
Universidade Estadual do Paraná
Recepción: 16 Mayo 2023
Aprobación: 24 Julio 2023
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar de que forma o profissional, com Bacharel em Direito, assume o papel professor do Ensino Superior sem ter uma formação pedagógica durante a graduação e a pós-graduação. Para essa discussão, pautamo-nos na perspectiva histórico-cultural que discute sobre o desenvolvimento humano, a partir dos signos e das relações sociais, na perspectiva enunciativo-discursiva, que leva em consideração o caráter dialógico da linguagem e as considerações de seus envolvidos. Para tanto, apresentamos a análise de uma das entrevistas realizadas com professores bacharéis do Curso de Direito de uma instituição privada do interior de São Paulo, a partir da qual verificamos que o profissional vai se tornando professor, validando-se em exemplos de outros colegas de profissão e nas vivências - de aluno e de ensino - em sala de aula, uma vez que o trabalho de formação continuada no Ensino Superior ainda é um cenário bastante distante.
Palavras-chave: Entrevista narrativa, Formação docente, Relações dialógi-cas.
Abstract: This present article aims to analyze how a professional with a bachelor’s degree in Law becomes a professor in Higher Education without pedagogical development during undergraduate and graduate courses. For this discussion, we ground on the cultural-historical perspective, which discusses human development based on signs and social relations; on the enunciative-discursive perspective, which considers the dialogic character of language; and on the considerations of those who discuss narratives. In this article, we present the narrative analysis of interviews with bachelor professors from the Law School of a private college in the countryside of São Paulo. Our research shows that the professional becomes a professor by validating themselves on the examples of other undergraduate professors and on their particular experiences - as a student and as a teacher - in the classroom since the work of continuing education in Higher Education is still a very distant scenario.
Keywords: Narrative interview, Teacher education, Dialogic relations.
Resumen: El presente artículo tiene como objetivo analizar cómo el profesional, formado como Licenciado en Derecho, se convierte en profesor en la Enseñanza Superior sin tener una formación pedagógica durante los cursos de pregrado y postgrado. Para ello, nos basamos en la perspectiva histórico-cultural, que discute el desarrollo humano a partir de signos y relaciones sociales, en la perspectiva enunciativo-discursiva, que tiene en cuenta el carácter dialógico del lenguaje, y en las consideraciones de quienes discuten narrativas. Presentamos el análisis de una de las entrevistas realizadas a profesores del Curso de Derecho de una institución privada del interior de São Paulo, muestran que el profesional se convierte en profesor, validándose en ejemplos de otros profesores del curso de graduación y en sus experiencias particulares - de estudiante y de enseñanza - en el aula, ya que el trabajo de formación continua en la enseñanza superior es todavía un escenario muy distante.
Palabras clave: Entrevista narrativa, Formación docente, Relaciones dialógi-cas.
Introdução
A formação de professores do Ensino Superior tem sido um tabu considerando que, na maioria das vezes, os cursos de graduação e pós-graduação - nível bacharelado - não têm ao menos um componente curricular pedagógico em sua matriz. É o caso do curso de Direito, por exemplo. Todavia, é muito comum observarmos profissionais liberais que, ao se especializarem na área específica, podem, conforme apontam Pimenta e Anastasiou (2010), acordarem professores. Nesse sentido, esses sujeitos com formação em bacharel se constituem professores de Ensino Superior sem formação didático-pedagógica. É, diante desse cenário, que o presente artigo tem como objetivo analisar como o profissional, em específico com formação em bacharel em Direito, se constitui professor do Ensino Superior.
Para essa discussão, pautamo-nos na perspectiva histórico-cultural que discute sobre o desenvolvimento humano a partir dos signos e das relações sociais, na perspectiva enunciativo-discursiva, que leva em consideração o caráter dialógico da linguagem e nos pressupostos metodológicos do método autobiográfico.
Utilizamos para a produção de dados entrevistas narrativas com professores bacharéis do curso de Direito de uma instituição privada do estado de São Paulo. Nesse artigo, no entanto, fazemos a análise de apenas uma dessas entrevistas utilizando-se para isso a análise dialógica do discurso.
