Dossiê
Recepción: 16 Mayo 2023
Aprobación: 23 Octubre 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2024.16.37.7893
Resumo: Este artigo apresenta algumas contribuições da abordagem autobiográfica para a formação inicial de professores. A experiência aqui contatada é a da elaboração e execução da disciplina Estágio Supervisionado I da primeira turma do curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do ABC. Partindo de uma metodologia centrada na vida de professores, os estagiários entraram nas escolas de educação básica com o propósito de entender por que os professores ensinam o que ensinam. Essa experiência foi baseada, sobretudo, nos estudos de Goodson (2020), Bueno, Catani e Sousa (1998) e Nóvoa (1995). O artigo discute como a abordagem das histórias de vida contribuiu para a formação docente e para um melhor conhecimento do cotidiano escolar, principalmente, da prática do professor. A abordagem autobiográfica foi utilizada como caminho metodológico para a realização do estágio supervisionado, entendido como vivência e pesquisa de forma indissociável.
Palavras-Chave: Estágio supervisio-nado, Histórias de vida de professores, Abordagem autobiográfica.
Abstract: This paper brings some contributions of the autobiographical approach to initial teacher education. The experience reported in this study refers to the preparation and implementation of the discipline Supervised Internship I for the first-year students of the Humanities undergraduate course (Bachelor’s Degree) of the Federal University of ABC. Based on a methodology centered on teachers’ lives, the interns entered the elementary schools aiming to understand why teachers teach what they teach. This experience was based on Goodson (2020), Bueno, Catani and Sousa (1998), and Nóvoa (1995). This paper discusses how the life stories approach contributed to teacher education and a better understanding of school’s daily life, especially the teacher’s practice. The autobiographical approach was used as a methodology to accomplish the Supervised Internship, which is understood as inseparable experience and research.
Keywords: Supervised internship, Life stories, Teachers’ lives.
Resumen: Este artículo presenta algunos aportes del enfoque autobiográfico en la formación inicial de los docentes. La experiencia aquí relatada es la preparación e implementación de la asignatura Práctica Docente Supervisada I, para el primer grupo de la Licenciatura em Ciências Humanas de la Universidade Federal do ABC. Partiendo de una metodología centrada en la vida de los docentes, los practicantes ingresaron a las escuelas de educación básica con el propósito de comprender por qué los docentes enseñan lo que enseñan. Esta experiencia se basó, sobre todo, en estudios de Goodson (2020), Bueno, Catani y Sousa (1998) y Nóvoa (1995). El artículo presenta cómo el abordaje de las historias de vida contribuyó a la formación docente, y contribuye a un mejor conocimiento del cotidiano escolar, especialmente de la práctica del profesor. Se utilizó el enfoque autobiográfico como forma metodológica para realizar la pratica docente supervisada, entendida como experiencia e investigación de manera inseparable.
Palabras clave: Praticas docentes supervisadas, Historias de vida de profesores, Vida de los profesores.
Introdução
Desde a década de 1980, os estudos com autobiografias vêm se difundindo no campo das Ciências Sociais e, sobretudo, nos estudos sobre professores e formação docente. Nóvoa (2013), na célebre coleção Ciências da Educação, já apontava a proficuidade da abordagem autobiográfica nos estudos educacionais. Para o autor, até os anos 1980, os professores não foram devidamente inseridos nos estudos sobre didática, metodologia educacional e estudos de formação docente. As pesquisas nessas áreas centravam-se mais em entender quais eram as melhores propostas ou a melhor pedagogia para alcançar a aprendizagem dos estudantes. Os professores ficaram em segundo plano, como executores dos métodos, da melhor didática.
Para Nóvoa (1995, p. 15), a virada se dá nos anos oitenta, com a publicação do livro intitulado “O professor é uma pessoa”, de Ada Abraham (1984): “Desde então, a literatura pedagógica foi invadida por obras e estudos sobre a vida de professores, as carreiras e os percursos profissionais, as biografias e as autobiografias docentes ou o desenvolvimento pessoal dos professores”.
Goodson (2020) nos mostra que a abordagem por histórias de vida é um procedimento que remonta ao início do século XX. Para autor, as pesquisas sobre histórias de vida, na forma de autobiografias já eram executadas por antropólogos dos anos de 1920, em análises sobre chefes americanos nativos, vida na cidade e em estudos sobre delinquência. Em relação ao uso do método em estudos educacionais, o autor salienta o grande aumento das pesquisas ao longo das décadas de 1980 e 1990.
É importante ressaltar que os autores apontam as pesquisas de origem francesa, como as de Gaston Pineau e Pierre Dominicé, e as de origem anglófona, como as de Ivor Goodson e Ada Abraham, como pioneiras no que se refere à abordagem autobiográfica. No Brasil, os trabalhos realizados na Bahia, pelo professor Elizeu Clementino de Souza, e em São Paulo, pela professora Denice Bárbara Catani, também deram importantes contribuições ao campo. Porém, sem a preocupação de estabelecer um marco inaugurador das abordagens autobiográficas nos estudos educacionais, a bibliografia se preocupava mais em apontar a relevância cada vez maior das pesquisas que colocavam a centralidade no professor no processo de investigação. Hoje, pela sua proficuidade, realizar um “estado da arte” sobre o uso de autobiografias é uma tarefa das mais difíceis.
O objetivo desse artigo é discutir como as abordagens centradas nas autobiografias, sobretudo nas histórias de vida - baseadas em Bueno, Catani e Sousa (1998), Goodson (2020), Nóvoa (1995) e Portugal (2017) - nos ajudaram a criar uma metodologia para a condução da disciplina de Estágio Supervisionado I, no curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do ABC, das turmas do terceiro quadrimestre de 2022 e analisar os resultados dessa atividade. Como fontes para esta pesquisa, foram analisados os treze Relatórios de Estágio elaborados pela turma em questão, subsidiados pela legislação e pelas resoluções internas da Universidade que regulamentam a unidade curricular Estágio Supervisionado.
