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Fênix alada: desejo, necessidade e circunstância na história de vida de uma mulher brasileira
Ricardo Santhiago; Daphne Patai
Ricardo Santhiago; Daphne Patai
Fênix alada: desejo, necessidade e circunstância na história de vida de uma mulher brasileira
Winged phoenix: Desire, need and circumstance in the life story of a Brazilian woman
Fénix alada: deseo, necesidad y circunstancia en la historia de vida de una mujer brasileña
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 37, e2024010, 2024
Universidade Estadual do Paraná
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Resumo: Este artigo é um dos resultados de um projeto que revisita as narrativas autobiográficas de mulheres brasileiras que, nos anos 1980, narraram suas experiências para um projeto de história oral. Algumas dessas mulheres foram entrevistadas novamente, trinta anos depois, possibilitando a investigação de diversas formas de aproveitamento analítico. Neste texto, analisa-se a história de vida de Norma, mulher brasileira que buscava, na mudança para o exterior, a rearticulação dos sentidos para a sua existência. A partir de um conjunto de narrativas pessoais altamente complexo e cativante, abordam-se questões ligadas a mudança, continuidade, independência, frustração e apelo a circunstâncias.

Palavras-Chave: História oral, Auto-biografia, Narrativas pessoais, Intersubjetividade.

Abstract: This article results from a larger project that revisits the autobiographical narratives of Brazilian women who, in the 1980s, narrated their experiences for an oral history project. Thirty years later, some of these women were interviewed again, making it possible to investigate different forms of analytical use. In this text, the life story of Norma is analyzed, a Brazilian woman who sought to move abroad the re-articulation of the meanings of her existence. Issues related to change, continuity, independence, frustration, and appeal to circumstances are addressed from a highly complex and captivating set of personal narratives.

Keywords: Oral history, Autobiography, Personal narratives, Intersubjectivity.

Resumen: Este artículo es resultado de un proyecto que revisita las narrativas autobiográficas de mujeres brasileñas que, en la década de 1980, narraron sus experiencias para un proyecto de historia oral. Treinta años después, algunas de esas mujeres fueron encuestadas una vez más, lo que permitió investigar diferentes formas de uso analítico. En este texto, se analiza la historia de vida de Norma, una mujer brasileña que buscó en el traslado al exterior la rearticulación de los significados de su existencia. En el texto, se abordan temas relacionados con el cambio, la continuación, la independencia, la frustración y la apelación a las circunstancias, desde un conjunto de narrativas personales sumamente complejo y cautivador.

Palabras clave: Historia oral, Auto-biografía, Narrativas personales, inter-subjetividade.

Carátula del artículo

Dossiê

Fênix alada: desejo, necessidade e circunstância na história de vida de uma mulher brasileira

Winged phoenix: Desire, need and circumstance in the life story of a Brazilian woman

Fénix alada: deseo, necesidad y circunstancia en la historia de vida de una mujer brasileña

Ricardo Santhiago
Universidade Federal de São Paulo, Brasil
Daphne Patai
University of Massachusetts, Estados Unidos
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 37, e2024010, 2024
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 15 Mayo 2023

Aprobación: 26 Octubre 2023

Introdução

And time goes by so slowly

And time can do so much

Trecho de “Unchained Melody” (1965), uma das canções preferidas de Norma

Este artigo resulta de uma pesquisa mais ampla na qual mulheres brasileiras, que narraram suas vidas no início dos anos 1980 para Daphne Patai, em uma investigação que resultou no livro “Brazilian Women Speak: Contemporary Life Stories”, de 1988, foram reentrevistadas nos anos 2010 por Ricardo Santhiago. Depois de um longo e desafiador trabalho de entrevistas, somado ao seu processamento, as leituras dessas histórias de vida - as do passado em conjunção com as do presente - estão em processo. Elas são orientadas por questões metodológicas e interpretativas mobilizadoras, possibilitadas pela rara e imprevista oportunidade de uma interpretação de tipo longitudinal.

Em ocasiões anteriores, já realizamos fizemos incursões analíticas sobre os dossiês de histórias de duas mulheres. Com a história de Dorotéia (Santhiago; Patai, 2021a), pudemos discutir as determinações da memória, enquanto processo neurológico, sobre a memória autobiográfica - posicionados diante de uma mulher de mais de 90 anos que tem suas possibilidades de rememoração constringidas e informadas pelo Mal de Alzheimer. Já Marialice (Santhiago; Patai, 2021b) possibilitou-nos explorar os padrões narrativos explorados pela entrevistada na construção de si e os usos práticos, sempre oportunos, de sua própria história pessoal.

Neste artigo, em particular, percorreremos mais uma vereda aberta pelas entrevistas. Não se trata, apenas, de conhecer a biografia de uma mulher - mas sim de compreender como, a partir dessa biografia, somos convocados e reconhecer e ampliar as compreensões interpretativas e éticas do trabalho de história oral. Aqui, entraremos em contato com a história de vida narrada por Norma, uma mulher muito inteligente, considerada à frente do próprio tempo, e dotada (no passado) de um futuro promissor. Amigas próximas a admiravam; familiares temiam sua ousadia.

Seus interlocutores de pesquisa - Daphne, nos anos 1980, Ricardo, no presente - foram também invadidos por admiração e entreviam o encontro, nos anos 2010, com uma mulher florescente e extraordinária. Sua narração, no entanto, nos coloca não somente diante da mudança, mas também diante da frustração e do sentimento de fracasso, tanto quanto da capacidade - efetiva e narrativa - de lidar (pessoal e narrativamente) com o próprio passado quando ele desenhava promessas de futuro mais auspiciosas do que ele se mostrou.

Uma breve história, para começar

Comecemos por um caso que não vem de “Brazilian Women Speak”. Trata-se da história de uma mulher comum que no final dos anos 1970 transformou-se, por ato do destino, em atriz. Naquela ocasião, o dramaturgo João das Neves realizou pela primeira vez no Brasil, com o Grupo Opinião, o feito de levar a um mesmo palco atores profissionais e trabalhadores comuns: isso porque ele queria contar de forma realista a história de um trem desgovernado e sem maquinista, que passa pela periferia levando passageiros marginalizados saídos dali. O espetáculo se chamava “O último carro” (Neves, 1976).

Quase quarenta anos depois, a historiadora Natália Batista (2019, 2023) foi em busca da história desta peça e de seus agentes. Encontrou Marina Euzébio, que tinha sido empregada doméstica e cozinheira, e também trabalhado em uma empresa de pregadores, em uma gráfica e em uma companhia de ônibus, até tornar-se atriz da peça de Neves. A experiência redefiniu a trajetória de Marina. Foi a realização improvável de um sonho - e que lhe levou a uma espécie de consagração. Sua interpretação da personagem Zefa foi particularmente elogiada pela crítica de teatro da época como um destaque do espetáculo.

Aplaudida e reconhecida em cena, Marina foi abandonada depois dela. Fez pontas no cinema e na televisão. No teatro, algumas peças infantis. Não teve oportunidades relevantes nem financeiramente recompensadoras. Voltou à vida de operária. Sua entrevistadora, porém, não encontrou uma interlocutora frustrada ou ressentida - mas sim uma mulher profundamente grata pelo que viveu no passado, que ampliou seus horizontes e foi a realização de um sonho. Saudades do passado, mas contentamento com o presente, é o que ela disse sentir.

A história de Marina Euzébio ajuda a colocar em tela a seguinte questão: a capacidade de alguém se narrar em paz com o presente, quando seu passado prometia um futuro grandioso (e irrealizado). Seria então possível amar e narrar o passado sem o desejo de revivê-lo, mesmo quando ele pode ser um refúgio para o desapontamento do presente? Essas são perguntas que nos permitem ingressar imaginativamente na história de Norma - uma mulher engenhosa que, em princípio, já não parece ser o furacão humano promissor que era no passado.

