Temática livre
Celso Furtado: homem, obra e caminho
Celso Furtado: man, work and path
Celso Furtado: hombre, trabajo y camino
Celso Furtado: homem, obra e caminho
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 37, e2024014, 2024
Universidade Estadual do Paraná
Recepción: 03 Noviembre 2021
Aprobación: 20 Enero 2023
Resumo: O objetivo principal deste ensaio foi homenagear - ainda que de forma breve e tardia - o economista e escritor Celso Furtado. Para isso, se fez um apanhado de sua biografia e atuação na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). A partir desses pontos, foram selecionadas informações sobre sua formação pessoal e preocupação social que se acredita ver revelada na presença de tal órgão estatal, em outras ações e também muito de sua produção. Além disso, se pretendeu rememorar os principais eventos que marcaram a trajetória do homenageado. Espera-se, assim, que a história de Furtado contribua para identificar seu papel no debate nacional que levou à inserção do tema da pobreza e do desenvolvimento na agenda da governança, a partir do ano de 1950.
Palavras-Chave: Celso Furtado, Biografia, SUDENE, História.
Abstract: The main objective of this essay is to honor - albeit briefly and belatedly - the economist and writer Celso Furtado. To this end, a gathering of his biography and performance in the Superintendence of Development of the Northeast (SUDENE) was made. Based on these points, information was selected on his personal background and social concern, which is believed to be revealed in the presence of the aforementioned state agency, in other actions, and also in much of his production. In addition, it was intended to recall the main events that marked the honoree’s trajectory. It is hoped, thus, that Furtado's history will help to identify his role in the national debate that led to the inclusion of the theme of poverty and development in the governance agenda, from the year 1950 onwards.
Keywords: Celso Furtado, Biography, SUDENE, History.
Resumen: El principal objetivo de este ensayo fue homenajear, aunque sea de forma breve y tardía, al economista y escritor Celso Furtado. Para ello, se hizo un repaso de su biografía y desempeño en la Superintendencia de Desarrollo del Nordeste (SUDENE). A partir de estos puntos se seleccionó información sobre su trayectoria personal y preocupación social que se cree ver revelada en su presencia en ese organismo estatal, en otras acciones y también en gran parte de su producción. Además, se pretendía recordar los principales hechos que marcaron la trayectoria del homenajeado. Se espera, por lo tanto, que la historia de Furtado ayude a identificar su papel en el debate nacional que llevó a la inclusión del tema de la pobreza y del desarrollo en la agenda de la gobernabilidad, a partir del año 1950 en adelante.
Palabras clave: Celso Furtado, Biografía, SUDENE, Historia.
Introdução
Este texto foi dividido em três partes. A primeira procurou recuperar os principais momentos da vida do economista e escritor Celso Monteiro Furtado, a saber: infância, adolescência e fase adulta. A segunda, focou a tentativa de se empreender o desenvolvimento econômico e social da região Nordeste do Brasil, por meio da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). A terceira e última, à guisa de conclusão, buscou reunir as duas seções anteriores em uma tentativa de relacionar e explicar a participação do biografado naquele órgão a partir das preocupações sociais adquiridas ao longo do tempo por ele - em especial na juventude.
Este ensaio biográfico é uma maneira de homenagear Celso Furtado, figura política de destaque. Por isso, se optou observar determinados aspectos da vida pessoal - como sua formação familiar e educacional -, para explicar, ou ao menos apontar, a relação entre a atuação dele pela diminuição da desigualdade social e o desenvolvimento econômico, estampada exemplarmente na construção daquela autarquia e outras ações empreendidas por ele.
O homem (biografia)
Nesta primeira seção, se escolheu seguir a vereda posta pela cronologia tradicional, inspirada no portal virtual do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento (Centro Celso Furtado)1. Essa escolha se justificou à medida que foi vislumbrada em seus dados, a oportunidade de salientar as etapas que se considerou mais importantes da jornada do homenageado a partir de informações seguras e consagradas.
Celso Monteiro Furtado nasceu na cidade de Pombal, no interior do antigo Estado da Paraíba do Norte, em 26 de julho de 1920. Esse município foi o primeiro centro populacional da região e, por isso, deu origem a outros núcleos habitacionais. Desse período, se destaca a antiga cadeia “que mantém ainda suas linhas arquitetônicas”, como que, “denunciando em nosso tempo, a introdução de um marco da era imperial no alto sertão paraibano” (Prefeitura de Pombal, 2022, s./p.). Se depreende, a partir de informações do conjunto de páginas na internet, pertencentes ao governo municipal, que, em este ano, a cidade comemorou 327 anos de fundação (ocorrida em 1695); 250 anos de elevação à condição de vila e de emancipação política (1772); e, 160 anos de sua transformação em cidade (1862) (Prefeitura de Pombal, 2022).
