Dossiê
A escrita de si na formação crítica de estudantes do Novo Ensino Médio
The writing of the self in the critical formation of students in the New High School
La escritura de sí en la formación crítica de estudiantes del Novo Ensino Médio
A escrita de si na formação crítica de estudantes do Novo Ensino Médio
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 37, e2024011, 2024
Universidade Estadual do Paraná
Recepción: 16 Mayo 2023
Aprobación: 26 Septiembre 2023
Financiamiento
Fuente: CNPq-MCTI
Nº de contrato: 307063/2019-4
Descripción del financiamiento: Agradecemos às estudantes e aos estudantes que participaram da pesquisa e contribuíram com seus textos para a compreensão das escritas de si como dispositivo poético-criativo no Novo Ensino Médio. Agradecemos ao CNPq-MCTI pelo financiamento da pesquisa (processo n. 307063/2019-4).
Resumo: Apresentamos reflexões sobre a escrita de si como dispositivo poético-criativo no Novo Ensino Médio. Admitimos como pressuposto que a “reflexividade autobiográfica” (Passeggi, 2011, p. 148), em situação de interlocução com o si mesmo e com o outro, promove a formação crítica pela tomada de consciência de suas potencialidades heurísticas e hermenêu-ticas. O corpus compreende 22 textos, elaborados por estudantes da primeira série em Oficinas de criação, na disciplina de Produção Textual, em um colégio de São Paulo (SP). Para as análises, escolhemos o poema “Ser”, de Carla Adriani, aluna que participou da pesquisa, por ser representativo da importância da escrita poética de si para a reflexão crítica e sua formação. Estimamos que o reconhecimento da palavra de adolescentes enquanto pessoas historicamente situadas e capazes de refletir criticamente sobre suas próprias experiências, frequen-temente negligenciadas, trazem contribuições significativas para inovações estético-poéticas no Novo Ensino Médio e avanços para a pesquisa qualitativa, relacionados à formação crítica de jovens estudantes.
Palavras-Chave: Escrita poética de si, Formação de jovens, Novo Ensino Médio, Literatura.
Abstract: We present reflections on self-writing as a poetic-creative device in New High School. It is assumed that “autobiographical reflexivity” (Passeggi, 2011, p. 148), in a situation of interlocution with oneself and the other, promotes critical education through awareness of its heuristic and hermeneutic potential. The corpus comprises 22 texts written by students of the 1st year in creation workshops, in the Textual Production subject, in a school in São Paulo. For the analyses, we chose the poem “Ser” by Carla Adriani, a student who participated in the research, as it is representative of the importance of poetic writing of the self for critical reflection and its formation. It is estimated that the recognition of the adolescents’ word, as people historically situated and capable of critically reflecting on their own experiences, often neglected, bring significant contributions to aesthetic-poetic innovations in New High School and advances for qualitative research related to young students’ education criticism.
Keywords: Self-poetic writing, Youth training, New High School, Literature.
Resumen: Presentamos reflexiones sobre la autoescritura como dispositivo poético-creativo en el Novo Ensino Médio (Nueva Escuela Secundaria). Se asume que la “reflexividad autobiográfica” (Passeggi, 2011, p. 148), en situación de interlocución consigo mismo y con el otro, promueve la educación crítica al tomar conciencia de sus potencialidades heurísticas y hermenéuticas. El corpus está compuesto por 22 textos, elaborados por alumnos de primer año, en talleres creativos de la disciplina Producción Textual, en una escuela de São Paulo. Para los análisis, elegimos el poema “Ser”, de Carla Adriani, alumna que participó de la investigación, por ser representativo de la importancia de la escritura poética del yo para la reflexión crítica y su formación. Se estima que el reconocimiento de la palabra de los adolescentes como personas históricamente situadas, capaces de reflexionar críticamente sobre sus propias experiencias, muchas veces descuidadas, trae contribuciones significativas para las innovaciones estético-poéticas en el Novo Ensino Médio y avances para la investigación cualitativa, relacionada con la formación crítica de los jóvenes estudiantes.
Palabras clave: Escritura poética de sí, Formación de jóvenes, Novo Ensino Médio, Literatura.