Uma heroína em busca de liberdade pessoal

O título dado à história de Norma na ocasião da publicação de “Brazilian Women Speak”, em 1988, é uma evidência do mecanismo narrativo central engajado por essa mulher naquela primeira representação de si, construída no início dos anos 1980. “Eu não sou só uma supermulher, eu sou um super-homem” [“I’m Not Just a Superwoman, I’m a Superman”], Norma anuncia, projetando no leitor a expectativa - não frustrada - por uma história de pendor heroico com a qual podemos facilmente nos identificar. “No processo de nos tornarmos seres humanos completos, integrados, somos todos Heróis enfrentando guardiões, monstros e ajudantes internos”, escreve Christopher Vogler (2015, p. 68) em seu estudo sobre a escrita ficcional.

Fora do âmbito estrito da ficção, o relato de Norma inaugura a segunda parte do livro “Brazilian Women Speak”, “Retrato de família” [“Family Portrait”], na qual ele é sucedido pelos testemunhos de sua irmã caçula, Glícia, e de sua mãe, a já mencionada Dorotéia. Juntos, os três relatos formam uma constelação que evidencia de maneira cristalina os conflitos entre personalidades, pontos de vista, gerações, comportamentos e decisões mesmo dentro de uma unidade social relativamente pequena como é o núcleo familiar. É uma espécie de história de família, sem deixar de ser uma história em família (Evans, 2018), em razão da disposição das três em construí-la. Porém - e embora a relação entre Norma e seus familiares seja fundante para a forma como ela se constrói - deixemos em segundo plano, ao menos por enquanto, as outras duas personagens. As entrevistas recentes com elas foram tão particulares (por suas quebras, por suas relativas impossibilidades de se narrar) que merecerão, no futuro, uma abordagem separada.

Ao apresentar a história de Norma em “Brazilian Women Speak”, Daphne a descreve da seguinte maneira:

Norma, 35 anos, mora em uma pequena casa de três quartos no Recife com os três filhos, de quatro anos, três anos, e um mês, e com o marido, um homem de 32 anos que recentemente conseguiu um emprego novamente, como balconista em uma loja de discos. Norma trabalha há anos como secretária executiva e é o principal sustento financeiro de sua família. Na época da entrevista (agosto de 1981), ela ainda estava de licença maternidade e planejava em breve retornar ao seu emprego em uma fábrica fora da cidade, necessitando viajar de ônibus por uma hora e meia na ida e uma hora e meia na volta. Ela teria, de novo, que sair de casa às 6h e voltar às 19h. Norma diz: “Toda mulher brasileira que trabalha e tem filhos merece uma estátua - ela é uma heroína!” (Patai, 1988, p. 29).

À distância, a janela textual escrita por Daphne surpreende por aquilo que oculta. Em primeiro lugar, trata-se de um texto relativamente sóbrio, que não comunica a admiração que a entrevistadora nutria por sua entrevistada, responsável pelo capítulo que Daphne considerava “um dos mais iluminadores e inteligentes do livro”, como escreveu numa carta à própria Norma (14 maio 1990). Em segundo lugar, é um texto encerrado por uma citação na qual Norma parece diluir sua enorme e singular capacidade de ação em uma experiência feminina comum, assinalada pela combinação entre múltiplas tarefas: toda e qualquer mulher que tivesse filhos e trabalhasse seria uma heroína. Exceção de modéstia numa escultura mítica, a frase chama atenção porque não é desta forma - apelando à sua relação com uma coletividade com a qual ela se confundiria - que a narradora se constrói no grosso da narrativa: de sua história, emerge sobretudo um indivíduo de destaque, que se sobreleva dos demais porque sabe, consegue e insiste em se distinguir de suas circunstâncias sociais e históricas.

No presente dessa primeira entrevista, gravada em 1981, Norma é a secretária de um dos diretores de uma empresa norte-americana instalada em Pernambuco. É uma das poucas mulheres em um corpo funcional de cerca de 800 homens. É a partir dessa posição incomum que ela constrói toda uma primeira seção de sua história de vida. Trata-se de uma seção que não é autobiográfica - que se integra ao livro com o propósito de comunicar ao leitor não brasileiro as situações da vida da mulher no país.

Norma não fala sobre si mesma nesta seção. Mas o que conta é, de qualquer forma, altamente revelador de alguns de seus traços pessoais: sua capacidade de observação, o interesse agudo pelo que acontece à sua volta, a análise das realidades - em sua visão duras e retrógradas - que a circundam. O leitor de “Brazilian Women Speak”, antes mesmo de conhecer dados biográficos de Norma, conhece uma mulher estarrecida diante das pequenas, e estarrecedoras, tragédias da vida cotidiana do povo pobre do Nordeste brasileiro: uma família que praticamente não tem o que comer, mas que possui uma enorme televisão; uma menina de dez anos de idade com paralisia infantil, cuja mãe contentava-se em crer tratar-se da progressão de uma frieira; um homem tuberculoso cuja casa sofre inundações frequentes, que ele prevê calculando as fases da lua; e outras situações de drama cotidiano e de profunda miséria humana.

Narrar, descrever, analisar, julgar, propor, dissertar, discordar, argumentar: gestos que frequentemente se misturam nesta e em outras partes do texto oral de Norma, agora em sua forma escrita. Um texto que não é fábula, mas trama, para utilizarmos os termos de Tzvetan Todorov (2006). Ou que não é apenas fato, mas filosofia, no dizer de Alessandro Portelli (1996, p. 60): “não só a filosofia vai implícita nos fatos, mas a motivação para narrar consiste precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos: recordar e contar já é interpretar”. É assim que Norma continua se contando a partir da segunda seção de sua história oral. Revela o salário (alto) que ganha para em seguida dissertar sobre custo de vida, sobre inflação, sobre direitos trabalhistas. Informa estar casada para subsequentemente imaginar outros futuros possíveis, tivessem sido diferentes as escolhas do passado. E é quando se expressa como mãe, esposa, filha, irmã - como uma mulher que sofre as injunções de seu enquadramento familiar - que seu discurso se torna predominantemente autobiográfico.

Norma está, em sua primeira entrevista, casada com José Carlos. Vive com ele e os três filhos do casal em uma casa simples, velha e deteriorada, herdada de uma tia. Possui uma “empregada”, o que não é necessariamente um luxo fora do lugar: a ajudante é mantida, com enorme dificuldade, porque acumula a tarefa de babá, liberando Norma para trabalhar fora todos os dias. Norma é uma “mãe que trabalha” dentro de uma família na qual a privação financeira está na ordem do dia. O marido, antes relativamente bem colocado em uma empresa petrolífera, agora pula de emprego em emprego. Com o parco salário, preocupa-se principalmente em “pagar as próprias contas. Por exemplo, comprar cigarro, desodorante, coisa assim. Ou se embebedar no bar, com o próprio dinheiro, sabe?” (Patai, 1988, p. 135). Para Norma, trata-se de necessidade e de orgulho da parte dele, com quem parece se arrepender de ter se casado: é como se ela tivesse se acomodado rápido demais: “Se eu tivesse que fazer isso de novo, eu acho que eu seria um pouco mais ambiciosa, pensaria duas vezes antes de me casar. A gente se casou por acidente” (Patai, 1988, p. 135), ela diz, antes de - cuidadosamente - revelar que se casou com o marido quando ele estava na prisão (onde passou um ano, por ter sido pego fumando maconha) apenas para que o primeiro filho do casal, que Norma à época esperava, “nascesse com um pai legítimo” (Patai, 1988, p. 136). Preocupação demasiada com o estigma em um país onde o não reconhecimento da paternidade e a monoparentalidade são, como estudou Ana Liési Thurler (2009), tão disseminados? Talvez - e Neide percebe isso rapidamente. “José Carlos foi o primeiro homem por quem me apaixonei de verdade, mas agora eu não sei o que sinto” (Patai, 1988, p. 139), ela confessa, frisando o caráter irresponsável, instável e suscetível (inclusive às drogas) do marido.

