Resumo: Guiné Bissau é um país complexo, plurilíngue e pluriétnico, marcado por lutas sociais, políticas e disparidades econômicas e culturais, que, por sua vez, assolam o acesso à educação. Acerca desse tema, temos como objetivo apresentar, a partir da autoetnografia, as dificuldades enfrentadas por um jovem estudante do interior da Guiné-Bissau para concluir a Educação Básica. Para a discussão teórica e metodológica, contamos com os estudos de Chang (2008), Santos (2018), Cá (2015), Joaquim (2020) e Seide (2017), entre outros. No artigo, apresentamos o texto da narrativa em primeira pessoa da trajetória educacional de um jovem da etnia balanta. A imersão na memória evocada é alicerçada pela reflexão crítica acerca dos desafios enfrentados desde a infância até o momento da diáspora. Por meio da autoetnografia e da autobiografia evocativa, enquanto técnicas de pesquisa, conseguimos flagrar as vulnerabilidades do processo de autoconhecimento e empoderamento do sujeito pesquisador na sua história.
Palavras-chave: Educação, Guiné-Bissau, Autoetnografia, Autobiografia evocativa.
Abstract: Guinea-Bissau is a complex, plurilingual, and multiethnic country, marked by social and political struggles, as well as economic and cultural disparities, which in turn affect access to education. Regarding this topic, we aim to present, through autoethnography, the difficulties a young student from rural Guinea-Bissau faces in completing primary education. For the theoretical and methodological discussion, we rely on studies by Chang (2008), Santos (2018), Cá (2015), Joaquim (2020), Seide (2017), among others. In the article, we present the first-person narrative of the educational trajectory of a young Balanta ethnic group member. In the text, the immersion in the evoked memory is supported by critical reflection on the challenges faced from childhood to the moment of diaspora. Through autoethnography and evocative autobiography as a research technique, we captured the vulnerabilities of the process of self-knowledge and empowerment of the researching subject in their history.
Keywords: Education, Guinea-Bissau, Autoethnography, Evocative Autobiogra-phy.
Resumen: Guinea-Bissau es un país complejo, plurilingüe y multiétnico, marcado por luchas sociales y políticas y por disparidades económicas y culturales que afectan el acceso a la educación. En relación a este tema, nuestro objetivo es presentar, a través de la autoetnografía, las dificultades que enfrenta un joven estudiante de las zonas rurales de Guinea-Bissau para completar su educación básica. Para la discusión teórica y metodológica, contamos con estudios de Chang (2008), Santos (2018), Cá (2015), Joaquim (2020), Seide (2017), entre otros. En el artículo, presentamos la narrativa en primera persona de la trayectoria educativa de un joven de la etnia Balanta. En el texto, la inmersión en la memoria evocada se basa en la reflexión crítica sobre los desafíos enfrentados desde la infancia hasta el momento de la diáspora. A través de la autoetnografía y la autobiografía evocativa como técnica de investigación, logramos captar las vulnerabilidades del proceso de autoconocimiento y empoderamiento del sujeto investigador en su historia.
Palabras Clave: Educación, Guinea-Bissau, Autoetnografía, Autobiografía evocativa.
Dossiê
A educação como resistência: a trajetória de um estudante guineense
Education as resistance: trajectory of a Guinean student
Educación como resistencia: la trayectoria de un estudiante guineano
Recepción: 15 Mayo 2023
Aprobación: 28 Julio 2023
A ideia de escrever este artigo partiu de uma experiência de escuta e acolhimento de uma história particular e ao mesmo tempo plural, pois se repete nos discursos de muitos estudantes guineenses que chegam à Universidade em um contexto diaspórico.
Trata-se de um movimento de resistência educacional enfrentado por muitos jovens que desejam estudar, no entanto, seus caminhos são atravessados por dificuldades econômicas, sociais, culturais e geográficas. A história que relatamos aqui em primeira pessoa é de um jovem guineense que nasceu na zona rural, em uma aldeia distante da capital de Guiné Bissau.
Trata-se de um relato autoetnográfico que abrange desde os primeiros anos da escolaridade até 12º ano do Liceu, equivalente ao Ensino Médio no Brasil. O método autoetnográfico consiste em procurar revelar o conhecimento de dentro do fenômino, mostrando o aspecto da cultura do indivíduo. Também é um método científico que se fundamenta nos pressupostos de Jones et al. (2013) e Chang (2008), que propõem a autoetnografia organizada em quatro etapas: a visibilidade; reflexividade; vulnerabilidade; e rejeição a conclusão.
A autobiografia evocativa, segundo Ellis, Addams e Bochner (2011), ocorre a partir da reflexão pessoal estimulada pelas leituras que fizeram parte da vida do sujeito e pela escrita da própria história. Trata-se de um texto permeado de vozes que evocam memórias, emoções e catarses.
Diante disso, este trabalho parte de uma autopercepção acerca dos desafios enfrentados na trajetória acadêmica de um estudante proveniente da zona rural da Guiné-Bissau, tendo como objetivo compreender sua história a partir da autoetnografia, pela qual objeto de pesquisa e pesquisador se fundem para a construção de uma autorreflexão sobre uma experiência pessoal.