Introdução
Uso a palavra para compor meus silêncios
(Barros, 2015, p. 149).
O objetivo central deste trabalho é apresentar reflexões sobre a escrita de si como dispositivo poético-criativo no Novo Ensino Médio. Admite-se como pressuposto que a “reflexividade autobiográfica” (Passeggi, 2011), na interlocução com o si mesmo e com o outro, promove a formação crítica de quem narra por suas potencialidades heurísticas e hermenêuticas. A escrita de textos poéticos é aqui entendida numa perspectiva crítica, em que se prioriza a reflexão sobre si mesmo e sobre o outro como sujeitos de direito, admitindo-se que os jovens, ao pronunciarem sua palavra no mundo, se constituem como sujeitos e têm o direito de ser devidamente ouvidos em seus pedidos e reivindicações.
Neste artigo, parte-se do princípio de que a reflexividade autobiográfica propicia o que poderia ser chamado de “transcendência do ser”, na medida em que o “eu poético-narrador” descola-se do “eu empírico do sujeito-escritor-autor” para se redescobrir e se ressignificar “como um outro” (Ricœur, 2014, p. 15) e com o outro. Trata-se do que Michel Collot (2006) chama de “O outro no mesmo”, título do artigo em que apresenta reflexões sobre o termo “alteridade” e como ele se manifesta na poesia francesa moderna e contemporânea.
Segundo Michel Collot (2006, p. 30), o paradoxo “do outro no mesmo” evidencia a alteridade como fenômeno constitutivo do ser, uma vez que “o mesmo e o outro” deixam de se excluir, para se incluírem mutuamente. Segundo Passeggi et al. (2014, p. 85), é no processo e pelo processo da escrita de si que se estabelece “uma relação dialógica entre o ser e a representação de si que se realiza pela reflexividade autobiográfica”, mediante a qual as experiências vividas são ressignificadas.
Sobre a linguagem poética, Collot (2006) considera que o poeta é livre para se transfigurar em palavras que, embora pertencentes à língua de uso, adquirem novos significados ao serem recriadas em outro contexto, ao mesmo tempo em que ele, o poeta, também se recria com elas e por elas.
Com base nessas premissas, ressaltam-se apontamentos realizados sobre o poema “Ser”, da aluna Carla Adriani, da 1ª série do Ensino Médio, que participou da pesquisa realizada em um colégio da cidade de São Paulo. A análise de seu poema, objeto da presente reflexão, permite explicitar evidências que comprovam a importância da escrita autobiográfica como dispositivo poético de formação e de investigação científica fundamental para a formação crítica de jovens, que concluem a Educação Básica e flertam com a Educação Superior e o mercado de trabalho. Ao propiciar reflexões e questionamentos sobre seu ser e seu fazer no mundo, mediante a escrita poética, o lugar da Literatura ganha um novo sentido em seu percurso escolar ao se abrir para a vida além da escola.
Nesse sentido, é possível depreender que a escrita de si colabora para o aperfeiçoamento de metodologias de ensino-aprendizagem em Educação, uma vez que põe em perspectiva jovens aprendentes como atores e agentes do processo pedagógico de sua própria formação. No caso específico da Oficina de criação em que são considerados como coautores e coautoras da realização das atividades propostas, passam a assumir o seu protagonismo na produção de sua obra poética.
O artigo está organizado em três partes. A primeira parte é dedicada a uma breve explanação de teorias que fundamentam o estudo aqui proposto e sobre os elos que podem ser estabelecidos entre a escrita autobiográfica e a reinvenção de si. A palavra escrita é aqui entendida como dispositivo poético usado por quem escreve para se redescobrir e se expressar como sujeito autônomo e protagonista de seu trajeto e projeto de vida. Na segunda parte, é descrita a metodologia empregada na Oficina de criação em que os alunos produziram seus textos. Na terceira, são feitos apontamentos com base em análises do poema de Carla Adriani, com enfoque nos postulados teóricos que orientam as reflexões propostas neste trabalho.
A escrita de si e a reinvenção do eu
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio
(Barros, 2015, p. 83).
