Dossiê
Recepción: 15 Mayo 2023
Aprobación: 27 Octubre 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2024.16.37.7879
Resumo: Este artigo apresenta o resultado de uma pesquisa cujo objetivo principal foi dialogar com os princípios da pesquisa (auto)-biográfica, de modo a investigar as contribuições das narrativas para desencadear a elaboração de projetos de vida de alunos do Ensino Médio. Discute-se primeiramente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) com foco no Ensino Médio, que inclui o projeto de vida como eixo central da organização escolar. Na sequência, dialoga-se com autores que abordam a temática na perspectiva das narrativas biográficas e, com base nesse diálogo, elabora-se um protocolo de pesquisa. Por fim, realiza-se a análise da narrativa de uma das participantes, convidando a refletir sobre o desenvolvimento dessa proposta. Os dados permitiram observar que o roteiro proposto estimulou a participante a narrar sua trajetória, o que resultou em um processo de auto-organização biográfica que permitiu ir além dos acontecimentos vividos em busca de sentidos para sua vida futura.
Palavras-Chave: Base Nacional Comum Curricular, Ensino Médio, Pesquisa Auto(biográfica), Projeto de vida, Narrativas de jovens.
Abstract: The present study is based on research whose main objective was to dialogue with the principles of (auto)biographical research to investigate the contributions of narratives to trigger the development of life projects for high school students. To this end, it discusses the National Common Curricular Base (BNCC) with a focus on Secondary Education, which includes the life project as the central axis of school organization. Afterward, he dialogues with authors who approach the topic from the perspective of biographical narratives and develops a research protocol based on this dialogue. Finally, it analyzes the narrative of one of the participants, inviting people to reflect on the development of this proposal. The data allowed us to observe that the proposed script encouraged the participant to narrate her trajectory, a process of biographical self-organization that allowed her to go beyond the events experienced in search of meanings for her future life.
Keywords: National Common Curriculum Base, High School, Auto (biographical research), Life Project.
Resumen: El presente estudio se basa en una investigación cuyo objetivo principal fue dialogar con los principios de la investigación (auto)biográfica con el fin de investigar las contribuciones de las narrativas para desencadenar el desarrollo de proyectos de vida de estudiantes de secundaria. Para ello, se analiza la Base Curricular Común Nacional (BNCC) con enfoque en la Educación Secundaria, que incluye el proyecto vida como eje central de organización escolar. Luego, dialoga con autores que abordan el tema desde la perspectiva de narrativas biográficas y, a partir de ese diálogo, elabora un protocolo de investigación; Finalmente, se analiza la narrativa de uno de los participantes, invitando a reflexionar sobre el desarrollo de esta propuesta. Los datos permitieron observar que el guión propuesto incentivó a la participante a narrar su trayectoria, un proceso de autoorganización biográfica que le permitió ir más allá de los acontecimientos vividos en busca de significados para tu vida futura.
Palabras clave: Base Curricular Común Nacional, Bachillerato, Auto (investigación biográfica), Proyecto de Vida.
Introdução
A partir de 2022, as escolas públicas e privadas deveriam adotar o Novo Ensino Médio e oferecer aos alunos uma formação que se adequasse à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), conforme determinação do Ministério da Educação. Em 2017, durante o Governo de Michel Temer, a Lei n. 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e introduziu uma mudança na estrutura do Ensino Médio.
Conforme o cronograma do Ministério da Educação (MEC), a implementação do Novo Ensino Médio teve início em 2021, de forma progressiva, com a 1ª série do Ensino Médio e deu sequência, em 2023, com a incorporação das 1ª e 2ª séries ao novo modelo de ensino e completa, assim, o ciclo de implementação nas três séries do ensino médio em 2024.
É importante reconhecer os diferentes debates que vêm ocorrendo nos cenários educacionais brasileiros sobre a BNCC. Estes debates possibilitam que questões relativas à função da escola e de como ela deve ser organizada sejam discutidas e aprofundadas, bem como as que problematizam os diálogos existentes entre as políticas públicas e a sociedade.
Recentemente, no Governo Lula, os debates sobre a continuidade da Reforma do Ensino Médio ganharam destaque na imprensa quando no dia 4 de abril de 2023 o ministro da Educação Camilo Santana anunciou suspender por sessenta dias a reforma que já está sendo implantada por etapas no país. Segundo Callegari (2023), apesar das críticas à Reforma do Ensino Médio considerando o aumento das desigualdades sociais, a redução da parte comum do currículo, a falta de investimentos na formação docente e a infraestrutura precária que tem resultado em improvisações por parte das escolas, não há justificativa para revogação da lei, sem uma avaliação rigorosa e a existência de uma nova proposta. É importante que haja uma revisão na Reforma no Ensino Médio, mas para isso é necessário que um verdadeiro diálogo aconteça com vários setores da sociedade, principalmente com o da educação. Enquanto esta questão não se define, as redes de ensino, tanto públicas quanto privadas, estão sendo regidas pela BNCC.
Entre outras inovações, a BNCC instituiu o projeto de vida com o objetivo de complementar a personalização do Novo Ensino Médio. Nesse contexto, considera que a escola deveria desenvolver uma cultura geradora de oportunidades, de forma que os estudantes identifiquem e aprimorem os seus interesses no sentido de atingir seus objetivos pessoais e profissionais.