Ademais, no ano em que o economista nasceu, 1920, de acordo com dados do recenseamento nacional, a cidade possuía 19.299 habitantes (Brasil, 1928). Na mesma época, o Estado tinha uma população de 552.703 pessoas (IBGE, 2012) e a capital, João Pessoa (então chamada Paraíba), 52.990 (Brasil, 1928). Ou seja, Pombal contava com cerca 3,7% da população do Estado e 36% dos habitantes daquele que deveria ser o principal núcleo estadual (a capital). Esse breve exercício matemático permite mensurar a importância da cidade: “Quando chegava algum carro, todo mundo corria para olhar. Era sempre um fordeco. Não havia nenhum na cidade. Em 1926, quando tinha 6 anos, fiz uma viagem para a capital. Para voltar, meu pai alugou um carro com chofer e voltamos de automóvel. Antes, para ir à capital, íamos a cavalo até Campina Grande e lá pegávamos o trem” (Toledo, 1999, s./p.).
Em 1927, a família Furtado fixou residência na capital do Estado. Os estudos no segundo segmento do Ensino Fundamental e no Ensino Médio se iniciaram poucos anos depois (1932), no Liceu Paraibano, e - mais tarde (1938), já em Recife (PE) -, no Ginásio Pernambucano (Furtado, 2019, p. 37):
Em março de 1938 muda-se para o Recife, onde por um ano cursa o pré-jurídico, que preparava os jovens para o curso de Direito. Recife representou o desafio de morar sozinho, aos dezessete anos, e estudar no prestigioso Ginásio Pernambucano, que com seus novecentos alunos assustava o rapaz vindo da acanhada João Pessoa em que os estudantes do liceu formavam um grupinho de amigos.
Como muitos outros jovens do interior do país, Celso Furtado se apresentou para prestar o serviço militar aos dezessete anos - no mesmo período em que terminava sua educação básica. Segundo a escritora Rosa D’Aguiar (Furtado, 2019), o chamado “tiro de guerra” foi feito à noite, ainda durante o ano de 1937, e lhe conferiu o “certificado de reservista do Exército” e preparou - sem o saber, naturalmente - para atuar como membro da Força Expedicionária Brasileira (FEB), anos depois2.
Além disso ele morou em pensões nos bairros do Flamengo, da Glória e da Lapa, no Rio de Janeiro, quando veio morar na cidade em 1939, com o intuito de cursar o Nível Superior em uma faculdade de Direito de maior importância (Toledo, 1999). O que aconteceu no ano seguinte, ao ingressar na Faculdade Nacional de Direito, da antiga Universidade do Brasil; hoje, unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sobre sua passagem por aquela instituição, Celso Furtado (apud Garcia Junior, 2016, p. 257) recordou:
Quando entrei na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, os estudos de Ciências Sociais estavam apenas em seus começos. Uma reforma recente, de inspiração francesa, introduzira esses estudos visando a formar professores para as escolas secundárias. A economia ainda não existia como estudo universitário. O Direito era o caminho para a atividade pública e, no meu caso, a tradição familiar.
Seu primeiro emprego surgiu na mesma época, na “Revista da Semana”3. Era secretário de redação. Depois galgou o cargo de repórter e, um pouco mais tarde, se tornou crítico de música do periódico. Rosa D’Aguiar (2015, p. 123) descreveu assim esse momento:
Ganhou a vida, de início, como jornalista na Revista da Semana, publicação de prestígio à época, para a qual escreveu sobre a atualidade cultural da capital da República - a presença de Orson Welles no Rio de Janeiro, por exemplo -, assuntos nacionais e internacionais - o pan-americanismo, os combates de Gandhi contra o colonialismo inglês, a Segunda Guerra Mundial.
Também foi aprovado nos concursos públicos para Assistente de Organização, do Departamento Administrativo do Setor Público (DASP), órgão federal, e para Técnico de Administração do Departamento de Serviço Público - uma autarquia estadual do Rio de Janeiro. O primeiro em 1943; o outro, no ano seguinte:
Foi no terceiro ano da faculdade que, motivado pelo que aprendia nas aulas de direito administrativo, Celso prestou o concurso para assistente de organização do Departamento de Administração do Serviço Público (DASP). Um ano depois, fez outro concurso, desta vez para técnico de administração do Departamento de Serviço Público do estado do Rio de Janeiro. Nos dois, passou em primeiro lugar (D’Aguiar, 2015, p. 123).
Envolto pelo ambiente encontrado no serviço público, escreveu seus primeiros artigos sobre administração e organização, em 1944, para a “Revista do Serviço Público”, do mesmo DASP. Mas, a carreira de funcionário foi interrompida quando convocado para a participar da Força Expedicionária Brasileira - episódio já referido anteriormente -, em razão da declaração de guerra do Brasil aos países que compunham o chamado “Eixo”, na Segunda Guerra Mundial4. De acordo com o antropólogo Afrânio Garcia Junior (2016, p. 257):
O serviço militar, prestado no momento em que o governo brasileiro decidiu atender aos apelos de Roosevelt para que o Exército brasileiro participasse da guerra, vai significar a partida para a campanha da Itália, no período da ofensiva final dos aliados. A ida à Europa, respirar os “ares do mundo”, altera radicalmente suas chances de carreira tanto do ponto de vista intelectual como de acesso à alta administração do Estado.