Segundo Vygotsky (1993, p. 132), uma “palavra é um microcosmo da consciência humana”, mediante a qual o humano evoca memórias passadas, presentes e em devir. O que é complementado por Bakhtin (1997, p. 38) ao afirmar que a “palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação”. Assim compreendida, a palavra constitui a um só tempo a consciência de quem escreve ou fala e o meio de interação entre o eu e as outras versões de si, pelas compreensões e interpretações que se realizam com ela sobre si mesmo, o outro e o mundo em que se vive.
Na escrita autobiográfica, a palavra produz transformações e (res)significações, tanto no momento da “narração”, entendido como processo, quanto na “narrativa”, entendida como produto gerado pela narração, que se atualiza, portanto, sob a forma de um texto escrito. Nesse sentido, a pessoa que escreve vive concomitantemente a experiência de coexistir no ato criador (narração), no produto gerado como criação (narrativa poética) e nesse intervalo como ser que ao criar se recria e se dá a ler como texto poético, ser narrador e ser narrado, ser poético e ser poetizado.
Um dos princípios fundantes da escrita autobiográfica é a “dimensão autopoiética da reflexão biográfica”. Para Passeggi (2011, p .147), o termo autopoiesis (do grego autos, que se refere a “próprio” e poiesis, que remete à criação, invenção), trata-se de um neologismo proposto por Humberto Maturana e Francisco Varela, nos anos 1970, para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. O termo passou em seguida para as ciências sociais e humanas para se referir à capacidade humana de se autorregular, autoadequar, autoinventar.
Essa definição de autopoiesis orienta aqui a análise do poema “Ser” e as considerações sobre a escrita de si na formação crítica de jovens.
De acordo com Paul Ricœur (2014, p. 14-15),
O si-mesmo como outro sugere logo de saída que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade num grau tão íntimo que uma não pode ser pensada sem a outra, uma passa para dentro da outra, como se diria em linguagem hegeliana. Ao “como” gostaríamos de atribuir o significado forte, não só de comparação - si-mesmo semelhante a outro -, mas sim de implicação: si-mesmo na qualidade de... outro.
Com base nessa afirmação, é possível depreender que a tarefa de refletir sobre si mesmo promove a constituição da subjetividade de quem narra. O sujeito escritor ressignifica-se e se reinventa ao reconhecer seu “eu” como um “outro”. Em outros termos, o eu percebe-se como sendo outro “eu” circunscrito nele mesmo.
O conceito de ipseidade apresentado por Ricoeur é também usado por Michel Collot (2006, p. 29), ao afirmar que “não há alteridade sem ipseidade” uma vez que o outro integra o processo de ressignificação do eu e, portanto, é também constituinte do eu. Neste trabalho, essa interligação é prevista na Oficina de criação como parte da provocação para a elaboração do texto poético, admitindo-se que nele se concretiza a intersubjetividade em palavras que nomeiam, dão forma, sentido e significado à realidade, humanizando-a em poesia, na interlocução.
Esse exercício de intersubjetividade e interatividade coloca o sujeito escritor em contato com seu outro eu, com seu interlocutor direto ou indireto, no trabalho de escrita do texto poético, cujas propriedades autorizam maior liberdade e flexibilidade com o uso da língua. É nesse contexto que a Oficina foi pensada para questionar, rever, edificar ideias e imagens que extrapolam o plano individual e que permitam imprimir na folha em branco o eu, o outro e o universal que neles se particulariza.
Para Alfredo Bosi (2000, p. 132),
A linguagem da poesia é mais singularizada que a da não-poesia. A existência, enquanto ainda não repartida e limitada pela divisão do trabalho mental (que produz o código das ideias abstratas), apresenta-se na sua variadíssima concreção de aspectos, formas, sons, cores. A palavra poética recebe uma espécie de efeito mágico do seu convívio estreito com o modo singular, pré-categorial, de ser qualquer um desses aspectos.
Pode-se afirmar, então, que no texto poético a língua não é apenas um sistema orgânico do qual o poeta se apropria para refletir, expressar, sentir e se comunicar consigo mesmo e com o outro. A língua natural, nas suas mais diversas manifestações linguísticas (português, francês, yoruba etc.) e discursivas (gêneros textuais), se apresenta como um “ser vivente” e, como tal, possui vida própria e múltiplas nuanças que a tornam singular quando comparada às demais formas de sistemas semióticos (imagens, movimentos, gráficos...).
