Dossiê
Memórias ocultas: debates em torno da verdade, dos silenciamentos e do esquecimento
Hidden memories: debates around truth, silencing and forgetting
Memorias ocultas: debates en torno a la verdad, el silencio y el olvido
Em seus “Ensaios sobre teoria da história”, Georg Simmel (2011 [1916-1918]) propôs reflexões acerca das especificidades que tornam um determinado fenômeno um fato histórico. Para o sociólogo alemão, a historicidade de um acontecimento decorre da possibilidade de identificação de sua efetiva repercussão na realidade social em conexões de curto, médio e longo prazo. Em outras palavras, uma ação torna-se historicamente relevante na medida em que influencia o desencadear de outras ações, contribuindo, assim, para a transformação, ou reprodução, das relações que se estabelecem em uma dada sociedade em uma determinada época.
Neste prisma de interpretação simmeliano, os produtos da humanidade (registros documentais, ferramentas, expressões artísticas, construções, entre outros) constituem-se como enquanto potenciais fontes para a atribuição de historicidade. Contudo, este processo fica limitado à possibilidade de compreender a dimensão cabível a estes produtos frente à realidade em perspectiva histórica. A descoberta das ruínas de uma sociedade antiga, por exemplo, demanda a compreensão das configurações culturais e organizativas desta sociedade, assim como a apreensão das dinâmicas interrelacionais que se estabeleciam entre o povo que habitava esta localidade e as demais sociedades do passado conhecido (que subsidiam os processos de mediação para a interpretação dos novos dados coletados).
A construção do conhecimento acerca destas complexas teias interrelacionais que se estabelecem, entre determinados acontecimentos da vida social e o desencadear do devir histórico, é possibilitada, e limitada, pelo acesso aos mais distintos métodos de registros utilizados pela humanidade no decorrer de sua existência (desde as pinturas rupestres até os mais modernos arquivos digitais). Tratando-se da realidade específica proposta para abordagem neste dossiê (o passado recente de regimes autoritários), uma das formas mais profícuas de identificação destas dimensões provém dos documentos produzidos por organizações, ou por seus membros, tanto do aparato estatal quanto das resistências políticas que tomaram forma nos períodos analisados.
Segundo Charles Tilly (1996), o aprimoramento dos métodos de coleta, sistematização e produção de informações faz parte do contínuo processo de aperfeiçoamento da lógica de atuação dos aparelhos de repressão e coerção de Estado que se intensificaram no decorrer do século XX. O sociólogo estadunidense reforça as particularidades que estes serviços especializados de Estado assumiram nas distintas realidades em que se instalaram, chamando atenção, principalmente, para o caráter de atuação mais repressivo que incorporaram nos países de capitalismo tardio, como é o caso do Brasil e demais países latino-americanos.
Com o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e em razão da instauração da Guerra Fria (1947-1991), as teias interrelacionais entre Estados Nações assumiram configurações mais complexas na dinâmica de disputa dicotômica entre o ocidente capitalista e o oriente comunista (Motta, 2020). Nestas disputas configuracionais, distintos países da América Latina (como Brasil, Argentina, Chile, Guatemala, entre outros) tomaram posicionamento em defesa dos interesses dos EUA, protagonizando golpes civis e/ou militares para a instauração de ditaduras de segurança nacional (Ribeiro, 2018).
Sobre essas complexas e peculiares teias de relações internacionais, que se desenvolveram entre Estados Nações no período da Guerra Fria, duas obras recentes são pertinentes de mobilização para ilustrar a problemática, sendo elas: “Balas de Washington”, do jornalista indiano Vijay Prashad (2020), e “O segredo das senhoras americanas”, do sociólogo brasileiro Marcelo Ridenti (2022).
Enquanto Prashad (2020) denuncia as articulações organizadas pela Central Intelligence Agency (CIA) com grupos anticomunistas, particularmente militares, em prol da deflagração de golpes políticos nos países do Terceiro Mundo durante as décadas de 1960 a 1980, Ridenti (2022) expõe os métodos e estratégias utilizados, tanto pelos EUA quanto pela URSS, para a identificação e o financiamento de intelectuais e artistas brasileiros que demonstravam habilidades para potencializar a difusão de ideias e ideais que contribuíssem com os interesses ideológicos e culturais destes blocos em disputa.