Nesse sentido, o artigo está estruturado da seguinte maneira: primeiramente, discorremos sobre os fundamentos teóricos, nos quais nos embasamos para discutir a constituição do professor; em seguida, apresentamos a importância da narrativa como instrumento de produção de dados; apresentamos, na sequência, nossas análises e, por fim, as considerações finais.
O dialogismo e a formação docente
Assumimos para nossas discussões as concepções teóricas de Bakhtin (2010) e Lev Vygotsky (2007), que levam em consideração que a constituição do homem se faz na relação social e cultural. Para os autores, o desenvolvimento humano se dá de forma dialética, tendo como cerne desse desenvolvimento os signos que podem ser considerados como “a chave para a compreensão para as principais questões epistemológicas que atravessam as ciências humanas e sociais” (Freitas, 1994, p. 157).
Para Bakhtin (2010), a linguagem é cêntrica na vida humana e a significação de uma palavra se dá sempre em um contexto, considerando que toda e qualquer expressão discursiva é sempre socialmente dirigida e orientada para o outro. Assim, o diálogo, como interação verbal, é um produto histórico, marcado social e culturalmente. Todavia, é preciso compreender que, para Bakhtin (2010), o diálogo não se reduz ao encontro face a face. O termo diálogo é compreendido, nos aportes da teoria bakhtiniana, como mais amplo, de modo que todo texto é, essencialmente, dialógico. Nas palavras do autor,
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (Bakhtin, 2010, p. 117).
Barros (2009) comenta que o termo dialogismo, na perspectiva bakhtiniana, pode ser compreendido de duas maneiras: 1) diálogo entre interlocutores e 2) diálogo entre discursos.
Em relação ao primeiro, esclarece que a interação verbal é o princípio fundador da linguagem. Dessa forma, o sentido do texto depende da relação entre os sujeitos e acaba, dada a questão intersubjetiva, por constituir os próprios produtores de texto. Além disso, é preciso considerar que nesta concepção estão implicados dois tipos de sociabilidade: entre os interlocutores que interagem entre si e a desses sujeitos com a sociedade.
Em relação ao segundo princípio, evidencia que nenhum discurso é individual porque se estabelece entre pelo menos dois interlocutores a partir de um diálogo entre discursos, composto “como um tecido de muitas vozes ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior no texto” (Barros, 2009, p. 32).
Nesse sentido, Bakhtin nos permite compreender que todo diálogo é permeado por diversas vozes, e também por ideologias já que todo signo é ideológico por natureza. Assim, em cada experiência relatada, em cada palavra revelam-se os comandos das relações sociais, uma vez que “a palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais” (Bakhtin; Volochínov, 2010, p. 40).
Para a compreensão de um enunciado, é necessário considerar para onde se fala e o objetivo que se fala, ou seja, todo o contexto da produção do discurso. Bakhtin (2010) considera a linguagem como constitutiva, ideológica e dialógica em que substancialmente a vivência e a história são partes integrantes, pois todo diálogo infere a alternância dos sujeitos do discurso, no qual toda e qualquer expressão linguístico/discursiva é sempre socialmente dirigida e orientada para o outro, e assim a interação verbal só pode ser analisada na sua complexidade quando considerada como fenômeno sócio-histórico-ideológico.
Neste sentido, a linguagem tem papel fundamental, pois é pela mediação da linguagem que o sujeito expressa a sua percepção de si e do mundo constituída pela interação com os outros, cuja interpretação decorre das ideias e dos signos. Assim, o sentido de qualquer texto e a significação dependem da relação entre os sujeitos, pois a significação da história da vida implica em enunciados ideológicos.
O signo, enquanto unidade fundamental da comunicação verbal ou escrita, é ideológico por natureza, pois reflete as relações sociais e por decorrência, também as relações de poder de uma sociedade. Bakhtin (2010) compreende os signos como construções individuais, mas a significação dele, ou seja, o significado específico desse signo advém de um contexto social e histórico em um processo de socialização.
Neste processo de interações, em que a produção do conhecimento não se encerra em si mesmo, Bakhtin (2010) defende o texto como ato comunicativo, e sua linguagem com um sistema dialógico de signos e seus significados, e toda a significação histórica que decorre delas nesse processo.
A construção e produção do conhecimento está vinculada, então, à ação desse sujeito gerador e agente, que como retrata Vygotsky nasce biológico, mas expande através das relações sociais, mediadas pela linguagem.
