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Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção (II)
Biographical and narrative approaches in training, research and intervention (II)
Enfoques biográficos y narrativos en formación, investigación e intervención (II)
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 37, e2024001, 2024
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Na apresentação da primeira parte deste Dossiê, publicada em setembro de 2023, tratamos do passado e da consolidação da pesquisa (auto)biográfica no Brasil e nos países do Norte Global (González-Monteagudo; Matos-de-Souza, 2023). Agora, é preciso dizer, este é um campo consolidado, não apenas pelos standards internacionais que identificam a estabilidade da pesquisa, como a publicação de handbooks (Goodson et al., 2016), ou de coleções de livros em distintas línguas, ou pela existência de revistas que dão conta do desenvolvimento no tempo presente no Brasil (“Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica”), na Argentina (“Revista Argentina de Investigación Narrativa”), na Itália (“Autobiografie”), na Coréia do Sul (“Culture, biography & lifelong learning”) e em língua inglesa (a/b: “Auto/Biography Studies”). Contudo, a principal marca de consolidação de um campo é não precisar mais explicar o que se faz, que aquilo que se faz é reconhecido seja por quem está nas proximidades epistemológicas, ou produzindo incômodos em detratores, que curiosamente nunca saem da anedota, ou seja, não adentram o domínio da crítica, quando muito, retomam a ilusão biográfica (Bourdieu, 1986), como se ainda estivéssemos naquele impasse.

Há muito, a pesquisa (auto)biográfica vem abrindo um caminho, superando certas ingenuidades do campo, mesclando-se com outras formas de fazer pesquisa em Ciências Sociais e provocando as humanidades em suas recusas, preconceitos e pretensões, abrindo assim bifurcações da rota já estabelecida e das perspectivas modernocêntricas que insistem em se renovar no debate epistemológico (Matos-de-Souza; Souza, 2015; Matos-de-Souza, 2018; Matos-de-Souza, 2022).

Alguns dos textos selecionados para esta segunda parte do dossiê “Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção” afirmam debates que são contemporâneos e, ao mesmo tempo, figuram entre os limiares epistemológicos e temáticos do campo e representam, em maior ou menor medida, o que estamos fazendo como movimento. Dividimos esta apresentação em cinco tópicos para tentar dar conta da diversidade temática que este dossiê recebeu. É importante ressaltar que recebemos 56 manuscritos, envios espontâneos oriundos de diversas partes do país e do exterior e que foram publicados apenas aqueles aprovados no sistema de avaliação duplo cega. Isso significa que a pesquisa (auto)biográfica está em diferentes e distantes instituições, nos centros e nas periferias, no interior e nas capitais, está em locais que nem o mais otimista dos pioneiros da pesquisa (auto)biográfica imaginaria chegar.

A (Auto)Biografia

O desenvolvimento do campo de investigação que hoje identificamos como pesquisa (auto)biográfica, desde os trabalhos de Thomas e Znaieck (1974), iniciado nas duas primeiras décadas século XX, que a Sociologia vinha estudando e aperfeiçoando metodologicamente os modos de pesquisar as histórias de vida dos sujeitos. É a esse campo mais bem desenvolvido que Bourdieu (1986, 2005, 2008) fez sua crítica ao biográfico, mesmo que depois tenha aderido, pelo menos na forma, ao autobiográfico. Esse é um debate que vive sendo retomado por quem toma contato com a discussão sobre o autobiográfico, é quase uma exigência para os estudantes que adentram o campo e um sacrifício impertinente aos profissionais da área, ter que afirmar que um texto escrito por um sociólogo francês buscando polemizar com um campo emergente na França, à época, mas já consolidado em outros países, e com o qual veio a aderir poucos anos depois não é um debate que guarde sentido em nosso momento de desenvolvimento como campo. A produção do conhecimento é coletiva não de um sociólogo ou de um pesquisador (Passeggi, 2014), e insistir na retomada dessa questão é reavivar um tema já enterrado pela contradição do autor e por sua irrelevância para e sobre a pesquisa autobiográfica, narrativa e das histórias de vida.

Outro ponto discutido também nos textos desse dossiê é o uso de fontes secundárias para a pesquisa autobiográfica, que encontra na territorialização feita por Lejeune (1975) do interesse pelo autobiográfico no campo das letras, construindo um ponto de partida para o reconhecimento do texto autobiográfico. Pensar no uso das fontes secundárias por profissionais das Letras é falar uma obviedade, no entanto ainda existe uma profunda resistência em outras áreas do conhecimento em reconhecer o texto já estabelecido como uma fonte possível de pesquisa, em parte pelo fetiche da entrevista, que tornada objeto se confunde na linguagem com o próprio fazer da pesquisa, sendo, em alguns contextos universitários até difícil falar em pesquisa na qual este instrumento - e é preciso repetir, é só um instrumento - é tomado como único possível. Afirmar o uso de fontes secundárias é abrir um caminho interdisciplinar que permite a existência de algum risco, alguma inventividade e, quem sabe, o novo na pesquisa em Ciências Humanas.

Formação de professores

Vários artigos tratam da formação e do desenvolvimento profissional. Esse é um campo em constante desenvolvimento, como revela a revisão da literatura discutida em um dos artigos, que identificou mais de 400 contribuições oriundas de universidades no Nordeste do Brasil. As metodologias utilizadas são muito variadas, como se reflete nos artigos que publicamos, que utilizam grupos focais, entrevistas de diferentes características, autobiografias e narrativas sobre experiências educacionais. Essas contribuições destacam a necessidade de incluir abordagens narrativas na formação inicial e continuada de professores, nos processos de desenvolvimento profissional e na análise de inovações educacionais.

