Dossiê
Recepción: 15 Mayo 2023
Aprobación: 08 Agosto 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2024.16.37.7887
Resumo: Os livros biográficos, no Brasil, representam um lugar privilegiado para as histórias de vida de pessoas conhecidas ou anônimas. Temos como objetivo, portanto, neste artigo, refletir sobre o processo de produção das biografias de João Gilberto e Caetano Veloso, ambas escritas por jornalistas, a partir de dois operadores metodológicos, que são a memória e o testemunho. A análise das obras, tendo como referência esses operadores, nos possibilitam indicar que o jornalismo testemunhal amplia as temporalidades do campo, antes visto especialmente pela lógica do tempo presente, e passa a ser também um poderoso agente de memória cultural.
Palavras-chave: Biografias, Jornalis-mo, Memória, Testemunho.
Abstract: In Brazil, biographical books represent a privileged space for the lived experience stories of both famous and anonymous individuals. Therefore, this article aims to reflect on the process of producing the biographies of João Gilberto and Caetano Veloso, both written by journalists, using two methodological operators: memory and testimony. The analysis of these works, from these operators as a reference, allows us to indicate that testimonial journalism extends the temporalities of the field, previously seen mainly through the logic of the present time, and becomes a powerful cultural memory agent.
Keywords: Biographies, Journalism, Memory, Testimony.
Resumen: Los libros biográficos, en Brasil, representan un espacio privilegiado para conocer las historias de vida de personas famosas y anónimas. Nuestro objetivo con este artículo es reflexionar sobre el proceso de producción de las biografías de João Gilberto y Caetano Veloso, ambas escritas por periodistas, utilizando dos operadores metodológicos: la memoria y el testimonio. El análisis de estas obras, tomando como referencia estos operadores, nos permite indicar que el periodismo testimonial amplía las temporalidades del campo, antes visto principalmente a través de la lógica del tiempo presente, y así se convierte en un poderoso agente de la memoria cultural.
Palabras clave: Biografías, Periodismo, Memoria, Testimonio.
Introdução
A relação entre jornalismo e memória ganhou contornos mais consistentes à medida em que novas tecnologias possibilitaram outras maneiras de armazenamento das produções. A noção de efemeridade, geralmente colada ao fazer jornalístico, sofreu uma transmutação por causa dessas novas possibilidades e também devido à atuação mais incisiva dos profissionais da área. O jornalismo altera, então, seu status, ao garantir um lugar privilegiado na constituição da memória em suas inúmeras dimensões, seja no aspecto objetivo, como o suporte empregado, por exemplo, seja no aspecto subjetivo, ao ampliar as narrativas do campo, como as biografias. Agenciado por essa perspectiva se encontra o jornalista, pensado não mais como aquele que transmite algo de maneira distanciada, indiferente, mas como um testemunho vivo e atuante das narrativas contemporâneas.
O jornalismo, ao participar desse movimento de disputa narrativa, opera em uma dimensão produtiva e participante da dinâmica social, afinal, como nos adverte Beatriz Sarlo (2007, p. 10), “o passado sempre chega ao presente”. Se, antes, o passado nos aparecia, em especial, por intermédio das produções dos historiadores, hoje, podemos afirmar que houve uma ampliação desse panorama, já que podemos contar com o impulso potente do campo comunicacional. Seja pela ampliação das ferramentas de percepção da realidade, seja pela ocupação de um lugar ativo nesse campo. Para compreender um pouco mais as circunstâncias desse ambiente interacional, traremos, inicialmente, alguns estudos sobre memória jornalística, biografias e testemunho (Dosse, 2015; Frosh, Pinchevski, 2009; Maia, Ribeiro, 2015; Matheus, 2011; Moura Vieira, 2015, Olick, 2014; Zelizer, 2014), para então adentrarmos nas análises de duas biografias relacionadas à memória cultural do Brasil.
Compreendendo as narrativas jornalísticas como partícipes do circuito interativo social, consideramos pertinente o estudo das biografias que nos ajudam a descortinar trajetórias de pessoas que, no caso específico desse trabalho, recolocam o sujeito no centro das narrativas por entender que as grandes estruturas não conseguem traduzir a textura da vida social. Vale registrar que não advogamos a tese da verdade absoluta a partir dos depoimentos dos sujeitos, mas que devemos considerar esses relatos com o objetivo de entender o nosso entorno, percebendo que, na maioria das vezes, conseguimos tão somente receber os rastros e vestígios deixados por essas vozes, afinal o real sempre nos chega em sua incompletude.
Neste sentido, deve-se considerar a discussão sobre a memória cultural, e sua relação com a história brasileira, na produção de biografias escritas por jornalistas. Seguindo a abordagem proposta por Burke (2000), é possível compreender a história da memória como um processo coletivo, mas que também se apresenta como diverso, fragmentado e múltiplo. Essa perspectiva permite a compreensão dos processos conscientes e inconscientes dos testemunhos e tradições, bem como dos registros históricos.
Por essa ótica, o livro “Amoroso: uma biografia de João Gilberto”, escrito por Zuza Homem de Mello, e “Outras palavras: seis vezes, Caetano”1, biografia de Tom Cardoso, são importantes fontes para a construção da memória cultural brasileira. Além de registrarem os percursos de vida desses artistas, também compartilham com os leitores a história e dilemas da música popular e da cultura brasileira de diferentes épocas e regiões do país.
Em “Amoroso”, Mello (2021) apresenta o surgimento da Bossa Nova na década de 1950, enfatizando o papel fundamental de João Gilberto na criação desse gênero musical. A narrativa biográfica é organizada em 15 capítulos e 344 páginas. Na obra, o autor retrata João Gilberto como um artista que revolucionou a música popular brasileira com sua técnica de violão, estilo de canto suave e interpretação única das canções. Por meio dessa narrativa, o autor busca compreender a identidade individual e coletiva em torno da produção artística de João Gilberto e da própria Bossa Nova, um movimento musical que marcou a cultura brasileira.