Vygotsky (2007) considera o signo como social e a palavra como signo de excelência. Para o autor, a linguagem é vista como uma função psicológica superior, e a palavra tem uma enorme importância no desenvolvimento do pensamento, bem como na evolução da consciência como um todo, o que a torna a fonte entremeadora entre o sujeito e o objeto de conhecimento.
Nessa mesma linha de raciocínio, Vygotsky (2007) apresenta o debate sobre a significação compreendendo a vivência como um processo que ocorre na relação entre o indivíduo e o meio social. Para tanto, denomina a vivência como estado mental de exceção gerado por impressões e sentimentos fortes, como elemento capaz de explicar o desenvolvimento da consciência humana na relação com o meio social.
A vivência é definida por Vygotsky (1999, p. 686) como
uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa - e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento. Dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência.
Assim, para Vygotsky (2007), a vivência está intrinsecamente ligada às relações sociais e a forma como estas afetam um determinado sujeito. Volóchinov (2017, p. 120) completa que a vivência possui assim significação, pois pertence ao signo ao ser uma enunciação da realidade única do sujeito, tornando a vivência expressiva de “de qualquer pensamento, qualquer emoção, qualquer movimento voluntário. Esse momento de expressividade não pode ser abstraído da vivência sem que se perca sua própria natureza e, depende, exclusivamente das relações sociais, do papel do outro”.
A partir destas premissas evidencia-se que nossas representações de realidade os produtos culturais como a linguagem e outros sistemas simbólicos são os mediadores nas nossas representações da realidade, eis que os nossos filtros interpretativos nos permitem apropriamo-nos dessa realidade e agirmos sobre ela.
É através dos signos que o pensamento humano é exteriorizado, e que os sujeitos são constituídos, afinal pensamento e palavra são indissociáveis. Por isso, a narrativa pode ser considerada
como meio/modo de elaboração de conhecimento. Narrar é uma atividade de linguagem, tipicamente humana que se constitui na/pela palavra (oral, escrita). Orientado pela palavra, o sujeito elabora conceitos, organiza seu pensamento. Por conseguinte, há uma intrínseca relação entre narrar e pensar, entre narrar e elaborar conhecimento (Freitas, 2019, p. 50).
Narramos para o outro. E, dentro deste contexto, é por meio das relações dialógicas que retratamos as maneiras pelas quais os indivíduos concebem o mundo.
Assim, considerando que a linguagem não é neutra e que todas as atividades humanas são mediadas por ela, e que a constituição do sujeito advém das relações dialógicas, a narrativa é um instrumento potente para compreender o processo de formação do professor universitário em um curso de graduação como o Direito, cuja vivência ocorre em um contexto social específico e como estes vão dando forma e sentido a sua formação.
Narrativa (auto)biográfica como instrumento para a produção de dados
Muitos autores, como por exemplo Nóvoa (1999), que investigam os processos de formação docente defendem a proposta de formação continuada como sendo uma das mais eficientes para que se possa alcançar algumas transformações significativas na docência, principalmente, no que tange o Ensino Superior.
Valorizamos as narrativas como instrumento porque elas podem colaborar para a compreensão do cotidiano escolar, da formação, das práticas docentes e das relações que ocorrem e emergem das instituições, nas quais os sujeitos estão vinculados, já que
ao escrever sobre suas experiências, o educador/pesquisador vai construindo uma consciência do que se passa com ele… e será justamente neste processo de narrar, com as reflexões suscitadas, aliadas à explicitação do porquê de ter selecionado determinado tema ou experiência, que ele poderá tornar o texto um material precioso para ser analisado e compreendido (Frauendorf et al., 2016, p. 354).
A abordagem qualitativa da pesquisa reporta ao entendimento dos aspectos formadores do ser humano, as suas relações socioculturais e a compreensão de suas dinâmicas, e na modalidade narrativa através da recriação dos seus momentos, da sua própria história, revela esse sujeito único que dá sentido aos acontecimentos, as ações da sua vida e a sua própria constituição, “uma forma de entender a experiência” como definido por Connelly e Clandinin (1995, p. 20).