Frente a isso, muitos professores que atuam no Ensino Médio foram instigados a reorganizar sua atuação pedagógica de forma a inserir o trabalho com projetos de vida, sendo que poucos contaram com algum tipo de formação para assumir esta proposta. No passado, os professores atuavam em instituição de ensino que prioriza a homogeneização em vez de uma abordagem subjetiva que se encaixa na abordagem de projetos de vida. É importante considerar que:
O mundo regulado e programado da escola oferece pouco lugar (em termos de espaço e de tempo) aos processos de configuração/desconfiguração/reconfiguração, e é, sem dúvida, na escola que se fazem sentir mais intensamente as dificuldades sofridas para reorganizar o mundo-de-vida e reajustar o projeto de si (Delory-Momberger, 2008, p. 133).
Some-se a isso o fato do jovem que frequenta o Ensino Médio ser visto, costumeiramente, como aluno e como tal suas experiências pessoais, suas aspirações e demandas não são reconhecidas: “O momento da fase de vida e suas peculiaridades, a origem social, o gênero e a etnia, entre outras dimensões que o constituem como jovem, não são levados em conta e constroem a vida do aluno fora da escola como um tempo vazio de sentido, um não tempo” (Leão; Dayrell; Reis, 2011, p. 1.068).
Para que projetos de vida sejam elaborados é necessário que esse tempo invisível para a escola se torne visível e integre os processos de aprendizagem. Cabe lembrar que um projeto de vida não pode ser ensinado, nem avaliado a partir de uma visão maniqueísta do certo e errado, e nessa perspectiva requer dos professores deslocamentos do lugar costumeiramente por eles ocupado, atrelado ao ensinar. Fato esse que desencadeia questões ainda em busca de respostas, entre elas a mais básica: como desenvolver projetos de vida com jovens que frequentam escolas de Ensino Médio?
Segundo o Censo Escolar de 2020, cujos dados foram publicados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), considerando Ensino Médio, Profissional e Educação de Jovens e Adultos (EJA) foram registradas 7,6 milhões de matrículas no Ensino Médio em 2020. Esses dados apontam para a quantidade de alunos que serão instigados a desenvolver projetos de vida, assim como permitem aquilatar a quantidade de professores que estão sendo desafiados a incluir o trabalho com projetos de vida em suas práticas.
Nessa perspectiva, se considerou realizar uma pesquisa cujo objetivo principal foi dialogar com os princípios da pesquisa (auto)biográfica de modo a investigar as contribuições das narrativas de vida para desencadear a elaboração de projetos de vida de alunos do Ensino Médio.
De acordo com Passeggi e Cunha (2020, p. 1.043) o que nos anima ao acompanhar os jovens na construção de seus projetos de vida é a possibilidade que ele se encontre com a “disposição humana de se projetar em devir, quiçá de forma crítica, em prol da autoria e da emancipação”.
O presente texto se organiza com base na referida pesquisa e para isso, inicialmente, discute a BNCC com foco no Ensino Médio que incluiu a elaboração de projetos de vida. Na sequência, dialoga com autores que abordam a elaboração de projetos de vida na perspectiva da Pesquisa (auto)biográfica, também apresenta o traçado da pesquisa que inclui a preparação de um roteiro que dá suporte à elaboração de projetos de vida. Ademais, analisa a narrativa de uma estudante participante da pesquisa e por fim tece as considerações finais.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio e os projetos de vida
A BNCC é considerada um documento cuja finalidade definir as aprendizagens a serem desenvolvidas por todos os alunos no decorrer da Educação Básica. Nessa perspectiva, tem em vista ser um referencial para a educação de qualidade no Brasil, por meio da definição de níveis de aprendizagem (Brasil, 2017).
No que tange ao Ensino Médio, o currículo está organizado a partir de itinerários formativos: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional, com base nas áreas do conhecimento. Essa estrutura preconiza a flexibilidade como eixo da organização curricular.
Algumas vozes criticaram a BNCC, que foi considerada por autores como Branco et al. (2018), Malanchen e Santos (2020), Pina e Gama (2020) como um documento pautado na Ideologia Neoliberal que procura formar indivíduos adaptados às necessidades do mercado, legitimando, dessa forma, uma visão pragmática das sociedades capitalistas. Na perspectiva de Malanchen e Santos (2020, p. 12) houve um esvaziamento do conteúdo escolar que relegou para segundo plano a importância da teoria para a formação dos indivíduos, enfatizando as competências: “como parâmetro epistemológico do discurso inovador e transformador da educação escolar”, sem que esta escolha incluísse no jogo político a produção acadêmica sobre currículo, como também a experiência daqueles que vivem no chão da escola.
A BNCC se refere ao público que frequenta o Ensino Médio como heterogêneo, e nessa direção, afirma ser impossível falar de juventude no singular, mas em juventudes, tendo em vista que esse grupo é composto por sujeitos únicos que necessitam ser reconhecidos em suas múltiplas dimensões, tais como físicas, psíquicas, sociais e culturais. Um jovem que vive em situação de vulnerabilidade social não experimenta a juventude do mesmo modo do que um pertencente à classe média, as suas vivências e expectativas serão marcadas pelas condições sociais em que se encontra. Desse modo, a BNCC propõe que a escola se organize de forma a acolher a diversidade e de possibilitar aos estudantes serem protagonistas de sua formação: “Significa, nesse sentido, assegurar-lhes uma formação que, em sintonia com seus percursos e histórias, permita-lhes definir seu projeto de vida, tanto no que diz respeito ao estudo e ao trabalho como também no que concerne às escolhas de estilos de vida saudáveis, sustentáveis e éticos” (Brasil, 2017, p. 463).