A linguagem poética, que faz uso do sistema linguístico, possui um modo próprio de organização do ponto de vista de sua estrutura interna, em que a disposição das partes ou elementos de um todo, coordenados entre si, funcionam como a base sobre a qual irá se apoiar e se constituir um conjunto de signos como algo único e significativo.
Essas e outras particularidades do texto poético, como já mencionado, serão analisadas adiante, no poema “Ser”, em que emerge na escrita de si a formação crítica da jovem Carla Adriani, no instante mesmo em que o eu poético se transmuta em palavras ao operar uma reflexão sobre sua existência, suas experiências e vivências, com imagens linguísticas, estilísticas e estéticas, empregadas na construção do texto como elementos essenciais na constituição do eu que se enuncia no poema. Artifícios em consonância com as palavras de Octavio Paz (1986, p. 137): “E o próprio homem desenraizado desde o nascer, reconcilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz outro. A poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso confina com a magia, a religião e outras tentativas para transformar o homem”.
Oficina de criação: o texto poético em foco
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes
(Barros, 2015, p. 73).
O termo “juventudes” recebe especial destaque na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), na etapa do Ensino Médio, na medida em que ela oferece uma definição esclarecedora deste termo em um de seus verbetes, englobando os conceitos de autonomia e protagonismo na elaboração de um projeto de vida maduro e consistente, considerado como a espinha dorsal do novo Ensino Médio (Brasil, 2017). A BNCC explicita a intenção de traçar o perfil do jovem que se pretende formar nessa etapa da escolarização e que deve ser observado nos currículos nas quatro áreas do conhecimento e na arquitetura dos itinerários formativos, organizados e oferecidos para atender às demandas do jovem do século XXI, que vive em uma sociedade submersa no mundo digital tecnológico em que se produzem textos multissemióticos.
A Oficina de criação, concebida como artefato metodológico de pesquisa e de formação, considerou as diretrizes pedagógicas da BNCC, focalizando as competências e as habilidades de jovens no “campo da vida pessoal”, que oportunizam o desenvolvimento de sua autonomia e de seu protagonismo nas variadas esferas de comunicação por onde circulam.
Os participantes da Oficina e coautores deste trabalho eram, em 2022, estudantes da 1ª série do Ensino Médio, em um colégio da rede de ensino da cidade de São Paulo. À época totalizavam 284 alunos, na faixa etária de 14 a 15 anos.
Os(as) estudantes que colaboraram com a pesquisa, vivenciaram, como se lê em suas narrativas, um momento tão significativo quanto foi o retorno à vida escolar de forma presencial após dois anos de pandemia da Covid-19. Essa confluência tende, inevitavelmente, a aparecer como pano de fundo em suas produções. Essa geração de estudantes cursou, praticamente, os dois últimos anos do Ensino Fundamental 2 no formato on-line, pois desde o início do mês de março de 2020, o colégio, obedecendo às exigências sanitárias, fechou suas portas e as aulas passaram a ser ministradas de forma remota, via plataforma digital, disponibilizada pela escola. Com o início da vacinação contra a Covid-19, em 2022, os alunos retornaram às aulas, de forma 100% presencial, e à rotina de estudos.
No retorno das férias de julho de 2022, nas aulas inaugurais de Produção Textual para a 1ª série do Ensino Médio foi proposta uma reflexão sobre si mesmo, enquanto indivíduos críticos, sobre sua constituição como sujeitos historicamente situados, protagonistas de sua formação, e numa relação de reciprocidade, transformadores da realidade em que se inserem e suscetíveis de serem por ela transformados.
As ideias e as ponderações apresentadas no texto “Da formação do sujeito... Ao sujeito da formação”, de Marie-Christine Josso (2010), publicado na coletânea “O método (auto) biográfico e a formação” (Nóvoa; Finger, 2010), guiou a formulação da Oficina, as orientações dadas aos alunos, e as considerações sobre os textos produzidos e apresentados pelo grupo de jovens estudantes - autores(as) dos textos - após as aulas destinadas às suas criações.