Quando fala sobre sua relação com a família de origem, a história de Norma ganha mais musculatura. Mas por ora, o que é necessário é perceber que sua história oral contém toda uma litania de conflitos entre ela e seus familiares - sobretudo sua mãe, a impiedosa, repressora e controladora Dorotéia. Norma, agora adulta, atribui a esta a responsabilidade por ter sido criança até muito tarde, até tarde demais: “Meu presente de aniversário de quinze anos, quando todas as outras meninas iam pra festas, começavam a namorar - o presente que pedi foi uma boneca que andasse” (Patai, 1988, p. 139). Ela chegou à universidade sem nada saber sobre sexo, e se ressente: aos 17 anos, ainda acreditava que bebês eram trazidos por cegonhas. Perfilando peripécias como essas, que tempera ora com fúria ora com bom humor, Norma constrói uma história pessoal que é sobretudo uma história de repressão - tal qual a história do país sob a ditadura militar, com a qual por vezes propõe paralelos. Importa mais a Norma, porém, a dimensão íntima: o relato das múltiplas repercussões das proibições maternas, que em sua memória começam tão cedo quanto os dois anos de idade, quando apanhava de Dorotéia quando era pega brincando com meninos na vizinhança. Importam a Norma os efeitos, sequer inteiramente percebidos, do fato de que desde a mais tenra idade até a adolescência tenha sido ensinada a temer os homens, que seriam irremediavelmente conduzidos pela maldade, pela imoralidade. Não à toa esse traço acompanha também uma história de profundo incômodo com o ambiente familiar e com o casamento que presenciava, o do pai e da mãe, que “não se davam bem, viviam brigando e discordando. Não lembro de ter visto os dois se abraçando ou se beijando. Nunca” (Patai, 1988, p. 140).

Norma escapa ao controle e à repressão dos pais graças a Mauro, um primeiro namorado que (veremos mais a respeito, adiante) lhe oferece um livro sobre educação sexual, e que espera respeitosamente seu consentimento para a primeira relação entre os dois. “Ele era muito respeitoso e acho que isso me influenciou muito”, diz Norma (Patai, 1988, p. 142), acrescentando que, depois daquela relação sexual, nada mudou no namorado em relação ao respeito que tinha por ela; ao contrário, ele desejava ardorosamente se casar. “Eu não me casei com ele por um motivo”, ela diz: “Ele era muito ciumento. [...] ele falava assim pra mim: ‘quando a gente casar você fica em casa, você nunca vai ter que trabalhar porque eu vou ganhar bem’ [...] coisas que me chocavam” (Patai, 1988, p. 142). Assim, o rapaz que proporcionou a Norma a própria descoberta sexual - opondo-se às proibições da mãe, às quais ela buscara resistir - revelou-se como um novo sujeito controlador e possessivo e, por conseguinte, como a nova frente para sua resistência, na vida, e para a persistência de sua autoconstrução como uma mulher em busca de liberdade, na narrativa. Norma e Mauro ficaram juntos por quatro anos - em sua lembrança, ele crivou-se como alguém que, ao mesmo tempo, era o duplo e o oposto da mãe: “Quando eu conheci um homem que não era um cachorro, que não tentou me atingir com ideias sórdidas, aí ficou claro que existiriam outros homens como ele, né? Uma vez que a coisa básica que minha mãe falava foi colocada em questão, tudo podia ser” (Patai, 1988, p. 143).

Depois de Mauro, Norma continua a perseguir outras formas de liberdade. Envolve-se com Bill, um homem norte-americano que lhe apresentou o “prazer verdadeiro”, que, experiente, “sabia do que uma mulher precisava, num nível empírico” (Patai, 1988, p. 143). Mas isso acontece quando o governo militar toma o poder e os funcionários da empresa multinacional em que Bill trabalhava são, segundo Norma intui, convocados a voltar aos Estados Unidos. Norma afirma que queria ir, mas que não podia: “Foi durante aquela fase de antiamericanismo na universidade. Todo mundo era contra os americanos e eu me sentia uma traidora do meu país. Aí eu não fui. Ideologicamente, eu não podia fazer isso” (Patai, 1988, p. 143), ela diz, como que capitulando a liberdade individual a outra pressão coletiva (Fares, 2011): não a dos pais, mas a de uma atmosfera coletiva, de um comportamento de manada, que leva Norma a descartar uma atitude racional - a de perseguir um desejo seu - à luz da expectativa de amigos e conhecidos alegadamente politizados.

Permanecer em seu ambiente, a propósito, continuou a ter custos: nem mesmo jogar vôlei com as amigas ou participar de um grupo de teatro eram ações toleradas, se entrassem pelo início da noite. “Por muito tempo minha mãe me chamava de puta, na frente dos vizinhos” (Patai, 1988, p. 144), ela diz, em sua entrevista em “Brazilian Women Speak”, experiência dolorosa e marcante, lembrada nos anos 2010: “Aquela palavra bonita que são 4 letras e começa com P - eu fui chamada muitas vezes!” (Norma, Entrevista, 2014). Para fugir aos insultos, Norma desenvolveu inclusive um repertório de táticas que incluía alegar que havia acordado cedo para não perder a missa quando a mãe a flagrava de madrugada, quando estava voltando de uma festa ou de um encontro. E Norma ia à missa.

A primeira ruptura com a mãe soa, por outro lado, como uma reação com intensidade proporcional à repressão sofrida: Norma saiu de casa com a roupa do corpo e decidida a não retornar, nem mesmo diante da chantagem materna, frequentemente somatizada: “Minha mãe chorou, falou que era o fim do mundo, desmaiou. Mas mesmo antes [...] quando eu comecei a dar mais problema, minha mãe tinha ataques de nervos; desmaiava, chorava, ficava sentada na cama tremendo” (Patai, 1988, p. 145). Norma resiste por um ano vivendo sozinha em condições precárias: alimenta-se no refeitório da empresa em que trabalha, veste-se com roupas doadas pelas amigas, almoça e janta aos finais de semana com economias ou com o que conhecidos trazem. Um ano depois, sua mãe vai buscá-la: “Ela falou que aceitava meu jeito de ser e que tinha ouvido de outras pessoas que eu tinha me comportado muito bem, que não iam homens no meu apartamento” (Patai, 1988, p. 146). Passada a provação, Norma recebe a recompensa do retorno ao lar familiar, com a promessa da mãe de que aceitaria os hábitos da filha.

A história contada por Norma em “Brazilian Women Speak” persiste, prenhe de episódios assim. É irresistível concebê-la, em sua totalidade, como uma grande aventura heroica, na qual a narradora-personagem constrói-se como alguém que resiste a dificuldades, pressões, humilhações; que ignora, dribla ou reconstitui suas circunstâncias - tudo em nome da persecução de seu caminho de individuação. Sugestivamente, a única pessoa que a auxilia (e tão somente com o conselho para que continuasse buscando sua felicidade, por estar nutrida de boas intenções) é um padre. Norma constrói-se como uma heroína: tal qual o herói concebido pelo mitólogo Joseph Campbell (2003), afasta-se (simbolicamente) do mundo comum para realizar feitos extraordinários. Aqui, Norma é a criadora de uma história - como vivência e como narrativa - com forte conteúdo humano, emocional, que comunica de maneira extraordinariamente tocante as interdições apresentadas a uma mulher na condução de sua vida cotidiana, interdições que ela resolve de forma inteligente, engenhosa, afetuosa, apenas porque deseja não mais do que... ser ela mesma!

Norma não apenas amargura suas circunstâncias; ela as excele, às vezes mitigando-as, às tolerando-as, às vezes produzindo aprendizado em si mesma e nos outros: “Tudo que você precisa pra ficar sensível às coisas é ver o sofrimento da maioria” (Patai, 1988, p. 144), Norma diz, no inventário abreviado do que extraiu de positivo da dureza da vida. Aprendizado que não se restringiu a ela. A história de Norma - vivida por ela, testemunhada por amigas, contada de uma para outra - cumpriu ainda algo próximo do que Campbell considera uma função pedagógica do mito: a de fornecer ensinamentos que os outros podem utilizar em suas próprias existências, de ensinar os outros a viver sob circunstâncias difíceis - e triunfar.

Um futuro em aberto

Outra mulher entrevistada no processo de pesquisa para a revisitação de “Brazilian Women Speak” foi Moema, hoje uma mulher de cerca de 65 anos, aparentando menos. É jovial e comunicativa. Aposentou-se depois de se realizar profissionalmente como assessora política. Adora cinema, livros e viagens. Moema, na juventude, foi uma amiga próxima de Norma. Foi assim que ela e Daphne Patai se aproximaram, nos anos 1980, para a entrevista inicial (mencionada, mas não incluída na íntegra em “Brazilian Women Speak”). Agora, ao relembrar essa amizade para Ricardo, Moema não economiza em elogios:

Ricardo - Da outra vez [em uma conversa informal], você me falou da importância que a Norma teve nesse...