Com o intuito de preservar a identidade dos estagiários e dos professores entrevistados, os nomes de todos os envolvidos neste trabalho foram trocados por letras e números, sendo que as letras, organizadas em ordem alfabética representam o nome dos estagiários, e os números, ordenados de forma crescente a partir do número 1, representam os professores.
Autobiografias e histórias de vida
Apesar de operaram dentro do campo das experiências, há uma sutil diferença entre as pesquisas autobiográficas e de histórias de vida. Nas pesquisas autobiográficas, os sujeitos escrevem a sua própria história, narram acontecimentos que consideram importantes para a constituição da sua identidade. O pesquisador estimula os sujeitos a pensarem sobre as próprias práticas e, no caso das pesquisas autobiográficas com professores, a aposta é a de que, ao construírem seus processos identitários com docentes, os professores também produzam reflexões sobre suas práticas.
Nas pesquisas orientadas sob a perspectiva da história de vida, também há um processo autonarrativo, mas ele é produzido por intermédio do pesquisador, sobretudo pelo emprego de questionários e entrevistas. Nessa perspectiva, o pesquisar interfere mais no processo, induzindo questionamentos para buscar melhor entender o sujeito investigado. No caso das pesquisas com histórias de vida de professores, o foco está em entender como se dá a constituição da profissão, compreender por que o professor ensina o que ele ensina, resgatar as experiências relevantes que o marcaram e que o ajudam a seguir a carreira, reconhecer a história pessoal com processo importante de formação e diferenciar momentos da constituição da identidade profissional.
É preciso destacar que, em ambos os casos, o protagonismo está na figura do professor. Sua voz é restabelecida no processo de construção dos saberes e na construção do currículo real. Dessa forma, o professor é, ao mesmo tempo, sujeito e copesquisador, isto é, participa de maneira ativa da pesquisa.
A construção do estágio supervisionado
O estágio curricular supervisionado é parte importante na formação de discentes dos cursos de licenciatura, e está fundamentado legalmente em três documentos: a Lei n. 11.788/08, que discorre sobre o ato do estágio para graduandos em geral (Brasil, 2008); a Lei n. 9.394/96, também conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que orienta a toda a educação brasileira, inclusive a formação de professores e o estágio supervisionado (Brasil, 1996); e a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) n. 2, de 2015, que trata especificamente da formação de professores (Brasil, 2015). Em todas essas diretrizes, é destacado o papel imprescindível do estágio curricular supervisionado para a formação adequada de licenciandos com vistas à atuação na Educação Básica.
Considerando as determinações acima, o Estágio Supervisionado dos cursos de licenciatura da Universidade Federal do ABC está regido pela Resolução da Comissão de Graduação n. 18, de 11 de outubro de 2017, que regulamenta as normas de realização do Estágio Supervisionado para os alunos ingressantes a partir de 2017 (UFABC, 2017). Dessa forma, a Licenciatura em Ciências Humanas (LCH) da Universidade Federal do ABC está alinhada a essas disposições, por meio do seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC), que oferece sete módulos de estágio aos seus discentes. Há necessidade de cumprimento de no mínimo 5 desses módulos - integralizando as 400 horas obrigatórias nesse quesito, visto que cada módulo possui um total de 80 horas - para os discentes terem condições de completar o curso (UFABC, 2019).
O módulo I dos estágios curriculares supervisionados da LCH se propõe a ser uma primeira aproximação dos licenciandos com o ambiente e a experiência escolar, oferecendo a eles a oportunidade de atuarem sobre os diversos processos e espaços que compõem a escola. Segundo o PPC, espera-se que os discentes compreendam que atuar “sobre a vida escolar é um processo ativo de experimentação e criação que requer uma atitude disruptiva, que problematize, desconstrua e reinvente os modos usuais e comuns de ver, perceber, vivenciar, ler, interpretar, intervir e atuar na escola” (UFABC, 2019, p. 67).
Visto que as diretrizes para a realização do módulo I no PPC da LCH deixam diversas possibilidades em aberto para as intervenções no ambiente escolar, o direcionamento dado para a oferta da primeira turma desta disciplina foi o de experimentar os recursos da pesquisa científica em educação sobre a atuação dos docentes. Tal proposta foi desenvolvida a partir de um programa dividido em diferentes etapas, orientadas por estratégias como a observação, registros e entrevistas, com o fim de conhecer de maneira mais aprofundada as trajetórias de vida dos professores das escolas onde os estágios foram realizados, assim como o impacto que suas histórias de vida tiveram e têm na prática desses docentes.
Os recursos a serem aplicados pelos discentes para alcançar os objetivos acima foram:
A caracterização do espaço escolar onde o estágio acontecerá, visando a uma melhor contextualização do lugar em que essa instituição, a escola, ocupa na comunidade em que está inserida, quem é seu público e como essas e outras variáveis influenciam a atuação dos docentes que serão acompanhados;
A observação da regência de professores, para dessa forma os estagiários se familiarizarem com as estratégias e a postura que são parte da atividade do professor, podendo assim apreender o que o professor ensina e como ele ensina;
A realização, pelos estagiários, de uma (ou mais) entrevista(s) com os professores acompanhados, com base na bibliografia indicada pelo docente responsável pela supervisão do estágio por parte da universidade, e partindo da abordagem autobiográfica, com o intuito não apenas de conectar a experiência do professor como sujeito e seu percurso de vida em sua prática na docência, mas também de apreender o porquê o professor ensina como ensina.