A história de vida e memória

Outra questão abordada neste Dossiê diz respeito às histórias de vida e à memória. Os debates atuais sobre essas duas questões têm uma presença importante na pesquisa, na formação, na intervenção e no debate político e social. Histórias de vida, autobiografias, entrevistas biográficas, árvores genealógicas e histórias de família nos ajudam a entender a subjetividade e a experiência vivida, com base nos testemunhos de atores sociais e educacionais, sem a mediação ou o filtro de um olhar disciplinar objetivo e externo. Produzir, conhecer e disseminar essas histórias de vida nos ajuda a entender processos sociais complexos, na interseção entre itinerários individuais ou de grupos e dimensões estruturais importantes, como classe social, raça e gênero. Isso pode ajudar a estudar processos de mudança social, cidadania, desigualdade, migração, mercado de trabalho, educação e família de forma inovadora, crítica e interseccional.

O “Novo” Ensino Médio

O Novo Ensino Médio é um problema bem brasileiro, tão brasileiro que no momento se encontra em impasse e em revisão. Trata-se de uma reforma ultraliberal ocorrida no período de retrocesso e barbárie que significaram os anos de 2016 a 2022 no Brasil. Uma reforma educacional de base gerencial que propõe uma formação para uma suposta atuação num mercado que não acolhe pessoas formadas no Ensino Médio e que, no final, tratava-se apenas de mais uma ação da barbárie gerencial, que buscava adequar os serviços públicos ao rebaixamento de suas qualidades, preparando-o para a inserção de agentes privados nesse mercado bilionário.

Um dos destaques da reforma do Ensino Médio brasileiro é o componente Projeto de Vida, que propunha em termos liberais uma reflexividade sobre vida e com isso construa seu projeto acadêmico, profissional e de vida, é um componente que faz parte de outras reformas liberais da educação ao redor do mundo e, em alguma medida, pode ser observado por pesquisadores como objeto legítimo de pesquisa, na medida em que tais projetos geram um registro o que os jovens de um determinado corte geracional entendem por vida, estudo e inserção profissional.

A saúde

O campo da saúde é um desses limiares da pesquisa (auto)biográfica, uma porta recém-aberta. Apesar da área de saúde lidar diretamente com o ser humano e ser humana por princípio, sua disposição epistemológica ou paradigmática sempre foi a de se ver como uma ciência exata, como se na relação entre os sujeitos não estivessem impressas sua história, sua linguagem, sua cultura, sociedade e subjetividade, ou seja, tudo aquilo que faz com que os seres humanos sejam humanos. Por isso, o interesse da saúde pelo (auto)biográfico indica, pelo menos nos profissionais que manifestam esse interesse, uma retomada sensível daquilo que a enfermidade costuma nos trazer em termos de conexão com o outro, de reconhecimento da finitude e dos limites do corpo que, traduzidos na linguagem de um consultório, de um laboratório, dão outro sentido aos dados, aos números e às tentativas de fazer o humano ser entendido unicamente como corpo biológico.

Agradecimentos

Agradecemos à Equipe Editorial da Revista NUPEM, na pessoa de seu editor Frank Mezzomo, pelo convite para organizarmos os dossiês e pelo trabalho formidável que estão fazendo. Também agradecemos aos revisores que ocuparam seu tempo livre para avaliar os textos que aqui se encontram publicados e, sem esquecer, dos muitos rejeitados. E aos autores que foram publicados nas duas edições do dossiê “Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção” e aos vão figurar no fluxo da revista nos próximos números, que contribuíram para este registro do que se vem fazendo como pesquisa (auto)biográfica no tempo presente.

Referências

BOURDIEU, Pierre. L’illusion biographique. Actes de la recherche en sciences sociales, n. 62-63, p. 69-72, jun. 1986.

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

GONZÁLEZ-MONTEAGUDO, José; MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo. Dossiê: Abordagens biográficas e narrativas em formação, pesquisa e intervenção (I). Revista NUPEM, v. 15, n. 36, p. 6-9, set./dez. 2023.

GOODSON, Ivor; et al. The routledge international handbook on narrative and life history. London: Taylor and Francis, 2016.

LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Édition du Seuil, 1975.

MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo. A desobediência epistemológica da pesquisa (auto)biográfica: outros tempos, outras narrativas e outra universidade. Revista UFG, v. 22, n. 28, e22.72988, 2022.

MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo. Viagem (de)formativa na narrativa autobiográfica de Elias Canetti. In: MIGNOT, Ana Chrystina; MORAES, Dislane ZERBINATTI; MARTINS, Raimundo (Orgs.). Atos de biografar: narrativas digitais, história, literatura e artes. Curitiba: CRV, 2018, p. 75-85.

MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo; SOUZA, Eliseu Clementino de. O fenômeno da escrita (auto)biográfica: localizações teórico-Históricas. In: SOUZA, Eliseu Clementino de (Org.). (Auto)biografias e documentação narrativa: redes de pesquisa e formação. Salvador: Edufba, 2015, p. 173-184.

PASSEGGI, Maria da Conceição. Pierre Bourdieu: da ilusão à conversão autobiográfica. Revista da FAAEBA: Educação e Contemporaneidade, v. 23, n. 41, p. 223-235, 2014.

THOMAS, William; ZNANIECKI, Florian. The polish peasant in Europe and America. New York: Octagon Books, 1974.



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