Moema [interrompendo] - Pois é. Norma é um referencial de mulher para mim. Ela era - falava inglês, era secretária executiva, ganhava bem... Era uma mulher super bem-informada e eu achava que era um caminho, ali: ganhar dinheiro, ser secretária... E depois [...] eu fui ser secretária, trabalhei oito anos como secretária executiva [...], também fazia faculdade. [...] A Norma era um referencial também, assim como a Rosangela [uma amiga comum de ambas], foi um referencial de mulher, porque eram mulheres fortes, mulheres bonitas, mulheres independentes, mulheres que - uma estava fazendo Sociologia, outra estava - eu não me lembro qual a formação da Norma agora, formação de faculdade, eu não me lembro. Mas ela ganhava super bem, era uma pessoa que tinha um padrão de vida muito alto, nesse sentido. Então foram duas referências de mulheres independentes (Moema, Entrevista, 2014).

Uma admiração igualmente intensa vinha da parte de Daphne. Ambas já se conheciam antes da entrevista de 1981. Tiveram uma forte amizade durante um período curto de tempo. Foi quando Daphne morou por quase um ano em Recife, entre 1968 e 1969, junto ao seu namorado de então, o brasileiro Joel. Foram apresentadas por uma terceira pessoa ligada ao Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, em cuja escola de inglês Daphne trabalhou como professora. Após se conhecer, tornaram-se imediatamente amigas e confidentes, que discutiam - em nível teórico e empírico - a posição, o papel e as possibilidades da mulher diante da sociedade patriarcal do Nordeste brasileiro.

Norma, àquela altura, já falava inglês, idioma que representava uma espécie de passaporte para uma vida melhor, de abertura para uma outra realidade. A chegada de Daphne a Recife, no mesmo período em que namorava um americano, o já mencionado Bill, contribuía para construir para Norma um espaço de suspensão no qual interações desprendidas e trocas culturais tomavam o lugar do ambiente conservador, careta e preconceituoso da vida familiar. Depois do retorno de Daphne aos Estados Unidos, em março de 1969, as duas trocaram algumas cartas - que rarearam com o passar do tempo, mas que foram suficientes para que, entre 1969 e 1981, o vínculo entre ambas se mantivesse.

As cartas eram escritas ora em português, ora em inglês: uma insistia que a outra se comunicasse no idioma oposto, a fim de que pudessem aperfeiçoar seu domínio sobre ele. Em sua correspondência, Norma comunica os feitos de sua vida: suas boas notas em um teste de inglês conduzido pela Fundação Fulbright (21 maio 1969); seu plano de mudar-se para São Paulo com um novo namorado (15 mar. 1970); a efetiva mudança para o Rio de Janeiro com outro parceiro, José Carlos (30 abr. 1973); a vida de mãe, com um filho de dois anos e esperando uma segunda criança (06 out. 1978). A comunicação é tão franca quanto possível, mas mediada tanto pelo ambiente político quanto pelo freio da moralidade. “Não dá para escrever muito sobre esse assunto. Entende?”, escreve Norma em 04 de novembro de 1974, comentando a realização de eleições indiretas para governadores e presidentes no Brasil ditatorial. Sobre um aborto realizado após uma gravidez imprevista, confundida por um médico com problemas gastrointestinais, Norma coloca, de maneira algo cifrada: “Agora tudo já passou, finalmente venci todos os problemas monetários, éticos, etc., etc. Hoje faz 15 dias que fui operada” (27 jul. 1973, grifo nosso).

Ela também comunica pequenas tristezas, como a situação em que saiu de casa sem levar nada consigo, depois de uma crise familiar (23 set. 1969; 06 out. 1969). Vez em quando, adotava um tom medidativo: “Enfim, Daphne, fiz e estou pretendendo fazer um monte de coisas. Não sei se vou ser feliz, pelo menos, mais tarde, daqui a alguns anos, eu posso dizer: TENTEI” (23 set. 1969). Na mesma linha, escreveu, quase uma década depois: “Quanto à minha própria ânsia de liberdade, que naquela época em que nos conhecemos era somente a de vir e vir, evidentemente que a consegui. [...] Quanto à liberdade de agir, de se sentir bem-informada, de falar, de dizer o que não gosto no whole establishment [sic] e coisas assim, você poderá deduzir que vivendo num regime como o nosso é realmente impossível” (14 abr. 1978). São temas e eventos que precedem a entrevista que vimos, mas que demonstram o enraizamento de tópicos na autoconstrução de Norma: a incessante busca por independência, a relação difícil com a família, a persistente sensação de inadequação.

Ao se reencontrarem em 1981, quando Norma estava em licença maternidade após o nascimento do terceiro filho, ela e Daphne tiveram ocasião de se atualizar mutuamente sobre suas vidas, e de registrar a história de Norma de maneira sistemática - graças ao gravador cassete Panasonic. Além do que já foi relatado na seção anterior, Norma discorre nessa entrevista sobre suas experiências vivendo no Rio de Janeiro, invariavelmente lutando contra as circunstâncias: vai para a cidade sozinha, sem dinheiro e sem conhecidos, e tem a sorte de encontrar o anúncio de uma pensão no jornal que leu durante a viagem de ônibus; convive com uma roommate paranoica e controladora, que precisa tolerar por certo tempo; sofre com a solidão até finalmente encontrar um círculo de amigos com gostos a fim; depois, casada com José Carlos, precisa lidar com a abrupta e inesperada rejeição dele ao segundo filho do casal, após o nascimento; após um período em que detinha excelente colocação profissional no Rio de Janeiro (à qual Moema se refere), amarga o desemprego, bem como o do marido, e é forçada a retornar ao Recife; volta a viver em sua cidade natal, numa casa velha, com muitos problemas estruturais, na qual só pode morar porque a herdou de uma tia; passa a criar os filhos praticamente sozinha, sem a ajuda do marido, que em nada se envolve com a saúde, a alimentação ou a educação das crianças... e assim por diante. Norma se enraivece: “Eu estou exausta, sugada [...] A mãe tem que se matar, deixar o sono pra lá, tudo” (Patai, 1988, p. 151). Mas o eu que constrói em sua narrativa é capaz de enfrentar, um após o outro, esses desafios.

Além disso, esses eram episódios de uma história em aberto - não o prelúdio de um destino inevitável. A história oral narrada por Norma a Daphne continha aberturas, frestas, possibilidades de futuro que a mulher expedita construída na narrativa parecia conseguir, com sucesso, tocar. Alguns dos problemas eram verbalizados, já, acompanhados por possíveis soluções. No tocante ao casamento, por exemplo, Norma cogitava a separação - tanto em função da rotina na qual a relação havia entrado (o que incluiu o decréscimo de interesse sexual) quanto da indisponibilidade de José Carlos de cooperar com as tarefas domésticas e de criação dos filhos, área na qual Norma o qualificava abertamente como negligente e desinteressado. Ela não deixava de temer o futuro, mas era capaz de imaginá-lo sob outra luz: “Às vezes eu tenho medo de [...] projetar o futuro. Não consigo imaginar conhecer alguém e ter um relacionamento realmente sólido - só casual, não sólido - e vou chegar aos sessenta anos, meus filhos vão todos se casar e eu vou ficar sozinha” (Patai, 1988, p. 149).

Do ponto de vista da realização pessoal e profissional de Norma, a entrevista foi um momento de forte reflexão, que comportava não somente a imaginação do futuro (Passerini, 2003), mas a gana de redefinir o próprio trajeto: “Se eu tivesse que recomeçar minha vida [...] eu gostaria de não ter começado a trabalhar” (Patai, 1988, p. 150), diz Norma, revelando o desejo de ter estudado mais, no passado; de poder estudar, no presente; de voltar a estudar, no futuro - para depois ensinar: “O que realmente importa para mim é passar conhecimento […]. A transmissão de conhecimento é o que conta, e o contato com os mais jovens” (Patai, 1988, p. 150).