A organização da proposta de um estágio de observação e pesquisa foi desenvolvida a partir de um programa dividido em diferentes etapas: a observação de regência, das interações entre os alunos e com o professor nas atividades didáticas; a observação da rotina, da dinâmica escolar e também das condições didáticas oferecidas aos alunos nas atividades de leitura e de escrita, da produção em ciências humanas, do registro dessas atividades e interações; a reflexão sobre a qualidade das intervenções realizadas; e uma entrevista com o docente escolhido da escola onde o estágio foi realizado.
Desse modo, o Estágio Supervisionado teve como objetivo conhecer, de maneira mais profunda, a trajetória de vida do professor entrevistado, verificando o impacto que suas vivências têm em sua prática, e, também, levantar dados qualitativos e da produção de conhecimento científico através da pesquisa exploratória por meio da entrevista. Acreditamos que o contato com práticas profissionais e experiências de vida de professores proporciona um melhor preparo na formação dos estudantes/estagiários.
Para a realização das entrevistas, os estagiários seguiram um caminho metodológico ancorado nas ideias de Goodson (2020). Em “Patrocinando a voz do professor”, esse autor aborda metodologicamente procedimentos de pesquisa no contato entre o pesquisador e seu objeto de análise. Goodson assevera a necessidade de o pesquisador desarmar-se de suas preconcepções antes de ir à escola. Assim, no estágio supervisionado, no momento de contato com o professor pesquisado e da observação de suas aulas, os estudantes fizeram simplesmente uma descrição densa da realidade observada, sem inferir julgamentos sobre a qualidade da aula. O objetivo desse procedimento era o de evitar que os estagiários, enquanto pesquisadores, já trouxessem julgamentos do que seria uma “boa aula”, rejeitando a priori o trabalho exercido pelo docente. É o que Goodson (2020, p. 337) chamou de garantir a “voz do professor”.
Assim, ainda sob as referências do autor inglês, procuramos nos aproximar, para a análise dos professores, do método de pesquisa-ação, o qual, em linhas gerais, consiste em trazer o professor para a pesquisa não somente como objeto, mas também como sujeito, ou seja, ver o “professor enquanto pesquisador”, um “professor que se monitora”, um “profissional estendido” (Goodson, 2020, p. 337). A questão basilar das pesquisas dos estagiários era responder por que o professor ensina como ele ensina.
Isso nos levou a um procedimento de análise que procurou, por meio das entrevistas sobre a história de vida dos professores, elementos autobiográficos que responderiam à nossa questão inicial. Seria por meio do conhecimento das histórias de vida que os estagiários aprenderiam sobre a profissão que futuramente iriam exercer. Além do caráter formativo, as entrevistas também contribuíram como fontes. O conjunto das entrevistas nos serviu como um acervo para uma análise mais acurada da realidade escolar, tema que é apresentado a seguir.
Apreensões sobre o que os professores ensinam e porque eles ensinam como ensinam - elementos da história de vida
O ocultamento das vivências escolares dos professores, suas vidas, seus conhecimentos adquiridos ao longo da carreira, suas paixões, desafetos, emoções, carências, suportes, aventuras, medos, frustrações e alegrias revela “paradigmas perdidos” das investigações educacionais (Nóvoa, 1995) que, ao longo de muitos anos, não levaram em conta a subjetividade docente. Resgatar a história de vida desses sujeitos foi o caminho utilizado ao longo deste processo de estágio supervisionado, o que nos mostrou como os professores carregam consigo personificações em suas aulas.
Estar em sala de aula é sempre um desafio para o professor, seja enquanto regente seja enquanto observador. A sala de aula é um ambiente em que os estudantes costumam passar grande parte de suas vidas - contando-se apenas o Ensino Básico, pode-se falar em 11 anos de vivência escolar. Tal qual os estudantes, os professores também são protagonistas desse espaço e suas vivências são de suma importância para se pensar a educação. Segundo Bueno (1998, p. 9), “são eles, os professores, que têm acesso diário aos problemas da sala de aula e podem por isso discorrer sobre os mesmos com familiaridade; mais do que isto, são eles que de fato podem apostar na melhoria do ensino” (Bueno, 1998, p. 9). De acordo com a autora, o professor é um aspecto-chave para o entendimento da sala de aula, assim como também para o entendimento do ambiente escolar: sem ele ou o estudo dele, a educação não consegue avançar.
Ainda de acordo com Bueno (1998), é possível perceber que muito se fala sobre a ausência de avanços na área educacional nas últimas décadas e uma das justificativas para isso é a ausência do estudo do professor enquanto um agente social dentro deste espaço. Muito pouco valorizado na sociedade como um todo, o professor também é negligenciado na pesquisa.
O objetivo do estágio supervisionado foi, sobretudo, buscar entender a figura do professor: o professor que, enquanto profissional, é atravessado a todo momento por sua humanidade. Durante boa parte da formação inicial dos cursos de licenciatura, foca-se no papel do aluno e de suas aprendizagens - um aluno que assume um protagonismo dentro da sala de aula. Contudo, é comum esquecermos de pensar na figura do professor, como profissional e como indivíduo. Foi justamente o estágio que trouxe a oportunidade de voltar um olhar mais atencioso para a figura do professor, pensar o porquê do professor ser como ele é e por que suas aulas se dão daquela maneira específica.
Das metodologias de ensino às histórias de vida
Para as entrevistas realizadas no estágio supervisionado, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas e transcritas no relatório de estágio. A expectativa desse procedimento era a de deixar o professor entrevistado mais à vontade para narrar-se, garantindo-se, ao mesmo tempo, que algumas perguntas imprescindíveis na entrevista fossem feitas. As gravações foram realizadas somente após a observação da regência e após o estabelecimento de uma relação um pouco mais próxima com o entrevistado.