A outra biografia a ser analisada, “Outras palavras” (2022), que narra a trajetória de vida do cantor e compositor baiano Caetano Veloso, tem como plano de fundo o efervescente tropicalismo. Publicada pela editora Record, a obra, de 306 páginas e seis capítulos, é descrita por seu autor como “uma biografia não convencional” e como um “ensaio jornalístico” (Essinger, 2022). De fato, ela apresenta uma narrativa que foge do óbvio; não há cronologia linear nem o intuito de enquadrar o biografado como um personagem coerente e estável. Ao invés disso, Cardoso escolhe seis facetas de Caetano e, assim, nos apresenta um homem dissonante, ora calmo, ora revolto, ora crítico, ora entusiasta.
Cientes, portanto, das inúmeras possibilidades que os estudos biográficos nos apresentam, pretendemos fazer uma análise das narrativas das biografias aqui indicadas, compreendendo o lugar que ocupam no campo jornalístico, utilizando dois operadores metodológicos, que são a memória e o testemunho, a partir das discussões do próximo tópico.
Memória e testemunho nas biografias jornalísticas
Conferimos, na atualidade, uma cultura da memória em plena expansão. São inúmeros os fatores responsáveis por essa ocorrência, como argumenta o historiador Jay Winter (2006) ao indicar que esses discursos estão atrelados a situações traumáticas, ao ativismo político, às reivindicações indenizatórias, além de pesquisas e estudos especializados sobre o passado. Como também nos alerta Aleida Assmann (2011, p. 53), ao refletir sobre essa mesma questão, “a memória se orienta para o passado e avança passado adentro por entre o véu do esquecimento. Ela segue rastros soterrados e esquecidos, e reconstrói provas significativas para a atualidade”. Nessa acepção, o jornalismo, cada vez mais, é chamado a compor o arcabouço dos agentes responsáveis pela memória e pela percepção social do tempo na atualidade.
O caráter narrativo que o fazer jornalístico assumiu no século XXI assegura seu lugar como produtor de sentidos e reverberador social. Assim, ele não pode ser percebido tão somente como prática, mas especialmente como “sujeito social que participa da recomposição do passado dentro das novas possibilidades que o presente lhe concede” (Maia; Ribeiro, p. 181).
Essa perspectiva indica a ampliação do campo, antes pensado a partir de um certo presentismo, que agora busca realizar coberturas mais extensas do ponto de vista temporal. A ampliação dos suportes e o papel interessado e atuante de muitos profissionais contribuíram para essa ampliação. A participação do jornalismo no processo de percepção do tempo social, de acordo com Letícia Matheus (2011), acontece, em primeiro lugar, por conta da presença dos dispositivos midiáticos que dão suporte às narrativas e, em segundo lugar, pelas textualidades engendradas pelos múltiplos modos de se localizar temporalmente os relatos.
Jeffrey Olick (2014, p. 28, tradução nossa) argumenta que uma memória cultural é impensável sem a participação dos meios de comunicação, que atuam tanto na circulação dos acontecimentos quanto na própria instituição mnemônica das ocorrências sociais, tendo um papel ativo em nossa sociedade: “nossa memória dos acontecimentos passados comumente incorporam as imagens jornalísticas que o próprio jornalismo enquadrou. As memórias dos eventos públicos são, então, indivisíveis de suas coberturas jornalísticas”.
A relação entre memória e jornalismo, de acordo com Barbie Zelizer (2014), pode ser compreendida por três aspectos. O primeiro deles aponta a atividade mnemômica ativa da prática profissional; o segundo elemento confere à atividade jornalística um lugar proeminente na contemporaneidade. O terceiro indica justamente a ausência de estudos mais específicos sobre a centralidade do jornalismo na recomposição do passado. Situação que começa a passar por alterações justamente pelo uso de recursos narrativos propiciados pelas novas tecnologias e suportes disponíveis. Disso também decorre uma ampliação dos aspectos temporais em sua cobertura da vida social, afinal, se o jornalismo “conforma narrativas e se é através das narrativas que atribuímos sentido ao tempo, o jornalismo diz não apenas de seu tempo, mas também das possibilidades que o seu tempo permite atribuir ao passado e até mesmo ao futuro” (Maia; Ribeiro, 2015, p. 174).
A existência, portanto, de recursos técnicos de armazenamento é essencial para a constituição de uma memória que ultrapasse gerações (Assmann, 2011). Associado a essa questão, encontra-se o lugar testemunhal reservado ao jornalismo do século XXI. Para essa discussão, convocamos as reflexões de Paul Frosh e Amit Pinchevski (2009) quando eles afirmam que o testemunho é possível de ser realizado “na”, “pela” e “através da mídia”, esclarecendo que este aparece, portanto, por meio de testemunhas nas reportagens, pela própria veiculação do material jornalístico e, ainda, pelo próprio testemunho resultante da interação entre reportagens e público receptor.
Nos limites desse trabalho, consideramos adequada a análise voltada particularmente para o testemunho “na” e “pela” mídia, considerando a potência tanto do testemunho do jornalista que, estando ou não presente no cenário dos acontecimentos, é capaz de narrar de maneira assumida, visto que, como nos assevera Agamben (2008, p. 150), “o testemunho sempre é um ato de autor”. Mas também observamos que outros testemunhos são convocados pelos autores das biografias, seja pela entrevista direta com pessoas próximas aos biografados, seja pela recuperação do que foi publicado pelos próprios meios de comunicação.
Perspectiva adotada também por Beatriz Sarlo (2007, p. 24) quando ela afirma que “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração [...]. A narração também funda uma temporalidade que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar”. Assim, os sentidos podem ser construídos por intermédio do caráter testemunhal do jornalismo, em todas as suas dimensões, que pode cumprir um relevante papel na esfera social.