Apesar de demonstrarem diferentes objetivos analíticos, ambas as obras exprimem o potencial que o acesso a novas fontes históricas pode assumir na compreensão das ações executadas no passado que se consolidaram enquanto efetivos fatos históricos e que, contudo, só recentemente vieram à tona, para a elucidação de suas reais dimensões, implicações e, mesmo, ocorrência. Reforça-se que o caso da ditadura militar brasileira se torna, particularmente, emblemático, quando levadas em consideração as especificidades de sua transição política, na qual a Anistia (1979) concedida aos perseguidos políticos implicou, também, a isenção de responsabilização dos crimes cometidos pelo Estado de Exceção.
É neste enfoque de problematização que o presente dossiê expressa o seu compromisso com os objetivos traçados pela Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014), especialmente no que tange à contribuição e ao fomento de novas pesquisas que se debrucem sobre fontes (documentais ou orais) relativas ao período ditatorial militar que vêm gradualmente sendo disponibilizadas para acesso, em decorrência do contínuo processo de fortalecimento das instituições democráticas em nível internacional.
Assim, buscou-se reunir pesquisas que favoreçam a construção do conhecimento sobre o passado recente em um posicionamento crítico e combativo às articulações políticas de extrema direita que se pautam na defesa do negacionismo histórico e, em determinados casos, na exaltação dos crimes militares cometidos sobre o pressuposto de um distorcido ideal de defesa da segurança nacional frente às imaginárias ameaças comunistas no país.
Roselia Cristina de Oliveira evidencia as estratégias de consolidação política de Aluíso Alvez no Rio Grande do Norte visando a reconstituição da memória de um período crítico da história nacional. Analisando as conexões políticas potiguares, tanto com o governo estadunidense através da Aliança pelo Progresso, quanto com o governo Goulart através de iniciativas federais, a autora traça um panorama da cultura política, não só do Rio Grande do Norte, como do país, explicitando complexidades e contradições essenciais à memória da ditadura militar. Nesse sentido, Oliveira também evidencia a convergência de interesses conservadores no que tange ao controle do poder político em transições entre democracia e autoritarismo, tema continuamente relevante ao cenário político nacional.
João Cláudio Arendt e Pedro Henrique Aleixo Pimenta, por sua vez, reposicionam o debate acerca da memória do regime militar centralizando a produção cultural da poeta Loreta Valadares e da artista Anna Maria Maiolino. Figuras ativas na dissidência ao autoritarismo, seja por sua obra, como no caso de Maiolino, ou por atividade política, como no caos de Valadares, as artistas, como argumentam os autores, trabalharam de forma a evidenciar o corpo feminino vis-a-vis a repressão do Estado. Assim, a análise de suas obras traz à tona debates fundamentais sobre a construção da memória da violência e repressão, revelando a importância do teor testemunhal das obras analisadas em complexificar as discussões acerca da ditadura militar.
Bárbara Simões Daibert e Sabrina Cristina dos Santos buscam compor um diálogo entre as teorias do filósofo francês Paul Ricoeur e a célebre cantora brasileira Elza Soares, a fim de traçar o potencial decolonial da produção musical que valoriza a memória da violência e, consequentemente, denuncia o autoritarismo em todas as suas formas. Ao analisar a produção recente de Soares, Daibert e Santos propõem que a resistência musical, por vezes, quase utópica, de Soares, busca uma releitura da participação de diferentes atores nas resistências diárias à cultura sociopolítica autoritária do Brasil. Dessa forma, a análise da obra de Elza Soares em encontro com a filosofia de Ricoeur evidencia o potencial da música de confrontar a construção da memória histórica, criando espaço para releituras que permitam construções utópicas da realidade e futuro do país.
A temática e a reflexão sobre o trabalho das Comissões da Verdade e a relação com a ditadura, apresentada pelas autoras Fernanda Nalon Sanglard e Marina Mesquita Camisascam indica que as ações do governo da presidente Dilma Rousseff, com a criação e implementação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), produziram reações entre os grupos políticos conservadores e da direita brasileira, provocando processos nas ruas e na esfera da política institucional, que colaboraram com o impeachment da presidente e a ascensão de políticos defensores dos militares e simpáticos à ditadura militar. A conjuntura apresentada pelo artigo busca desenvolver uma análise a partir de contribuições históricas, sociológicas e comunicacionais. Sob essa perspectiva, os resultados apontam elementos críticos ao relatório da CNV (2014), bem como, associam elementos da agenda política nacional enquanto estratégia de grupos interessados em não reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro frente às vítimas e ao desrespeito aos Direitos Humanos (1948). Sanglard e Camisasca indicam, também, que o legado ditatorial, presente na sociedade brasileira, se tornou-se um entrave às políticas de memória, justiça e verdade, elementos que carecem de compreensão para que sejam superados.