A investigação narrativa é opção cada vez mais difundida em estudos acerca da experiência educativa, porque “os seres humanos são organismos contadores de histórias, organismos que, individual e socialmente, vivem vidas relatadas” (Connelly; Clandinin, 1995, p. 11). Deste modo, o estudo da narrativa é um estudo a respeito do modo como os humanos experimentam o mundo.
A narrativa não expressa somente dimensões importantes da experiência vivida, ela media a significação da própria vivência priorizando o diálogo, e desta forma, os sentidos conferidos pelo professor aos processos e à organização das dinâmicas escolares, consideram as dimensões dos posicionamentos éticos, morais, emocionais e políticos desses atores (Bolívar, 2002).
É, por essas razões que, como nos apresenta Zanella (2007, p. 32),
a pessoa em sua humanidade, essencialmente histórica e cultural, se apresenta como foco, sendo a diversidade de possibilidades metodológicas demarcadora de uma postura aberta ao reconhecimento da complexidade de sujeitos e realidade e de sua condição histórica e plural. Ao pesquisador, por fim, cabe produzir explicações que possibilitem conhecer essa realidade em seu fluxo e ao mesmo tempo problematizar o que aparece como um possível dentre a infindável gama do que é e do que pode vir a ser.
Neste sentido, a pesquisa com narrativas parte do princípio de que as ações humanas são únicas e que a compreensão que o pesquisador constrói sobre a vivência narrada não pode, por isso, ser explicitada em proposições abstratas, mas em forma de relatos que permitam aos leitores compreender como os humanos dão sentido ao que fazem. O estudo da narrativa é um estudo a respeito do modo como os humanos experimentam o mundo evidenciando que a educação representa a construção e a reconstrução de histórias pessoais e sociais. Tanto os professores como os alunos são, ao mesmo tempo, contadores e personagens nas suas próprias histórias, e nas histórias dos outros (Connelly; Clandinin, 1995).
Por isso, conforme esclarece Passeggi (2011), a narrativa autobiográfica irá refletir sobre a ressignificação da experiência, no contexto da formação docente. Nesta conjuntura, a narrativa apresenta-se como metodologia para auxiliar o narrador a interpretar, analisar e organizar acontecimentos ocorridos em situações diversificadas passíveis de investigação, em especial, relacionado ao processo de investigação, como da experiência educativa.
E como bem retrata Freitas (2019, p. 49; 62): “narrar implica uma relação do narrador consigo mesmo e com o outro; [...] ao narrar, o sujeito opera com a dimensão cognitiva na organização da experiência e na regulação do pensamento”. Aliás, a autora apresenta a narrativa (auto)biográfica como um meio válido e proveitoso de elaboração do conhecimento e aprendizagem docente:
no trabalho de compartilhamento de narrativas (auto)biográficas: de modo dialético, nas relações com as alunas, em meio as descontinuidades e imprevisibilidades do trabalho reflexivo do grupo, pude rever modos de agir, perceber o que antes não tinha percebido, atribuir novos sentidos às narrativas das alunas, enfim (re)dimensionar minha experiência como formadora de futuras professoras-formadoras, o que corrobora com a ideia de narrativas (auto)biográficas como meio/modo de elaboração de conhecimentos (Freitas, 2019, p. 62).
A pesquisa baseada em narrativas de formação e escritas de si através de temas propiciam resgate de memórias, pensamentos, sentimentos e ideias através de uma nova leitura, nas quais, muitas vezes, esse processo, ao mesmo tempo de aproximação e distanciamento de si, permitem novas análises e reflexões na formação de professores no âmbito da pesquisa educacional, mas principalmente a possibilidade de que tal proposta investigativa também se constitua em uma experiência formadora.
Segundo Connelly e Clandinin (1995), no processo investigativo sob a perspectiva da narrativa como metodologia de pesquisa, as pessoas vivem histórias num contexto contínuo de experiências e, ao mesmo tempo em que contam histórias, fazem reflexões sobre suas vivências e as explicam aos demais.
Diante dessas considerações, realizamos uma entrevista narrativa com um professor bacharel, com mestrado e doutorado em Direito. A entrevista ocorreu em uma sexta-feira via Google Meet. O professor estava na sua casa e em que pese a elegância costumeira, foi uma das poucas vezes que não utilizava o terno. Foi essa elegância perene que nos fez atribuir a ele o pseudônimo de Pontes de Miranda1, que além de jurista e advogado famoso e fonte de estudo clássico do Direito, foi professor e diplomata.
