Dossiê
Recepción: 15 Enero 2024
Aprobación: 13 Mayo 2024
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2024.16.38.8654
Resumo: Este trabalho objetiva investigar como a hermenêutica do estudioso francês Paul Ricoeur pode ser percebida nas canções interpre-tadas por Elza Soares. Ademais, visa a demonstrar, no nível discursivo, como a voz da artista evoca uma memória que deve ser reconstruída para promover a reescrita da história e, nos níveis social, econômico, político e cultural, permitir mudanças que sejam capazes de viabilizar uma vida digna e uma existência mais feliz para os subalternizados. Para tanto, serão utilizadas as metodologias de análise textual, visando à leitura dos elementos literários que compõem a canção, tais como a construção do eu poético e os temas tratados; e análise crítica, propondo um prisma decolonial com base nos Estudos Culturais e, de forma mais específica, no filósofo Paul Ricoeur. Intenta-se, assim, mostrar o discurso de Ricoeur sendo cantado por Elza Soares, a qual usa a arte para construir sua ciência alegre.
Palavras-chave: Elza Soares, Memó-ria, Paul Ricoeur, Felicidade.
Abstract: This work aims to investigate how the hermeneutics of the French scholar Paul Ricoeur can be perceived in the songs interpreted by Elza Soares. Furthermore, it intends, at the discursive level, to demonstrate how the artist's voice evokes a memory that must be reconstructed to promote the rewriting of history and, at the social, economic, political, and cultural levels, to allow changes that are capable of enabling a dignified life and a happier existence for the subalterns. To this end, the methodologies of textual analysis will be used aiming the reading of literary elements that compose the song, such as the construction of the persona, and themes addressed; and critical analysis, proposing a decolonial view based on Cultural Studies and, more specifically, based on the philosopher Paul Ricoeur. Thus, the purpose is to show Ricoeur's discourse being sung by Elza Soares, who uses art to construct her joyful science.
Keywords: Elza Soares, Memory, Paul Ricoeur, Happiness.
Resumen: Este trabajo pretende investigar cómo la hermenéutica del estudioso francés Paul Ricoeur puede ser percibida en las canciones interpretadas por Elza Soares. Además, busca demostrar cómo la voz de la artista evoca una memoria que debe ser reconstruida para promover, a nivel discursivo, la reescritura de la historia, pero también, a niveles social, económico, político y cultural, permitir cambios que sean capaces de viabilizar, para aquellos que siempre han ocupado un estatus de subalternos, una vida digna y una existencia más feliz. Para ello, se utilizarán las metodologías de análisis textual, con el objetivo de leer los elementos literarios que componen la canción, como la construcción del yo poético, el lenguaje y los temas tratados; y el análisis crítico, proponiendo un prisma decolonial basado en los Estudios Culturales y, más específicamente, en el filósofo Paul Ricoeur. El objetivo es, de esta manera, mostrar el discurso de Ricoeur siendo cantado por Elza Soares, quien utiliza el arte para construir su ciencia alegre.
Palabras clave: Elza Soares, Memoria, Paul Ricoeur, Felicidad.
Considerações iniciais
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade
Fuente: (Conceição Evaristo, 2008)
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes
espalhadas nesse chão
Fuente: (Elza Soares, 2019)
Na canção, há, segundo José Miguel Wisnik (1999), uma capacidade inerente de tradução de conceitos de caráter teórico, quase que exclusivos do meio acadêmico, para uma linguagem acessível à parte significativa da população. A música é, portanto, um meio através do qual é possível chegar a debates, tais como o racismo, a homofobia, questões de gênero, dentre outros.
Assim, à luz da perspectiva do músico e compositor supracitado, a canção está além do entretenimento - embora o faça - uma vez que ela é, ainda, uma forma de reflexão e produção de conhecimento. Sob essa ótica, a canção precisa ser encarada, também, como um elemento de teorização e produção de saberes.