A experiência relatada surge dentro de um contexto sociocultural e étnico Balanta. Esta etnia é conhecida pelo fanado (circuncisão), realizado durante vários meses e em circunstâncias particulares da cultura. A tradição do fanado é propagada por anciãos respeitados na localidade que legitimam a última etapa de formação da construção da identidade masculina nesta etnia.
O fanado, entre outras tradições da etnia, contribui também para que a educação dos jovens seja concluída com atraso ou mesmo não concluída, pois muitos precisam se ausentar da escola durante as etapas do ritual.
Para integrar a discussão deste texto, trouxemos alguns autores para ajudar na construção desta narrativa, como Cá (2015), que discutiu sobre a educação da sociedade guineense contemporânea; Joaquim (2020), o qual fez um breve relato sobre o percurso estudantil de Bubaque à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab); também sobre o tema da educação e da sua baixa acessibilidade na Guiné-Bissau, recorremos aos estudos de Seide (2017).
No que concerne a organização do trabalho, este texto está dividido em quatro tópicos. O primeiro tópico é sobre a autoetnografia enquanto metodologia de pesquisa narrativa e científica. No segundo tópico, intitulado “O ‘eu’ objeto sob o ponto de vista o ‘eu’ pesquisador”, trazemos um relato sobre as circunstâncias sociais, geográficas e culturais que balizam a narrativa; no terceiro tópico, apresentamos “Os desafios da trajetória educacional na Guiné Bissau” e, no quarto, comentamos sobre “a realidade de um estudante guineense que reside em uma aldeia distante da escola”.
A autoetnografia é um método de pesquisa que permite o sujeito realizar uma reflexão crítica sob uma perspectiva cultural e social acerca da sua própria história. Por entender que a Guiné Bissau é um país, cujas disparidades econômicas e sociais engendram as políticas de acesso à educação, consideramos que o uso da autoetnografia seria uma forma preciosa de colher dados sobre um passado vivido, relevante para caracterizar o objeto de estudo:
Grosso modo, podemos dizer que a autoetnografia é um método que se sustenta e se equilibra em um “modelo triádico” baseado em três orientações: a primeira seria uma orientação metodológica - cuja base é etnográfica e analítica; a segunda, por uma orientação cultural - cuja base é a interpretação: a) dos fatores vividos (a partir da memória), b) do aspecto relacional entre o pesquisador e os sujeitos (e objetos) da pesquisa e c) dos fenômenos sociais investigados; e por último, a orientação do conteúdo - cuja base é a autobiografia aliada a um caráter reflexivo (Chang, 2008 apud Santos, 2017, p. 218).
O modelo triádico proposto por Chang (2008), de modo algum pretende apresentar a história do sujeito de forma segmentada, até porque a memória de um sujeito está intimamente relacionada as experiências que ele teve em determinadas circunstâncias históricas e sociais, deste modo, a sua versão enquanto sujeito da pesquisa é marcada pelo afeto, pela memória, pela força da narrativa que rompe os preceitos mais positivistas da ciência. Desse modo, fazer autoetnografia apresenta o pesquisador como sujeito da pesquisa, como membro da comunidade, que observará a sua história com um olhar mais reflexivo: “Isso evidencia que a reflexividade assume um papel muito importante no modelo de investigação auto etnográfico, haja vista que a reflexividade impõe a constante conscientização, avaliação e reavaliação feita pelo pesquisador da sua própria contribuição/influência/forma da pesquisa intersubjetiva e os resultados consequentes da sua investigação” (Santos, 2017, p. 218).
Com base em Santos (2017, p. 220), compreendemos que a autoetnografia é um método que pode ser usado na investigação com a escrita, já que o seu objetivo é escrever ou fazer análise sistemática da experiência pessoal, para isso, ressaltamos que a experiência relatada aqui se baseia na formação sociocultural da etnia Balanta, que segundo pesquisa realizada em Guiné pelo Instituto Nacional de Estatística e Censo (INEC), em 1991, os grupos étnicos da etnia Balanta representa 26% dos residentes da Guiné-Bissau com sistema familiar marcado pelo patriarcado.
Neste artigo, a escrita da história do sujeito pesquisador atua como uma técnica de condução do encadeamento lógico das memórias vividas e dos processos subjetivos ali vivenciados, enquanto o estudante que percorrera longos caminhos até cruzar o Atlântico. O método autoetnográfico levou o “eu” pesquisador a mergulhar nas próprias reflexões das experiências vividas no passado:
A autoetnografia que realizo na minha investigação e neste caso evidenciada com fortes traços da autobiografia, trazem os relatórios de minha experiência. Mesmo que seja pouco comum no universo onde estudo, em meio a antropologia, não há forma de apresentar este contexto que investigo que não seja tratando das histórias de vida e dos relatos endógenos que apresento. Cabe dizer que este se comunga e se revela na interação com o relato dos outros, uma prática mais usual da antropologia. A escrita então vai se revelando a cada momento de uma experiência em comum com a comunidade (Medeiros, 2019, p. 46).
Neste contexto, entendemos que esta forma de fazer autoetnografia se sustenta na autobiografia evocativa, que segundo Araújo e Davel (2018, p. 177):
Muitos dos fatos são originados a partir de uma epifania do pesquisador ou de fatos ocorridos que, de alguma forma, impactaram em suas vidas. Esta forma sincera, vulnerável e excessivamente dramática de estimular a autocompreensão sofre críticas e pode ser considerada autoindulgente, demasiadamente subjetiva e distante de um compromisso teórico e acadêmico. Por outro lado, percebe se, a partir desta perspectiva, um campo fértil para produções teóricas capazes de acessar temas pouco explorados de forma inovadora, reconhecendo a importância da subjetividade para melhor compreensão do indivíduo, do contexto e da autotransformação.