Pontes de Miranda seguiu a entrevista inteira com sua calma usual e pareceu extremamente feliz em ter esse momento de reflexão sobre a sua trajetória como aluno na graduação, a atuação docente e de compartilhamento de suas vivências. Perguntava, constantemente, se podia falar, demonstrando preocupação se estava se estendendo no tempo, mas com leveza para abordar os temas e uma alegria em resgatar sua história.
A entrevista foi gravada e, posteriormente, transcrita e apresentada ao entrevistado por e-mail para análise e validação. Nenhuma alteração foi solicitada pelo professor, que assinou, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Na transcrição realizada buscamos deixar as marcas peculiares da oralidade, como a redundância informacional, as hesitações, as correções, dúvidas, os marcadores frequentes, a repetição de elementos, eventuais anotações sobre a entoação, os aspectos gestuais, as expressões, dado o fato de acreditarmos que tudo pode significar “interferir na natureza do discurso produzido do ponto de vista da linguagem e do conteúdo” (Marcuschi, 2004, p. 49).
O professor participante possui 13 anos de docência universitária concomitante à trajetória da sua atuação como advogado. Ele iniciou na docência antes de concluir o mestrado, também em Direito.
Após as transcrições, o corpus foi analisado através da perspectiva dialógica de Bakhtin e sua relação com o texto e o discurso, como delimitado por Beth Brait (2005, p. 10), considerando-o não de forma isolada, mas dentro do contexto que foi produzido, uma vez que “ao enunciado concreto que o abriga, há discursos que o constituem”, evidenciando toda a extensão dialógica do enunciado, a interação, os signos e ideologia.
Concluída a transcrição, buscamos nos enunciados em que ele dialoga e enuncia a sua construção de identidade de aluno de graduação do Curso de Direito, de como ele foi se constituindo professor, e através da ideia base bakhtiniana, refletir a relação dialógica de vozes que reciprocamente se influenciam e que se estabelece entre o sujeito - o professor, seu conhecimento - a formação e a sociedade.
Análise da formação do professor do Ensino Superior do curso de Direito através da entrevista narrativa
Pontes de Miranda inicia a sua narrativa apontando uma transição interessante da ressignificação de estudar apenas no primeiro ano da faculdade. Relata que não gostava no Ensino Médio e que ingressar na faculdade significou uma ruptura no pensamento e uma descoberta. A opção pelo Direito adveio de não gostar de exatas e por ter feito um Ensino Técnico em contabilidade e por identificação com a parte da legislação.
Sempre gostei muito de estudar… Direito, pois sempre fui péssimo na escola, nunca gostei de estudar e só fui começar a gostar quando eu entrei na faculdade [...] porque para quem nunca gostou de estudar, pra quem nunca foi estudioso, para quem sempre deu trabalho para os pais porque ia mal em Matemática e não gostava de fazer lição… [...] entrei no curso de Direito e o primeiro ano para mim foi muito difícil porque foi uma ruptura de pensamento assim muito grande, eu não tava acostumado com aquilo, então eu tive bastante dificuldade, mas aí no final do primeiro ano eu pensei, não, eu vou ter que enfrentar todos esses desafios e a partir do segundo ano eu me tornei um excelente aluno na faculdade. [...] No Ensino Médio eu fiz um curso técnico de Contabilidade porque eu já gostava desse perfil de escritório, e lá Contabilidade eu tive contato com detalhezinhos de Direito, me interessei um pouco, já era uma ideia que eu tinha de fazer Direito e aí resolvi entrar no curso de Direito, enfim e gostei (Pontes de Miranda, Entrevista, 02 set. 2022).
A pesquisa com narrativas individuais parte do princípio de que as ações humanas são únicas e irrepetíveis. A compreensão que o pesquisador constrói sobre a experiência narrada não pode, por isso, ser explicitada em proposições abstratas, mas em forma de relatos que permitam aos leitores compreender como os humanos dão sentido ao que fazem, ou seja, encontrar o sentido de estudar na opção de curso na graduação que realizou.