Com o objetivo de afunilar essa discussão, conferimos ao suporte livro um espaço de maior liberdade de atuação dos jornalistas, que podem ter relativa autonomia tanto no aspecto temático quanto no recorte temporal, o que nos leva a questionar, mais especificamente, qual o lugar dos livros jornalísticos biográficos na dinâmica social a partir de sua função memorial e testemunhal.
No Brasil, esses livros surgiram em meio ao novo biografismo, movimento que tomou impulso nos anos 1970, com o resgate das esquerdas pós-golpe de 1964, e se desdobrou na literatura, na reportagem, no cinema e na televisão. O novo biografismo se interessava pelas vidas de brasileiros e de pessoas proeminentes na história do Brasil, pouco divulgadas, e defendia causas progressistas, em busca de “urdir a crônicas dos tempos próximos, enquanto o recuo azado à historiografia demorasse a se instalar” (Galvão, 2005, p. 356).
Ao fim daquela década, a ditadura militar já estava enfraquecida e a abertura política era iminente, com os movimentos estudantil e sindical de volta à cena pública e a campanha pela anistia. Tempo em que as livrarias expunham obras de parlamentares de oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, romances políticos e romances-reportagem, livros-reportagem, de memórias e clássicos do pensamento socialista (Maués, 2014). As biografias jornalísticas, assim, narraram trajetórias de vida variadas, da combatente comunista Olga Benário ao dramaturgo Nelson Rodrigues, da cantora Elis Regina ao jogador de futebol Garrincha, e se multiplicaram com o passar dos anos e das décadas, tornando-se presença constante e egrégia no mercado editorial.
Impura e híbrida, como é descrita a biografia pelo historiador François Dosse (2015), a biografia jornalística vagueia também pelos limites da história e da literatura (Woitowicz; Adam, 2020), apresentando-se como uma configuração moderna do gênero, com características próprias que a distinguem, por exemplo, de biografias escritas por historiadores, como a descrição carregada de drama, a possibilidade de acionamento de diferentes temporalidades, o detalhamento de cenas, o uso de diálogos diretos e a inserção de pontos de vista em terceira pessoa, tal como o “New journalism” (Domingues, 2012). Estilo que já enfrentou resistência2 de pesquisadores de diferentes áreas, como a história, a literatura e o próprio jornalismo, em especial no que diz respeito aos seus procedimentos metodológicos (Moura Vieira, 2015), mas que pode se resguardar no rigor e no método de um extenso trabalho de reportagem, envolvendo planejamento de pauta, pesquisa de fontes, análise de documentos, realização de entrevistas e a postura ativa do repórter, já que só “ele poderá escrever seu texto, discuti-lo com o editor, ou editores, e preparar a sua publicação” (Silveira, 2018, p. 5).
De todo modo, assumimos que a biografia é um gênero híbrido, que tangencia tanto o jornalismo, quanto a história e a própria literatura, de maneira complementar. Concordamos com Lira Neto (2022, p. 74) quando ele afirma que ao se discutir sobre a questão fronteiriça entre os saberes “tendemos a imaginar, por definição, linhas divisórias imaginárias que separam territórios ou impõe limites entre eles. Prefiro entendê-las como zonas de transição e convergência, porque são capazes de absorver e incorporar influências”.
Consideramos, portanto, que as biografias jornalísticas, ainda que transitem nessa perspectiva de “fronteira”, em geral, acabam recorrendo a procedimentos específicos da área, como afirmam Maia e Fernandes (2022, p. 169), “ao conseguir aproximar os métodos de produção da reportagem com os procedimentos adotados para a escrita sobre o outro, os jornalistas conseguem apontar novas possibilidades para o próprio fazer jornalístico”. Zuza Homem de Mello, ao se debruçar sobre a vida de João Gilberto, também nos conta histórias da Bossa Nova. Tom Cardoso, ao discorrer sobre a trajetória de Caetano Veloso, faz também um diagnóstico sobre a Tropicália. Entre memórias individuais e coletivas, entre testemunhos diretos ou indiretos, consideramos que essas biografias transitam de maneira não-linear nessas vidas a partir de certas marcas testemunhais e temporais que serão analisadas nos tópicos a seguir.
Como procedimento metodológico de análise das narrativas, nos serviremos de dois operadores que são a memória e o testemunho, compreendendo que eles nos ajudam a captar o processo de configuração das biografias em sua aproximação com o fazer jornalístico, ao articular experiência, memória e movimentos interativos na consecução da própria obra biográfica. Temos como objetivo, portanto, compreender de que maneira os dois jornalistas trabalham a memória no processo de configuração das narrativas biográficas, assim como de que forma o testemunho jornalístico apresenta estas histórias de vida, considerando as fontes e os procedimentos de captação e edição narrativa dos livros. Ao utilizar esses dois operadores para a análise, buscamos examinar a materialidade das palavras acionadas, compreendendo que, ao narrar, “inserimos modos de dizer, inscrevendo e excluindo sujeitos, ressaltando e apagando saberes e poderes” (Resende, 2011, p. 134).
Nos dois próximos tópicos, portanto, apresentaremos cada uma das biografias a partir da análise dos dois operadores identificados, considerando que as histórias de vida podem ser relatadas a partir de inúmeras perspectivas e que os embates e tensionamentos, bem como a maneira como são configuradas as biografias, nos ajudam a conhecer um pouco mais sobre os sujeitos em evidência.
João Gilberto
Composta por quinze capítulos, “Amoroso” narra a trajetória pessoal e profissional do cantor, compositor e violonista brasileiro João Gilberto, reconhecido como um dos pioneiros da Bossa Nova no Brasil e no mundo. Os primeiros capítulos do livro, “Amizade”, “Juazeiro”, “Rio via Salvador”, “Porto Alegre” e “Diamantina” buscam compartilhar com o leitor a relação de cumplicidade entre Mello (2021) e João Gilberto; as lembranças de infância do cantor em Juazeiro na Bahia, assim como a memória cultural e artística da cidade; sua passagem pelo Rio de Janeiro; os anos em que morou na cidade de Porto Alegre e sua longa permanência em Minas Gerais, respectivamente.