Após a guerra, Celso Furtado retomou sua formação acadêmica. Em 1948, obteve o grau de Doutor em Economia pela Universidade de Paris. Sua pesquisa, sobre a economia colonial brasileira lhe abriu caminho aos círculos dirigentes nacionais e internacionais. Esse momento foi resumido por Rosa D’Aguiar (2015, p. 123), ao destacar que:
Quanto aos estudos, optou por seguir para a França. Ao chegar a Paris, nos primeiros dias de 1947, matriculou-se no Institut d’Études politiques, a prestigiada Sciences Po, onde fez cursos de história do socialismo, de marxismo, de história das ideias políticas. Na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris inscreveu-se no doutorado e, sob a orientação de Maurice Byé, professor de economia que estivera no Brasil durante a Segunda Guerra, defendeu em 1948 a tese A economia colonial brasileira nos séculos XVI e XVII, que obteve a menção très bien.
Em 1948 se casou com a cientista argentina Lúcia Piave Tosi. Graduada em Química pela Faculdade de Ciências Exatas, Físicas e Naturais, da Universidade de Buenos Aires, nesta “desenvolveu seu trabalho de doutoramento em Eletroquímica, tendo obtido o título de Doutora”, em 1945. Ao falecer em 2007, deixou contribuições para o estudo das ciências da natureza e trabalhos historiográficos sobre a própria Ciência e do papel do “feminismo e do papel das mulheres na Ciência” (Beraldo, 2014, p. 552).
Em fevereiro de 1949, Celso Furtado mudou-se para a cidade de Santiago, capital do Chile. Fora convidado para trabalhar na Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão das Nações Unidas. Com o tempo, essa entidade se transformou “na única escola de pensamento econômico surgida no Terceiro Mundo até hoje” (Furtado, s./d. apud Aquino; Queiroz, 2004, p. 20). Ali, se dedicou a pesquisar questões econômicas e elaborou seus primeiros textos sobre o tema; inclusive aquele que foi intitulado “Esboço de um programa de desenvolvimento, período de 1955-1962”, e serviu de base ao “Plano de Metas” do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961)5.
Segundo Rose D'Aguiar (2015, p. 124):
Foram quase dez anos, entre 1949 e 1957, que lhe permitiram ter contato direto com os desafios dos países latino-americanos e mergulhar na problemática do subdesenvolvimento sobre a qual faria suas primeiras teorizações. Essa geração dos fundadores da Cepal - a dos anos 1950 -, de que Celso foi um protagonista maior, soube transformar essa simples agência das Nações Unidas na primeira, e […] das mais profícuas e influentes, escola de pensamento econômico da América Latina, e mesmo do Terceiro Mundo. Ali, aqueles jovens economistas e cientistas sociais do continente fizeram teorizações pioneiras.
Esse primeiro momento foi concluído em 1957, quando de sua ida para a Universidade de Cambridge, no Reino Unido, para fazer pós-graduação no King’s College. Nesse ambiente, escreveu “Formação econômica do Brasil” que, segundo Bielschowsky (2020), é seu livro mais conhecido em nosso país. Foi traduzido em nove idiomas. Autor profícuo, publicou cerca de 35 livros em vida (Bicalho, 2016).
Em 1959, já no Brasil, assumiu uma diretoria no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Naquele período, o Nordeste passara por uma das piores secas do século XX, que forçou o deslocamento de aproximadamente meio milhão de pessoas (Lima; Magalhães, 2018). O então presidente Juscelino Kubitschek, o nomeou interventor no Grupo de Trabalho do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN). Neste, elaborou o estudo “Uma política de desenvolvimento para o Nordeste”, origem do Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO) - que era constituído por representantes de órgãos do governo federal e pelos governadores estaduais do Nordeste. Pelo seu trabalho, foi designado secretário-executivo do Conselho (Aquino; Queiroz, 2004).
No final daquele ano, o Congresso Nacional aprovou a legislação que criou a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), autarquia federal com sede em Recife (PE), subordinada diretamente à Presidência da República, e que tinha a incumbência de desenvolver políticas públicas que transformassem o Nordeste brasileiro. Celso Furtado foi indicado superintendente desse órgão (Aquino, 2004), sendo confirmado e mantido no cargo pelos presidentes que vieram a seguir: Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964).
Foi durante a vigência do parlamentarismo6, no que se pode chamar de “primeira fase” do governo Goulart (1961-1963), que o economista se tornou o primeiro titular do Ministério do Planejamento - concebido naquela gestão (1962). Nesse cargo, elaborou o “Plano Trienal”, apresentado ao país por ocasião do plebiscito sobre o regime de governo. Como sintetizado pelos professores Laura Christina Aquino e Ronald Queiroz (2004, p. 12):
Em 1962, no regime parlamentar do presidente João Goulart, Celso Furtado foi nomeado primeiro titular do Ministério do Planejamento. Elaborou o Plano Trienal, que foi apresentado à nação por Goulart, por ocasião do plebiscito que, objetivava confirmar o parlamentarismo ou restabelecer o presidencialismo. No ano de 1963, Celso Furtado deixou o Ministério do Planejamento e retornou à superintendência da SUDENE.