Tal procedimento visou a garantir que os estagiários primeiramente se aproximassem dos professores pela observação da regência e pela cooperação que estes pudessem oferecer ao professor em sala de aula. Alguns estudantes corrigiram trabalhos escolares, outros tiveram regência compartilhada, outros simplesmente observaram. De toda maneira, a partir da entrada dos estagiários nas aulas, já se estabeleceu com contato com os professores. Aqueles foram orientados a se colocarem à disposição dos docentes.
Conforme adiantado acima, as entrevistas apesar de serem abertas foram feitas a partir de algumas perguntas imprescindíveis: idade, tempo de magistério, formação, instituição de origem, como se deu a opção pelo magistério, como foi a entrada no magistério, como se aprende a ser professor, e se há projetos de vida além da docência.
Pelos relatos de observação, percebe-se que os professores utilizam uma pluralidade de abordagens metodológicas em suas aulas, mas ainda sobressai o método expositivo, entendido aqui como a explicação de conteúdo na forma oral ou por meio de textos escritos na lousa ou projetados. Nas descrições de uma das aulas, a Estagiária A descreve a aula como expositiva, segundo o modelo “tradicional”:
A professora segue o modelo tradicional de aulas expositivas. Em grande parte de suas aulas, passa apenas os textos para copiarem e explica brevemente o conteúdo, quando permitida. [...]
A Professora 1 acaba por reproduzir o que está na apostila, tentando falar mais alto que os alunos, o que se mostra ineficaz. Algo que eu notei durante essa aula e que se repetiu durante todas as outras que eu acompanhei foi o fato [de] que ela faz as perguntas, tentando provocar os alunos a participarem, mas logo em seguida entrega a resposta.
Em seguida, a Professora1 passa uma página de exercícios e o intenso barulho dos alunos melhora com a atividade (Estagiária A, Relatório de estágio, 2022).
O registro desse momento evidencia uma metodologia que ainda é muito utilizada no cotidiano das escolas públicas e privadas do Brasil: a aula expositiva de forma oral ou textual, denominada aqui pelos professores e estagiários como “aula tradicional”. Uma primeira observação, sem o amparo metodológico previamente discutido com os estudantes estagiários, nos remeteria a uma crítica quanto a algum tipo de despreparo ou deficiência por parte da professora. É certo que, como nos advertem Bueno, Catani e Souza (1998), a “invenção da tradição científico-pedagógica” tende a apagar a prática docente ou mesmo desmerecê-la, rotulando-a como tradicional, como sinônimo de atrasada. Como o objetivo da pesquisa era entender por que a professora ensinava daquela forma, a questão foi entender quem eram os professores entrevistados. Sendo assim, não bastava descrever e classificar a aula observada. Foi necessário entender o uso da metodologia a partir da história de vida da professora.
A aula em questão foi ministrada na disciplina de Geografia em uma escola de Anos Finais do Ensino Fundamental da Prefeitura do Município de São Paulo. O conhecimento da história de vida da Professora 1, realizado por meio da entrevista autobiográfica, levou a Estagiária A a melhor entender a aula que ela estava observando:
Nesse mesmo dia, passamos em duas outras salas. Nessas os alunos parecem estar um pouco mais avançados no conteúdo. A Professora 1 passa apenas uma pergunta sobre o BRICS e deixa os alunos livres para respondê-la. Novamente há uma dificuldade em manter os alunos fazendo a atividade: eles saem de sala sem permissão, gritam. Até mesmo eu já estava cansada. [Isso] me provocou a pensar sobre todos os 27 anos de experiência dessa professora, como ela genuinamente gosta de dar aulas, mas também como ela está exausta por toda a sobrecarga que se colocou durante toda a sua carreira (Estagiária A, Relatório de estágio, 2022, grifos nossos).
Conhecer a história de vida da Professora A proporcionou outras reflexões por parte da estagiária. A prática docente agora é entendida como parte do processo de vida, do momento que a professora vive, das suas escolhas e das suas intenções para o futuro, que, no caso dessa docente, são a aposentadoria. Após a entrevista, a percepção da aula observada ganhou outra conotação por parte da estagiária:
Devo dizer que não foi nada fácil a tarefa de observar o “fazer pedagógico” de uma pessoa que eu conheci por tão pouco tempo e de forma superficial. Ainda assim, essa experiência me engrandeceu como educadora e como pessoa. Praticar a escuta de forma passiva, sem influenciar o que a pessoa quer te contar é difícil. Porém, valeu a pena poder observar a vida e trajetória dessa professora que muito me ensinou.
Nessa caminhada, pude compreender os caminhos que levaram a Professora 1 a ser a profissional que é hoje. Me esforcei para ver as coisas da forma que ela as enxerga. Essa foi uma prática edificante na minha experiência profissional. Espero poder repeti-la mais vezes (Estagiária A, Relatório de estágio, 2022).
Como se vê acima, a partir de uma observação calcada metodologicamente na história de vida da professora, o apriorismo da observação rápida da aula deixa lugar para um entendimento mais profundo sobre o saber docente. Compreendendo que a Professora 1 já atua no magistério há 27 anos e que sempre acumulou cargo público em duas redes de ensino, tendo assim uma extensa jornada de trabalho, favoreceu-se que a estagiária entendesse o comportamento da professora.