Os capítulos seguintes, especificamente do sexto ao décimo segundo, Mello (2021) destrinchará fragmentos da história da Bossa Nova no Brasil, a influência do gênero musical nos Estados Unidos, narrando até a desvinculação de João Gilberto com a Bossa Nova e seu sucesso no Brasil. Nos últimos três capítulos da obra, Mello (2021) reserva ao público as intimidades e as características do que poderia ser entendido como o jeito João Gilberto de ser. “Minimalismo”, “Pôr do sol” e “Adeus”, neste sentido, percorrem os últimos anos de vida do musicista até sua morte.
Para ampliar e aprofundar um primeiro livro sobre João Gilberto, publicado como ensaio pela “Publifolha” em 2001, o pesquisador realizou 48 entrevistas e vasculhou arquivos de jornais, além de consultar sua própria hemeroteca. Além disso, o autor também viajou para Porto Alegre e Rio de Janeiro, acompanhado de Ercília, em busca de novas fontes (Maria, 2021). Após anos de trabalho e pesquisa, Mello (2021) faleceu antes da publicação do livro, deixando para sua parceira de vida, Ercília Lobo, a responsabilidade de editar a obra. Com uma abordagem díspar de muitas outras narrativas biográficas, no que se refere à inserção do biógrafo no texto, “Amoroso” sugere, como principal proposta, relatar a vida de João Gilberto a partir de uma escrita afetiva e subjetiva em determinadas passagens.
Mello (2021) desenvolve uma sequência narrativa que, em alguma medida, compartilha com o leitor o modo de ser do biografado e as razões de sua incessante busca pela perfeição e pela pureza na música, segundo memórias de entrevistados, mas, sobretudo, do próprio biógrafo. Zuza Homem de Mello chega a se colocar, no texto, utilizando a primeira pessoa:
Concluo esta narrativa com um comentário sobre a impressão que esse encontro deixou na minha memória. Como é sabido, um imenso anedotário formou a imagem pública de João Gilberto como uma personalidade antissocial, introvertida, idiossincrática, narcisista e excêntrica. No entanto, a impressão que ele me deu na ocasião está em completo desacordo com essa imagem. O João Gilberto que vi foi uma pessoa despretensiosa e simples, extremamente sensível, dada, extrovertida, afetiva e comunicativa. Em suma, um gênio com uma personalidade complexa, intrigante e carismática (Mello, 2021, paginação irregular).
Zuza, que era grande amigo do biografado, coloca-se no texto para compartilhar com o leitor o que ele considerava serem inverdades e exageros sobre a figura de João Gilberto. Na percepção de Avelar e Schmidt (2012, p. 72), a narrativa biográfica pressupõe uma escrita profundamente relacionada às subjetividades, afetos e modos de perceber o outro. Assim, o jornalista, enquanto testemunha e mediador do relato entre o biógrafo e o leitor, deveria ceder mais espaço à fala do biografado, ao modo como ele se entende no mundo enquanto sujeito, em vez de apenas procurar definições simplistas e objetivas sobre a sua história.
A partir desta proposta de narrativa assumida por Mello (2021), a memória é reconstituída por meio das lembranças do próprio jornalista com João, o que nos sugere uma tentativa de autocredibilidade ao que seria o “real temperamento” de João Gilberto. Em alguma medida, compreende-se que o testemunho do biógrafo ocorre de maneira subjetiva, ao mesmo tempo em que também busca validar junto ao leitor as atribuições do que seria verdade ou mentira sobre a vida do biografado. Acompanhamos a presença do jornalista em cena, ou, neste caso, a relação de intimidade entre biógrafo e biografado, que ajuda a conferir à narrativa testemunhal elementos de veracidade ao que se é narrado.
Ao relacionar memória e testemunho como dimensões interconectadas (Frosh; Pinchevski, 2014), é possível estabelecer uma relação fundamental com esses operadores. O ato de testemunhar implica em compartilhar as emoções decorrentes de um processo de lembrança do passado, do presente ou em curso, mas também em ser tocado e impactado pelo relato do Outro. Essa proposta de narrativa se basearia em uma noção crucial para a prática jornalística que valoriza a ética e o respeito à fala do Outro, transformando-a em um texto testemunhal que abraça a subjetividade inerente ao ser humano.
Segundo Avelar e Schmidt (2012, p. 66), quando o jornalista leva à frente e com prioridade a ideia de uma pretensa verdade confiada somente à ideia de uma “testemunha ocular” apaga-se também “a pluralidade de olhares, de referências, de pontos de vista e de perspectivas”. Ver, presenciar e relatar os eventos a partir do que foi assistido, neste caso, seria o modo convencional do fazer jornalístico em conferir credibilidade às narrativas midiáticas. Neste aspecto, Veiga da Silva (2015) também reconhece como uma atividade jornalística que ainda opera frequentemente sob um prisma epistemológico hegemônico que concebe determinados entendimentos e conhecimentos como sendo a única ideia de verdade possível. De todo modo, o autor busca relacionar seu relato com as memórias de pessoas próximas a João, que, de algum modo, também são testemunhas daquilo que viveram com o artista.
A partir disso, torna-se possível pensar que o interesse de Zuza em contar sobre os feitos e as contradições de um dos músicos mais consagrados do cenário artístico brasileiro parece se centrar justamente na ideia de oferecer ao público uma obra que expresse, segundo o Mello (2021), as subjetividades de João Gilberto, não apenas relatando sua vida em uma macroperspectiva histórica e sob uma pretensa objetividade jornalística. Em determinados capítulos, é ainda mais evidente o desejo em relatar os percursos de vida de um grande amigo, ora se colocando como jornalista, ora como uma pessoa íntima ao biografado, sem esquecer de mencionar os excertos em que Zuza se apresenta como um crítico musical. Por mais paradoxal que isso possa parecer, afinal, muitas cenas relatadas indicam a sua presença no local dos acontecimentos, o jornalista ainda apresenta fortes evidências de pesquisas e investigações no processo de captação das informações.