Embora esteja previsto o desenvolvimento de projetos de vida no Ensino Médio, os pressupostos teóricos metodológicos não estão claramente definidos. Essa falta de orientações claras, talvez tenha incentivado a produção, a partir de 2021, de inúmeros livros didáticos disponibilizados pelo Governo do Estado de São Paulo em parceria com as editoras, distribuídos pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) em 2021, com vistas a auxiliar os docentes a coordenar o trabalho com projetos de vida. No entanto, há o risco de que projetos de vida sejam abordados como mais uma disciplina, fundamentada em materiais didáticos que encaminham os alunos às respostas coletivas, que não estimulam processos de subjetivação.
A pesquisa (auto)biográfica e os projetos de vida
Nas sociedades contemporâneas, o desenvolvimento de projetos é uma prática cotidiana, ressalta Boutinet (2019), mas não o foi nos tempos ditos modernos, quando eram pouco utilizados. Recentemente, em sociedades turvadas por crises de diferentes naturezas, passam a ser um recurso social e existencial importante para traçar caminhos em meio às incertezas que se apresentam. Considerando a dimensão existencial, eles podem ser localizados, com mais frequência, a partir do ano de 1975. As relações entre projeto e histórias de vida se evidenciam e se nutrem mutuamente e, nos contextos de pesquisa-formação, fica cada vez mais frequente: “o uso de abordagens biográficas postas a serviço de projetos (projeto de expressão, projeto profissional, projeto de reinserção, projeto de formação, projeto de transformação de práticas, projeto de vida” (Josso, 1999, p. 14).
No que se refere às abordagens biográficas, mais especificamente aos projetos de vida, é possível afirmar que nas décadas seguintes ele vai se configurando como o início de um novo percurso biográfico, presente em tempos de transição como da adolescência para a idade adulta e dessa para a idade avançada. Esses períodos são caracterizados como regiões intermediárias que incluem instabilidade e hesitações, além de possibilidades. Pode-se dizer que o projeto de vida, se constitui articulando movimentos de retrospecção, visando uma apropriação do vivido e de prospecção a procura de novas oportunidades criativas de viver, delineando-se como um trabalho reflexivo sobre o passado, em busca de lhe conferir sentidos que possam irrigar o futuro.
Projetar a vida nos contextos sociais atuais requer compreender que ela será vivida em contextos instáveis, nos quais serão necessários desvios, avanços e recuos. Nessas condições, o projeto de vida nasce de um trabalho de interrogação e de antecipação e de reorientação frente aos acontecimentos, o que significa caminhar no sentido das próprias aspirações e das oportunidades que a vida oferece.
O jovem contemporâneo não conta mais com indicações estáveis que delineiam formas de estar no mundo, o fluxo da vida antes reconhecido como tempo de estudar, de trabalhar e de se aposentar (Pineau, 2012) se reorganiza em múltiplas possibilidades, cada vez mais complexas, cujas acomodações se fazem de formas insólitas. Desse modo, os jovens deverão descobrir outras soluções que assegurem suas existências e atribuam sentidos para as suas vidas.
Não existe mais um modo seguro de entrar nos diferentes momentos da vida, seja ela profissional, afetiva, ou social, o que leva os jovens a enfrentarem inúmeros desafios: “Que surgem de condutas flutuantes e de novos campos de orientação e de formação que tendem a se tornar contínuos. De fato, nem uma entrada é total e definitiva. Muitas são parciais e têm duração determinada” (Pineau, 2012, p. 88). Esses desafios de difíceis soluções requerem processos de autorregulação com base em planos e avaliações que não se reduzem a caminhos lineares, porém requisitam traçar mapas complexos.
Projetar a vida, principalmente para os jovens, propõe inúmeros desafios, talvez o primeiro deles advenha do fato de que as sociedades contemporâneas têm envolvido o futuro numa espécie de capa que dificulta pensar a vida a longo prazo (Dominicé, 2006). Se os jovens de gerações anteriores necessitaram construir suas vidas se contrapondo às expectativas dos pais em busca de autonomia e protagonismo, os atuais: “Em vez de rejeitar um futuro que outros quisessem construir por eles, têm de encontrar por si mesmos o que lhes corresponde, num mundo cheio de surpresas, sacudido entre o sucesso dos heróis e a marginalidade dos excluídos” (Dominicé, 2006, p. 347).
A capacidade formativa presente na elaboração de projetos de vida possibilita ao jovem outra ordem de formação que inclui o próprio sujeito e suas experiências pessoais, escolares e sociais. Isso favorece um processo de conscientização que possui um caráter emancipatório, ao consistir em se apropriar de como tenho sido, para que tenho sido e, dessa maneira, pensar em como quero ser. Como salienta Passeggi e Cunha (2020, p. 1041), o “humano se constitui, biograficamente, refletindo e organizando, temporalmente, circunstâncias, valores, crenças e atitudes em torno dos acontecimentos no mundo da vida”.