No livro publicado sete anos depois da entrevista gravada, Daphne sumarizou em um parágrafo, ao fim do capítulo, as mudanças já ocorridas na vida de Norma:

Norma voltou ao trabalho ao final da licença maternidade. Assim que seus três meses de “estabilidade no emprego” [obrigatória] terminaram, ela foi demitida. Em um momento de profunda recessão e aumento do desemprego, ela teve a sorte de encontrar outro emprego - com salários muito mais baixos. No ano seguinte, separada do marido, Norma teve que alugar a casa deixada pela tia e se mudar para um pequeno apartamento, ainda próximo à casa da mãe, com os três filhos e uma empregada. Em agosto de 1983, quando a vi novamente, cerca de 10 milhões de brasileiros estavam desempregados. O salário de Norma naquela época era de cerca de US$ 250 [dólares] por mês (Patai, 1988, p. 152).

Resta, agora, indagar o que teria ocorrido na vida de Norma depois disso, e como ela consubstancializaria narrativamente sua experiência depois da fixação de uma história oral prenhe de passado e de futuro, impressa em “Brazilian Women Speak”.

Sonho e realidade

Em meados de 2014, Norma está no estado americano do Arizona. Vive em Mesa, uma cidade de porte médio, com cerca de 500.000 habitantes, com origem mórmon e sem grandes atrativos turísticos, profissionais, intelectuais ou culturais. Seria difícil adivinhar o que levou Norma àquela cidade, mas não aos Estados Unidos.

Viver no país não era um desejo recente. Em 1969, ela comunicara a Daphne em correspondência “duas chances utópicas de ir aos Estados Unidos” (31 mar. 1969), que envolviam candidaturas a bolsa de estudos para as universidades de Ohio, Illinois e Georgia State University (três, portanto, em vez de duas). Bem depois, em 1984, ela indagara a Daphne sobre a possibilidade de sustentar-se no país, com dois filhos, trabalhando como secretária (23 fev. 1984); e, passados dez meses, indicava a intenção de imigrar somente com o esposo de então, ingressando no país com visto de turista para depois encontrar condições de ficar definitivamente (21 dez. 1984).

Sua versão pessoal do “sonho americano”, remodelada continuamente, atravessou décadas e tomou forma, enfim, em 2001. Não foi rasgado pelo endurecimento da política imigratória após o 11 de setembro daquele ano (Winders, 2007). Tampouco foi matizado pelos alertas culturais dados por um filme de enorme sucesso como “Beleza americana”, lançado dois anos antes, que implodia o chamado “American way of life” a partir de dentro (Silva, 2015). Na realidade, há muito tempo Norma sabia manejar a associação mutualística com os Estados Unidos (ou com a imagem que tinha do país): ao passo em que as informações sobre o desejo de viajar eram fornecidas a Daphne em correspondência pessoal, na entrevista formal a ser publicada nos anos 1980 ela afirmava que não havia se mudado para os Estados Unidos porque não queria, à luz do antiamericanismo de sua geração, ser vista como uma “traidora” de sua pátria.

Livre dessas pressões de grupo (tenham elas sido ou não verdadeiramente eficazes), Norma realizou com mais de 50 anos de idade o sonho de juventude. Protagonizou sua grande aventura, sua transformação decisiva, o evento que assinalou uma mudança aguda em sua trajetória. Desde a adolescência, o contato com a língua inglesa foi a forma recorrente de construir pontes. Solitária, introspectiva e internalizada em sua vida mental, ela encontrava no inglês a porta de saída contrária aos planos da mãe, aos caminhos percorridos pelas irmãs, aos horizontes habituais de seus conterrâneos. Naquela época, sentia-se um “ET”, em suas palavras; e o domínio da língua estrangeira de certa forma representava um portal que a levaria em algum momento à vida no exterior, espécie de recompensa depois das frustrações e provações vividas na terra natal.

Entre a dificuldade em encontrar amigos com gostos intelectuais e culturais semelhantes (nos anos 1960) e a recessão financeira (nos anos 1980 e 1990), Norma acumulava queixas que fortaleciam seu desejo de construir uma vida nos Estados Unidos. Sua história antes de 2001 é também a história do “sonho” de imigrar - a história de quem nutriu esperanças colossais em relação à mudança de país, de quem alimentou a expectativa de que ela representasse uma modificação positiva, e definitiva, em sua vida. A dimensão do “sonho”, aliás, é fundamental para a compreensão plena dos processos migratórios e da vida no país de destino (Dadalto, 2013). Em nosso caso, o objetivo de Norma não era meramente de obter uma vida financeiramente mais confortável em um país com melhores recursos econômicos - não era acompanhado, aliás, por algum tipo de projeto que envolvesse seu retorno ao Brasil após acumular capital e encontrar-se em situação mais favorável. Norma queria imigrar para experimentar uma vida culturalmente mais rica.

Saber que Norma cumpria seu “sonho americano” provocou, em Daphne e Ricardo, seus dois interlocutores do passado e do presente, fortes expectativas. Daphne sabia sobre sua mudança, mas havia perdido contato com Norma há mais de uma década. Junto com Ricardo, os dois eram levados a pressupor que aquela mulher energética, disposta e engenhosa teria, enfim, encontrado e cultivado as condições desejadas para seu desenvolvimento pessoal e profissional, condições mais adequadas à sua sede por saber e cultura, que lhe possibilitassem alçar altos voos. Essa suposição necessitaria de um novo conjunto de entrevistas de história oral para ser posta à prova.

Uma busca na lista telefônica do estado do Arizona foi suficiente para localizar Norma. Primeiro, ela atendeu calorosamente a irmã de Daphne, também residente no estado, que agiu como intermediária e colheu seu e-mail. Depois, conversou longamente com Daphne ao telefone e buscou reestabelecer a correspondência por via eletrônica. Finalmente, trocou mensagens com Ricardo por e-mail e pelo Facebook. Não apenas se colocou rapidamente à disposição, mas se investiu daquilo que Ana Maria Mauad (2018, p. 29) chamou de atitude historiadora: aquela que “nos desafia a nos colocarmos diante do tempo [...] que nos insere no fluxo temporal como agentes comprometidos com uma história”.

Norma (2014) o fez posicionando-se simultaneamente como sujeito observado e sujeito observador. “Achei fantástica a ideia de um novo livro, quase que um acompanhamento da vida de algumas mulheres brasileiras, escolhidas aleatoriamente, mas que tanto nos permitirá relembrar e constatar as mudanças havidas em três décadas”, ela escreveu. Aqui, o pronome pessoal oblíquo, em grifo nosso, faz diferença. De pronto, Norma afirmou-se não apenas como alguém que se narraria para a indagação alheia - mas como alguém que se engajaria numa mesma investigação teórica sobre a passagem do tempo e seus efeitos1.

Exercendo sua autoridade (Frisch, 1990), Norma adiantou-se em estabelecer os horários e o meio pelo qual as novas conversas, agora com Ricardo, se dariam. Distávamos em seis anos da pandemia de Covid-19, que seria enormemente transformadora para a prática de história oral e aceleraria experiências e reflexões acerca das implicações da não concomitância física para as entrevistas (Santhiago; Magalhães, 2020). Mas para Norma, estabelecer conexões humanas significativas por meio da internet - especificamente pelo Skype - já era comum. O software não apenas era o meio que lhe permitia manter contato com familiares e amigos brasileiros: ele presentificava, como veremos, tudo aquilo que não existia na realidade cotidiana de Norma.

Sua desenvoltura tecnológica tranquilizou qualquer receio residual em relação à eficácia da entrevista à distância. Mesmo assim - e apesar da ansiedade de Norma em se narrar - foram feitas três entrevistas em períodos bastante espaçados: 2014, 2015 e início de 2017. Nelas, Norma contava-se livre, despudoradamente. Logo depois da primeira conversa, aliás, escreveu para Ricardo, em 2014: “Refletindo sobre nossa entrevista hoje, achei que entrei em assuntos que talvez tenham deixado você desconfortável. Se você ficou, peço-lhe sinceras desculpas, não foi essa a intenção. Converso sobre qualquer assunto sem arestas, sem pré-conceitos, entende?”.

Nessas três conversas, percorremos o enredo linear de uma história de vida. Norma recontou suas origens familiares e seu percurso de desenvolvimento pessoal. Falou sobre os conflitos com a mãe, sobre suas relações afetivas, sua busca por liberdade individual - remontando, em linhas gerais, aos padrões narrativos apresentados anteriormente neste artigo.