As falas de Pontes de Miranda evidenciam a sua base de formação como aluno e identificação com a área e, principalmente, seu processo de amadurecimento de sair do ensino médio como um aluno que não gostava de estudar e descobrir esse gosto, a sua constituição em um bom aluno adveio do significado de ingressar em um curso de graduação que exigiu a superação de dificuldades e subsistência nos estudos.
Relacionando a teoria bakhtiniana em que nada subsiste estável e “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva” (Bakhtin, 2010, p. 271), nessas contradições, vemos a significação que é impregnada pelo tema, para regressar sob a forma de uma nova significação de identidade como aluno estudioso e estabilidade na continuação dos estudos.
Segue o diálogo reforçando que priorizou a sua formação técnica e narra com orgulho e cercado de adjetivos os inúmeros cursos livres que realizou na área jurídica, firmemente declarando que foram neles que ele mais “aprendeu”. Ressaltou que fez um mestrado, mas não exterioriza qualquer tipo de formação pedagógica e se estes cursos contribuíram ou não para a sua constituição como professor:
Me formei em 2004 depois eu fiz de 2006 até 2007 uma especialização em Processo Civil e não me lembro agora exatamente o ano, mas depois fiz uma especialização em Direito Tributário e depois fiz muitos cursos livres, tenho muitas horas de cursos livres, que na minha opinião foram os que eu mais aprendi. Fiz muitos cursos com nomes incríveis do Direito, sem titulação nenhuma, que se somar dá mais de duas mil horas em cursos que fiz neste intervalo até o ano de 2010 [...].
Eu achava que no mestrado eu ia me especializar mais e me aprofundar mais, mas aí eu descobri que ao contrário, na verdade ao invés de ir para frente eu vou para trás, eu comecei a ler obras muito antigas para entender a formação do pensamento que levou até hoje, eu não tinha essa noção. [...] O mestrado certamente melhorou muito o meu raciocínio, melhorou muito o meu senso crítico que é uma coisa que eu tinha muito pouco antes de entrar no mestrado e talvez essa tenha sido a maior contribuição do mestrado, questionar a obra (Pontes de Miranda, Entrevista, 02 set. 2022).
Considerando a sua condição de sujeito social constituído no processo histórico-cultural representa as vozes usuais do Ensino Superior de priorização da formação de um aluno voltado para atuação técnica e prática profissional, sem se importar com a ausência de eventual formação pedagógica para a atuação como docente.
O sujeito, fundamental na construção e produção do conhecimento, mesmo durante o processo de reflexão da sua própria formação, discorre que o mestrado não impactou na construção do processo identitário de pertencimento à docência, perfazendo a trajetória do desenvolvimento intelectual do social de que “fiz cursos incríveis sem titulação” para o individual “melhorar o raciocínio”.
Para Vygotsky (2007), é indissociável ao estudar a relação pensamento e palavra, não mencionar o seu processo de desenvolvimento, não fazendo nenhuma referência a sua história, e essa abordagem sócio histórica, além de permitir a compreensão da inter-relação dos fenômenos culturais e sua premissa ideológica e dialógica. Assim, da narrativa se depreende que, diante de uma formação técnica primorosa, com vários cursos realizados com “nomes incríveis” não destacou a ausência de formação pedagógica, pois atribui um significado que não suscetibiliza a sua formação e para o pertencimento à docência.
Embora valorize o mestrado no desenvolvimento do seu senso crítico, a narrativa não apresenta uma preocupação sobre a ausência da formação didático-pedagógica ou mesmo uma formação continuada que permita a sua obtenção. A sua constituição como docente e sua formação continuada foi através de “inúmeros” cursos práticos para a transmissão do mesmo conteúdo. Uma constituição solitária, fruto da sua própria ressignificação do que é ser docente, valendo-se dos exemplos que selecionou e seguiu para a sua trajetória de bacharel que atua como professor.