Esse tipo de formação, que inclui o sujeito, implica no reconhecimento das experiências, o que estimula a reflexividade biográfica: “A dimensão de projeto é assim constitutiva do procedimento de formação, na medida em que ela instaura uma relação dialética entre o passado e o futuro e em que ela abre à pessoa em formação um espaço de formabilité” (Delory-Momberger, 2006, p. 366, grifo no original).
Em contextos de vulnerabilidade social, o trabalho com as histórias de vida ganha importância, pois os instiga a refletir sobre como tem traçado suas vidas. Conforme Josso (2010, p. 415), “trabalhar as questões de identidade, expressões de nossa existencialidade, por meio da análise e interpretação das histórias de vida escritas, permite colocar em evidência a pluralidade, a fragilidade e a mobilidade de nossas identidades ao longo da vida”.
O que permite ao jovem compreender que ele está em construção e pode participar, mediante suas escolhas, da definição de seu futuro. Compete à escola, nessa perspectiva, proporcionar oportunidades para o jovem entrar em contato consigo mesmo, de modo a se situar em meio a tantas informações, hoje disponíveis, que demandam escolhas que, por sua vez, só serão genuínas se tiverem como eixo o autoconhecimento. Nesse sentido, a participação do professor ganha novos contornos, visto que ele passa a ser requisitado de modos que diferem do tradicional. Para que o aluno se reconheça como um ser de possibilidades, é necessário ser reconhecido como tal pelo docente que o acompanha na difícil tarefa de não apenas aprender alguns conteúdos, mas também se tornar um cidadão capaz de, ao se desenvolver, contribuir para o desenvolvimento da sociedade como um todo.
A atuação docente de projeto de vida pode orientar-se com base nos princípios da pedagogia da presença, cujo núcleo do processo educativo é a relação de abertura, compromisso e reciprocidade entre professor e alunos por meio do estabelecimento de vínculos, da orientação e do acolhimento (Costa; Koslinski, 2008). A escuta ativa se torna importante na condução da elaboração de projetos de vida, pois ela aproxima o professor dos alunos que podem aproximar seus olhares de forma a articular o passado, presente e futuro em consonância com as esperanças dos jovens.
Delineamento metodológico
O traçado do estudo previu duas etapas. A primeira delas consistiu em elaborar um roteiro de perguntas desencadeadoras com base no diálogo com autores que se dedicam à pesquisa (auto)biográfica e abordam os projetos de vida. O roteiro foi elaborado de forma a colaborar com o desenvolvimento de projetos de vida em Instituições de Ensino Médio, sob os aportes da pesquisa (auto)biográfica, tendo em vista que ao entrar em contato com suas trajetórias existenciais os jovens se sentissem estimulados a traçar movimentos de projetar a vida. Para isso, foram formuladas as seguintes questões: Como contar minha história? Quais as experiências e as influências que me marcaram? Quem estou sendo? Quem quero ser? Como vou caminhar nesta direção?
Convém lembrar que entre uma pergunta e uma resposta existe um espaço que pode ser denominado de “território do não sabido”, uma rápida reposta, além de encurtar o tempo de permanência nesse lugar, pode estancar o fluxo do pensamento desencadeado pela questão. Deter-se nesse território, pode provocar angústia, mas, simultaneamente, incita a busca por diferentes maneiras de desdobrar uma pergunta e ensaiar novas possibilidades de respostas (Furlanetto; Passeggi; Biasoli, 2020).
A riqueza de uma pergunta, desse modo, está em perguntar-se, circulando em torno de uma questão, é possível deparar-se com a capacidade de organizar o que se sabe e até mesmo de produzir saberes novos que surgem dos novos sentidos atribuídos ao que já se sabia.
O estudo foi realizado na Escola Técnica Estadual (ETEC), situada na Zona Leste da cidade de São Paulo, a escolha foi motivada em função de uma das pesquisadoras atuar como docente no Ensino Médio na instituição. As ETECs são administradas pelo Centro Paula Souza (CPS), autarquia do Governo do Estado de São Paulo, criado pelo governador Roberto Costa de Abreu Sodré pelo Decreto-lei de 06 de outubro de 1969, com a finalidade de realizar e desenvolver a educação tecnológica, nos graus de Ensino Médio e Superior. O órgão está vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico e administra as 223 unidades das Escolas Técnicas (ETECs) e as 73 Faculdades de Tecnologia (FATEC’s) do estado de São Paulo.
A segunda etapa, por sua vez, pautou-se em entrevistas narrativas, guiadas pelo roteiro descrito acima. Participaram desta etapa três jovens. Cabe salientar que estes jovens estavam no último ano do Ensino Médio e, portanto, não haviam cursado a disciplina Projeto Integrador, responsável por desenvolver projetos de vida nas ETECs, pois a mesma foi inserida no currículo nos anos iniciais do Ensino Médio, após eles os terem cursado. Como o objetivo era dialogar com os princípios da Pesquisa (auto)biográfica de modo a investigar as contribuições das narrativas para desencadear a elaboração de projetos de vida de alunos do Ensino Médio, foram escolhidos participantes que ainda não tinham vivido a experiência de elaborar um projeto de vida de modo a deixar mais claro se o roteiro formulado era capaz de desencadear narrativas que propiciassem aos jovens se projetar no futuro.
O estudo observou a Resolução 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre Pesquisa com humanos, as orientações do Comitê de Ética da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e as normas da Lei de Proteção de Dados (LGPD) da UNICID.