Compreendemos que o trabalho autoetnográfico sublinha a importância da experiência pessoal do pesquisador como forma de construção de conhecimento no estudo sociocultural, não só, mas também a autoetnografia permite o pesquisador organizar e transpor o seu estudo as suas experiências emocionais relatando tudo isso no seu trabalho de pesquisa:
A autoetnografia pode ser, por exemplo, uma investigação acerca das experiências pessoais de um processo de pesquisa ou um estudo sobre as experiências do pesquisador e dos participantes da pesquisa ou ainda um trabalho a respeito da experiência do pesquisador durante a condução de uma parte específica do estudo. Alguns pesquisadores podem, ainda, usar a autoetnografia para retratar experiências vividas por eles mesmos e que, normalmente, não seriam reveladas (Ellis; Bochner, 2000 apud Magalhães, 2018, p. 19).
Além do que já citaram os autores, compreendemos a autoetnografia como um instrumento de transformação, pois esperamos que a experiência do estudante que estudava na zana Rural na Guiné-Bissau possa chegar ao público, contribuindo para o debate do processo de acesso e de permanência de jovens nas escolas por falta de políticas públicas adequadas no país. Esta metodologia também possibilita a compressão de diversidade culturas sociopolíticas dos povos de Guiné-Bissau e do continente no contexto geral, contrapondo-se as concepções homogeneizantes eurocêntricas.
Conforme Monteiro (2020, p. 4), a Guiné-Bissau está situada na Costa de África, limitada a norte pela República do Senegal, a leste e sul pela República da Guiné-Conacri e a oeste pelo Oceano Atlântico. A Guiné-Bissau tem aproximadamente 36.125 km², neles devem morar cerca de 1.920.917 habitantes, divididos em diferentes etnias.
Sua população é formada por vários grupos étnicos, basicamente: Balantas 30%, Fulas 20%, Manjacos 14%, Mandingas 13%, Papels 7% e outros 16% que ocupam diferentes regiões. Atualmente, o país é composto por oito regiões que são: Bafatá, Biombo, Bolama, Cacheu, Gabú, Oio, Quinara, Tombali e setor autônimo Bissau.
Eu nasci em dezesseis de dezembro de mil novecentos e noventa e quatro no setor de Cacine, parte da região de Tombali, sul da Guiné-Bissau com 72 km. Faço parte de uma das etnias que ocupa a primeira posição, a etnia Balanta.
A etnia Balanta é diferente das outras etnias existentes na Guiné-Bissau, pois é considerada uma etnia que apresenta uma organização social político horizontal, ou seja, não dispõe de um líder que controla todo o poder na sociedade, como o caso do Régulo. Portanto, na etnia Balanta não existe um único líder como se verifica nas organizações sociais das outras etnias da Guiné-Bissau, como as etnias Fula, Manjaco, Mandinga entre outros. Sobre a questão da estrutura da formação familiar balanta, Seide (2017, p. 19) comenta que
A etnia Balanta como a maioria das etnias guineenses apresenta o sistema familiar alargada, isto é, todos tipos de laços familiares são considerados importantes. Por isso, às vezes, se verifica uma tabanca (aldeia) em que todos os membros são da mesma geração, ou seja, todos têm algum grau de parentesco, por isso, a questão de familiaridade é muito valorizada.
Considerando Seide, ressalto que a minha composição familiar está estruturada por um sistema democrático, no qual não só minha mãe, meus pais e meus irmãos opinam e participam das decisões acerca da família, parentes mais distantes também opinam no dia a dia: “Para Seide a família significa laços de sangue, o sentimento de identificação, pela via de transmissão de imperceptíveis marcadores genéticos, que permitem, com segurança, quase científica, o estabelecimento da relação de paternidade ou maternidade de sucessivas gerações, determinadas pelos laços sanguíneos” (Rith, 2013, s./p.).
Na família dos meus pais, somos seis filhos homens, dentre os quais sou o quarto, ou seja, tenho três irmãos mais velhos e dois mais novos. Com relação à profissionalização, meus irmãos não têm nenhuma formação acadêmica, o mais velho não estudou muito devido à influência da sociedade onde os nossos pais estavam inseridos, entretanto, o segundo estudou até o 11º ano da escola e, atualmente, trabalha como pedreiro, mas anseia um dia poder continuar os seus estudos.
Meus pais tentaram ajudar meu terceiro irmão a concluir sua formação e ingressar no Ensino Superior, mas isso não foi possível para ele e apenas eu consegui, superando diversos obstáculos. Meus genitores não têm um nível elevado de escolaridade, meu pai estudou até o sexto ano e, para continuar seu percurso educacional, ele deveria sair da nossa cidade e morar na capital ou Catio para poder continuar seus estudos, mas isso não foi possível, pois, por ser o filho mais velho, teve que ajudar a família.