Mello (2021) dedicou-se minuciosamente a investigar os diferentes caminhos percorridos por João, desde as gravações de seus discos até sua infância na Bahia, a estadia em Porto Alegre, antes de retornar ao Rio de Janeiro e o surgimento da Bossa Nova. O jornalista consultou programas especiais de TV, registros de performances do musicista em diferentes países e conduziu entrevistas pessoais e por telefone com João Gilberto, além de buscar informações em uma ampla variedade de fontes secundárias. Além disso, Mello (2021) pesquisou em arquivos de museus do Brasil, dos Estados Unidos e da Inglaterra. Mais do que acessar documentos digitais e impressos, o biógrafo ainda combinou entrevistas, leituras e audições registradas por ele mesmo a fim de aprofundar a pesquisa.
O biógrafo, ao rememorar a infância de João Gilberto na cidade de Juazeiro, na Bahia, busca perfilar a cidade e a Bahia, e relacioná-las com a personalidade de João, indo muito além de sua fama como artista, ao demonstrar a lida de João com o cotidiano enquanto cidadão, que também se preocupava com questões de equidade social. Fernando Resende (2002) nos ajuda a entender um pouco mais sobre esse movimento ao propor a ideia de um “narrador-jornalista”, que estabelece um vínculo de afetação e alteridade no testemunho. Esse vínculo ocorre porque o jornalista reconhece em si mesmo e em sua própria personalidade características semelhantes às do biografado, incluindo seus sentimentos e perspectivas sobre o mundo e as diferentes interpretações que podem surgir a respeito.
A tentativa de Mello (2021) em desmitificar a figura de João, por meio do testemunho da memória, pode ser observada em um deslocamento da subjetividade entre o jornalista e a fonte. O objetivo é justamente aproximar as partes envolvidas e unir os fragmentos desse “outro-eu-narrado” (Agamben, 2009), por meio de um relato subjetivo construído a partir de uma vivência singular e pessoal.
Essa abordagem relaciona-se com o pensamento de Bruner (1991), ao defender que a criação de histórias é a maneira como o sujeito dá forma às suas experiências e aos acontecimentos do mundo. Nesse sentido, Zuza utiliza a narrativa biográfica como um recurso para buscar construir uma nova identidade para João Gilberto, a partir da rememoração de suas experiências em Juazeiro e da relação com a cultura local, como o samba de roda, o forró e a música folclórica, por exemplo. Como destaca Nora (1993), a memória é afetiva, atual e criativa, sendo uma experiência de apropriação do vivido por diferentes grupos. Por essa perspectiva, entende-se que a memória, no texto jornalístico-biográfico de Zuza Homem de Mello, permitiria a compreensão da cultura popular brasileira de forma mais afetiva, em contraposição à história oficial, ou mais distante e racional.
Para João, o Brasil tinha multiplicidade de gêneros capazes de expressar nossa cultura enquanto um país latino-americano, sem necessariamente fazer apelo ao que se entendia como canção em outros continentes. Um dos gêneros era o samba raiz, que mais tarde ganharia outra forma: a Bossa Nova. Também considerada originalmente brasileira, a Bossa Nova constituía-se como um elo entre o presente e o passado do samba no Brasil, o que nos leva a refletir sobre o aspecto mnemônico da biografia. Os expoentes do gênero foram João Gilberto e Vinícius de Moraes, com a música “Chega de saudade”, lançada em 1958 por Elizeth Cardoso. Sobre o significado do gênero, Zuza defende o sentido original em uma passagem da biografia, ao relatar a relação de João com a música brasileira, em que diz ter observado o atrevimento de uma pessoa em afirmar que bossa vinha de boss (do inglês, superior). “Tom Jobim conta: ‘eu usei essa expressão no primeiro disco que fiz com o João em 59: baiano bossa-nova. A Bossa Nova se estabeleceu e aí tudo virou bossa-nova, presidente bossa-nova, dentista bossa-nova” (Mello, 2021, paginação irregular). Havia, portanto, um intuito não somente de João e Vinícius em manter a memória sobre o significado do gênero, mas também do biógrafo em defender e dar seguimento ao que ele julga a versão adequada da história da Bossa Nova.
Isso torna-se ainda mais evidente quando se considera a necessidade de proporcionar voz e visibilidade aos grupos marginalizados e minoritários, ou determinados setores da sociedade civil, permitindo que pessoas anônimas, ou até mesmo aquelas com notoriedade midiática - que também estiveram, de algum modo, ao limbo da elite no passado - possam contar as histórias do Brasil, como no caso de João Gilberto e Caetano Veloso. Além de garantir os testemunhos dos entrevistados e depoentes, temos ainda o testemunho dos jornalistas que escreveram as biografias, o que também permite ao leitor uma melhor aproximação à experiência testemunhada pelo outro.
Caetano
Ao narrar a trajetória de vida do cantor e compositor Caetano Veloso, o jornalista Tom Cardoso (2022) divide os acontecimentos em seis capítulos, como se fossem seis perfis de seu biografado: “o santo-amarense”; “o polêmico”; “o líder”; “o vanguardista”; “o amante”; e “o político”. Em cada um deles, não há uma ordem cronológica estabelecida, e o biógrafo passeia por episódios de diferentes anos, relacionando uns aos outros, tendo o tema de cada capítulo como fio condutor. Eventos que, de alguma maneira, ocuparam as manchetes dos jornais ou foram alvo da atenção das pessoas, reunidos assim, formam as facetas que o biógrafo gostaria de apresentar aos leitores.