Como se percebe no exemplo acima, a prática docente aponta para a força da cultura escolar, para como ela molda um saber e um saber fazer consagrado na escola por professores e alunos. Isso também pode ser observado na descrição abaixo:
Eu gosto mais de metodologias ativas que façam com que o aluno tenha interesse em participar na aula, mas isso não funciona muito bem por aqui. As aulas expositivas são meu último recurso, mas acredito que elas sejam necessárias em alguns momentos. Aqui é necessária na maior parte das vezes porque os alunos não levam a sério se você não pega o canetão e passa um tempo escrevendo na lousa. Eles querem que você os faça copiar e depois explique o que estão copiando, senão, não consideram uma aula. Eu e alguns professores colegas tentamos fugir disso às vezes e, de vez em quando, insistimos em trazer alguma coisa diferente, como uma música que fale sobre a realidade deles e às vezes até que dá certo, mas a exposição é o que mais funciona pra eles (Professor 7, 2022 apud Estagiária G, Relatório de estágio, 2022).
O relato do professor mostra a complexidade das relações estabelecidas na sala de aula. Observa-se que aula expositiva, seja de forma oral ou textual, está no imaginário de boa parte dessa comunidade estudantil, compondo a própria cultura escolar (Julia, 2001). Assim, isso explica também a tendência de muitos professores a aturarem com “abordagem tradicional”. O relato do Professor 7 parece esclarecedor para a reflexão sobre a forma como os conteúdos escolares são ministrados pelos professores na escola pública.
Outra situação exemplar foi a experiência narrada por um professor negro, de 52 anos de idade, com 28 anos de magistério. O Professor 9 formou-se em História na Universidade de São Paulo, na década de 1990, e atualmente trabalha na Educação de Jovens e Adultos, como professor de História, numa escola de Anos Finais do Ensino Fundamental na periferia da zona sul da cidade de São Paulo.
A observação realizada pelo Estagiário I mostrou que esse professor tem preferência por lecionar temas ligados a questões de violência, desigualdade, racismo, liberdade religiosa, patriarcalismo e personalismo existentes na sociedade brasileira. Para isso, o professor utiliza aulas abertas com diálogos e poucas cópias. O estagiário considerou a metodologia aplicada inovadora, pouco tradicional:
Dentro da sala de aula, presenciei tentativas de ruptura, muitas até que bem-sucedidas, porém muitas falhas. Romper com a estrutura não é fácil e demanda uma tentativa e erro constante. Porém, o ensino tradicional não teve vez, mal vi o orientador que acompanhei escrevendo na lousa ou fazendo práticas que lembrassem algo assim (Estagiário I, Relatório de estágio, 2022).
Mais uma vez, o nosso estagiário pesquisador aparece preocupado com a metodologia utilizada pelo professor. Porém, diferentemente das considerações de outros estagiários acima mencionados, este constata uma “quebra” na didática de sala de aula e, ao procurar estabelecer a relação entre a prática docente e a história de vida, o pesquisador entende que a formação do professor entrevistado na Universidade de São Paulo, com titulação de doutor pela mesma universidade, atrelada à sua condição de homem negro, foi importante para a constituição de seu engajamento com metodologias mais abertas e com temas ligados a questões sociais:
Penso que algumas formas de existência passam pela resistência na medida em que temas como gênero e diversidade, a questão da desigualdade e a questão do racismo são lapidares. E sempre penso que os problemas mais complexos na nossa sociedade são a questão do racismo estrutural e da diversidade de gênero. Você encontra, assim, todos os embates possíveis com relação ao corpo docente em relação aos alunos, mas, mesmo assim, com todas as dificuldades e graças ao apoio de algumas gestões.
E, no caso da nossa, isso é possível, e esse tipo de discussão é profundamente necessária na medida em que ela fala a partir de pontos de vistas não do outro, mas de quem somos nós. Pensar na nossa ancestralidade para respeitar o presente e quiçá deslumbrar o futuro um pouco mais decente com responsabilidade (Professor 9, 2022 apud Estagiário I, Relatório de estágio, 2022).
Todavia, a presença do termo “tradicional” aparece no relato desse mesmo estagiário. As aulas dialogadas muitas vezes cedem aos anseios do imaginário de aula criado a partir da experiência de jovens e adultos que retornam à escola: “O maior impedimento encontrado foram as perspectivas propostas. O rompimento da tradição nem sempre engaja os discentes. Então, a proposta não ganha a força esperada. Isso impede avanços. É necessário que a escola se mobilize e seja transparente em suas propostas, mas principalmente [que] continue o trabalho proposto” (Estagiário I, Relatório de estágio, 2022).
Há que se destacar ainda que as aulas ministradas pelo Professor 9 e registradas pelo Estagiário I pertencem à modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Essa observação é importante por que a mudança do público escolar interfere diretamente na proposta pedagógica e na maneira como os professores se comportarem em sala de aula. Durante o acompanhamento docente, observamos que esse mesmo professor tem parte da sua jornada no período noturno na Educação de Jovens e Adultos e complementa a sua carga horária com aulas de Ensino Regular no período vespertino. Ao receber a visita de outra estagiária no período da tarde, o mesmo professor não quis ser acompanhado:
Um dos professores da escola, com mestrado e doutorado pela USP, me disse que dava shows de aula, e usou o termo “uma palestra” de aula, para referir-se a uma ótima aula. O que faz um professor achar que palestras são ótimas e não cansativas?
Esse mesmo professor buscou me interromper [sic] a assistir às suas aulas no período vespertino, onde os alunos do 9º ano estariam, e tentou me convencer a ir assistir a aulas no EJA noturno. Rebati, disse que gostaria de vivenciar a realidade concreta dos estudantes e saber como os alunos se comportam. Pelo visto, a aula do professor era uma palestra mesmo e isso não agradava aos estudantes (Estagiária E, Relatório de estágio, 2022).