Não muito diferente dele, minha mãe também não pôde estudar, assim como a maioria das mulheres guineenses sofrem com a falta de oportunidades educacionais, especialmente no contexto da Guiné Bissau, onde as mulheres são criadas para o casamento e este é o único futuro que lhes espera.
Aos cinco anos, saí de minha cidade natal e fui levado para a cidade Bissau pelo meu tio. Embora tivesse muita vontade de estudar na época, não consegui, e foi com a ajuda de amigos que comecei a dar meus primeiros passos na alfabetização. Lembro que a primeira coisa que eu pedi para aprender a escrever foi o meu nome, o nome da minha mãe e do meu pai. Lembro que foi em uma tarde, quando estávamos brincando no chão, em um local próximo da casa onde vivia, que fiz meus primeiros rabiscos. Pedi a um amigo para me ensinar a escrever o meu nome e o dos meus pais. Eu me lembro que o meu amigo segurou o meu dedo, apontou ao chão e começou a desenhar as letras do meu nome e foi assim que aprendi pela primeira vez a escrever o meu nome e dos meus pais.
Recordo-me que escrever no chão era a forma mais fácil para poder escrever porque não sabia como segurar uma caneta ou um lápis, e assim continuei até os nove anos de idade. Naquela época, eu não frequentava nenhuma escola de Ensino Primário, tudo o que eu sabia aprendia com os meus amigos.
Quando comecei a frequentar a escola dominical na Igreja Evangélica de Aeroporto, comecei a memorizar as histórias da Bíblia e os versículos que os professores nos contavam, as histórias eram oralizadas, às vezes, nos davam alguns versículos impressos no folheto para memorizarmos em casa, mas como eu não sabia ler na época, pedia sempre ajuda das pessoas que sabiam para me auxiliar com a memorização dos versículos.
No início de 2003, a minha tia, esposa do meu tio, me matriculou pela primeira vez na escola, a Apesar de ser uma escola privada, era uma instituição onde todos os alunos levavam seus banquinhos para se sentarem e, depois, apoiavam o caderno nas pernas para escreverem, nós a chamávamos a Escola de Carga Banco, equivalente em português a Escola de levar Banco para se sentar. Segundo Cá (2009, p. 24), esse modelo de educandário existia desde período colonial e, depois da independência da Guiné-Bissau, passaram “a ser chamadas de escolas de explicações. São particulares e montadas nas casas dos professores, na maioria das vezes, na frente da casa, na varanda, no quintal da casa”.
Aquela escola tinha um método de ensino herdado de colonos, lá os professores batiam muito nos alunos, e eu tinha muita dificuldade com a leitura, embora praticasse muito em casa. Acredito que o modo de ensinar, baseado na violência e no castigo, comprometia meu desempenho de aprendizagem.
Devido à dificuldade econômica de deslocamento, à falta de meio de transporte para chegar à escola, e aos obstáculos pagar a mensalidade, não conseguia alcançar o padrão esperado ou mesmo superá-lo. Sobre a metodologia usada por essas instituições, Mané descreve um pouco do que vivenciou. Segundo Cá et al. (2020, p. 37):
Todas as sextas-feiras, o dono da escola Kaby tirava todos os alunos das salas e fazia uma grande roda no meio da rua e colocava no centro à palmatória. O professor escolhia um aluno e perguntava a tabuada, se a primeira criança não acertasse e a próxima acertasse, esta pegava a palmatória e batia nas mãos da criança que não acertou a tabuada. Se a criança batesse levemente, por pena de machucar a amiga, o professor saía do seu lugar e batia forte na criança que tinha pena do/a colega. O mesmo acontecia com a leitura; o professor pedia para ler um texto, quem tivesse dificuldade e o próximo conseguisse ler bem, batia na outra criança que não acertou. Isso era de praxe todas às sextas-feiras.
Identifiquei-me muito com Mané (2020), pois eu lembro que faltei por três dias, querendo desistir, porque não aguentava mais apanhar, mas fui obrigado a voltar e, quando cheguei, recebi algumas palmadas, fui obrigado a me ajoelhar nas pedrinhas, segurando duas pedras nas mãos estendidas, e se, porventura, não conseguisse mantê-las erguidas, levava outra surra. Tal prática aumentou bastante o índice de evasão na escola:
O método era o “magister dixit”. Aí não havia diálogo. O professor era o homem que sabia tudo e que ensinava tudo, os alunos só tinham que aprender. E tinham que aprender, porque se não aprendessem apanhavam de palmatória. Eu ainda fui do tempo da palmatória, da vara. Felizmente não apanhei, talvez porque...não digo que fosse um estudante brilhante, mas, das turmas por onde passei, muitas vezes eu era como que um auxiliar do professor, para fazer perguntas, fazer as lições dos meus colegas (Cá, 2009, p. 49).
Ao invés de estimular o aluno a permanecer no processo de ensino aprendizagem, creio que esta metodologia eleva mais o índice de evasão escolar. E eu fui uma das pessoas que deixou essa escola e buscou outra.
Foi no Liceu de Afia que conclui o processo de alfabetização, aprendi a ler e a escrever, e comecei a frequentar uma escola privada, de Ensino Primário, Escola Amizade Betel. Nessa escola, estudei na 1ª e na 2ª classe (série), entre os anos de 2003 e 2005 na cidade de Bissau, longe de Cacine. Lá tive que estudar em séries que estavam aquém do meu nível de aprendizado e, por isso, regressei para Cacine em novembro de 2007, quando continuei os meus estudos na escola pública da minha comunidade, em Camiconde.