A narrativa valoriza os efeitos que os professores da graduação tiveram ao longo da sua jornada e que esses moldaram a sua formação, e que sua constituição foi reservada a sua vivência em sala de aula, sem espaço formativo que ele reproduz na docência. A atuação como docente foi inspirada na atuação de outros professores no curso de Direito, sobre o que ser e também o que não ser, e aperfeiçoada com atividade de monitor:
Primeiro que eu sempre admirei muito os professores na faculdade, e pelo fato de admirar eu queria também desenvolver a docência e sempre achei muito interessante a carreira docente [...] eu prestava atenção na aula dele e ele tinha um método de aula, já no alto dos seus sessenta, setenta e pouco anos, muito interessante. E eu estava na aula olhando e pensei: - “poxa, quer saber? Eu vou copiar exatamente como ele faz” porque se ele tem uma carreira desta e está dando aula assim é porque deve ser bom. Daí eu comecei não a copiar, mas me espelhar e inspirar [...] e aí chegava na semana de prova lotava a minha monitoria, todo mundo ia na minha monitoria, todo mundo ia na monitoria, porque vai ensinar, daí eu comecei a ver que eu dava bem dando aula, e foi ali que eu desenvolvi a ideia de docência (Pontes de Miranda, Entrevista, 02 set. 2022).
Vemos um professor narrando sua trajetória como aluno e ressignificando seu repertório e constituição. A vivência e identificação resulta uma narrativa desse profissional em como iniciou a sua formação e conhecimentos advindos dessa ação responsiva ensinada por Bakhtin.
A narrativa de Pontes de Miranda permite observar a singularidade das vivências indica qual a sua concepção de formação como professor, o que enquanto sujeito-professor constata no sujeito-aluno através da enunciação o que julga necessário, considerando como Bakhtin e Volochínov (2010, p. 114) que “a palavra dirige-se a um interlocutor”.
Suas concepções de aula revelam uma formação conservadora, com a exacerbação de um conteúdo específico e uma metodologia de ensino construída por meio de um repertório particular e que o validou reproduzindo os professores que mais gostava na graduação, uma constituição advinda de uma trajetória pessoal, em que sua perspectiva de formação docente parte da sua própria história de vida moderado pela sua apropriação de conhecimento técnico para o exercício da função de transmissão de conhecimento, e não retrata uma preocupação com eventual impacto ou mesmo em buscar por essa formação didático-pedagógica, pois sua constituição como docente adveio solitariamente da sua vivência em sala de aula ao longo da vida.
Hoje eu já desenvolvi estilo próprio. [...] Hoje eu já sinto que consigo chamar a atenção do aluno simplesmente falando, explicando o conteúdo e trazendo questionamentos, com próprio conteúdo da aula eu já consigo chamar a atenção do aluno, eu já consigo desenvolver nele o interesse na aula. [...] Didática é lógica! Às vezes as pessoas me perguntam como é que você faz para dar uma aula? Você tem que dar uma aula dentro de uma lógica [...] por isso que minha aula eu trabalho com tópicos na lousa, para eu não esquecer nada e trabalhar com uma ordem lógica e se eu pulo a ordem, eu já percebo que o entendimento não foi, eu já vejo no rosto do aluno, e eu volto e eu vou na aula preparada de forma lógica qualquer um que der aula dentro de uma lógica será uma boa aula. Os meus professores que eu mais gostei são aqueles que chegam e debulham a matéria. Aquela aula mesmo. Essa é minha característica como professor, não sou professor de debates, de ficar quatro horas com assunto polêmico em sala de aula, não tenho assunto para ficar, meu negócio é aula técnica, conteúdo (Pontes de Miranda, Entrevista, 02 set. 2022).
Nas vivências de sua própria história, e em detrimento de uma formação didático-pedagógica, enfatiza de uma forma muito pragmática sobre procedimentos próprios para se constituir docente, mas principalmente a sua significação do que é atuar como docente, ou seja, despertar o interesse para “transmitir” conteúdo. Aliás, a sua concepção pedagógica é centralizada nessa ação de despertar o interesse do aluno e transmitir o conteúdo, desonerando-o de buscar conhecimento pedagógico formal, nem refletir sobre a falta de um espaço formativo.
Pontes de Miranda reconhece o seu papel fomentador do conhecimento, mas enuncia que a sua formação como professor advém de uma identificação e aprimoramento pessoal. A narração reflete que a docência é formada através de um processo solitário, de escolha do que identifica como o melhor exemplo, e de aperfeiçoamento pela prática em sala de aula, desenvolvendo uma formação pela própria experiência afirmando que já desenvolveu “estilo próprio”, sem qualquer referência à formação pedagógica.