De volta à direção da SUDENE, lhe coube elaborar e implantar uma estratégia de incentivos fiscais para os investimentos na região. Entretanto, o golpe de Estado de 31 de março de 1964 interrompeu esses planos. Incluído entre os cassados pelo Ato Institucional n. 1 (AI-1), teve seus direitos políticos retirados por dez anos e foi obrigado a partir do país em exílio. Sem esclarecer sua fonte, Aquino e Queiroz (2004, p. 14) reproduzem a narrativa de Celso Furtado nos dias que se sucederam ao golpe:
Havia que cuidar do imediato. O cachorro […], dei-o ao filho do vizinho, que a ele se afeiçoara. O que havia de utensílios de copa e cozinha, dei-os à senhora que cuidava da casa. Os livros, Osmário Lacet, meu chefe de gabinete e amigo de todas as horas, encarregou-se de providenciar seu encaixotamento e despacho para o Rio de Janeiro. Dois dias depois de meu enclausuramento voluntário, visitou-me um dos mais graduados militares […] que trabalhavam sob minhas ordens na SUDENE e nas empresas por estas criadas. Mostrou-me constrangido um papel assinado pelo comandante do IV Exército, incumbindo-o de me substituir, pequeno fato que vinha me alertar de que já não vivíamos em estado de direito, instalara-se no país uma ditadura militar. Mas, pelo menos, era alguém que tinha respeito à obra que havíamos realizado. Prontifiquei-me a ir com ele até a SUDENE para entregar-lhe as chaves de meu gabinete, o que me permitiu recolher meus papéis pessoais, os quais foram transportados para minha residência em veículo oficial. Muitos de meus auxiliares mais diretos haviam buscado refúgio pois a caça às bruxas já se desencadeara.
Ele viajou para o Chile, a convite do Instituto Latino-Americano para Estudos de Desenvolvimento (ILPES) e, depois para New Haven [Connecticut], nos Estados Unidos. Lá, se tornou pesquisador graduado do Centro de Estudos do Desenvolvimento, da Universidade de Yale, instituição norte-americana de Ensino Superior privado, fundada no início do século XVIII.
No segundo semestre de 1965, convidado pela direção da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas, da Universidade de Paris, assumiu a cátedra de professor de Desenvolvimento Econômico. Foi o primeiro estrangeiro nomeado para lecionar em uma universidade francesa. Lá permaneceu por vinte anos.
Primeiro na Universidade de Yale, depois, a partir de setembro de 1965, de volta à Sorbonne, ele é por 20 anos professor de economia do desenvolvimento e de economia latino-americana, estendendo sua atividade docente a várias outras universidades, como as de Cambridge [Inglaterra], American [em Washington, DC] e Colúmbia [Nova York], ou à Universidade das Nações Unidas, em Tóquio (D’Aguiar, 2015, p. 125).
Após a Anistia Geral7, em 1979, Celso Furtado retornou com regularidade ao Brasil, reinserindo-se - aos poucos - na vida política do país. Nesse mesmo ano, se casou, pela segunda vez, com a jornalista Rosa Freire D’Aguiar; que havia conhecido durante seu exílio na França (Bicalho, 2016).
Rosa Freire D’Aguiar Furtado nasceu em 28 de agosto de 1948, no Rio de Janeiro. Formou-se bacharel em Comunicação/Jornalismo pela PUC-RJ e trabalhou em diversos órgãos de imprensa, como as revistas Fatos & Fotos, Manchete e Pais & Filhos. Também foi correspondente em Paris da revista Isto é e do Jornal da República, de São Paulo. (Machado; Costa, 2022, s./p.).
A convite do recém-eleito presidente da República, Tancredo Neves, e já filiado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), desde 1981, fez parte da Comissão para o Programa de Ação do Governo (COPAG), encarregada de elaborar um plano de ação para o novo governo. Porém, com o falecimento de Tancredo, assumiu o posto de embaixador do nosso país junto à Comunidade Econômica Europeia (D’Aguiar, 2015, p. 126).
Sobre o momento da história brasileira que se estende de 1985 a 1990, Celso Furtado, em entrevista concedida ao jornalista e editor especial da Revista Playboy, Roberto Pompeu Toledo (1999, s./p.), em 1999, declarou:
Foi um momento de muita esperança. Mas, dois ou três anos depois, ficou claro para mim que havia incapacidade da máquina administrativa para responder a qualquer iniciativa. Eu conhecia bem o governo, de outra época, e fiquei impressionado com a deterioração da máquina administrativa. Em parte, atribuo isso à mudança para Brasília, feita às carreiras. Muita gente boa acabou ficando de fora. Também percebi que a classe política tinha se adaptado à ditadura. Os militares tiveram a habilidade de não dissolver formalmente o Parlamento, mas faziam a seleção negativa: quando aparecia alguém de valor, cortavam-lhe a cabeça. As consequências foram enormes. Governar passou a ser muito difícil.
Empossado como novo presidente, José Sarney convidou Celso Furtado para assumir o Ministério da Cultura em 1986. Nele, permaneceu por quase três anos. Sob sua gestão foi elaborada a primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura. Cognominada Lei Sarney (Lei n. 7.505), foi sancionada no dia dois de julho daquele ano. Rosa D’Aguiar (2015, p. 126) relembrou as dificuldades da pasta ministerial:
Além de dar rumo e prumo a um ministério que, em apenas nove meses de vida, já estava em seu terceiro titular, Celso soube enfrentar as costumeiras relações conflituosas (e não só no Brasil) entre cultura e Estado. Convencido de que a um Ministério da Cultura cabia não tanto produzir cultura, mas mediar e democratizar seu acesso, implementou a primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura, a então chamada Lei Sarney, em muitos aspectos bem mais moderna e descentralizadora que as sucedâneas.