Nesse panorama, a produção musical de autoria ou interpretação da artista Elza Soares se configura enquanto um corpus artístico e teórico de extrema relevância. Ao trazer à superfície debates profundamente necessários, sem abandonar a propensão à alegria - intrínseca à canção - Elza constrói seu saber alegre e prova que a música popular pode ser um lugar de reflexão e proposição de ideias.
Neste artigo, busca-se traçar um paralelo entre o discurso cantado por Elza Soares em seus quatro últimos álbuns com o pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur. Por uma questão de demarcação de corpus, foram escolhidas uma canção de cada disco, totalizando quatro propostas de análise.
Para tanto, ter-se-á como núcleo de apreciação a questão da memória, perpassando por considerações acerca da identidade e da busca por superação de uma memória instruída visando à felicidade em suas múltiplas possibilidades de realização.
Dessa forma, intenta-se propor que as canções de Elza Soares, ao tematizarem a memória e a felicidade em seu diálogo com Paul Ricoeur, constroem sua própria ideia do que é ser feliz, delineando, assim, sua gaia ciência.
A hermenêutica da memória de Paul Ricoeur
Durante a conferência intitulada “Memory, history, oblivion” (“Memória, história e esquecimento”), proferida em 08 de março de 2003, em Budapeste, o estudioso francês Paul Ricoeur analisou as relações entre a construção da memória, da história e do esquecimento. Para ele, a história, enquanto ciência humana, adquiriu papel central na construção e manutenção da memória coletiva ao promover a narrativa de determinados grupos sociais enquanto silenciava os demais.
Segundo Ricoeur:
Este deslocamento dar-me-á oportunidade de extrair certos problemas cruciais que dizem manifestamente mais respeito à recepção da história do que à sua escrita, para os trazer à luz. As questões em jogo dizem respeito à memória, já não como simples matriz da história, mas como reapropriação do passado histórico por uma memória que a história instruiu e muitas vezes feriu (Ricoeur, 2003, p. 1).
O filósofo compreende a história como uma narrativa, elucidando, portanto, que nela há uma relação inegável com a temporalidade da experiência e o modo de narrar essa temporalidade. Então, ainda que a história busque assumir um status de busca pela veracidade, Ricoeur destaca que o que se nomeia veracidade é sempre marcado por um abuso do esquecimento.
Desse modo, o autor analisa que cada narrativa é um ato de seleção, visto que existe, de fato, uma impossibilidade de contar todas as perspectivas. O esquecimento opera, por conseguinte, por ação, quando é premeditado por questões ideológicas, ou inatividade, quando não é intencionado por aqueles que narram suas ações.
Sendo assim, ao problematizar o que nomeia de “política da memória”, Ricoeur demonstra que, ao longo da história, a memória foi manipulada com o fito de anistiar ou culpabilizar determinados atores sociais a serviço dos interesses de classes privilegiadas. Assim, a história sobre a qual uma sociedade tem conhecimento não é, necessariamente, aquela que traduz os fatos como eles, realmente, aconteceram, mas uma versão que pode conferir voz àquele que se pretende ouvir ao passo que cala vozes dissonantes.
Ao propor a ideia da representação do passado como memória, Ricoeur sugere uma metáfora: a impressão. Segundo o autor, a marca que um objeto imprime em outro - como a do sinete na cera - é responsável por deixar um rastro, o qual compara com a ideia de memória. Logo, assim como o sinete é capaz de deixar sua marca na cera, a memória imprime, na história, sua marca:
Reside aí o enigma que a memória deixa como herança à história: o passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua ausência, mas trata-se de uma ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado. Esse “tendo estado” é o que a memória se esforça por reencontrar. Ela reivindica a sua fidelidade a esse “tendo estado” (Ricoeur, 2003, p. 2).