Norma também atualizou sua história. Mencionou a morte trágica, por aneurisma cerebral instantâneo, da filha mais velha. Falou sobre os outros dois filhos e sobre seu neto. Contou sobre o uso excessivo de maconha e LSD e a luta para superar a letargia que o vício lhe legou. Computou sem melindre o número total de abortos sofridos - quatro, sendo dois naturais -, ao mesmo tempo dizendo-se “sempre em metamorfose”. “A princípio você tem esse direito [de abortar] e deve exercê-lo. Ao mesmo tempo, é tão lindo, tão maravilhoso pensar que você pode conceber, que você tem todo um aparato perfeito para a concepção. Esse milagre da vida me deixa assim, abestalhada, sabe?”. Falou sobre sua admiração pela “beleza” do sexo tântrico: “Você vai, pega daqui, pega de lá, mas não chega ao final. Você se guarda, você aguarda aquela explosão no momento certo!” (Norma, Entrevista, 2015).

Mas Norma falou principalmente sobre o presente. Não apenas porque, perseguindo uma narração cronológica, ela chegou naturalmente até ele, detendo-se nos detalhes de seu cotidiano. Mas também porque o presente se interpôs recorrentemente na narração, independente do tema ou da temporalidade. Falando sobre seus primeiros casamentos, foi levada ao atual: “Eu sou do ciclo dos dez. Dez [anos com cada marido]. Este aqui está demorando demais” (Norma, Entrevista, 2015). Outras interposições poderiam ser utilizadas como exemplo, mas esta é particularmente significativa: a monotonia da vida nos Estados Unidos, paralelizada à monotonia da vida conjugal, é o grande tema e a grande surpresa oferecida por Norma em sua entrevista dos anos 2010. Esse traço temático se expressa também no plano da forma: ao passo em que suas opiniões sobre a sociedade, as culturas, os costumes, são fervorosas como nas histórias anteriores, os relatos sobre sua situação contemporânea são glaciais. À primeira vista, parecem revelar infelicidade e frustração e, por serem oferecidos de maneira tão racionalizada, tão pouco apaixonada, ter a temperatura da acomodação.

Uma decisão cômoda

A acomodação é um processo que se constitui como parte integrante do desenvolvimento humano. Ela designa a busca de um ponto de equilíbrio entre um ser humano ativo e seus contextos significativos; os gestos de estabilização do sujeito frente ao movimento constante da vida. Na psicologia de Jean Piaget (2015), acomodação é, junto com a assimilação, um mecanismo de alteração da estrutura mental de uma pessoa face a novos estímulos e sensações, a fim de alcançar um novo estágio de equilíbrio. Já no discurso popular, acomodação é um termo valorativo, mais que descritivo. É “acomodado” quem, mesmo infeliz em sua situação, segue conformista e resignado, queixando-se ou esperando a ação milagrosa de uma força maior. Acomodação é juízo de valor - ou comportamento a ser evitado. “Não seja acomodado!”, “Não se acomode jamais”, “Saia da acomodação”, bradam os coachs e gurus da positividade tóxica contemporânea (Goodman, 2022).

Diante da história de Norma - e do cruzamento dela com nossas expectativas, como pesquisadores -, podemos ser tentados a percorrer duas trilhas consecutivas: 1. Primeiro, a de dissociar uma “antiga” Norma (vívida, proativa, disposta) de uma “nova” Norma (fadigada, preguiçosa, condescendente); 2. Segundo, a de assumir essa “nova” Norma como o espelho de um indivíduo acomodado, em vez de um indivíduo forjado em um processo compreensível de acomodação.

Norma pode realmente alimentar uma opinião menos simpática. Sua mudança para os Estados Unidos, e para uma vida de comodismo, está ligada a uma relação conjugal baseada não no amor ou no fascínio, mas no aproveitamento racional de uma oportunidade. Depois de rememorar com cores saturadas seus dois primeiros casamentos - aquele que gerou seus três filhos e o seguinte, que terminou com a morte precoce do marido, por cirrose (“se não, estaria até hoje junto, porque eu amava profundamente”) -, Norma usa tons pastéis para falar sobre o atual relacionamento.

Primeiro, ela menciona o marido casualmente, como produto da fortuna, e como alguém que cumpre uma função (como assinalam nossos grifos a seguir), sendo substituível: “Eu nem estava pensando mais em casar. [...] Agora, Ricardo, de todo coração: eu acho que nós precisamos de companheiros. A gente precisa de companhia [...]. Se por acaso acontecesse alguma coisa com meu atual marido, eu casaria de novo se aparecesse uma pessoa” (Norma, Entrevista, 2015).

Depois, ela relata como conheceu o marido, Mike. Foi em 2000, fazendo uma gentileza feita a amiga que tinha conhecido um grupo de turistas na praia de Boa Viagem e iria a uma reunião festiva com eles. Mike, homem americano com pouco mais de 60 anos, era o único do grupo que não falava nem português, nem italiano, nem espanhol. Norma foi convocada para fazer-lhe companhia e não teve uma boa impressão a seu respeito:

A gente começou a conversar, tal. Sentou pra lá, sentou pra cá e... aqui pra nós, eu não fui muito com a cara dele, com o jeito dele ser, tal... Mas aí, depois disso, ela [a amiga] me disse: “Poxa, Norma, você não pode ser” - eu acho que eu tinha 52 anos, eu acho, por aí - “você não pode ser tão exigente com as pessoas. Você tem que entender que é uma cultura diferente, é uma pessoa diferente, mas vale a pena conhecer”. [...] Aí conversou, conversou... (Norma, Entrevista, 2015).

Norma conta ter aceito o convite de Mike para um passeio, na noite seguinte, pelo Recife Antigo. “Ele nem se ofereceu pra me levar até o táxi, nem nada - eu chamei o táxi [sozinha] e fui embora”, diz sobre o fim do encontro. Na noite seguinte, ambos foram a um clube de dança, onde pela primeira vez Norma percebeu no parceiro alguma qualidade: “Ele dança muito bem! Dancei bastante”. Um dia depois, ela o conduziu ao aeroporto, a seu pedido (“É tão chato ficar no aeroporto sem ninguém”, ele teria dito), onde recebeu um convite inesperado (Norma, Entrevista, 2015):

Quando chegou lá ele disse assim: “Eu estive pensando... Você não tem vontade de ir pros Estados Unidos, não?” Aí eu disse assim: “Tenho, sim, tenho muita vontade, mas nunca tive condição financeira de fazer isso”. Ele disse: “Se eu lhe mandar uma passagem, você vem?” Aí eu disse: “Vou, vou sim. Acho que vou. Agora, eu achava que você devia ter me perguntado isso ontem, porque hoje eu já estava aqui com você e a gente já ia junto” [risos]. Aí depois ele me disse [que pensou]: “Essa mulher é louca”. Aí depois eu esclareci pra ele: “Não, não é que eu seja louca. Eu tenho uma intuição muito forte, e eu sei o que eu quero da minha vida, e quando eu tenho as minhas intuições eu sigo as minhas intuições. Então - pronto”. Aí, pronto, ele foi embora, fui pra casa, conversei com a minha mãe a respeito: “Mamãe, o que é que a senhora acha? A senhora acha que se esse cara realmente for uma pessoa séria mesmo, mandar uma passagem, eu vou? Eu tô com muito medo, nunca fui pra um lugar desse, tal”. Ela me disse: “Minha filha, você consultou a sua intuição?”. Eu digo: “Consultei”. “O quê que a intuição disse?” “Eu acho que ele é pessoa que você realmente pode ter confiança”. “Se você vai, você não vai com passagem de ida e volta?”. Eu digo: “É”. “Você vai: não gostou, volta!”. Pronto. Foi assim que eu vim parar aqui. E, por coincidência, eu tinha passaporte, já, e já tinha pedido visto americano, já estava com visto americano. Essas intuições malucas que acontecem comigo... Eu cismei que tinha que vir para os Estados Unidos, sabe? Aí tirei o passaporte e tirei o visto. Quando ele falou: “Você quer vir? Mas vai demorar por causa do visto”. Eu digo: “Não. Eu já tenho passaporte e já tenho visto”. Aí vim. Aí vim e passei um mês na casa dele, né? A gente passeou muito, rodou muito... Aí depois de um mês ele disse: “Agora eu quero voltar pro Brasil, com você, pra conhecer sua família”. Aí eu disse assim: “Mãezinha, ele tem boas intenções, né?” Porque eu, eu, se não ele teria dito: ‘A gente vai ficando por aqui, a gente vai - né?’”. Aí ele disse: “Não, eu quero conhecer sua família, porque eu quero compromisso sério”. Aí eu disse: “Tá bom”. Aí ele vai conhecer minha família, conheceu filho, conheceu tudo - ele foi várias vezes na minha casa, tal. Não ficou na nossa casa, ficou na casa dos parentes dele - nem eu ia convidar, né?, lógico. Aí, depois disso, eu voltei - com a aprovação da família toda, dos filhos, de todo mundo, eu voltei e depois de menos de um ano foi que eu fui casar. Pronto, foi isso. Aí, fui ficando por aqui.