Assim, os jovens participantes da pesquisa foram informados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Livre Consentimento Esclarecido (TCLE). Visando assegurar a confidencialidade dos seus dados e a preservação dos seus nomes, optou-se pela utilização de pseudônimos. Em virtude da pandemia do Covid-19, as entrevistas foram concedidas por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp.
As entrevistas narrativas se distinguem como procedimentos que buscam aprofundar elementos presentes nas histórias de vida do entrevistado, visando estimular o sujeito a reconstruir acontecimentos marcantes.
Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social. Contar histórias implica estados intencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que confrontam a vida cotidiana normal (Bauer, 2002, p. 91).
Para efeito deste artigo, foi selecionada uma das entrevistas. A escolha se deu por optarmos por uma análise mais profunda que não poderia ser realizada no contexto de um artigo se inseríssemos as entrevistas realizadas com os outros participantes. Esta perspectiva nos aproxima de Ferrarotti (2014, p. 79) ao afirmar que um “homem não é nunca um indivíduo: seria melhor chamá-lo um universo singular: totalizado e, ao mesmo tempo, universalizado por sua época, que ele retotaliza ao se reproduzir nela com singularidade”. Tínhamos como proposta entender como uma das participantes interpretou suas relações com os outros no ato de contar sua trajetória, mais especificamente como ela transformou as experiências vividas em experiências narradas a partir das questões desencadeadoras. Segundo Passeggi, Furlanetto e Biasoli (2022), esse conhecimento de caráter epistêmico, experiencial e (auto)biográfico guardado pelos participantes do estudo, constitui conhecimento para aqueles que realizam a pesquisa e, em última análise, para a compreensão do impacto das experiências sobre o entrevistado.
Análise da narrativa de Helena
Ao se considerar que na história de cada um dos alunos, muitas vozes se entrecruzam, não expressando somente uma vida, mas também, outras vividas em contextos semelhantes, a análise dos dados traz a jovem Helena, que, no seu universo singular, revela o contexto de muitos jovens em situação de vulnerabilidade no Brasil que podem se beneficiar da oportunidade de elaborar seu projeto de vida. Helena (Entrevista, 2022), a participante que possui sua trajetória analisada no contexto deste artigo se apresentou da seguinte forma: “Olá, eu sou, Helena tenho 18 anos e moro no bairro Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo com meu pai e meus quatro irmãos, a gente se mudou pra cá vai fazer sete anos, antes morávamos no Santo André, grande ABC”.
Na sequência, sua narrativa apoiou-se nas duas primeiras perguntas: Como posso contar minha história? Quais as experiências e as influências que me marcaram?
Optou-se por formular essas questões, considerando que frente a elas, o jovem seria estimulado a contar sua história, o que implica localizar experiências e influências que o marcaram, uma vez que para saber onde se quer ir requer saber de onde se veio. Concordamos, então, com Josso (2010, p. 263) ao dizer que narrar a vida “possibilita uma organização sinergética de uma herança revisitada, aqui e agora, à luz dos desejos das questões do presente, e do devir em invenção, povoado de múltiplas expectativas, projetadas desde a, infância”. Nesse ponto de vista, um movimento de evidenciar e questionar heranças, de perceber continuidades e rupturas se instala, de forma a compreender que a vida tem um curso ainda inacabado, e ter mais clareza sobre as futuras decisões.
Estimulada por essas questões, Helena recuperou parte de sua trajetória, destacando a importância da família na constituição de sua subjetividade. As sociedades contemporâneas nos mostram que não existe somente um modelo de família e que mesmo as famílias não se organizando de forma tradicional, podem cumprir seu importante papel na constituição das subjetividades daqueles que as compõem, visto que são capazes de se tornar uma rede de proteção ou não, independentemente, da forma como são constituídas, mesmo passando por conturbações inerentes à vida:
Meus pais se separaram, eu tinha por volta dos oito anos, e não foi surpresa pra nenhum de nós, a verdade é que foi um alívio para todos nós, principalmente pra mim e para minhas irmãs, [...] porque a gente viveu muitas coisas, discussões, mentiras, tortura psicológica, um casamento conturbado, era muita responsabilidade, então logo depois minha mãe foi embora com meu irmão mais velho que tinha por volta de dezessete na época. Ela alegou que não queria nenhum dos outros filhos além do mais velho.
Meu pai sempre cuidou da gente, apesar de ser deficiente físico e aposentado, isso nunca limitou ele, pelo contrário ele sempre lavou, cozinhou, costurou, consertou as coisas, então ele fez de tudo pra criar todos nós, e faz até hoje, não foi fácil, a gente morava na favela, já passamos fome, muitos altos e baixos, e pra ajudar meu pai a gente também sempre fez tarefas domésticas, fazia compras no mercado, ajudava a consertar alguma coisa, caso precisasse. Tudo que estava no nosso alcance a gente fazia, com isso aprendemos ter responsabilidade e sempre cuidar uns dos outros (Helena, Entrevista, 2022).
Caminhando com Helena pode-se observar que sua família, apesar de não contar com a presença da mãe, encontrou uma maneira de se estruturar dividindo as responsabilidades entre todos que passaram a cuidar uns dos outros. Na perspectiva de Boutinet (1999), os itinerários de vida são permeados por rupturas e transições provocadas por acontecimentos internos e externos que contribuem para dar forma a uma história pessoal. Eles podem desencadear crises que na perspectiva de Dubar (2009) desestabilizam os elementos que dão sustentação às existências pessoais. Por sua vez, Furlanetto (2012) considera que as crises, por serem ameaçadoras, requerem revisões biográficas, mas se por um lado, desorganizam, por outro, provocam reflexões que permitem atingir outros patamares de consciência.