Contudo, ainda que essa memória - mesmo silenciada - persista, há, por vezes, todo um esforço da história considerada oficial em apresentar-se sob uma única perspectiva. Durante a conferência em Budapeste, Paul Ricoeur problematiza a existência de uma memória instruída, a qual é responsável por privilegiar - ou não - determinado segmento social:
Uma parte importante da batalha dos historiadores para o estabelecimento da verdade, nasce da confrontação dos testemunhos, principalmente dos testemunhos escritos; são levantadas questões: porque foram preservados? Por quem? Para benefício de quem? Essa situação de conflito não pode limitar-se ao campo da história como ciência, reaparece ao nível dos nossos conflitos entre contemporâneos, ao nível das questões fortes, às vezes formuladas coletivamente, em prol de uma tradição memorial contra outras memórias tradicionais (Ricoeur, 2003, p. 3).
Para comprovar de que modo a memória, enquanto objeto da história, pode ser manipulada, o filósofo francês usa como exemplo o caso da França pós Segunda Guerra Mundial explicando que, logo após a descoberta dos campos de concentração e os demais horrores perpetrados pela Europa durante a guerra, o discurso oficial debruçou-se em disseminar narrativas de colaboração e resistência. Todavia, com o processo de Barbie, cujo julgamento ocorreu em 1987 e que trouxe à luz a narrativa de extermínio de milhões de judeus, ficou nítido que aquele era um crime sem precedentes e que discurso oficial precisaria renovar-se, levando-se em consideração as dolorosas memórias narradas pelos sobreviventes. Logo, é visível o modo como o conhecimento que se tem acerca do passado pode ser manipulado para servir a diferentes interesses, forjando, dessa forma, uma memória que visa à construção de uma verdade necessária ou desejada.
A hermenêutica de Paul Ricoeur propõe a narrativa - histórica ou ficcional - como um elemento central no reconhecimento que o sujeito tem de si e do outro. Dessa forma, a mediação da narração faz com que o indivíduo identifique sua própria identidade, mas também permite que ele reconheça o outro em suas alteridades.
Destarte, é possível, por intermédio da reescrita da história ou de mecanismos de (re)construção da memória, que grupos subalternizados se vejam e sejam vistos sob uma perspectiva diversa daquela que conta a história oficial.
De maneira análoga, uma memória instruída que coloque determinados atores sociais em uma posição de submissão e subalternidade, que oculte suas raízes, que silencie suas lutas, enfim, que os inferiorize sob aspectos diversos, molda a visão que esse sujeito tem de si, introjetando, nele e em seus pares, a subordinação.
Um exemplo disso seria o que o martinicano Frantz Fanon (2008) analisa em seu livro “Peles negras, máscaras brancas” ao propor de que modo a memória instruída moldou a subjetividade dos negros, inferiorizando-os e, consequentemente, alienando-os de seu lugar no tempo e espaço que ocupam.
Sob a ótica de Fanon (2008), pode-se considerar, portanto, que a epistemologia - e, ainda, a memória instruída - tem servido a diferentes mecanismos de dominação, seja da população negra, das mulheres, mulheres pretas, gays, lésbicas, transsexuais, queers, intersexos e assexuados (LBGTQIA+), latinos, indígenas, dentre outras alteridades. Nesse sentido, é fulcral pensar possibilidades, dentre elas a reescrita da história, para romper esse paradigma excludente e conferir voz a memórias e narrativas silenciadas ao longo da história oficial.
A filosofia de Paul Ricoeur, contudo, analisa a necessidade de desmistificar os conceitos que o sujeito tece sobre si. Segundo o francês, isso só é possível a partir de uma filosofia da reflexão, a qual possibilita uma autoconsciência. Para tanto, a destruição é uma prerrogativa, posto que é mister destruir as ilusões que o sujeito tem sobre si para, só depois, construir uma nova verdade. Assim, ao se levar em consideração a autoconsciência moldada em pessoas pretas - a qual é marcada por elementos estéticos, intelectuais, culturais, dentre outros que foram inferiorizados - é nítida a relevância dessa demolição e posterior edificação.