O biógrafo se debruçou sobre a vida de Caetano ao longo de dois anos, mas optou por não conversar com o seu biografado nesse período3. Para ele, mais importante do que ouvir, hoje, o que Caetano diria sobre os acontecimentos que atravessaram a sua vida, no passado, seria observar o que foi dito em cada momento. Embora tenha falado com pessoas próximas ao cantor e compositor baiano, o jornalista dedicou a maior parte do seu trabalho de apuração analisando os arquivos de grandes jornais e da mídia independente; isto é, o armazenamento dessas publicações foi essencial para que as informações pudessem resistir à dureza do tempo, como aponta Aleida Assmann (2011). Grandes revelações, dessa maneira, não fazem parte de sua obra, que vai para outro caminho, ao reunir informações públicas e tratá-las sobre o ponto de vista do repórter, que considera o biografado uma figura autêntica e contraditória: “Não deixam de ser inéditas e reveladoras falas dele que nunca mais foram lembradas, que não são encontradas no Google” (Lichote, 2022, s./p.), defende o biógrafo, pensamento que encontra refúgio no argumento de Assmann (2011), para quem a memória traz novos sentidos para a atualidade ao se dirigir ao passado e procurar pelo que foi ignorado.
Cardoso (2022, p. 125) explora, por exemplo, a sexualidade de seu biografado, trazendo de volta uma fala confusa, envolvendo gênero e sexualidade, em resposta a um comentário do cantor Cazuza, de 1988, sobre Caetano ser bissexual: “Não acho legal uma pessoa ser só homem ou só mulher, tenho tendência para uma coisa assim mais difusa, o amor mesclado de amizade e vice-versa, a heterossexualidade mesclada de homossexualidade e vice-versa”. Uma transa malsucedida do artista baiano com outro homem, expressada na canção “Eclipse oculto” (“Mas bem que nós fomos muito felizes/ Só durante o prelúdio/ Gargalhadas e lágrimas/ Até irmos pra o estúdio/ Mas na hora da cama/ Nada pintou direito”), também é abordada pelo jornalista, que reconhece os diferentes significados que a história tem na atualidade: “Não chega a ser uma grande revelação uma transa de Caetano com um homem hoje em dia, não é?” (Lichote, 2022, s./p.).
A relação de Caetano com Paula Lavigne - empresária e atual esposa do artista - é outro tema presente no livro. Os dois se envolveram quando Paula tinha apenas 13 anos e Caetano, 40, uma relação que não passou despercebida, mas que não foi escandalizada à época. Cardoso faz um paralelo sobre como o relacionamento dos dois era visto e como seria tratado na atualidade, considerando as mudanças legais e morais que ocorreram com o passar dos anos: “Nos dias de hoje, Caetano teria sérios problemas com a Justiça, mas em 1982 não existia a atual previsão de crimes nas relações sexuais entre adultos e menores de 14 anos - cada caso era analisado individualmente por juízes” (Cardoso, 2022, p. 161).
Além de trazer retratos de Caetano, Cardoso (2022) também transita pela memória cultural brasileira. Em um país onde o Museu Nacional e a Cinemateca são consumidos por chamas, as políticas públicas de promoção à cultura são alvo recorrente de desinformação e do ódio e artistas se desdobram para conseguir se manter, o jornalista se esforça em revisitar acontecimentos e fenômenos, assumindo a memória como um de seus instrumentos e cumprindo, assim, o papel mnemônico do jornalismo (Zelizer, 2014). Desse modo, torna-se também testemunha desses acontecimentos, ainda que não estivesse presente com seus próprios olhos, conforme Frosh e Pinchevski (2009) e Jeanne Marie Gagnebin (2006), para quem testemunha também é aquele que ouve o que o outro diz.
Tom Cardoso (2022) revela, nos apêndices “Notas” e “Bibliografia”, as fontes que consultou, ao longo de seu processo de pesquisa. Ainda que o livro não traga uma introdução, capítulo ou apêndice com ponderações do autor a respeito do processo de produção, é possível perceber a posição do jornalista desde a escolha pelo título, “Outras palavras”, que indica um personagem fragmentado, o que é reforçado na divisão dos capítulos. Cardoso também escreve com familiaridade, por ser crítico musical e ter escrito o livro “Ninguém pode com Nara Leão” (2021), biografia da cantora-símbolo da Bossa Nova.
Embora tenha optado por não conversar com seu biografado e tenha tido matérias de jornais como sua principal fonte de informações, o que Paul Frosh e Amit Pinchevski (2009) denominam de os testemunhos na mídia, há inúmeras situações narradas com detalhes em “Outras palavras” (2022). Cardoso se atém aos pormenores de muitos episódios para esmiuçá-los, como a turbulenta relação do artista com a imprensa, nos anos 1970. Os embates durante os lançamentos dos álbuns “Bicho”, de 1977, e “Muito”, de 1978, por exemplo, soam ruidosos pelas palavras do biógrafo, que traz duras aspas: “‘Dançar, nesses tempos sombrios?’ [...] ‘Um exercício de tolice e narcisismo’” (Cardoso, 2022, p. 71) apontou um crítico; “Eu acho uma safadeza quatro ou cinco analfabetos, que não sabem escrever português, sentar numa revista e num jornal e escrever qualquer coisa sobre a gente, assim, depreciando” (Cardoso, 2022, p. 73), chegou a afirmar Caetano.
A construção da narrativa só foi possível, podemos perceber, a partir de uma apropriação de relatos testemunhais que percorreu os seus rastros e os cruzou com outras fontes, como um grande trabalho de investigação (Maia; Barretos, 2018). Sem o objetivo de preencher lacunas pré-definidas, o uso do testemunho é capaz de complexificar as narrativas jornalísticas, tornando-as mais polifônicas e plurais.