É possível perceber, pelo depoimento de Helena, que as situações limites permeiam sua vida, o que se repete com frequência nas trajetórias de jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social, sendo que nem sempre é possível transformar esses acontecimentos em possibilidades de crescimento como fez Helena (Entrevista, 2022): “Então apesar disso tudo não me deixo abater, pelo contrário, esse passado conturbado me serviu para amadurecer, valorizar pequenos detalhes, fortalecer minha amizade com meus irmãos”.
As experiências vividas em família por Helena estão carregadas de afeto e se constituem num fio condutor do relato de sua história da mesma forma que se apresentam como o fio condutor da constituição de sua subjetividade.
Além de falar das experiências que a marcaram, Helena (Entrevista, 2022) se referiu às pessoas que lhe influenciaram, mulheres fortes que ela encontrou fora do âmbito familiar. Quando criança teve como modelo as princesas da Disney:
A Disney faz parte da minha vida desde que me conheço por gente, eu amo seus filmes, tenho que só que agradecer o Walt Disney por criar esse mundo incrível, cada um dos seus filmes me ensinou uma lição de vida, mas as minhas princesas favoritas são a Princesa Tiana e Moana, a Tiana por me fazer nunca desistir dos meus sonhos, por me estimular a ir muito além do que as pessoas esperam de mim, e por me fazer lembrar que toda vez que estou perto de desistir que eu estou “quase lá”.
Vale lembrar que tanto Moana como Tiana, afastam-se do modelo tradicional de princesas, comumente loiras e frágeis à espera de um príncipe encantado para salvá-las. Moana é uma jovem polinésia e Tiana uma afrodescendente, como Helena. Elas representam outro tipo de mulher que se aventura na vida e para isso tem que enfrentar seus medos e obstáculos. Essas novas heroínas possibilitaram que Helena (Entrevista, 2022) encontrasse modelos com os quais pode se identificar e internalizar algumas atitudes delas frente à vida. Talvez o fato de não contar com a presença feminina em sua família reforçou sua busca por encontrar referências em modelos que se encontravam disponíveis. Enquanto foi crescendo, sua atenção se voltou às cantoras, artistas sempre destacando a força e coragem delas para lutar pelos seus sonhos: “Então muitas coisas me inspiram por exemplo no mundo dos famosos minha maior inspiração é a cantora Rihanna, e sinceramente não tenho a menor ideia do porquê disso, acho que seu jeito forte, independência, sua inteligência, sua voz linda e mestria de levar a vida profissional e pessoal que me inspira, me faz me sentir próxima e íntima”.
Por fim, Helena se volta para os mais próximos de sua realidade, como seus professores e amigos e confirma o que Dominicé (2006, p. 351) encontrou em suas pesquisas ao analisar narrativas dos jovens: “Eles evocam seus pais, seus professores, seus parceiros ou mentores ocasionais, como um treinador esportivo ou um mentor eclesiástico”.
Helena (Entrevista, 2022) diz ser grata não só aos famosos, mas aos que estiveram mais próximos dela, professores e amigos:
Como o Professor Cléber de Geografia e Leitura por me fazer entender quem realmente sou, o Professor Pablo de Sociologia e Filosofia por me questionar sobre o mundo, a Professora Renata de Artes e a Professora Érica de Português por me ensinarem o que é ser mulher nesse mundo domado pelo patriarcado, entre outros professores, sim são muitos, pelos meus amigos que estiveram comigo nos piores momentos da minha vida.
Helena nos estimula a dialogar com Cyrulnik (2016) que tem se dedicado a investigar a resiliência, considerada uma disposição para enfrentar e superar efeitos danosos provocados por crises e adversidades. Uma pessoa, em sintonia com as redes de proteção oferecidas socialmente, pode ativar uma capacidade restaurativa que não se apresenta da mesma forma em cada um, mas pode ser favorecida, entre outros fatores, pelo estabelecimento de vínculos significativos. Uma pessoa que cumpre este papel é chamada pelo autor de tutor de resiliência e eles ganham importância na vida dos jovens.
Esses podem ser encontrados em diferentes lugares, alguns são explícitos como médicos, assistentes sociais, psicólogos, enquanto outros são implícitos, elegidos entre aqueles que se disponibilizam a estabelecer uma relação suficientemente estável e acolhedora. Inclusive artistas, esportistas, escritores, entre outros, tornam-se modelos, instigando alguém, por meio de exemplos e de ideias, a ir em busca de saídas. Helena, como muitos jovens, buscou diferentes referências, assim como considerou que os professores citados no trecho acima, desempenharam uma função crucial para demonstrar outras possibilidades pessoais e profissionais, destacando a importância de ouvir uns aos outros no processo de descoberta de si, aprendendo a lidar com as relações que são estabelecidas em diversos contexto, vislumbrando possibilidades de seguir em frente em meio às adversidades.