A atividade de produção textual proporcionou uma vivência da escrita e pela escrita quando se viram desafiados a criarem um texto “livre”, ou seja, sem obedecer a nenhuma tipologia e gênero preestabelecidos, por meio do qual deveriam responder às seguintes questões: Como me tornei quem sou? Como adquiri as ideias que tenho?
A Oficina de criação foi realizada na biblioteca do colégio, e organizada em duas aulas, com a duração total de três horas, assim distribuídas: a) Leitura da proposta de produção textual e escrita da primeira versão do texto (1ª aula: 1h30); b) Revisão do texto produzido e realização de alterações necessárias para a elaboração de sua versão final (2ª aula: 1h30). Durante a segunda aula, os(as) estudantes poderiam, se assim quisessem, ilustrar seus textos com desenhos, fotografias, colagens ou qualquer outro recurso plástico de sua preferência.
Após leitura e análise das produções escritas, foram selecionados 22 textos, de turmas distintas, que atendiam aos principais propósitos dos textos pretendidos pela Oficina a saber:
Análises do poema “Ser”, de Carla Adriani
A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
(Barros, 2015, p. 125).
Como se esperava, a proposta da Oficina de criação provocou nos estudantes da 1ª série do Ensino Médio reflexões sobre eles mesmos como pessoas que carregam experiências de vida significativas para sua constituição como sujeitos históricos e atores de seus trajeto e projeto de vida. A atividade de escrita exigiu um olhar crítico e sensível sobre si, a sociedade e a cultura circundante, as relações que estabeleciam com o seu eu e com seu outro eu, íntimo e público, e como elas reverberavam nas interações com o meio.
Durante a produção do texto, foi nítida a dificuldade apresentada pela grande maioria no instante em que se preparavam para responder às questões propostas: Como me tornei quem sou? Como adquiri as ideias que tenho?
Muitos estudantes alegaram que até a chegada ao Ensino Médio não haviam realizado nenhuma atividade escolar que exigisse um exercício de reflexão tão profundo sobre si. Este resultado da pesquisa é bastante significativo face às exigências da formação de jovens que, em breve, atuarão ativamente na sociedade, tomando decisões, de forma individual, coletiva e colaborativa, para a resolução de problemas.
A grande maioria optou por produzir gêneros das tipologias do narrar e do relatar: diário, relato pessoal, carta pessoal e narrativas autobiográficas, uma vez que esses gêneros têm como propriedade a marca da subjetividade exigida pela proposta feita na Oficina. Quem optou por produzir poemas fizeram-no, em sua maioria, acompanhado por outra opção semiótica, como o autorretrato, para ilustrar as imagens criadas pelas palavras no texto escrito ou, simplesmente, fazer o registro de seu duplo, seu outro eu que o habita, em outra linguagem.
Essa foi a escolha de Carla Adriani, poetisa e aluna da 1ª série. Ela produziu três versões do texto até chegar à versão final, transcrita abaixo e acompanhada de seu autorretrato.
A verdade é que
Nada sei
Se soubesse
Humana eu não seria
Acordei assim
Eu acho...
Porém, não me lembro de ser assim
Acho que apenas acordei do lado errado
Da cama, como dizem
E um certo dia minhas mágoas
Resolveram me esculpir
E o conforto me polir
Me transformando nessa escultura
Que um alguém qualquer decidiu expor
Num museu
Para que todos possam
Mexer
Cutucar
Ferir
Ou até mesmo cuidar
Dessa minha sensível alma.
Mas se ainda me perguntarem quem sou
Direi que sou palavras
Ou melhor
Uma coletânea delas
Um livro
Com tantas sequências que nos cansamos
De ler.
Sou palavras.
Palavras que me salvam desse universo
Tão real
E tão assustador.
Para iniciar a análise do poema, optou-se por dividi-lo em duas partes: a primeira intitulada “Vulnerabilidades”; a segunda, “Fortaleza”. Se isoladas, podem ser interpretadas como antagônicas, na medida em que “vulnerabilidade” se aproxima da ideia de fragilidade, fraqueza, antônima de fortaleza, de resistência. Quando acopladas ao poema, porém, desnudam a condição humana, descrita pelo eu poético como resultado da lucidez sobre seu desconhecimento sobre si e o mundo provocada pela reflexividade autobiográfica.