Ademais, o testemunho pela mídia (Frosh; Pinchevski, 2009) desempenhado por “Outras palavras” (2022) se torna mais evidente à medida que enxergamos o seu esforço em reinterpretar acontecimentos do passado, com as lentes de hoje, mas não deixando de considerar os contextos que os envolveram. Cardoso faz um extenso levantamento do que foi dito por e sobre seu biografado, buscando se aproximar do que aconteceu, na erupção dos episódios, como um investigador que analisa e relaciona as pistas de um caso. Na tentativa de rabiscar diferentes perfis de seu personagem, o jornalista testemunha a história de Caetano, assim como testemunha muitos dos acontecimentos que envolveram a tropicália. Assim, permite que as histórias permaneçam vivas e ganhem novos sentidos, de modo que nós, leitores, passamos a ser testemunhas através da mídia (Frosh; Pinchevski, 2009).
Tornamo-nos testemunhas, aliás, não apenas da vida de Caetano, mas também adentramos as memórias relacionadas ao tropicalismo, desde sua insurgência até sua consolidação, passando por outros personagens tão importantes quanto o biografado para a tropicália, como os artistas Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé. A obra faz um retrato diversificado da agitação cultural causada pelo movimento e narra, com o privilégio do olhar extemporâneo, o estranhamento provocado pela postura contestadora dos jovens artistas que, em meio à patrulha e diante da tirania da censura, não se intimidaram, mas versejaram um Brasil rebelde e, ao mesmo tempo, alegre: “Eram chamados de entreguistas pela maioria da esquerda, porque estariam se submetendo ao imperialismo norte-americano e sua cultura de massa. E, para a direita, representavam uma ameaça comportamental” (Cardoso, 2022, p. 108).
“Outras palavras” é uma obra despretensiosa - até mesmo pelo receio do autor em classificá-la como uma biografia - que tem méritos, sobretudo, pela maneira como lida com a memória, tratando-a como um elemento dinâmico e subjetivo. Distante da ilusão biográfica (Bourdieu, 2006), o livro não sucumbe à tentação de representar o seu biografado como um personagem coerente, cuja história de vida estava traçada desde a sua infância, e oferece aos leitores a possibilidade de vê-lo a partir de diferentes ângulos, compostos por inúmeros atravessamentos.
Memórias individuais e coletivas, desse modo, entrelaçam-se no decorrer do relato de Tom Cardoso, a partir da narrativa. O jornalista, assumindo-se como um agente ativo na dinâmica testemunhal, assegura que o seu fazer seja um sujeito social, recompondo o passado a partir do presente e, assim, atuando como reverberador social a partir da produção de sentidos (Maia; Ribeiro, 2015).
Considerações finais
A escrita de biografias jornalísticas tem passado por mudanças significativas em relação à escolha narrativa dos jornalistas. A relação entre memória e testemunho, como esmiuçada nesse trabalho, é fundamental para a construção de modos de narrar a vida de sujeitos, enfatizando os afetos, as subjetividades e uma maneira menos convencional de articular a narrativa temporalmente. Os trabalhos de Mello (2021) e Cardoso (2022) refletem tais abordagens, valorizando o papel ativo do jornalista na produção biográfica, ao se colocar enquanto narrador ou testemunha no texto, escrevendo histórias de vida através dos testemunhos de pessoas próximas ao biografado e desenvolvendo a capacidade de reconstituição da memória.
Ao utilizar os testemunhos como base para a narrativa, tanto Mello quanto Cardoso optam por um relato não-linear que permite dar ênfase às memórias individuais e coletivas. Em algum grau, a proposta narrativa de ambos contribui para a construção de biografias que subvertem a concepção de um tempo cronológico linear, típica do gênero, de tal forma que o arco narrativo se centre não somente no tempo em que os acontecimentos, as lembranças e as histórias se deram, mas também a partir de que sujeitos e fragmentos de memórias elas se tornam parte da trajetória de vida de João Gilberto e Caetano Veloso.
A aproximação entre testemunho e memória, como mencionada por Sarlo (2007), é um dos pontos fundamentais das duas obras, permitindo uma nova configuração narrativa. Assim, a escrita de biografias jornalísticas ganha profundidade, complexidade e afetividade. A partir disso, torna-se possível narrar a vida de indivíduos e seus contextos culturais por meio da escuta no ato do testemunho, de onde as memórias ganham força para chegar à superfície e compor o texto jornalístico-biográfico.
A memória, assim, se configuraria como um campo de disputa, como destacado por Pollak (1989), de modo que as obras de Zuza Homem de Mello e Tom Cardoso poderiam ser entendidas como uma forma de lutar contra o que podem ser consideradas as memórias oficiais, trazendo à tona as chamadas “memórias subterrâneas”. Didi-Huberman (2012) destacará, por exemplo, que o testemunho é essencial porque o pensamento hegemônico pretende fazer com que alguns eventos sejam inimagináveis, apagando seus rastros. Segundo o autor (2012, p. 89), “a própria existência e a forma dos testemunhos contradizem poderosamente o dogma do inimaginável”. Neste sentido, o testemunho seria essencial para contrapor a narrativa dominante, ou considerada oficial, que tenta apagar os vestígios de certos eventos que desafiam o status quo.
Por intermédio das duas biografias, os autores são capazes de exercer o testemunho da mídia apontado por Paul Frosh e Amit Pinchevski (2009), reunindo depoimentos de pessoas envolvidas com os acontecimentos narrados; testemunhando esses episódios, ainda que em algumas cenas não tenham estado presentes; e permitindo que a recepção, entendida aqui como um grupo genérico, formado por leitores, ouvintes, telespectadores e internautas, possam também testemunhá-los. Desse modo, os autores praticam o jornalismo como uma atividade mnemônica, perseguindo os rastros, ora esquecidos, ora soterrados, das histórias que buscaram contar, trazendo novos sentidos para a atualidade (Assmann, 2011) e se desviando dos cânones do jornalismo convencional, “aquele que serve interna e externamente de referência - tanto para a elite formadora de opinião, como para os meios de comunicação - sobre uma parcela do mundo público” (Zamin, 2014, p. 939).