Nas aldeias guineenses, grande parte dos moradores enfrenta dificuldades de acesso à saúde pública e à escola para os filhos estudarem. Situações como essas acabam levando muitas famílias a entregarem seus filhos para um parente assumir as responsabilidades. Infelizmente, nem todos os parentes têm estrutura e condições para manter outros parentes, como foi o caso do meu tio.
E por isso, ao retornar, estudei na escola de Camiconde, uma escola de Ensino Primário que atendia estudantes da 1ª a 4ª classe. Na maioria das vezes, algumas escolas que ficam próximas das aldeias, na zona rural da Guiné-Bissau, são escolas de Ensino Primário, que às vezes sofrem com a falta de professores e, quando o aluno atinge um nível mais avançado, já começa a enfrentar as dificuldades.
Depois de 6 meses na Escola Pública de Camiconde - à época, eu estava a cursar 4º ano -, chegou um decreto informando que os professores contratados não podiam mais continuar exercendo o papel de professor nas escolas naquele período. É importante ressaltar que a escola citada não dispunha dos professores efetivos, apenas poucos profissionais contratados e, mesmo assim, o Estado rompeu contrato.
Entre os professores contratados tínhamos um professor de nome Sana Camará, um dos melhores, mas, infelizmente, com a demissão desses professores ele teve que ir embora. Com isso, começávamos a enfrentar grandes dificuldades. Para que não ficássemos sem estudar por causa das demissões, o professor Umaro ocupou este lugar, e para tanto teve que juntar duas turmas de períodos diferentes para não nos deixar sem professor.
Tal atitude resultava em aulas mais barulhentas e com términos antecipados devido à falta de estrutura enfrentada. Vale frisar que as escolas nas zonas rurais são as mais desvalorizadas, principalmente nas escolas públicas, e nelas se o aluno não se esforçar ninguém vai se importar, uma vez que o próprio governo da Guiné-Bissau não se importa com a educação das pessoas que estão nas zonas rurais do país.
Havia, e ainda há, muitas dificuldades enfrentadas pelos estudantes das escolas das zonas rurais da Guiné-Bissau, por exemplo, numa escola onde eu estudava tinha, em um pavilhão, apenas duas salas de aulas para muitos alunos. Devido à superlotação era comum numa carteira em que cabia apenas dois alunos sentarem três ao mesmo tempo.
O desconforto era muito grande, porque além de superlotação dos alunos, as carteiras estavam avariadas. Assim como foi para Mané (2020, p. 38), “não tínhamos uniformes, então, cada criança ia para escola como podia”. Também sofríamos com barulhos que poderiam interferir nas condições de aprendizagem de aluno dentro da sala de aula, também havia dificuldade no momento de escrever, principalmente no caso dos/as alunos/as que se sentavam juntos, os três numa só carteira.
Portanto, quando fui para o 5º ano, passei a estudar na escola pública de sector de Cacine, equivalente ao município aqui no Brasil. A escola pública de Cacine atendia do pré-escolar ao 6º ano, porém a distância de Camiconde para Cacine (ou da minha casa a escola) era de 7km. Enfrentar uma longa caminhada todos os dias era mais difícil para mim e para os alunos que iam e voltavam, pois acabávamos percorrendo 14km para estudar.
Para diminuir a dificuldade, haviam alunos que iam de bicicleta, mas outros como eu, que não possuíam qualquer transporte, percorriam a pé esses 14km todos os dias, assim, atingir o objetivo era ainda mais difícil. Vale lembrar que, no meu caso, não tinha ninguém da família para me acompanhar até a escola, ou mesmo me ajudar com as tarefas de casa, ou seja, não havia encorajamento perante as dificuldades. Essa dificuldade era sofrida de modo solitário e, no meu caso, sendo filho de pais camponeses, a situação era ainda mais difícil.
Eu tinha que ajudar no trabalho no campo para depois ir à escola, independentemente do trabalho que eu tivesse, precisava reservar um tempo para estudar as matérias. Essa era a realidade cotidiana dos alunos que estudavam nas zonas rurais da Guiné-Bissau, lembrando que em meu país ainda não se discutia política pública voltadas para educação no campo, ou melhor, essa política não era aplicada na prática, como no Brasil, em que as prefeituras disponibilizam os ônibus para levar os alunos que moram distante das escolas.
Em Cacine, como a escola atendia estudantes até 6º ano, eu não tinha como continuar, então, tive que retornar a Bissau, que fica distante 272km da minha aldeia. Na época, decidi falar com o meu tio novamente para me receber em Bissau a fim de continuar na 7ª classe e seguir o primeiro grupo, porém, o que parecia fácil a princípio, tornou-se bastante difícil com o passar do tempo.
Eu estudava todas as manhãs das 7h até às 12h, quando chegava à casa do meu tio tinha que preparar a comida, entre outras atividades domésticas. No entanto, três meses depois, quando o meu dinheiro acabou, comecei a sentir as dificuldades tanto para comprar os fascículos da escola como para comprar alimentos e itens de necessidade básica. O meu tio costumava se ausentar um mês devido ao seu trabalho e, nesse período, ele não demonstrava preocupação comigo.