Percebemos, pelo relato, que o mesmo professor tem posturas diferentes para cada público com o qual trabalha. Mesmo que a nossa estudante não tenha conseguido acompanhar as atividades desse professor no período da tarde, ficou evidente que sua aula não é a mesma nos dois períodos. Diferentemente da postura que ele tem nas aulas noturnas, mencionadas acima no relato do Estagiário I, sua prática docente com as turmas regulares se aproxima muito mais de um modelo utilizado pelos outros professores aqui analisados, mais voltados para o “ensino tradicional”. Por isso, ele convida a Estagiária E a assistir às suas aulas na Educação de Jovens e Adultos, que ele julga serem melhores.
Ciclo de vida de professores
Pela averiguação dos Relatórios de Estágio, outro ponto que se destacou na análise da constituição do saber docente e de como esse saber é ministrado foi o momento da carreira em que cada professor entrevistado se encontrava.
A Professora 1 (2022 apud Estagiária A, Relatório de estágio, 2022), como já mencionado anteriormente, possui 27 anos de profissão, 47 anos de idade, esclarece que seu principal objetivo na carreira é a aposentadoria: “Então, agora eu estou esperando terminar esse tempinho que falta, dois anos e pouco, para pedir minha aposentadoria”. Em outros termos, a trajetória profissional da referida professora enquadra-se num ciclo de maturidade da carreira docente, o que Huberman (1995, p. 46) chamou de “desinvestimento sereno”. Huberman (1995) explica a fase de maturidade na carreira do magistério como um momento que pode ocorrer de forma serena ou amarga, de acordo com a trajetória profissional de cada indivíduo.
Seguindo essa perspectiva, o relato do Professor 10, de 26 anos de idade, que trabalha no magistério há três anos, também corrobora a classificação realizada por Huberman ao tratar as fases anteriores do modelo de ciclo de vida de professores. Nesse caso, o professor da disciplina de Língua Portuguesa, que foi acompanhado pela Estagiária J, ao ser questionado sobre as metodologias utilizadas em sala de aula, responde:
Bom, eu procuro seguir metodologias ativas. Eu gosto muito de tecnologia. Então, tem uma aproximação maior, até pela minha idade. Eu sou um “nativo digital”, tenho uma facilidade com certos equipamentos. E também essa questão da autonomia do aluno. Acho que vai muito na linha do Paulo Freire, de colocar o aluno como protagonista e, por exemplo, um recurso que eu gosto de usar aqui com meus alunos da manhã é o Kahoot, que é uma plataforma gamificada em que eles [estudantes] respondem a quiz, é uma coisa mais dinâmica. Mas isso só é possível se tiver um recurso [...] chegou o recurso este ano, então tem computador, um projetor na sala de aula, tablets, que chegaram recentemente. Mas antes já não era possível ter esse recurso. Daí teria que fazer de outra forma (Professora 10, 2022 apud Estagiária J, Relatório de estágio, 2022, grifos nossos).
Nessa situação, o jovem professor de Língua Portuguesa busca inovações em suas aulas e testa novas práticas de ensino como jogos e o uso da internet. Ele mesmo explica que essa desenvoltura para o uso da tecnologia se dá pelo fato de ele ser nativo digital. Por isso ele gosta de tecnologia e procura aplicá-la em suas práticas. O professor em questão tem apenas três anos de magistério, sua autonarrativa se enquadra perfeitamente no ciclo “Entrada da carreira docente” (Huberman, 1995, p. 39), em que o professor testa múltiplas metodologias, se arriscas em novas práticas.
O estudo da trajetória de vida articula-se ao conceito de carreira, na medida em que os traços biográficos influenciam a condução do percurso profissional, ao mesmo tempo que a carreira escolhida também forma a personalidade docente. Pela análise dos relatórios de estágio, a prática docente aparece como algo aprendido, constantemente, ao longo dos anos trabalhados, principalmente nos primeiros estágios do ciclo profissional docente. Os primeiros anos de magistério são fundamentais na constituição dessa identidade. É aí que esse profissional experimenta múltiplas metodologias e se permite arriscar, como ocorre no exemplo da professora abaixo:
Eu aprendi a ser professora ao longo dos anos, porque, quando comecei, me baseava na minha própria experiência como aluna, e deu muito errado. Foi só com ajuda da coordenação pedagógica da primeira escola em que trabalhei e com muita conversa com colegas de profissão que percebi que isso não era o suficiente e que eu precisava aprender mais sobre o que é ser professor; e por isso resolvi fazer a pós. Meu estilo de ensino mudou desde que comecei, pois agora eu abraço a filosofia de Paulo Freire, que nos ensina que o ensino deve ser transformador. Acredito que o processo de ensino e aprendizagem deve ser construído em conjunto entre professor e aluno, e que o professor deve ser uma figura orientadora, que ajuda os alunos a desenvolverem suas próprias ideias e a refletirem sobre elas (Professora 7, 2022 apud Estagiária G, Relatório de estágio, 2022).
Nota-se, pelo relato, que a referida professora revisou o seu trabalho ao longo de seus oito anos de experiência docente. Nesse período, a professora buscou primeiramente saberes evocados de seu tempo de estudante, o que, segundo ela, não lhe deu bons resultados. É interessante perceber que, mesmo sendo uma professora que passou pelo processo de formação inicial em um curso de licenciatura, ao começar a carreira docente, ela mobilizou modelos escolares de sua juventude ou infância. A referência à formação acadêmica só é relatada a partir do curso de pós-graduação no qual ela se inscreveu na expectativa de melhorar a sua prática. O aprendizado por meio das práticas e do contato com os pares também é ressaltado pela profissional. A conversa com professores mais experientes e o amparo oferecido pela coordenação pedagógica foram importantes para a continuidade da carreira da referida professora. O contato com seus pares a ajudou a superar estágio de “sobrevivência” (Huberman, 1995). Na fase em que a professora se encontra, pelo seu relato, ela parece agora mais segura de seu trabalho, tendo alcançado uma fase de estabilização.