Vislumbramos, portanto, o caráter acional da linguagem jornalística quando acompanhamos os autores em suas narrativas, afinal, ambos deixam evidentes os procedimentos adotados para a consecução das obras. Ressaltamos que a biografia não é uma obra definitiva, como nos alerta Dosse (2015, p. 410): “a porta permanece escancarada para sempre, oferecida a todos em revisitações sempre possíveis das efrações individuais e de seus traços no tempo”. Os autores, na medida em que recorrem à memória e ao testemunho tanto de seus biografados, quanto de outras pessoas e de si próprios, conseguem produzir uma obra menos limitada, mais autoral, reflexiva e potente.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas de transformação da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica. São Paulo: Letra e Voz, 2012.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 183-191.
BRUNER, Jerome. A construção narrativa da realidade. Critical Inquiry, v. 18, n. 1, p. 1-21, 1991.
BURKE, Peter. História como memória social. In: BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 69-89.
CARDOSO, Tom. Ninguém pode com Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Planeta, 2020.
CARDOSO, Tom. Outras palavras: seis vezes, Caetano. Rio de Janeiro: Record, 2022.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Revista Pós, v. 2, n. 4, p. 206-219, 2012.
DOMINGUES, Juan de Moraes. A ficção do Novo Jornalismo nos livros-reportagem de Caco Barcellos e Fernando Morais. 250f. Doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EdUSP, 2015.
ESSINGER, Silvio. “O avesso do avesso”: livro expõe as contradições de Caetano Veloso. O Globo, 12 jul. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3QNO4Rz. Acesso em: 18 nov. 2023.
FROSH, Paul, PINCHEVSKI, Amit. Media witnessing and the ripeness of time. Cultural Studies, v. 28, n. 4, p. 594-610, 2014.
FROSH, Paul; PINCHEVSKI, Amit. Introduction: why media witnessing? Why now? In: FROSH, Paul; PINCHEVSKI, Amit (Orgs.). Media witnessing. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009, p. 1-22.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
GALVÃO, Walnice Nogueira. A voga do biografismo nativo. Estudos Avançados, v. 19, n. 55, p. 351-366, 2005.
LICHOTE, Leonardo. Caetano Veloso surge contraditório e leonino em livro que revê a sua trajetória. Folha de S. Paulo, 25 jul. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3R8HSoE. Acesso em: 18 nov. 2023.
LIRA NETO, João. A arte da biografia: como escrever histórias de vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
MAIA, Marta; BARRETOS, Dayane. O testemunho como elemento central na produção jornalística: a narrativa de Operação Massacre. Rizoma, v. 6, n. 1, p. 1-13, 2018.
MAIA, Marta; FERNANDES, Elias. A transparência no processo de produção das biografias Lula e Marighella. Esferas, v. 12, n. 25, p. 160-180, set./dez. 2022.
MAIA, Marta; RIBEIRO, Isadora. Narrativas jornalísticas acionam novas histórias do passado ditatorial. Revista ECO-Pós, v. 18, n. 3, p. 171-181, 2015.
MARIA, Júlio. O João Gilberto que Zuza Homem de Mello nos deixou. O Estado de S. Paulo, 17 out. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3G7roqe. Acesso em: 18 nov. 2023.
MATHEUS, Letícia Cantarela. Comunicação, tempo, história: tecendo o cotidiano em fios jornalísticos. Rio de Janeiro: Mauad X Faperj, 2011.
MAUÉS, Flamarion. Livros, editoras e oposição à ditadura. Estudos Avançados, v. 28, n. 80, p. 91-104, 2014.
MELLO, Zuza Homem de. Amoroso: uma biografia de João Gilberto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
MOURA VIEIRA, Karine. Do fazer um saber: a construção da biografia. O discurso de autoria sobre a prática jornalística na produção de biografias por jornalistas brasileiros. 212f. Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo. 2015.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, n. 10, p. 7-28, 1993.
OLICK, Jeffrey. Reflections on the underdeveloped relations between journalism and memory studies. In: ZELIZER, Barbie; TENENBOIM-WEINBLATT, Keren (Eds.). Journalism and Memory. London: Palgrave Macmillan, 2014, p. 17-31.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
RESENDE, Fernando. O olhar às avessas: a lógica do texto jornalístico. 240f. Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.
RESENDE, Fernando. Às desordens e aos sentidos: a narrativa como problema de pesquisa. In: SILVA, Gislene et al. (Orgs.). Jornalismo contemporâneo: figurações, impasses e perspectivas. Salvador; Brasília: EDUFBA; Compós, 2011, p. 120-134.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras; Ed. UFMG, 2007.
SILVEIRA, Rose. Histórias de vida: um lugar de resistência para a reportagem. In: AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito (Orgs.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018, p. 91-120.
VEIGA DA SILVA, Marcia. Saberes para a profissão, sujeitos possíveis: um olhar sobre a formação universitária dos jornalistas e a implicação dos regimes de saber-poder nas possibilidades de encontro com a alteridade. 276f. Doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015.
WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos de história. In: SELIGMAN-SILVA, Márcio (Org.). Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006, p. 67-90.
WOITOWICZ, Karina; ADAM, Felipe. Protagonismo feminino em biografias: perspectivas de gênero na construção das personagens Elis Regina e Maria Bonita. Ártemis, v. 29, n. 1, p. 299-315, jan./jun. 2020.
ZAMIN, Angela. Jornalismo de referência: o conceito por trás da expressão. Famecos, v. 21, n. 3, p. 918-942, 2014.
ZELIZER, Barbie. Memory as foreground, journalism as background. In: ZELIZER, Barbie; TENENBOIM-WEINBLATT, Keren (Eds.). Journalism and Memory. London: Palgrave Macmillan, 2014, p. 32-49.
Notas