Lembro que muitas vezes os vizinhos me ajudavam com a comida. Quando ele recebia seu salário comprava poucas coisas e, naquela época, passei por momentos muito difíceis por lá. Depois de quatro meses, comecei a adoecer com dores intensas no estômago e com inchaço nas mãos, mas não tinha dinheiro para ir ao hospital. Desse modo, resolvi abandonar os estudos e perdi aquele ano letivo. Voltei para Cacine, para a casa dos meus pais.
No ano seguinte, matriculei-me na escola privada, a Escola Evangélica Betel (EEB). Embora privada, a escola não tinha boa estrutura, sem mencionar que a realidade dos alunos que estudam na zona rural da Guiné-Bissau, independentemente das dificuldades enfrentadas, era de grande escassez. As escolas da região destinadas para a minha faixa etária eram divididas em grupos, que orientavam a área de formação dos estudantes.
Diante da situação, para não ficar sem estudar, a pessoa era obrigada a fazer qualquer grupo para poder continuar, o seu estudo, porque não tinha professores suficientes para lecionar todos os grupos, que por sua vez, estavam divididos em áreas exatas, humanas e biológicas. Quando comecei a conhecer a importância da escola, me apaixonei pela área de exatas. Queria muito estudar disciplinas exatas, mas como não tinha lugar em Cacine que se estudasse exatas, tive que estudar Humanidades, o único grupo ofertado pela escola privada de 7ª a 11ª classe.
Iniciei o 7º ano na escola Evangélica Betel EEB de Cacine no ano de 2012. Embora estivesse mais perto das minhas famílias, a distância para chegar à escola continuava grande, percorria diariamente 14 km a pé e ainda pagava a mensalidade com muita dificuldade, de três em três meses, tendo em vista que eu não era o único filho dos meus pais que estava a estudar, pois somos seis, revezávamos os pagamentos.
Diante deste cenário, meus pais não tinham condição para pagar as minhas mensalidades escolares, porque todos estávamos a estudar, portanto, cada um se virava para pagar a sua, com exceção dos meus irmãos mais novos.
Assim como eu, há uma grande quantidade de alunos que batalhavam para manter os seus estudos, suportando o desgaste físico e psicológico afetado pelo longo percurso feito a pé todos os dias a caminho da escola para concluir os estudos. Eu me lembro que muitas vezes saia sem comer, com fome só porque minha mãe não conseguia fazer minha comida e ela não tinha ciência de que para mim, uma boa alimentação seria importante não somente superar os quilômetros percorridos como também aprender de forma mais eficiente. A concepção acerca da educação para a minha mãe era diferente da minha, esta disparidade reflete uma sociedade segmentada com base no trauma deixado na Guiné-Bissau durante o período colonial. Segundo Lourenço Ocuni Cá (2000, p. 9):
Na Guiné-Bissau, como em quase todos os países africanos que seguiram este modelo educativo introduzido pelo colonialismo, somente uma pequena percentagem, em torno de 10% a 15% dos alunos que começavam a escola primária, conseguiram chegar ao secundário. A despeito da evasão da grade maioria, o ensino primaria não constitui em si um verdadeiro processo de aprendizagem, na medida em que não era mais que uma etapa preparatória para algo que viria depois. Isto implicava uma dupla consequência negativa: a) a grande maioria que não chegava ao secundário voltava ao meio rural com um sentimento de inferioridade devido ao fracasso escolar e, sobretudo não tendo aprendido nada de realmente útil à sua integração na produção e na vida comunitária.
Com base nisso, compreende-se que muitos dos que não conseguiam aproveitar a vantagem do estudo não podiam ter uma boa lembrança da escola a ponto de estimular os seus filhos a estudarem, porque em primeiro lugar essa educação, como afirma Cá (2000, p. 32), “representava para o jovem o distanciamento progressivo da sua realidade de onde eles eram originárias a comunidade rural e a sua integração gradual em um universo antagônico, o mundo urbano em que o trabalho intelectual e manual não se misturava”.
Concernente a isso, não podemos deixar de lado a questão de gênero, como mostra o Relatório fala de Mindjeres (voz das mulheres):
A formação das raparigas depende muito da importância que a família atribui ou não ao casamento, em detrimento da formação e emancipação da mulher. Quanto maior for a identificação da família com o idealismo social dominante, “mulher é em casa” menor será a probabilidade da escolarização da rapariga e prosseguimento da formação avançada. Isto porque se acredita que, quanto maior for o nível de instrução da rapariga, maior é a probabilidade de recusar o casamento arranjado pela família e menor será a sua submissão no casamento (Mindjer, 2018, p. 46-47).
A formação da mulher era voltada para o lar, compreende-se que toda preparação que ela recebia é de como cuidar de seu marido, ou seja, ela estava preparada para isso não para estudar, portanto, a minha mãe não consegue ter acesso a escola. Com relação a isso, um estudo realizado por Monteiro (2020, p. 17) aponta que das mulheres: “56,28% da população adulta é analfabeta dentre as quais 64.12% são mulheres”.