Assim, o tema da cultura continuou presente em sua vida profissional, mesmo quando deixou o ministério: em 1993, se tornou membro da Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, da Organização das Nações Unidas, presidida pelo diplomata peruano Javier Pérez de Cuéllar (1982-1991).
Como reconhecimento à sua produção na literatura, seja ficcional ou científica, Celso Furtado - então com 77 anos - foi eleito, em 1997, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), para ocupar a cadeira anteriormente reservada ao antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Seis anos depois, foi também eleito membro da Academia de Ciências, entidade fundada em 1916, que atua para a formulação de subsídios científicos às políticas públicas para o desenvolvimento científico. No mesmo ano, economistas da América Latina, além de personalidades mundiais, encaminharam seu nome ao Comitê do Prêmio Nobel de Economia, em Estocolmo. Um grupo integrado por antigos ministros “como Hélio Jaguaribe, Eduardo Portella, Marcílio Marques Moreira, o professor Cândido Mendes, a economista Maria da Conceição Tavares”, entre outros, formalizou a candidatura no final de 2003 (Agência Brasil, 2003, s./p.).
Em novembro de 2004, faleceu em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, aos 84 anos. Mesmo ano em que recebera um tributo por sua contribuição ao pensamento econômico e ao desenvolvimento, na sessão inaugural da 11ª Reunião da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, do nome em inglês) - órgão intergovernamental permanente criado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1964. Por ocasião de seu falecimento, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou luto oficial por três dias (Brasil, 2004).
A obra (SUDENE)
Como já referido na primeira parte deste ensaio, Celso Furtado foi convidado para assumir a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste em 1959, quando da criação da instituição. Na SUDENE, implantou uma política de incentivos ao crescimento daquela região, que se prolongou por três governos sucessivos, e tornou o Brasil pioneiro na procura por instrumentos e ações que alavancassem o progresso local - na opinião de estudiosos do tema (Diniz, 2009).
Embora produto das circunstâncias políticas e econômicas então existentes, a importância da participação do economista na criação do órgão não pode passar despercebida. A estratégia para “alavancar” a economia do Nordeste encontra abrigo no relatório produzido por ele mesmo: “Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste”, ao tempo do Grupo de Trabalho do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) - já mencionado anteriormente e também chamado “Relatório Furtado”. Nesse documento, ele repudiava “as medidas hídricas até então tomadas, e sugeria uma reformulação visando à reestruturação da economia rural e uma intensificação do processo de industrialização” (Albuquerque, 1971, p. 98).
A Superintendência, rememorou Laura Aquino (2004, p. 114), foi estabelecida em um momento imperioso:
onde as condições objetivas e subjetivas do Brasil e do mundo eram favoráveis, e até necessitavam de um empreendimento daquela natureza, pois o Nordeste brasileiro vivia um clima de intensa agitação social, sobretudo com o advento das Ligas Camponesas na região, causando preocupação no governo dos Estados Unidos, no governo brasileiro e em suas respectivas elites.
A instituição possibilitou ao governo federal ter uma ferramenta fundamental que o capacitava a “formular uma política de desenvolvimento para o Nordeste”; mas, também, o habilitava a “modificar a estrutura administrativa [de governança] em função dos novos objetivos [políticos]” (D’Aguiar, 2009, p. 35).
Como superintendente e buscando usar a SUDENE “como um veículo para transformar o papel do Estado na estrutura do país, que deveria passar a atuar como um promotor do desenvolvimento” (Tenório; Wanderley, 2018, p. 520), ele pôde levar à frente “as reformas necessárias para superar o imobilismo social e mitigar as estruturas de privilégios que contribuíam para perpetuar a situação de subdesenvolvimento da região” (Wasques, 2020, s./p.).
Além de propiciar novas oportunidades de emprego para a população local e a reestruturação agrícola, mediante “um programa racional de resistência às secas” e um incremento das áreas cultivadas para fins de comércio, “principalmente com vistas ao suprimento adequado de produtos alimentares e de matérias-primas aos centros urbanos e industriais”, o objetivo básico do órgão era o investimento no processo de industrialização para fazer com que a região fosse menos vulnerável “às secas periódicas e às instabilidades do mercado internacional” (Albuquerque, 1971, p. 98).
Em seu discurso de posse, de acordo com D’Aguiar (2009, p. 168), Celso Furtado ressaltou as qualidades e o “destino” que gostaria de ver marcados na SUDENE - o que parece conseguiu durante sua gestão:
Por último, cabe ressaltar na Lei da Sudene a reforma administrativa que contém. Constitui este o primeiro órgão de administração direta, no Brasil, que em seu amplo quadro de técnicos não contará praticamente com funcionários públicos e terá todo o seu pessoal trabalhando em regime de tempo integral […]. Reconheço que a Sudene não é um órgão do Estado tradicional prestador de serviços, e sim do Estado moderno promotor do desenvolvimento […]. A Sudene […] até o fim deste ano, terá em seus quadros mais de uma centena de técnicos em Nível Superior.