Ainda segundo Ricoeur, é impossível que essa autoconsciência se dê de forma autônoma e introspectiva, visto que ela é sempre mediada por elementos externos ao sujeito, tais como a cultura e a história:
A filosofia reflexiva à qual me refiro é inicialmente oposta a qualquer filosofia do tipo cartesiano, baseada na transparência do ego para si mesmo, e a toda filosofia do tipo fichteano, baseada na auto-positivação desse ego. Hoje, essa desconfiança é reforçada pela convicção de que a compreensão do eu é sempre indireta e decorre da interpretação de sinais dados fora de mim na cultura e na história, e da apropriação do significado desses sinais (Ricoeur, 1999, p. 15).
Assim, se a história e a cultura são elementos de mediação que instituem a consciência que o sujeito tem de si, se são dispositivos que fundam uma memória, muitas vezes, equivocada, distorcida e, até mesmo, negada, sua reescrita pode contribuir para a nova interpretação dos signos.
Sob esse viés, busca-se, no presente artigo, analisar que de forma pode-se perceber o modo como a artista Elza Soares opera o discurso de Paul Ricoeur ao promover, a partir da canção popular, a validação de uma memória esquecida.
O discurso de Paul Ricoeur cantado por Elza Soares
A longa carreira musical de Elza Soares teve início na década de 1950 em um show de calouros na extinta TV manchete. Em 1953, Elza era apenas uma menina, mas já experenciava as dificuldades de ser mulher, pobre e negra. A busca pelo programa de televisão foi movida antes pela necessidade financeira que pelo desejo de se tornar uma das maiores expoentes da música popular brasileira. A potência inegável da jovem, contudo, a despeito da estranheza que sua figura causava aos espectadores e apresentador, fez com que Ary Barroso anunciasse o nascimento de uma estrela. Todavia, apesar da profecia de Ary, o reconhecimento profissional ainda demoraria a chegar.
Ao longo de sua carreira, a artista interpretou e compôs canções que tematizam, dentre outras questões, o silenciamento de discursos outrora negados. Assim, a lírica de composição e interpretação da artista brasileira Elza Soares tem demonstrado ser um interessante escopo de análise. Seus quatro últimos álbuns - “A mulher do fim do mundo” (2015), “Deus é mulher” (2018), “Planeta fome” (2019) e “No tempo da intolerância” (2023) - partem de uma postura de validação de vozes alheias ao discurso oficial, mesclando revolta e esperança, e mostram que a música e a poesia podem e devem ser um lugar para o sonho, não o utópico, mas do desejo de uma existência mais justa e feliz.
Sob esse viés, é perceptível a presença de um discurso de tomada de consciência, - como proposto por Paul Ricoeur - validação da luta e superação das dificuldades enfrentadas pelos subalternos para, por fim, alcançar-se o que, aqui, chama-se “felicidade”.
Cabe destacar que, embora a ideia de felicidade possa ser compreendida a partir de uma perspectiva individual, é possível afirmar também a existência de um ideal que marca toda uma cultura, uma sociedade e um contexto histórico, ideal que pode ser percebido enquanto se observam os diferentes anseios de um grupo, ou grupos, sociais.
Porém, balizado em uma tradição de herança colonial europeia, o cânone cultural brasileiro é marcado pelo silenciamento das vozes de diferentes identidades de gênero, raça e classe, o que tem por consequência o apagamento dos anseios desses que foram e são constantemente postos à margem.
Sob essa perspectiva, é de importância ímpar resgatar, nessas vozes silenciadas, esses desejos a fim de compreendê-los e, mais do que isso, inscrever esses discursos no espaço sócio-histórico da sociedade brasileira para, a partir disso, pensar possibilidades de intervenção e transformação do real.
Em “O Mal-estar da civilização”, o psicanalista Sigmund Freud (1996) conclui que homens e mulheres são seres fadados ao sofrimento, visto que a satisfação plena configura-se como inatingível, torna-se imperiosa a frustração. Logo, o grande mal-estar reside, sobretudo, nessa busca incessante por realização, a qual, embora possa se dar no campo individual, mostra-se como o fio condutor de todo um corpo social.