Talvez pela sua vivência, ela parecia não dar importância à escola, porque não havia boas oportunidades de trabalho para muitas pessoas que tinham bom nível de estudo, e muitos estudavam até concluir 12º ano, porque não tinham condições para estudar no Ensino Superior. Portanto, Fernando Siga (2020, p. 115) afirma que:
Segundo o plano setorial da educação (2017) no que toca ao acesso e a conclusão entre gêneros entram 80% dos meninos e conseguem terminar 72% enquanto que as meninas entram 75% e só consegue terminar 48%, um diferencial enorme. Como pode se constar no acesso a diferença é de cinco pontos, mas já na conclusão é de 24%. Outro aspeto tem a ver com a oportunidade do serviço escolar, ou seja, de continuidade. Segundo ainda o mesmo documento, no total das escolas a nível nacional só 25% consegue ofertar as classes completas do primeiro e segundo ciclo do ensino básico, quer dizer de primeiro a sexto ano. Os alunos são obrigados a se deslocarem para outras escolas ou até para outra região para poderem dar continuidade aos seus estudos. Esse processo de deslocamento é um dos fatores de abandono escolar que, por outro lado tem mais impacto nas meninas do que em relação aos meninos, pelos motivos já citados acima.
Por essa razão, para a minha mãe, a escola não tinha futuro, mas o trabalho do campo sim; para ela, eu estava perdendo meu tempo “com coisas de brancos” como ela me dizia, mas eu não desisti e continuava me esforçando todos os anos.
Sobre essa disparidade, Domingos Moreira debate a questão de desigualdade que se encontra no setor da educação entre homens e mulheres, mas neste âmbito, o foco principal aqui é das mulheres ou meninas, que estudam no interior do país e sobre como isso pode afetar ainda mais o futuro delas:
Desigualdade entre rapazes e raparigas e entre as regiões: uma diferenciação importante entre rapazes e raparigas é notória a partir do acesso à primeira classe do ensino básico com 27.600 rapazes para 20.600 raparigas (relação 1,34%) em 1999/2000. Esta diferenciação se aprofunda, à medida que se avança nos anos de formação, para atingir uma relação de 1,60% na quarta classe. A desigualdade de acesso à educação é mais marcante no meio rural do que nos centros urbanos (100% de acesso para os rapazes nos centros urbanos contra 92% para as raparigas e 95% de acesso para os rapazes no meio rural contra 60% para as raparigas). As taxas de retenção são igualmente mais fracas para as raparigas (57% dos rapazes atingem a 4ª classe contra 37% para as raparigas). Enfim, disparidades regionais importantes subsistem no que respeita à taxa bruta de escolarização (apresentando taxas mais baixas a região de Bafatá com 37,7% e a região de Gabú com 47,9%). A taxa de analfabetismo geral é atualmente estimada em 65% dos homens e em 82% para as mulheres. Todavia, o fenômeno continua a merecer preocupação pela inexistência de uma política nacional no domínio, apesar do plano quadro ter delineado importantes elementos de política que aguardam a adoção pelas autoridades competentes (Moreira, 2006, p. 32).
Apesar de pouco apoio, em 2014, eu estudava no 9º ano e, na ocasião, eu fui escolhido como professor auxiliar de jardim por ausência do Miguel, que era o professor principal. Lecionei por um mês, depois pedi demissão, porque não estava a conseguir dar conta das minhas disciplinas como estudante non 9º ano. Fiz o meu maior percurso no mesmo sector de Cacine região de Tombali sul do país Guiné-Bissau; estudei até o 11º ano, entre 2015 e 2016.
Depois de eu ter concluído o 11º ano, em 2016, tinha que mudar de escola e de região para poder continuar meus estudos. Entre os anos de 2016 e 2017, concluí o 12º ano no Liceu Padre Leopoldo Pastori em Bafafá, região leste do país. Longe da minha família, dos meus amigos, dos lugares conhecidos, além da dificuldade para pagar a mensalidade, pois tinha que batalhar muito para alcançar outro tipo de vida diferente daquela que eu tinha em Cacine. Sobre esse assunto, afirma Paulo Joaquim (2020, p. 184):
Onde eu estudava não era perto, sendo assim, percorria toda aquela distância muita das vezes a pé até ao final do ano letivo. Mas, por fim, deu tudo certo, porque o meu resultado foi atingido com êxito. Já no ano letivo seguinte, queria logo começar a minha formação acadêmica superior, mas não deu certo! Havia como barreira, questão econômica. O montante que cobrava para formação, não era igual ao que cobrava no Ensino Médio.
Em março de 2018, retornei à capital Bissau, pela chamada de missionária coreana da Igreja evangélica residente em Cacine para trabalhar com outra missionária coreana também residente em Bissau. Com ela, trabalhei como professor da língua crioula e também trabalhei como professor com outra missionaria espanhola.
As missionárias só falavam idiomas diferentes do meu - coreano, inglês espanhol e português -, enquanto eu só falava crioulo e um pouco de inglês e português, e durante esse processo, como professor, aprendi muito com elas. Trabalhei como professor de crioulo durante um ano e meio, e nesse período aprendi a trabalhar como professor ao mesmo tempo em que atuava como jardineiro na casa da missionaria coreana.
Para sobreviver e conseguir concluir meus estudos e com objetivo de ter novas oportunidades laborais, me inscrevi no curso básico de inglês e ao mesmo tempo fazia curso básico de português. Era uma rotina intensa, estudava português de manhã e lecionava língua crioula das 15h às 17h30, enquanto a minha aula de inglês era das 18h às 19h30, depois, à noite, ensinava mais inglês em casa para alguns adolescentes que estavam no 1º nível de curso, enquanto eu estava no 4º nível.