Embora documento escrito por várias “mãos”, o “Primeiro Plano Diretor para o Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste”, à autarquia, foi fortemente baseado no Relatório Furtado. Ao abranger os anos de 1961 e 1963, as diretrizes traçadas tinham por base: (1) que o nível de vida da região Nordeste era uma das mais precárias; (2) que a região tinha potencial de desenvolvimento; (3) o patrocínio do poder público era necessário. Havia ênfase na construção de usinas siderúrgicas, o que já pode ser encontrado ao trabalho anterior de Furtado, no GTDN, e - peça-chave da ação do órgão - permitia a qualquer empresa desconto de até 50% no imposto de renda devido ao governo federal, por qualquer investimento realizado na região. Esse desconto era a base dos incentivos fiscais, atividade mais bem-sucedida da SUDENE (Levy, 1981).
Um segundo Plano Diretor foi lançado em 1964 e trouxe algumas mudanças em relação ao anterior, pois incluiu questões sociais, como treinamento de mão de obra, luta contra o analfabetismo, eletrificação rural e habitação popular. Itens imprescindíveis em uma região tão carente. Um instrumento de planejamento do desenvolvimento regional que indicava a direção comum das transformações que se deveria provocar naquela realidade.
No entanto, a construção da entidade não se deu de forma tranquila e nem foi bem recebida: as resistências foram muitas. O que obrigou uma ação contínua de Furtado para a aprovação, por exemplo, da lei que instituía o órgão. Na “Apresentação” das memórias do economista, Rosa D’Aguiar relembrou que este “corria de um gabinete a outro defendendo seu projeto e desfazendo intrigas de adversários que negociavam falsas fichas policiais a seu respeito” (Furtado, 2019, p. 8).
Nessa perspectiva, a SUDENE era parte vital daquilo que Juscelino Kubitschek chamara de Operação Nordeste, “também conhecida como Openo” (Cabral, 2011, p. 22): novas políticas de desenvolvimento para a região que respondessem às múltiplas pressões pelas quais passava o presidente. Outra face era o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO) - já referido anteriormente. Em ambas, Celso Furtado perseguiu sua “utopia viável, concreta” (Aquino, 2004, p. 141).
Após quase seis anos, Celso Furtado deixou a Superintendência. Sobre sua passagem pelo órgão restou o reconhecimento de que sua atuação, seja como um dos idealizadores seja como seu primeiro administrador, foi “uma das mais ricas experiências administrativas no país. […] Poder-se-ia mesmo dizer que utópica” (Tenório; Wanderley, 2018, p. 523).
Além do mais, a autarquia passou por transformações e crises em seus mais de 40 anos de existência, que acabaram por modificar seus objetivos e sua atuação; sempre enfrentando resistências e problemas. O professor Clélio Diniz (2009, p. 234), elencou esses problemas e resumiu, assim, o processo de mudanças:
A primeira, pelas graves crises sociais e pela força regionalista de sua elite. A segunda, pela preocupação com o controle político do vasto território [...]. As críticas a essas instituições, a alegada existência de corrupção e as mudanças na concepção e no papel do Estado, durante a era neoliberal, levaram ao esvaziamento e posterior fechamento da maioria delas. Foram mantidos a Suframa, o BNB e o Basa. A Sudene foi transformada em Adene e, posteriormente, recriada a Sudene. Movimento semelhante ocorreu com a Sudam, transformada em ADA e novamente recriada. A Sudeco foi extinta e recriada.
O caminho
Postos os dois pilares da abordagem que se deseja fazer neste ensaio, se enverada agora pelas estradas da memória; mesmo sabendo que nelas se pode aparentemente perder - ainda que apenas um pouco - a objetividade necessária8.
Celso Furtado nasceu em uma época na qual o declínio econômico e político do Nordeste já era admitido. Uma região eivada por períodos constantes de secas, onde a “Paraíba pequenina e boa” nunca desfrutou posição de destaque na federação nacional, segundo a professora emérita da Universidade de Berkeley, Linda Lewin (1993, apud Garcia Junior, 2016, p. 255):
De fato, nascido em Pombal, em 1920, no sertão da Paraíba, nada parecia o predispor a se tornar, aos trinta e poucos anos, um dos economistas mais influentes em toda a América Latina, como braço direito de Raúl Prebisch na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da Organização das Nações Unidas (Cepal/ONU), detentor de doutorado em economia, obtido na França, e redator do relatório de grupo misto Cepal/BNDE, que serviria de base para o “plano de metas” posto em prática pelo presidente Juscelino Kubitschek com o intuito de provocar “cinquenta anos de desenvolvimento no Brasil em cinco” (Garcia Junior, 2016, p. 254).
A região em que Furtado nasceu, nos anos 1920, pode ser considerada um “mundo marcado pela incerteza e pela brutalidade” (Aquino, 2004, p. 4). A também professora Laura Aquino afirmou que a infância do homem que viria a se tornar professor na Sorbonne foi, “decisivamente, selada pela ideia de que os perigos estavam por toda a parte, tanto do lado dos homens, quanto do da natureza”. Essa afirmação se fundamentou nas próprias memórias de Furtado, que presenciou “gente morrer na rua, a violência dos cangaceiros, ouviu histórias de secas devastadoras, foi vítima da enchente de 1924, que invadiu Pombal” (Aquino, 2004, p. 4) e arrastou parte de sua casa.