A citação acima pode ser grande para as dimensões de um artigo acadêmico como este. Mas é necessário - e é uma elaboração concisa se levamos em conta tratar-se de um conjunto de eventos que envolveram a reconfiguração do estado civil de Norma, sua ansiada mudança para outro país, a transformação completa de seu cotidiano e de suas redes de relação, as implicações para o seu futuro. Norma interrompe a pergunta que sucede essa descrição.

Ricardo - Aí, com o tempo, então, se não foi paixão à primeira vista, foi se desenvolvendo um...

Norma - Foi se desenvolvendo um rolo, sabe? Um rolo. Se desenvolveu uma certa admiração... Que depois - não fique triste não - que depois ele aos poucos foi quebrando, quebrando, quebrando, quebrando... E que hoje em dia a gente convive. Entende? A gente convive. E eu estou num dilema muito grande, porque eu acho que essa convivência não é boa para mim e está me corroendo. Sabe?

Ao prosseguir, Norma (Entrevista, 2015) fala sobre a dificuldade de encontrar um equilíbrio - uma acomodação - na relação: “Você carrega uma bagagem, a outra pessoa carrega outra bagagem. Né? Mas pra ajustar toda essa coisa - um cede dum lado, o outro cede de cá, o outro cede de lá. Se não tiver isso não adianta ficar junto. E meu amigo [refere-se ao marido] é difícil. Ele não... Ele é radical demais... Ele... Não dá pra, sabe?, pra conviver, não”.

O estado quase letárgico da narração de Norma, ao falar sobre seu marido (que ela reduz à condição de “amigo”) e seu casamento, é especialmente impressionante não apenas pelo contraste em relação ao seu fervilhamento diante de outros temas, mas também em relação ao passado e ao futuro que ela projetou. Casar-se com Mike foi o passaporte para viver nos Estados Unidos; portanto, foi a oportunidade que ela há muito perseguia de desencadear mudanças positivas em sua vida.

Sonho interrompido

Um momento bonito da entrevista de Norma publicada em “Brazilian Women Speak” é sua lembrança a respeito de um homem que conhecia do trabalho: um operário que sustentava não apenas seus oito filhos, mas duas sobrinhas de 17 e 18 anos que haviam acabado de ter filhos e serem subsequentemente abandonadas pelos pais da criança. “Mas quando você fala com esse homem, ele é tão pacífico, tão calmo”, ela diz a Daphne, antes de acrescentar, pasma: “Então, um dia eu disse pra ele: ‘Você nunca sente vontade de fugir? Você não fica louco? Desesperado?” E ele disse: ‘Não’” (Patai, 1988).

O assombro de Norma devia estar ligado à dessemelhança radical entre ela e aquele trabalhador: tudo o que ela queria era fugir. O desejo ardoroso de construir uma vida nos Estados Unidos atravessou décadas e comportava múltiplas fugas: da família repressora, da realidade pobre, da dificuldade de convívio com a mãe. Uma carta enviada a Daphne em 15 de janeiro de 2002 (apenas alguns meses depois da chegada ao novo país) expressa uma reação muito positiva ao seu cotidiano. Da ilha de Lopez Island, no arquipélago das San Juan Islands, ela escreveu: “Estou de volta ao paraíso. Aqui realmente parece mesmo parte de um paraíso”. Relatando os seus três primeiros meses junto com Mike, sobre quem não diz quase nada, ela insistiu na mesma imagem:

A minha vida na casa da mamãe estava muito difícil, [...] [o que] me faz sentir num paraíso. [...] Mike é aposentado e viúvo. A mulher dele morreu há dois anos. Então, ele estava muito só. Eu também tenho estado muito só e carente da atenção masculina e do companheirismo. [...] Não estou vivendo uma paixão, mas um relacionamento maduro baseado em respeito, carinho, e necessariamente sexo. Lógico, né? (Norma, Correspondência, 15 jan. 2002).

Seus planos, então, incluíam a busca por um visto permanente, por trabalho (mesmo que não legal, no começo), por um curso de pós-graduação, e pela oportunidade de enviar ajuda financeira aos filhos no Brasil: “Faço a cidadania e vou fazer o Mestrado, que foi sempre o meu sonho, e vou trabalhar...” Eram muitas expectativas circundando sua mudança, que decaíram como um castelo de cartas: “Mas aí os planos da gente, às vezes, não coincidem com a coisa física”. Crises são elementos integrantes de nosso desenvolvimento pessoal: elas insinuam a transição entre fases da vida, proporcionam amadurecimento (Sheehy, 1991). Ao menos em suposição. Ao descrever seus planos antigos, Norma não disfarça que eles foram frustrados: mesmo que ela quisesse, seria difícil ocultar a realidade da vida.

Mas Norma, fazendo isso, passa a se valer de um expediente narrativo inédito em suas próprias narrações: o apelo às circunstâncias. E talvez resida aí uma tomada de posição diante da vida, mas também a inteligência narrativa de Norma: mesmo que ela construa uma história de sucesso frustrado, é capaz de depositar o fulcro dessa irrealização em lugares externos a si mesma, que passam a funcionar como eixos reguladores da interpretação que faz da própria trajetória. Vejamos:

  1. 1. Primeiro, Norma fala sobre a descoberta de uma doença que não sabia ter, a hepatite C: “Nem todo mundo que fica com a hepatite C fica como eu fiquei [...] Eu passava muitos dias mesmo, muuuuuito sem energia... Não podia arranjar um trabalho, não podia estudar nada, porque eu não tinha energia! Estava muito mole! Aí aqueles planos de desenvolvimento intelectual que eu tinha foram...” (Norma, Entrevista, 2015).
  2. 2. Depois, Norma (Entrevista, 2015).atribui a dureza da vida cotidiana às escolhas do marido: sair de Lopez Island e iniciar uma nova vida em Austin, no Texas (que Norma adora, por ser uma cidade universitária, mas ele acha “cheia de poeira”), depois em League City (de onde eles saem em fuga do Furacão Rita), até chegar em Mesa, no Arizona, cidade, em sua visão, sem atrativos, sem oportunidades de trabalho, sem vida cultural e intelectual (apesar de abrigar dez campi universitários e ficar na região metropolitana de Phoenix, a capital do estado);
  3. 3. Norma, além disso, transfere ao seu novo ambiente cultural parte de seu desencanto. Seu relato sobre a vida americana é quase uma ladainha, repleta de estereótipos ligados à ausência de um certo “calor humano”: “Essa história de ser tudo preestabelecido, tudo bem ordenado e organizado [...] Você tem combinar assim: quinze dias antes. [...] É terrível, terrível”; “A questão do abraço e do beijo. Eu, por natureza, gosto de abraçar [...] Só que o abraço daqui não é igual o nosso abraço. O abraço daqui é aquele das três pancadinhas nas costas, que pra mim é hipocrisia!” (Norma, Entrevista, 2015).

A operária-atriz Marina Euzébio, estrela de “O último carro”, mencionada no início deste artigo, narrou uma relação pacificada com o presente, mesmo diante dos sonhos irrealizados. Se Norma não oculta suas próprias irrealizações, questioná-la sobre seu sentimento não parece ser um caminho interditado:

Ricardo - Como é que fica seu mundo interior, sua existência interior, diante da vida que você leva? Porque você sempre foi uma pessoa que prezou muito a independência, a atividade...