Além das respostas motivadas pelo roteiro proposto elaborado com o objetivo de possibilitar o desenvolvimento de projetos de vida, outros personagens da história de Helena, mostraram-se relevante nesse processo de autoconhecimento e por isso mereceram destaque em sua narrativa. O entender sua história tornou mais simples pensar nas possibilidades em sua vida.
Para o jovem se projetar no futuro, outra questão pode ajudá-lo a traçar seu projeto de vida: quem estou sendo? Essa questão leva a olhar para o presente de modo a analisar como está vivendo sua vida no aqui e agora. O jovem é desafiado a reivindicar uma identidade que propicie uma certa unidade ao eu, mesmo que provisória, construída graças aos seus pertencimentos. Com as peças que localizou em sua trajetória, busca montar não uma obra definitiva que o represente, como tentavam fazer os pertencentes às gerações anteriores, porém uma instalação móvel, passível de ser remontada de forma a incluir outras experiências ainda a serem vividas. Helena (Entrevista, 2022) se referiu a ela como:
Uma menina preta, pobre e periférica cuja a realidade bate todo dia na minha cara, seja por amigos que desde de muito novos estão envolvidos com o crime ou drogas, seja por causa de amigas que já são mães ou estão atrás de namorados. [...] Foi diante desse cenário que eu cresci, eu nunca fui esse tipo de adolescente que vai para bailes funk, que bebe ou fuma, não julgo quem vai e quem faz, mas não é do meu perfil, e eu nunca me encaixei nesse mundinho limitado que me ofereciam, eu quero ir muito além disso e surpreender.
Mais uma vez, ela faz referência a sua condição de vulnerabilidade social. Diz ser marcada pelas circunstâncias de gênero, raça e local de nascimento. Entretanto, essas condições não a impedem de encontrar uma maneira de viver, entre outras opções que condizem com suas aspirações de lutar por uma vida que sonha conquistar, mesmo que isso custe deixar de frequentar lugares que jovens de sua idade escolhem para se divertir.
O que quero ser? Por meio do exercício de tentar construir uma resposta, o jovem lança-se no tempo, projetando sonhos, expectativas e esperanças de construir um futuro promissor. Essa pergunta abre possibilidades de se autorizar a explorar caminhos diferentes, até mesmo contraditórios, que favoreçam a percepção de diferentes formas que a vida pode assumir. Em suma, ela propõe uma mobilização de si mesmo para viver uma aventura em busca do vir a ser.
No caso de Helena, a sua história de vida está encaminhando para a escolha de uma profissão. Devido à separação conturbada de seus pais, entrou em contato com o mundo do direito que a fascinou e se apresentou como uma possibilidade de exercer a habilidade, desenvolvida em meio aos desafios que teve que enfrentar, de proteger e resolver conflitos. O que se pode depreender ouvindo Helena é o quanto as histórias de vida influenciam na escolha de uma profissão. Helena tem consciência disso, muitos, entretanto, fazem escolhas sem saber o que os levam nesta ou naquela direção e ao terem oportunidade de contar suas histórias descobrem que elas não se devem ao acaso, mas às experiências que compõem suas trajetórias. Como afirma Dominicé (2006) de modo geral os relatos biográficos revelam os quadros de referência nos quais os sujeitos se apoiam para compor sua história de vida. Helena (Entrevista, 2022) diz querer ser advogada:
A primeira coisa que me leva a essa profissão é meu extinto de proteção que esteve presente em todos os momentos da minha vida, seja com meus irmãos ou quem eu achava ser inocente diante das confusões alheias do dia a dia. [...] E em toda minha vida sempre foi assim, eu fui exposta em várias situações de escolher um lado, defender esse lado e argumentar para que outras pessoas entendessem meu ponto de vista, isso aconteceu por exemplo no caso da separação dos meus pais, tive que ser fria e analisar a situação com um olhar de alguém de fora, para escolher um lado e isso me fez desenvolver minha maneira de falar com as pessoas, falar em público sem ter receio de expor minhas opiniões. [...] O que me liga diretamente com o Direito são as leis, eu sempre achei muito fascinante em filmes e novelas o uso das leis para a defesa ou condenação de alguém, sem contar que amo o poder dos advogados, a maneira de falar, e de se vestir e de se comportar em público, o respeito e admiração que as pessoas têm por advogados me encanta muito.
Além de ajudar os outros, Helena busca uma profissão que ao seu ver é respeitada socialmente, sua história de mulher negra de periferia a levou compreender que a educação pode ser um caminho para encontrar um lugar no qual seja reconhecida e admirada. Ela busca se empoderar por meio de uma profissão que, na sua visão, possibilitará construir uma imagem de respeito com base no modo de falar, de se vestir e de se comportar.
Cabe ao jovem se deparar com a última pergunta: Como vou atingir minhas metas? Nesse sentido, observa-se que os projetos comportam sonhos e esperanças, mas também devem se ater à realidade. Esse passo é importante, pois, sempre, serão necessários investimentos. É bem provável que as conquistas pretendidas impliquem fazer renúncias e, para alcançar as metas propostas, é necessário apre nder a estabelecer prioridades. Esta etapa consiste em desenvolver um plano que contenha passos a serem dados, os quais servirão de bússola para guiar as etapas subsequentes. Helena (Entrevista, 2022) sabe que além de sonhar é necessário estabelecer metas que possibilitem que desejos se concretizem e mostra que já tem um plano em ação:
E eu sempre quis e quero provar que todos meus sonhos vão se tornar realidade! Pra mim esses sonhos eu vejo como metas estipuladas que eu quero alcançar nos próximos anos, eu quero muito mais que sonhar, quero realizar. [...] Então encontrei soluções simples como estudar muito, eu sempre me esforcei pra ser uma das melhores ou senão a melhor aluna da sala, não me envolver com pessoas que frequenta esses lugares e fazem coisas erradas.