Apesar do ambiente adverso, a família lhe forneceu bases educacionais e culturais que podem ser consideradas um contraponto a situação de “violência” e “perigos” existentes ao redor do jovem. Seu pai, Maurício de Medeiros Furtado, era “advogado e professor de português”. Ele possuía uma biblioteca onde seu filho “cultivou desde a adolescência sua primeira paixão intelectual, a história”. Amor só igualado por outra que também “seria duradoura e decisiva: a literatura” (D’Aguiar, 2015, p. 122)9.
Meu pai era muito sério, tipicamente um juiz. Tinha uma grande biblioteca e me criei cercado de livros… Romances, literatura. Tinha também muitos livros de História. Havia em casa uma coleção grande, de uns vinte volumes - a História Universal de Cesare Cantú. Era um homem de leitura… graças a ele, desde minha infância li Swift, Defoe, R. L. Stevenson. E também graças a ele dispus de uma ampla biblioteca, o que me permitiu cultivar minha primeira paixão intelectual, a partir dos quatorze anos, que foi a História (Aquino; Queiroz, 2004, p. 5).
Sua mãe, Maria Alice Monteiro Furtado, descendia de uma família de proprietários de terras. Herdeira de um “coronel autoritário do sertão”, sabia ler francês e espanhol e, segundo Aquino e Queiroz (2004, p. 7), não se intimidava com as “cenas” do marido, revelando uma atitude incomum às mulheres de sua geração e meio social:
Minha mãe tinha um caráter muito forte. Ela tomava uma atitude, meu pai gritava, esperneava, mas depois cedia. Era como se soubesse que, efetivamente, ela tinha razão. A mulher tem sempre razão em certos assuntos. O pai dela foi coronel no sertão, um homem autoritário. Minha mãe lia francês e espanhol. Uma vez, meu pai comprou uma série de livros em francês, e também a Enciclopédia Universal, em espanhol. Quando fui para a capital do Estado, me acostumei a ler… (Toledo, 1999, s./p.).
Celso Furtado era um entre oito irmãos e tinha origem social que pode ser considerada privilegiada, pois descendia de magistrados em linhagem paterna - por três gerações - e de latifundiários em linhagem materna. Porém, nasceu em uma época em que a região semiárida, marcada pela periodicidade das secas e a constante violência, reduzia consideravelmente o capital social investido nele, pela sua família (Garcia Junior, 2016, p. 254).
A infância e parte da juventude, passadas entre Pombal e a capital do Estado, deixaram em seu caráter alguns traços que ele mesmo considerava como permanentes, “dos quais dificilmente eu poderia libertar-me sem correr o risco de desestruturar minha própria personalidade”. Esses elementos, foram descritos por ele como: primeiro, a ideia “de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens”. Em segundo, a noção “de que a luta contra esse estado de coisas exige mais que simples esquemas racionais”. Por fim, se tem a convicção “de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva” (Aquino; Queiroz, 2004, p. 16).
Ademais, Laura Aquino (2004, p. 4) já afirmou que, os episódios vividos na primeira infância transformaram Celso Furtado em uma pessoa cautelosa. Mas - alertou -, não o tornaram um homem amargo. Na opinião da professora, “a crueza da vida, no inóspito sertão paraibano, parece ter aguçado a sensibilidade do professor Celso para os problemas sociais”. E cita, sem mencionar a fonte: “Tenho a consciência aguda da angústia do outro […]. Que o Brasil tenha gente passando fome é um insulto à condição humana”.
Nesse sentido, as experiências vividas e os conhecimentos adquiridos na infância e adolescência aparentemente lhe forneceram “ferramentas” para a sensibilização com a conjuntura decadente de sua terra natal. A possível autenticidade dessa relação pode ser demonstrada por meio de várias situações. Por exemplo, quando indagado porque escolheu trilhar o caminho da economia na sua pós-graduação, assim ele explicou (Toledo, 1999, s./p.):
Isso é difícil de explicar. Minha inclinação foi pelas ciências sociais. Talvez tivesse a ver com o Nordeste, com o sertão. Por que essa miséria? Que responsabilidade temos nós? Por que uma população tão explorada? Essas questões me levaram a sair do Direito, que é algo cristalizado, para a Ciência Social. Comecei a me interessar pelo fenômeno do poder. Quem me influenciou nesse ponto foi [Karl] Mannheim [...], que também me orientou para o marxismo. Quando cheguei a Paris e conversei com Byé, logo lhe disse que o que me interessava era Economia. Ele disse que podia pedir a equivalência do meu curso de Direito na França e fazer doutorado em Economia. Fui o primeiro brasileiro a fazer doutorado em Economia na França.
O professor Renato Wasques (2020, p. 114) também ressaltou a “vivência sertaneja”, que - a seu juízo - teria deixado “marcas profundas” no economista. A partir das memórias reunidas por Rosa D’Aguiar (Furtado, 2013, p. 37), o autor acreditava que estas condicionaram a construção da “personalidade pública” do biografado. Assim, tal experiência foi responsável pela “formação em [seu] espírito de certos elementos que consider[a] como invariantes […], que enquadram o [seu] comportamento na ação e também [sua] atividade intelectual criadora”.