Professores marcantes
As mudanças de postura metodológica, da autocrítica e do pensar sobre a prática por parte dos professores também foram memoradas a partir do campo da experiência e da prática de sala de aula, como podemos verificar ainda no relato da professora abaixo:
Minha entrada no magistério foi difícil. No início, eu adotava um estilo autoritário de ensino, mas isso não deu certo. Eu sempre odiei meus professores que eram autoritários na escola, mas, por algum motivo, passei a replicar sua postura em sala de aula, e isso começou a me incomodar porque nem eu e nem os alunos queríamos estar ali. Os alunos, principalmente, não se sentiam motivados a aprender e começaram a matar a minha aula e, quando vinham, a gente se tratava com agressão verbal. Era muito desagradável, sabe? (Professora 7, 2022 apud Estagiária G, Relatório de estágio, 2022).
É possível estabelecer a relação entre a constituição dos saberes docentes e a história de vida docente. Nesse caso, a professora entrevistada comenta sobre professores marcantes num sentido negativo (Castanho, 2001). Ela não queria repetir suas vivências de infância em suas aulas, com seus alunos. No entanto, ao ingressar no magistério se viu lecionando da mesma maneira que seus professores fizeram na época em que ela era estudante:
Foi a partir daí que vi que precisava fazer alguma coisa, porque era minha fonte de sustento e eu não podia largar. Além disso, eu carregava uma responsabilidade com a formação daquelas pessoas e não queria que elas se traumatizassem com o ensino, como meus professores contribuíram para que eu me traumatizasse. Foi nessa época que, conversando com a direção da escola em que eu estava antes de vir pra cá e com alguns colegas sobre nossas dificuldades, nos propuseram a criação de um grupo de estudos sobre Paulo Freire. Foi quando eu me encontrei de verdade na educação e decidi inclusive fazer a pós em Ensino de História. Foi o envolvimento e conversa com outros professores e nossa troca de experiências e conselhos que me motivaram mais a permanecer na área e a estudar para melhorar enquanto profissional (Professora 7, 2022 apud Estagiária G, Relatório de estágio, 2022).
A imagem de professores marcantes foi uma questão presente em parte das entrevistas com professores. A Professora 1, já mencionada anteriormente, relata que entrou para o magistério por gosto, por que sempre gostou de ser professora: “Desde pequena eu já brincava, né? Dando aula para os colegas”. Na entrevista, a Professora 1 explica também que recebia muito reforço positivo dos seus professores da educação básica. Ela relata que:
Na escola, o meu professor, como eu tinha facilidade de aprender, entendia rápido, o meu professor do Ensino Fundamental I já me colocou para dar explicação e reforço para os meus colegas. Ele não conseguia, por ser uma sala muito cheia. Aí ele sempre pedia minha ajuda para explicar os exercícios de Matemática e outras matérias, e eu sempre gostei (Professora 1, 2022 apud Estagiária A, Relatório de estágio, 2022).
A figura de professores marcantes (Bueno, 1998) aparece no relato da Professora 1. Sua identidade com a profissão docente foi se construindo ao longo da vida, desde a idade de ingresso na Educação Básica. Tem-se aí uma identidade forjada na história de vida de uma aluna que tirava boas notas, que gostava de estudar, que recebia reforços positivos e foi se construindo como professora: “Eu não queria trabalhar em outro emprego a não ser em sala de aula, porque eu sempre gostei”. Sua relação com a docência foi se aprofundando na medida em que ela se inseriu no magistério. Primeiro tornou-se professora contratada na Prefeitura do Município de São Paulo, onde trabalhou por seis meses. Concomitantemente começou a trabalhar na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo como professora eventual: “Depois eu peguei 32 aulas no Estado, quer dizer, eu sempre dei muita aula e sempre tive dois cargos. E foi assim, né? A minha entrada no magistério sempre foi dando aula em duas escolas ou três escolas”.
Como foi a experiência do estágio para os estagiários
A proposta realizada no primeiro módulo do Estágio Supervisionado do curso em Licenciatura em Ciências Humanas da UFABC teve por objetivo realizar uma pesquisa sobre a figura do professor, atrelando aspectos da vida pessoal com os da vida profissional. A experiência de poder investigar, ainda que parcialmente, as relações das autobiografias dos professores com sua prática docente foram importantes para a formação dos futuros professores. Isso é o que mostram os relatórios de estágios. A proposta apresentou-se profícua para os estudantes, como podemos ver nas conclusões dos relatórios por eles realizados:
Este estágio me fez refletir sobre como será a minha atuação enquanto professora e como quero que seja a minha relação com os meus alunos. Após passar 1 mês e 18 dias acompanhando as aulas do Professor 8, me dei conta de que, ao longo do tempo, vamos nos transformando em professores e o que nos molda são as nossas experiências, sejam elas boas ou ruins (Estagiária M, Relatório de estágio, 2022).
A abordagem autobiográfica como metodologia de pesquisa evidenciou ser uma interessante perspectiva para a entrada dos estudantes na escola e a iniciação ao magistério. Ela serviu como quebra dos estereótipos que os estudantes carregavam sobre a figura docente, muitas vezes atrelada à imagem do professor tradicional que está longe das “tendências atuais da moderna pedagogia”:
Observar as práticas pedagógicas da Professora 1 foi um desafio interessante. Travei uma pequena batalha com ela até conseguir convencê-la de que não estava ali para criticar seus métodos, mas sim observar seu cotidiano e entender como é a realidade de um educador. Após esse processo, fui bem recebida em suas aulas, tive boas conversas com ela, que me ajudaram a entender como ela se construiu como a profissional que é hoje (Estagiária A, Relatório de estágio, 2022).