Norma - Pois é, Ricardo... Pois é... Porque é um choque muito grande, né? Porque eu saí de ser uma pessoa independente para ser uma pessoa totalmente dependente. Dependente no sentido econômico - que isso eu não gosto de jeito nenhum - e dependente também no sentido de que eu não dirijo. Então, pra todo canto que eu preciso ir, eu tenho que contar com ele [Mike] dirigindo pra mim, né? E a semana passada eu decidi que iria aprender a dirigir, arranjei a professora e a professora desistiu. Sempre acontece alguma coisa! Já três vezes eu começo, e três vezes acontece alguma coisa e eu... Eu acho que se eu conseguisse realmente aprender a dirigir, aí eu ia me sentir mais independente. Mas, no momento, eu estou me sentindo assim - pergunta muito importante, essa. Eu tô me sentindo outra pessoa. Não sou uma pessoa que eu gostaria de ser, né?

Ricardo - São muitas coisas...

Norma - A vida dá muitas voltas, né, Ricardo? E eu acho que nesse trabalho que você está fazendo, você sendo tão jovem assim, você está vendo que a sua vida, num determinado momento, pode fazer assim, né: “Tãm!” [Gira em] 360 [graus], né? É impressionante. Impressionante mesmo.

Ricardo - Você tinha planos diferentes, né? Você tem essa tranquilidade, de entender que a vida tem seu movimento próprio, ou tem alguma frustração?

Norma - Ricardo, isso é uma coisa que me impressiona. Muito! É que eu sou feliz dentro de mim mesma. Sabe? Pode, assim - por exemplo, pode estar rolando quebra-pau aqui dentro [de casa]. Pode ter acabado de ter uma discussão daquelas pauleiras, se for o caso. Mas dentro de mim eu sou feliz! Porque eu acho que eu tenho... Eu consigo ver além de tudo isso, sabe? Eu consigo ver que - eu vou ter que entrar em religião, apesar de... Você não é religioso, é?

Ricardo - Não.

Norma - Pois é. Apesar de que - eu sinto. Acho que é isso que me deixa meio enlouquecida, porque eu vejo no outro [...] a semelhança de Deus, do divino. Eu acho que nós somos seres divinos, sabe? Você, eu... [...] Então, eu também me considero uma pessoa boa, porque eu consigo - consigo metabolizar as minhas emoções e tirar um bom produto disso! Não sei se isso é porque eu já estou madura - não sei. Mas eu sempre fui assim! Nunca me deixei sentir frustrações... Ah, por exemplo, conversando outro dia com minha mãe, à noite: “Minha filha, eu tinha tantos planos pra você... Você sempre disse que queria ser embaixatriz” - ou embaixadora, né? - “você sempre disse que queria, você se dedicou a estudar tantas línguas... Você poderia estar numa posição econômica tão boa... Você poderia estar tão feliz!” Aí eu disse: “Pera aí! Pera, pera!!! A senhora me perguntou se eu estou feliz? Não me perguntou! Pergunte primeiro: “Está feliz?” Porque aí eu vou lhe dizer: “Eu estou feliz. Eu estou feliz comigo mesma”. Sabe? Eu poderia ser a Condoleezza Rice! Deus me livre, Nossa Senhora - poderia estar fazendo alguma coisa política, né?, que era o que eu queria. Mas... A vida não me levou. Eu acho errado, viu, Ricardo?, quando dizem assim: “você é o produto das suas decisões”. Eu acho que isso não é real, eu acho que isso não é real... Porque as minhas decisões foram umas; a vida me levou pra um outro caminho. As circunstâncias!

Ricardo - Produto das circunstâncias.

Norma - Cir-cuns-tân-cias! Produto das circunstâncias! É isso aí! (Norma, Entrevista, 2017).

Seria esta a mesma pessoa a quem Daphne elogiou, em uma carta de 18 de maio de 1990, como uma mulher “independente, original, cética, inteligentíssima, capaz”? Seria impróprio ou insensível concordar que sua história é uma história, se não de tristeza, de decepção? Ou ela teria se modificado e, depois, reconstruído sua narrativa?

Deixemos essa questão em aberto; voltemos à outra, que a acompanha, e diz respeito ao engenho narrativo de Norma. Narrando sua vida no Brasil, ela constrói-se como uma mulher que sempre nada contra a maré: contra os costumes de seu tempo, contra as interdições culturais de seu local, contra os conselhos e as orientações familiares, contra o mau comportamento dos parceiros, contra as dificuldades financeiras. No primeiro tempo, enfim, ela legitima a si mesma pela garra, pela persistência: narra suas circunstâncias para vencê-las.

No segundo tempo, Norma também apela às circunstâncias - mas, agora, elas são elementos intransponíveis, responsáveis pela frustração dos seus planos de crescimento pessoal. São, propriamente, os limites constitutivos da história (como trajetória) que foi capaz de construir - e da história (como conto) que narra. Em vez de nadar contra a maré, ela é carregada: as doenças, o marido, a vida americana desintegra seu futuro sonhado. Outras de nossas entrevistadas, como futuras avaliações poderão aquilatar, buscaram ativamente a mudança, a partir de uma crise no âmbito da consciência individual. Já Norma é assolada pela mudança: antes uma fênix resiliente, é agora uma fênix alada. E isso nos leva a alguma conclusão? Não a outra se não à reafirmação de que, por menos coerentes que sejam nossas vidas, buscamos construir coerência em nossas histórias (Bruner, 2014).

Morte e memória

Norma morreu em novembro de 2020. Não teve tempo de ler este capítulo, como tanto queria. Derrotou-lhe antes o câncer, surgido no fígado, que depois se alastrou para os seus pulmões. Descobriu tarde, já que estava assintomática. Soube disso pouco menos de dois anos antes de sua morte. Fez tratamentos por imunoterapia e com comprimidos fortes, que, porém, pouco proporcionaram além de fadiga e diarreia.

Morreu em Phoenix, no Arizona, aos 73 anos. Fênix alada e cansada. Mas não o suficiente para deixar de militar, em suas redes sociais, contra os movimentos antivacina, fortalecidos na pandemia da Covid-19, preocupada tanto com o país em que nasceu quanto com aquele em que morava. Compartilhando artigos sobre a peste negra na Idade Média e a gripe espanhola no Rio de Janeiro, insistia que havia algo a aprender com a história.

Em seu Facebook, algumas amigas e vizinhas lembraram-se de seus amores: a boa música, as montanhas do Arizona, as flores (sobretudo as bromélias) e os arranjos florais, a festa de São João, os smoothies de frutas, a canção “Unchained Melody”, o batom vermelho, a comida, a alegria inesgotável e a obsessão por dar conselhos aos amigos. “Eu a conheci nos anos 70 e desde então tornou-se uma referência. Foi uma guerreira nas adversidades da vida. Lutou incansavelmente contra um câncer agressivo. Ficarão as cartas, fotos e lembranças de uma amizade que transcendeu ao tempo e espaço”, escreveu Moema (07 nov. 2020). Quem sabe a morte a tenha redimido?

Material suplementario
Fontes
MOEMA. Entrevista concedida a Ricardo Santhiago. Rio de Janeiro, RJ, 2014.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 31 mar. 1969.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 21 maio 1969.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 23 set. 1969.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 06 out. 1969.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 15 mar. 1970.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 30 abr. 1973.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 27 jul. 1973.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 04 nov. 1974.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 14 abr. 1978.
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 06 out. 1978
NORMA. [Correspondência]. Destinatário: Daphne Patai. Recife, 23 fev. 1984.
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Notas
Notas
1 No final de nossa terceira e última entrevista, ela reforçou esse aspecto. Quando Ricardo disse, em tom de brincadeira, que voltaria a “explorá-la” caso tivesse mais perguntas, ela respondeu: “Não sinta de forma nenhuma que você está me explorando. Sinta que eu estou tendo o enorme prazer em colaborar, viu? Eu tenho imenso prazer em colaborar. Não só com isso; com qualquer coisa que você precise aqui. Eu estou disposta a lhe ajudar, fazer pesquisas pra você, se você quiser, se não tiver tempo de fazer, eu posso fazer pra você”.
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