Contudo, erigida a partir de estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais excludentes, a sociedade brasileira relega à marginalização múltiplas alteridades, fazendo com que suas reivindicações, ao serem ocultadas, aparentem inexistência, o que implica um obstáculo para a pretendida felicidade.
Segundo a professora Rita Terezinha Shimidt, esse processo de apagamento se dá de forma deliberada e é inerente à construção de uma nação. Portanto, compreendê-lo é fundamental quando se pretende verificar de que forma as identidades são legitimadas ou não em dada cultura: “Tratar dessa questão no presente significa a possibilidade de uma intervenção [...] com implicações sobre as maneiras pelas quais entendemos e como os imaginários sociais foram produzidos e como as identidades e tradições nacionais foram estabelecidas” (Shimidt, 2012, p. 7).
É sob esse esteio que a lírica de Elza Soares se mostra como um importante corpus de análise no âmbito cultural. Ao longo de sua carreira musical, a compositora e intérprete flertou com gêneros musicais diversos e se tornou, sob diferentes olhares, um símbolo de resistência. Em seus quatro últimos discos, a artista chama atenção pela presença de um discurso veemente que reivindica a felicidade negada a diferentes grupos sociais.
É interessante notar, sob esse olhar, o modo como a canção pode adquirir um papel para além de fruição. Para José Miguel Wisnik (1999), a música tem a habilidade de tirar o caráter erudito de determinadas problemáticas, construindo o que ele conceitua como um “saber alegre”. O autor compreende, portanto, que a canção popular ocupa um espaço de produção de saberes, posto que é capaz de promover leituras acerca das estruturas de poder, das relações econômicas e sociais e dos modos de vida da população.
Em “A mulher do fim do mundo”, álbum de 2015, a canção “Maria da Vila Matilde” tematiza a violência doméstica. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2023), em seu “Atlas da Violência”, que expõe a situação das mulheres brasileiras, o Brasil é o quinto país com maior índice de violência contra a mulher.
Ainda segundo o relatório de 2023, embora a taxa de homicídios entre a população geral tenha caído, o assassinato de mulheres cresceu cerca de 0,3%, evidenciando uma estatística aproximada de dez mortes diárias. Assim, a questão levantada em “Maria da Vila Matilde” é, infelizmente, atual e, sem dúvidas, trazê-la à tona através da música é uma forma de conferir visibilidade ao tema.
A canção é responsável por colocar a mulher - cuja subjetividade é marcada por profusas formas de violência - em uma posição de sujeito que se rebela contra a violência física sofrida e busca libertar-se dela:
Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo se você se aventurar
Eu solto o cachorro
E, apontando pra você
Eu grito péguix guix guix guix
Eu quero ver você pular, você correr
Na frente dos vizinhos
‘Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim
Fuente: (Soares, 2015).
O nome da personagem e eu poético da canção, o qual é sugerido pelo título, é também um dos nomes mais comuns na cultura brasileira: Maria. A banalidade do nome pode apontar Maria não como um indivíduo, mas como uma metonímia da mulher brasileira.
Na letra, é latente a presença de vocábulos ligados à verbalização, tais como “entregar”, “explicar”, “dizer” e “gritar”, dando a impressão de que é por meio da ação que o eu poético busca ver-se livre de seu algoz e é através da voz que essa liberdade é conquistada. A partir dessa voz, é possível reescrever a história do feminino, contradizendo a memória instruída, responsável pelo aprisionamento da subjetividade das mulheres e propondo um novo olhar sobre sua história.
É importante enfatizar que, embora o tema trazido pela canção seja permeado pelo sofrimento - violência contra a mulher -, o ritmo sugere o contrário, ao convidar à dança, à alegria e à celebração. Assim, se por um lado a realidade falada é marcada por uma memória de anulação e dor, por outro aquela que se canta é projeção de felicidade, evidenciada pelo compasso e execução.