A verdade é que
Nada sei
Se soubesse
Humana eu não seria (Adriani, 2022).
Em busca de descobrir seu “ser”, cujo corpo é domicílio de uma “sensível alma”, o eu poético faz uso da imagem da “escultura”, “num museu”, que foi esculpida pelas “mágoas” e polida pelo “conforto”, para desvelar a sensação de vulnerabilidade experimentada ao se expor diante de pessoas que se autorizam a
Mexer
Cutucar
Ferir
Ou até mesmo cuidar
Dessa minha sensível alma (Adriani, 2022).
A adversativa “mas”, que introduz o verso “Mas se ainda me perguntarem quem sou”, rompe com a atmosfera de suscetibilidade predominante nos versos anteriores e inaugura a segunda parte do poema, a sua “Fortaleza”, em que se revela um novo ser, consciente de sua identidade e subjetividade: “Direi que sou palavras”.
Nesse processo de metacriação, o eu poético faz uso da palavra como instrumento de escrita para se definir enquanto palavra, ou seja, atribui ao signo um novo valor enquanto elemento constitutivo tanto do objeto poema, quanto do ser poético. Em outros termos, o eu poético recria a palavra, entendida como corpo linguístico, ao mesmo tempo em que se recria como palavra na escrita de si, fundando sua criação em uma dimensão autopoiética, na medida em que explicita a epifania da descoberta de si por meio da palavra e da constituição de si sob a forma de palavras: “Direi que sou palavras”.
Nessa perspectiva, o eu poético define-se como o outro que está em si e o personifica em palavras que, ao mesmo tempo, edifica o poema e se edifica enquanto ser: “Sou palavras”. Essa relação de implicação intrínseca entre o eu e o si mesmo como um outro consolida a alteridade enquanto princípio de criação autobiográfica, mediante a qual o sujeito toma consciência de sua dupla ação: descolar seu eu interior e projetá-lo ao exterior, transmutando-o a um outro que o forma e o constitui e com quem dialoga de forma íntima e visceral para, assim, conectar-se com seu mais profundo e subjetivo eu.
No contexto da Oficina de criação que deu origem a este trabalho, optar por se autoconhecer e por se (re)descobrir mediante a escrita ganha outros contornos, cores e sensações, pois no universo da poesia, a palavra é livre para a criação e interage com o eu poético em uma parceria orgânica e fluida, para a construção de sentido do texto e das emoções que dele afloram. Sob esse prisma, é possível afirmar que no poema, a palavra e o eu poético se fundem em um amálgama que, dependendo do contexto em que se dá, tornam-se uno, quase impossível dissociá-los, pois são partes do mesmo todo, estabelecendo entre si uma relação de autonomia mútua, tornando-se “um meio de conhecimento e de construção de si” (Collot, 2006, p. 37).
Essa intersecção entre o sujeito empírico e seu eu, criado pela palavra, é observada no poema transcrito, uma vez que ao afirmar “Sou palavras”, o eu poético torna-se outro, e nessa recriação não é mais o mesmo eu: é outro circunscrito nele mesmo. Em outros termos, a palavra escrita é ao mesmo tempo matéria-prima da criação do poema e o que define o eu poético, que se desdobra em outras formas além da palavra que o constitui, por meio do emprego da figura de linguagem da gradação ao se autodescrever nesta progressão: “palavras” - “coletânea” - “livro”.
Direi que sou palavras
Ou melhor
Uma coletânea delas
Um livro (Adriani, 2022).
Essa intensa conexão com a palavra no poema “Ser” evidencia a relação íntima que o eu poético estabelece com seu eu interior e, também com o mundo exterior, com o “mundo-da-vida”, já que a “atividade poética busca uma relação intensa com o ‘mundo-da-vida’”, como afirma Bosi (2000, p. 132), como pode ser observado nestes versos
Sou palavras.
Palavras que me salvam desse universo
Tão real
E tão assustador (Adriani, 2022).