Anos depois, a experiência com Segunda Guerra Mundial e o que viveu no período pós-conflito europeu também foram relevantes na sua formação. No “teatro de operações” da Itália, como oficial de ligação com as tropas norte-americanas, lhe coube a responsabilidade de dirigir comboios. E, no momento de paz que se seguiu, a oportunidade de retomar os estudos:
levei tropas até bem perto do fogo. Os alemães ficavam em cima da montanha, controlando o horizonte. À noite os americanos jogavam os holofotes em cima deles, talvez para orientar os aviões. De onde estava, eu podia ver os holofotes e ouvir tiros, mas, como meu trabalho era comunicação, não me expunha. Aliás, pouca gente se expunha diretamente. Não existiu batalha aberta, a não ser na tentativa de subir o Monte Castelo. Aí os brasileiros fizeram uma manobra falsa e morreu muita gente. Nossos soldados ficaram um pouco desmoralizados, saíram fugidos, foi uma derrota feia. Eu estava bem perto (Toledo, 1999, s./p.)
Cheguei lá com um inverno pesado, menos de 10 graus. A França, depois da guerra, era um poço, em matéria de depressão. Muita gente sem emprego, passando fome. Havia um racionamento estrito. Para o sujeito comer pão num restaurante tinha que mostrar um ticket. Mas ao mesmo tempo havia muita mobilização social, um fervor de reconstrução e um horizonte enorme para as esquerdas (Toledo, 1999, s./p.).
O impacto que lhe causou o arrasamento da Europa pela guerra, segundo Afrânio Garcia Júnior (2016), aparece ressaltado a cada início de relato sobre o tema em suas memórias. O professor, inclusive, afirmou que a inevitável “reconstrução do parque industrial europeu”, assim como de toda as redes comerciais e financeiras internacionais, “parece servir de contraponto e de matriz para a elaboração, bem mais adiante em seu percurso, de modelos sobre as economias subdesenvolvidas e a identificação de modos de superar os impasses que as condenam à estagnação e à pobreza”.
Não há como não relacionar a decisão dele de se empenhar pela criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste às influências de sua formação pessoal e das experiências vividas no sertão paraibano de sua infância ou nos subúrbios europeus do pós-guerra. O enfrentamento da realidade histórica e social vivenciada ao final da década de 1950, por aquela região, encontrou em Celso Furtado um combatente sensível e empático:
Eu sabia que aqui muita gente era pessimista com respeito ao país. […] Quis buscar uma explicação, e foi aí que comecei a perceber que a classe dirigente brasileira era incapaz; que no Brasil faltava liderança, faltava uma política de industrialização, faltava alguma coisa para romper essas amarras. […] E foi a partir dessa compreensão que fiz o trabalho para a criação da Sudene. As pessoas sempre se referem ao trabalho do GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste) mas, na verdade, fui eu quem o escreveu. Fui interventor no GTDN, que funcionava abrigado no BNDE, mas jamais concluiu seus trabalhos. Organizei uma pequena equipe para fazer o projeto da Sudene, que depois Juscelino lançou como política de desenvolvimento do Nordeste. Ele tinha enfrentado a seca de 1958, que foi terrível, meio milhão de pessoas morrendo de fome nas ruas. Partimos dessa realidade. Eu visitei todo o Nordeste, corri o sertão inteiro na época da seca (Furtado, 1998, apud Aquino, 2004, p. 67).
Ao seguir as migalhas deixadas por Celso Furtado e aquelas que se conseguiu enxergar, ficou estabelecido - na percepção sobre este personagem histórico - que, embora sua origem social estivesse ligada aos extratos mais abastados da sociedade nordestina, filho que foi de famílias de magistrados e latifundiários, ele teve a “sensibilidade” de projetar suas ações e planos para remediar a pobreza e buscar o desenvolvimento da região. Aos fins a que se dedica este ensaio, se destaca que tal opção, se relacionou à formação humanística rica e variada que recebeu, mas também às experiências vividas, em um contínuo processo de retroalimentação.
Ele foi um dos responsáveis pela condução de um processo que pode ser identificado como de reconhecimento político, social e econômico da questão regional brasileira e da inserção do tema da pobreza e do desenvolvimento na agenda governamental e no centro do debate nacional, a partir da década de 1950. Seus esforços foram agraciados com a criação da SUDENE, instituição da qual foi o primeiro superintendente - como referido alhures. Sob sua inspiração, um amplo leque de diretrizes para o Nordeste foi organizado e a ele incorporado a dimensão social.
Sem a intenção de enveredar por discussões infindáveis que venham a refutar ou não argumentos de um certo determinismo social, ao usar a figura do homenageado como referência, este ensaio admite o espectro especulativo de seus argumentos. No entanto, insiste em apresentar a biografia de Celso Furtado como uma demonstração de que a vida pessoal e profissional de alguns indivíduos pode servir de ilustração à boa causa da luta contra a exclusão social e econômica e contrário ao preconceito de alguns grupos em relação a outros em nossa sociedade.
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Notas