A convivência com as missionárias ajudou-me bastante a diversificar as minhas experiências para poder conseguir sobreviver no país. Tudo o que eu passava ajudava-me a entender que existem diferentes formas de se ganhar dinheiro num país, mas isso varia de região para região, dependendo do tipo de atividade produtiva que se encontra. Olhando para a minha história, vejo claramente que todas as dificuldades que os estudantes enfrentam no interior da Guiné Bissau estão relacionados à falta de escolas como os Liceus, que deveriam ser mais abundantes no interior do país, como menciona Cá (2015, p. 248):
talvez a volta de internatos só não resolva o problema, porque o fato dos liceus da Guiné-Bissau serem concentrados em Bissau, já complica a situação dos alunos oriundos das outras regiões do país, porque em todos os colégios guineenses - sejam eles das regiões, ou da capital Bissau - quando os alunos concluem a 9ª classe, vão para diferentes liceus, que se concentram na referida capital.
A falta de incentivo à educação estimula o êxodo rural, a fuga de jovens do interior para cidade, que, por sua vez, são consequências importantes para a economia do país. Diante de tudo que já foi apresentado até aqui, concordo com Ocuni Cá quando ela enumera alguns depoimentos de pessoas que passaram pelo mesmo que passei:
De igual modo, as crianças e os adolescentes cujas escolas ficam distantes do local onde vivem com os pais também vão para Bissau, a fim de estudarem. Conforme a entrevistada, a maioria só come uma refeição por dia e, para ter mais refeições, contam com a ajuda dos vizinhos e das vizinhas. Por essa razão, a referida entrevistada acha que, se tivesse um liceu em cada Região/Estado da Guiné-Bissau, esses alunos escolheriam liceus mais próximos das suas casas para estudarem, porque, segundo a entrevistada, muitos vêm para Bissau e, quando não dá certo a sua inserção escolar, acabam entrando no mundo do crime (Cá, 2015, p. 248).
Quando eu cheguei à capital Bissau morava no bairro de São Paulo2. O bairro fica distante de Missirá, bairro onde lecionava a aula de língua crioula no chão de papel. Como eu ministrava aulas duas vezes por semana para poder pagar a mensalidade do curso de inglês, eu tinha que economizar nas passagens dos transportes e, portanto, era obrigado a percorrer a pé todo o trajeto de São Paulo à Missirá durante um ano e meio.
No final de semana procurava um trabalho extra para garantir o transporte de alguns dias. E nas férias, independente da circunstância, voltava para casa em Cacine para ajudar os meus pais no trabalho e aproveitava também para juntar mais dinheiro antes de voltar. Em Cacine, eu me ocupava da extração do óleo de Dendê, atividade mais rentável na nossa região. Eu extraía esse óleo e o vendia em Bissau. Com este dinheiro, eu conseguia pagar os meus estudos e comprar outras coisas que eu precisava.
Quando concluí meus estudos, entre os anos de 2018 e 2019, surgiu a oportunidade de assumir o desafio de estudar em outro país, o Brasil. Consegui passar no processo seletivo e hoje sou um jovem guineense que está em diáspora acadêmica.
Aos estudos autoetnográficos, por centrarem-se numa imersão, não cabem considerações finais, pois a história perpetua pela memória e continua atuando de forma significativa no presente atravessando as escolhas que tomamos diariamente. Nosso trabalho teve como objetivo compreender a trajetória educacional de um jovem guineense a partir da metodologia autoetnográfica, utilizando as reflexões particulares do sujeito pesquisador como pautas de discussão de um problema político e educacional que assola a Guiné Bissau: o acesso e a permanência na escola.
A autoetnografia permite que o pesquisador reflita sobre a sua própria experiência ora como sujeito, ora como cientista. Esta metodologia foi baseada em Stacy Holman Jones et al. (2013), os quais afirmam que a pesquisa autoetnográfica deve estar organizada a partir de quatro etapas: visibilidade, reflexividade, vulnerabilidade e rejeição à conclusão.
No primeiro momento, a reflexão partiu da vulnerabilidade, a vulnerabilidade pessoal de um sujeito imerso a um sistema econômico, social e educacional precário, o qual fomentou a minha trajetória de vida, pela qual foram narradas as dificuldades enfrentadas de modo solitário e ao mesmo tempo coletivo com outros alunos no interior da Guiné Bissau, especialmente o setor de Cacine.
Tudo seria diferente se na Guiné Bissau existissem mais escolas, professores, infraestrutura básica para a nossa formação. Muitos estudantes guineenses não conseguem persistir nos estudos, pois são muitas as dificuldades impostas pelo contexto, muitos são os desincentivos. Na jornada, em meio a tantas adversidades, oportunidades foram vislumbradas e alcançadas.
Em 2019, ao chegar à Universidade brasileira, trazer à tona parte da história de um sujeito diaspórico é também um passo político importante, e é por isso que esperamos que com este trabalho possamos chamar a atenção para as dificuldades enfrentadas por estudantes que moram e estudam na zona rural da Guiné-Bissau, para que outros estudantes possam ter melhores condições de acesso à educação.