O eu poético explicita sua condição humana de “nada saber”, para, no fim, descobrir-se sabedor de sua essência, de sua humanidade e de sua consciência de existir, manifestadas por meio da reflexibilidade autobiográfica, em uma dimensão autopoiética, concretizadas na escrita, mais precisamente, na palavra poética em sua dupla função: a de construir o poema e a de se constituir como eu poético por ela criado.
À guisa de conclusão
Quando o menino disse que queria passar para as
palavras suas peraltagens até os caracóis apoiaram
(Barros, 2015, p. 142)
As práticas discursivas realizadas nas diversas esferas da comunicação humana revelam que falar de si não é tarefa fácil, pois exige, ao longo da vida, cada vez mais autoconhecimento e maturidade para reconhecer potencialidades e fragilidades que moldam o ser diante de suas circunstâncias. Dependendo do momento vivido e da fase da vida, revisitar episódios passados pode não ser muito agradável, pois se trata de um exercício que remete a recordações guardadas no baú das lembranças esquecidas intencionalmente ou não.
No instante, porém, em que alguém se permite autoconhecer-se por meio da escrita de si, afirma-se como um eu em relação de alteridade íntima com seu outro eu o (des)conhecido que traz consigo próprio. No texto poético, a trama que enreda o si mesmo como um outro, surge do exercício de (auto)descoberta, que sustenta a tessitura do texto e religa os laços entre identidade e alteridade, confirmando compromissos com a palavra poética. Desvelar-se como poeta por meio da linguagem escrita, permeada de recursos estilísticos e estéticos, é permitir que seu outro eu interaja com o eu presente numa dimensão estética.
As criações poéticas, promovidas pela Oficina de criação, descrita neste artigo, evidenciaram a potência da escrita de si na formação de jovens ao lhes proporcionar a experiência do autoconhecimento no exercício de se voltar para si. Auto(re)descobrir(se) permite transpor para o texto, escrito, oral ou imagético, o entendimento de si mesmo, ressignificando seu estar no mundo, seu ser com o mundo e suas experiências no mundo, mediante o olhar crítico e sensível sobre sua própria existência.
As reflexões apresentadas neste artigo pretenderam trazer à luz o papel fundamental que a escrita autobiográfica, na Oficina de criação, exerceu na formação de estudantes do Ensino Médio que dela participaram, na medida em que lhes permitiu descobrir o microcosmo de sua consciência pelo uso da palavra e se (auto)revelar por meio da palavra escrita. Entende-se que imbuído desse poder criador da palavra, o jovem se torna mais sensível para se posicionar diante de si e do outro e melhor localizar seu lugar no mundo, transfigurando-se em textos que circulam em todas as esferas de comunicação, para com eles participarem de situações discursivas diversas e se inscreverem como sujeitos de direitos.
Agradecimento
Agradecemos às estudantes e aos estudantes que participaram da pesquisa e contribuíram com seus textos para a compreensão das escritas de si como dispositivo poético-criativo no Novo Ensino Médio. Agradecemos ao CNPq-MCTI pelo financiamento da pesquisa (processo n. 307063/2019-4).
Fontes
ADRIANI, Carla. Ser. Poema produzido em disciplina de produção textual. São Paulo, 2022.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BARROS, Manoel de. Meu quintal é o maior do mundo (antologia). Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3MP6X5n. Acesso em: 17 nov. 2023.
COLLOT, Michel. O Outro no Mesmo. Revista ALEA: Estudos Neolatinos, v. 8, n. 1, p. 29-38, jan./jun. 2006.
JOSSO, Marie-Christine. Da formação do sujeito... Ao sujeito da formação. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Orgs.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal; São Paulo: EDUFRN; Paulus, 2010, p. 59-79.
NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Orgs.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal; São Paulo: EDUFRN; Paulus, 2010.
PASSEGGI, Maria da Conceição. A experiência em formação. Revista Educação, v. 34, n. 2, p. 147-156, maio/ago. 2011.
PASSEGGI, Maria da Conceição et al. Narrativas de crianças sobre as escolas da infância: cenários e desafios da pesquisa (auto)biográfica. Revista Educação, v. 39, n. 1, p. 85-104, jan./abr. 2014.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
RICŒUR, Paul. O si-mesmo como outro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.