Ainda sobre o prisma dos trabalhos das Comissões da Verdade no Brasil, as pesquisadoras Mônica Tenaglia e Carla Jéssica dos Santos Carvalho trazem dados orais do grupo indígena Aikewara, conhecidos regionalmente no sudoeste do Pará como Suruí ou Sororós, registrados pelo trabalho da Comissão Estadual da Memória e da Verdade do Pará. A população original sofreu com as inúmeras práticas autoritárias e violentas dos membros das Forças Armadas que atuavam na região, durante o período da ditadura, tendo em vista a proximidade com o território da Guerrilha do Araguaia. Neste caso, a ausência de documentação oficial disponível foi sobreposta pela valorização dos testemunhos dos sobreviventes da época. O artigo contribui no processo de disseminação de informações, dados e produz uma nova e inédita abordagem que rompe com a invisibilidade imposta pela história oficial brasileira aos povos originários nas diferentes regiões do país. Tenaglia e Carvalho destacam que os resultados oriundos dos trabalhos das Comissões da Verdade são eficazes quando estão associados aos desdobramentos sob a perspectiva da justiça de transição, como formas de fortalecer as políticas públicas a partir das recomendações de reparação, processos judiciais, reformas institucionais, dentre outras. De forma específica, apontam para as demandas do grupo Aikewara que envolvem questões, como demarcação de terras, reparação e proteção ambiental.
Apesar do negacionismo histórico dos grupos que se autodenominam de direita e seus representantes políticos, seja no executivo ou no legislativo, o pesquisador Reginaldo Dias traz como dados emergentes do legado ditatorial brasileiro aspectos da história de Eduardo Collier Filho, desaparecido político, que foi vinculado à Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Dias apresenta reflexões sobre perseguições, tortura, desaparecimento de pessoas, características da ação autoritária do Estado brasileiro, tomando como base o relatório da Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos e do projeto “Brasil: nunca mais”. Pauta a responsabilidade estatal e evidencia os equívocos dos discursos atuais que negam a violação aos Direitos Humanos, tratando de maneira “gloriosa” os anos ditatoriais decorrentes do golpe militar de 1964.
Ricardo Braga Brito, Gabriel Souza Bastos, Luíza Antunes Dantas de Oliveira e Fabricio Teló, com o artigo sobre o Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP), tratam da criação da professora e pesquisadora Leonilde Servolo de Medeiros, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Os autores trazem uma produção epistemológica que destaca a memória enquanto exercício e ação humana, por isso, os documentos históricos e a sua preservação em centros, núcleos, arquivos públicos possibilitam a proteção material e abrem um horizonte para futuras pesquisas e interpretações. Nesse sentido, apresentam dados da trajetória do NMSPP, vinculados ao tema dos movimentos sociais e à luta camponesa, atividades extensionistas universitárias, lideranças perseguidas pela ditadura e destacam que “uma das principais contribuições do Núcleo para a justiça de transição no Brasil tem sido a participação ativa de seus membros na Comissão Camponesa da Verdade (CCV), uma organização da sociedade civil criada em 2012” (Brito et al., 2024, p. 12), que produziu subsídios aos trabalhos da CNV sobre o tema da repressão no campo.
A compreensão, a interpretação e a produção (ou conservação) de fontes relacionadas com os processos sócio-históricos no passado recente, séculos XX e XXI, são preocupações inerentes ao campo científico das Ciências Humanas e Sociais, bem como sua divulgação e publicização para a sociedade em geral. É relevante finalizarmos a apresentação deste Dossiê com a contribuição de Eric Hobsbawm, que indica a necessidade de “esclarecer que a sociedade atual permite a destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal a das gerações passadas” (Hobsbawm, 1995, p. 13).
Infelizmente, o historiador inglês se antecipou e indica uma das principais características da sociedade brasileira na atualidade, em que “quase todos os jovens (e os adultos) de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem” (Hobsbawm, 1995, p. 13). A ausência de vínculos com o passado é reforçada pela utilização de tecnologias e relações sociais por meio digital que enaltecem o presente e distanciam a maior parte da população dos processos de participação política e controle social garantidos pela Constituição Federal de 1988: “Não só os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, mas também todos que se colocam como sujeitos ativos da construção do presente, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio” (Hobsbawm, 1995, p. 13).