O entorno em que vive não facilita seu caminho, precisa fazer escolhas que a diferenciam dos demais, o que é difícil para os jovens que costumam construir uma identidade grupal e para isso adotam os comportamentos comuns:
Percebi que não me importo de passar noites em claro fazendo lições e estudando que seja para a escola, Etec ou Enem, eu não me importo de não ir para festinhas com meus amigos sair para beber, essas coisas, não tenho pressa de arrumar um namorado agora, não vejo como uma prioridade, muito menos uma necessidade. Eu simplesmente não me importo, sei que todo esse esforço vai compensar no final (Helena, Entrevista, 2022).
Para isso, Helena (Entrevista, 2022) conta com o vínculo estabelecido com o pai que não quer decepcionar: “Esta busca incansável de ir além dessa realidade é acima de tudo para não decepcionar a pessoa que mais acredita em mim, meu pai, acho que essa é a única maneira de retribuir tudo que ele já fez por mim, é dando tudo em dobro pra ele”.
O depoimento de Helena reforça a importância da família nos processos de constituição subjetiva dos jovens, o fato delas terem configurações que se distanciam do modelo tradicional de família, não diminui sua importância e o poder de acolher seus participantes. Mesmo em meio aos conflitos que permeiam as relações familiares, tornam-se um porto seguro, onde se pode parar para reabastecer as energias e encontrar apoio para seguir em frente.
Considerações em aberto
O objetivo da pesquisa que inspirou o presente texto foi dialogar com os princípios da pesquisa (auto)biográfica de modo a investigar as contribuições das narrativas existenciais para desencadear a elaboração de projetos de vida de alunos do Ensino Médio, a partir das normativas da BNCC, que começaram a ser obrigatórias em 2022, nas escolas públicas e privadas.
O diálogo com autores que tradicionalmente vem desenvolvendo estudos sobre a pesquisa (auto)biográfica que incluem discussões sobre projetar a vida, possibilitou a elaboração de um roteiro composto por perguntas desencadeadoras, com o intuito de estimular o delineamento de projetos de vida por parte de jovens que frequentam o Ensino Médio.
A narrativa de Helena permitiu observar, inicialmente, que o roteiro proposto estimulou a jovem a realizar a sua (auto)biografia. As perguntas desencadeadoras a levaram a colocar em cena experiências vividas, que possibilitaram ser quem ela é. Ao narrar, uma pulsão de vida se fez presente desencadeada, num processo de auto-organização biográfica que permitiu ir além dos acontecimentos vividos, mediante um movimento espiralar, em torno das marcas deixadas por eles em busca de sentidos.
Jovens, como Helena, apesar de estarem muito enredados no presente, são capazes de lançar olhares para o futuro. No entanto, é necessário destacar nos apoiando em Boutinet (2019), que o projeto pessoal do jovem, frente à tarefa existencial de fazer escolhas, pode caminhar em sentidos opostos: o de uma intenção portadora de uma visão criativa de um futuro possível, ou de uma atitude defensiva que subjuga a intenção criativa de forma a transformar um futuro possível em um futuro determinista. Helena destaca-se por buscar afastar-se de um futuro previsível que a poderia levar a repetir histórias de muitos com quem convive. Muitos jovens como ela que vivem em regiões de vulnerabilidade social, não encontram saídas satisfatórias para suas vidas.
Frente a isso, Helena já tomou algumas decisões relacionadas ao seu projeto pessoal, participou de uma seleção e foi aceita em uma Escola Técnica Estadual (ETEC), o que demonstra um compromisso com sua trajetória acadêmica, pautada na crença que a Educação pode levá-la a ultrapassar os limites impostos pela sua condição social de “mulher negra e periférica” como ela se autodenomina. No entanto, além de estudar e ser uma boa aluna, ainda não vislumbra outras ações que possibilitariam traçar um caminho concreto em busca de seus objetivos.
Alinhar o planejamento a longo prazo, ou seja, como se projetar nos próximos cinco anos, é uma tarefa árdua, tendo em vista, os imprevistos e rupturas presentes nas vidas dos jovens. Apesar disso, é importante que eles façam esse exercício, mesmo que seja necessário, de tempos em tempos, fazer revisões para viabilizar seus projetos. O importante é que ao relatar sua história, Helena se deparou com aspectos de sua subjetividade, forjados no enfrentamento de desafios, comprometidos com a verdade, com a justiça, com os outros e com o desejo de sair da situação em que se encontra. Ela está a caminho e ao narrar pode se apossar de sua história que configura seu presente, mas que também pode impulsioná-la a um futuro por ela desejado.
A narrativa de Helena é um convite para que as escolas, os gestores, os coordenadores, os professores, as famílias e as comunidades reflitam sobre como adotar práticas que contribuam para a formação cidadã, respeitando a individualidade e a subjetividade de cada jovem na construção do seu projeto de vida.
Fontes
HELENA. Entrevista concedida à Priscila Lima Pio. São Paulo, 2022.
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