Os desafios de se aproximarem dos professores, de entrarem, muitos pela primeira vez, em contato com a docência, participando das aulas contribuíram para o desenvolvimento dos estudantes:
Durante este estágio de observação e pesquisa fui conduzida a inclinar meu olhar para estudar e avaliar as relações e conexões que podem existir entre a formação dos professores e suas histórias de vida com a forma como se conectam com seus alunos e como isso pode definir os métodos de ensino que eles aplicam em sala de aula (Estagiária D, Relatório de estágio, 2022).
As histórias de vida dos professores entrevistados são um acervo de conhecimento sobre didática de sala de aula, proporcionaram aos estudantes estagiários uma relação real entre a teoria dos autores estudados e a produção da prática produzida pelos professores:
Entrar em contato com a possibilidade de fazer pesquisa através de autobiografias, de poder contribuir tanto para as pesquisas acadêmicas quanto para a nossa própria formação e para a formação de outros professores ao narrarmos nossas próprias histórias, além de ouvir outras histórias e incentivar outros professores a narrarem suas histórias, é algo muito estimulante. Também é extremamente gratificante ter podido compartilhar essas experiências com os outros colegas da turma, e ter ouvido um pouco sobre suas experiências em outras escolas (Estagiário F, Relatório de estágio, 2022).
Os relatórios de estágios são uma fonte rica de informações que devem não apenas compor a documentação obrigatória de integralização dos cursos de licenciatura, mas também servir como fontes para pesquisadores preocupados com o “chão da escola”. A abordagem autobiográfica utilizada pelos estagiários como método de pesquisa contribuiu para a construção de um pequeno acervo sobre memória e história de professores, acervo esse que pode auxiliar no aprendizado das próximas turmas de estagiários.
Conclusão
O Estágio Supervisionado do módulo I do curso de Licenciatura em Ciências Humanas da UFABC é um estágio introdutório aos estudantes tendo como foco a observação de escolas dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Sendo assim, o presente estágio teve como objetivo a experimentação de recursos de pesquisa científica em educação na atuação dos docentes. A partir da observação de aulas e de entrevista realizada com professores da Educação Básica, o estudante pôde ter contato com o ambiente escolar e com a prática do magistério, unindo teoria, prática e vivência em sala de aula. Para que isso fosse possível, o estágio foi pautado nas leituras sobre autobiografias, enfatizando-se a vida de professores e a pesquisa-ação. A observação das práticas docentes teve como foco valorizar a voz do professor enquanto docente e pesquisador, assim como sua prática fundamental para a experiência escolar e para a formação de novos professores.
O embasamento teórico pautado nas autobiografias e na história de vida de professores proporcionou uma aproximação do estudante do curso de licenciatura com o campo profissional a partir do professor. Entender como a individualidade está intrinsicamente relacionada ao campo profissional contribuiu para os estagiários entenderem melhor as práticas docentes. Nesse sentido, as leituras realizadas ao longo do quadrimestre e as discussões feitas nos encontros das aulas de supervisão deram o suporte necessário para a produção da pesquisa. O levantamento de dados qualitativos das escolas visitadas, por meio da atividade de observação, também foi uma atividade importante na formação do estudante, pois permite-lhe entender a realidade em que o professor se insere.
Metodologicamente, os estudantes foram orientados, a partir da pesquisa-ação com professores (Goodson, 2020), a irem ao encontro dos professores sem formulações pré-definidas sobre as práticas docentes, ou seja, sem mensurar o que seria uma aula boa ruim. A questão norteadora foi entender as práticas pela voz do professor. Nesse sentido, os encaminhamentos dados por Nóvoa (1995) sobre como inserir os professores no estudo sobre a escola foram igualmente importantes.
A leitura dos relatórios de estágios, suas conclusões, os procedimentos de pesquisa e análise das práticas docentes, os saberes ministrados, pautados nos referenciais acima, percebe-se que houve um bom aproveitamento da disciplina de estágio. Os estudantes se mostraram satisfeitos com o curso. A ação do estágio com narrativas autobiográficas funcionou como um processo formativo para os estudantes da graduação e o contato desses estudantes, por meio da pesquisa autobiográfica, da pesquisa participativa, do estudo da história de vida, com professores já formados e que atuam no magistério público se mostrou uma experiência rica em aprendizagens.
Acreditamos que o contato entre gerações, entre aquelas que estão chegando à carreira e aquelas mais experientes, que já atuam na profissão, pôde gerar aprendizagens significativas para todos os sujeitos envolvidos nessa interação. Assim como nos mostrou a pesquisa de Bueno, Catani e Soua (1998) sobre o processo formativo da experiência autobiográfica entre professores que contavam a própria história, as entrevistas realizadas na atividade de estágio também proporcionaram um momento de reflexão da parte dos professores que contaram suas experiências, os quais que acabaram parando para pensar na sua história e na sua prática.
Por fim, ao ressaltarmos a relevância das pesquisas com foco na autobiografia de docentes, defendemos que a importância de avaliar e valorizar as identidades docentes, o que sugere uma nova forma de olhar para o professor, como um sujeito singular e humanizado.
Fontes
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ESTAGIÁRIO F. Relatório final de Estágio Supervisionado. 18f. Licenciatura em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campos, 2022.
ESTAGIÁRIA G. Relatório final de Estágio Supervisionado. 17f. Licenciatura em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campos, 2022.
ESTAGIÁRIO I. Relatório final de Estágio Supervisionado. 16f. Licenciatura em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campos, 2022.
ESTAGIÁRIA J. Relatório final de Estágio Supervisionado. 18f. Licenciatura em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campos, 2022.
ESTAGIÁRIA M. Relatório final de Estágio Supervisionado. 15f. Licenciatura em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campos, 2022.
Referências
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