Nas relações dialógicas temos a presença das palavras do outro nas palavras do eu. Assim, da narrativa, vemos que o processo de formação adveio dos modelos de ensino relativas às suas intersecções sociais e culturais com seu meio acadêmico como aluno e referenciais de professores, tanto em termos normativos de priorização ao conhecimento técnico sem espaço formativo identificado, quanto interativos na sala de aula como forma de se exercer a sua docência.
Considerações finais
Através da reflexão sobre o dialogismo e a formação docente para a análise da produção de dados através da narrativa (auto)biográfica como procedimento metodológico, a entrevista narrativa com um professor do Curso de Direito de uma instituição privada do Estado de São Paulo permitiu, a partir da reflexão sobre si ao discorrer sobre graduação e o ambiente acadêmico, a compreensão de como a sua formação como docente foi constituída.
Todas as atividades humanas são mediadas pela linguagem, incidindo, desse modo, em sua constituição e formação. Para Bakhtin (2010), o diálogo é uma forma de interação social que permite a construção de significados e a compreensão do mundo, e nesse sentido, o diálogo e os enunciados das entrevistas narrativas permeadas do seu contexto histórico-cultural propicia o levantamento de dados sobre experiências e a compreensão.
Nessa mobilização, a análise dos dados demonstrou que o profissional vai se tornando professor, validando-se em exemplos de outros professores da graduação e nas suas vivências particulares - de aluno e de ensino - em sala de aula, uma constituição solitária em que a ausência de formação didático-pedagógica não é retratada em sua narrativa como vinculativa a sua constituição como professor.
O aspecto social do sujeito é fundamental para a compreensão da linguagem, pois é por meio dele que se estabelecem as relações dialógicas, e ao rememorar sobre sua vida acadêmica como aluno que aderiu à docência a partir da admiração de seus professores do curso de Direito, bem como a trajetória profissional priorizando qualificação específica e a construção técnica do conhecimento, foi, nas vivências da sala de aula, que revelou a prática docente como um espaço formativo.
Fontes
PONTES DE MIRANDA. Entrevista concedida à Gisele Laus da Silva Pereira Lima. Campinas, 02 set. 2022.
Referências
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich; VOLOCHÍNOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às Teorias do Discurso. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 27-39.
BRAIT, Bethe. Bakhtin: conceitos chaves. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
BOLÍVAR, Antonio. “¿De nobis ipsis silemus?”: epistemologia de la investigación biográfico-narrativa en educación. Revista Electrónica de Investigación Educativa, v. 4, n. 2, p. 1-26, 2002.
CONNELLY, Michael; CLANDININ, Jean. Relatos de experiencia e investigación narrativa. In: LARROSA, Jorge; et al. (Orgs.). Déjame que te cuente: ensayos sobre narrativa y educación. Barcelona: Laertes, 1995, p. 11-59.
FRAUENDORF, Renata Barroso de Siqueira; et al. Mais além de uma história: a narrativa como possibilidade de autoformação. Revista Educação PUC-Campinas, v. 21, n. 3, p. 351-361, set./dez. 2016.
FREITAS, Ana Paula de. A narrativa (auto)biográfica como meio/modo de elaboração de conhecimento de alunas de Pedagogia no contexto da educação inclusiva. In: BERNARDES, Maria Eliza Mattosinho (Org.). Narrativas e psicologia da educação: pesquisa e formação. São Paulo: Terracota, 2019, p. 43-66.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vigotski e Bakhtin: psicologia e educação - um intertexto. São Paulo: Ed. Ática, 1994.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2004.
NÓVOA, António. Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas. Educação e Pesquisa, v. 25, n. 1, p. 11-20, 1999.
PASSEGGI, Maria da Conceição. A experiência em formação. Educação, v. 34, n. 2, p. 147-156, maio/ago. 2011.
PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no Ensino Superior. São Paulo: Cortez, 2010.
VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
VYGOTSKY, Lev Semionovitch. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ZANELLA, Andréa Vieira et al. Questões de método em textos de Vygotsky: contribuições à pesquisa em psicologia. Psicologia e Sociedade, v. 19, n. 2, p. 25-33, 2007.
Notas