O discurso de Paul Ricoeur, aqui, surge exatamente nessa tomada de consciência que eu poético tem sobre si. Ao se perceber amparada - pela polícia, por exemplo - a personagem encontra o elemento externo que permite o desenvolvimento de sua autoconsciência: uma sociedade que, em vários aspectos, condena a violência contra mulher. A partir daí, Maria pode, conforme analisado pelo filósofo, demolir o discurso e as ações que a inferiorizavam e, então, construir uma nova subjetividade.
Lançado em 2018, o álbum “Deus é mulher” traz, dentre outras, a canção “O que se cala”. Já no título, a faixa sugere uma ruptura com o silenciamento analisado por Ricoeur e anuncia que cantará aquilo que, supostamente, não deveria ser anunciado:
Mil nações moldaram minha cara
Minha voz uso pra dizer o que se cala
Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala
O meu país é meu lugar de fala
Mil nações moldaram minha cara
Minha voz uso pra dizer o que se cala
Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala
O meu país é meu lugar de fala
Fuente: (Soares, 2018).
É possível inferir que a posição ocupada por esse sujeito poético é o que permite que ele lance mão de sua voz para dizer o indizível, afinal, existem tantas alteridades emudecidas que, ainda que desejem, não podem falar. Assim, a canção, cuja melodia que antecede a letra parece anunciar uma profecia, reforça que a reescrita - falar e ser ouvido - é uma prerrogativa para a pretendida felicidade, visto que é preciso legitimar esses discursos marginais para, posteriormente, propor intervenções capazes de solucionar as falhas deixadas pela história.
O discurso de Ricoeur se faz notar na canção pela evocação à memória silenciada. De maneira análoga à “Maria da Vila Matilde”, a voz - ou a palavra - é um instrumento de inserção do discurso não oficial à história legitimada pelas elites. Assim, uma vez que, segundo o estudioso, é impossível o completo silenciamento, a voz emerge para reivindicar aquilo que lhe foi contraditado.
Em “Planeta fome”, de 2019, a interpretação de “Pequena memória para um tempo sem memória” - canção de 1974 -, chama a atenção para os desafios que o Brasil enfrenta ao lidar com seu passado, que, embora silenciado, deixa, como proposto por Ricoeur, seu rastro, como sementes que, um dia, vão germinar:
Memória de um tempo onde lutar
Por seu direito é um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Dessa crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos
Que tentaram encontrar a solução
São cruzes, sem nomes
Sem corpos, sem datas
Memória de um tempo onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
E tantos são os homens por debaixo das manchetes
São braços esquecidos que fizeram os heróis
São forças, são suores que levantam as vedetes
Do teatro de revistas, que é o país de todos nós
São vozes que negaram liberdade concedida
Pois ela é bem mais sangue, é que ela é bem mais vida
São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
É o grito da batalha quem espera, nunca alcança
Fuente: (Soares, 2019).
A letra, que remete ao período da ditadura civil-militar, é ressignificada na voz de Elza Soares e ganha um tom que, ainda que seja de indignação diante da mordaça imposta pela história ao “Juvenais”, “Raimundos” e “tantos Júlios de Santana”, promete o alívio futuro. Ao cantar um dos versos da canção, a intérprete promove uma alteração da letra original e, em um discurso que transborda esperança, anuncia que “Quem espera sempre alcança”.
O refrão traz consigo os verbos “esquecer”, “lembrar” e “recordar” e promete que a luta é um caminho para a descoberta e manutenção desse rastro de memória a ser encontrado. Ademais, outro elemento inserido por Elza em sua peculiar performance chama atenção: ao final da canção, a artista faz uma indagação que ecoa várias vezes: “Que país é esse?”, como a sugerir que o Brasil real só será conhecido a partir do momento em que vier à superfície essa história esquecida.
É importante destacar, ainda, o contexto de gravação da canção. Lançado em 2019, o álbum se situa no primeiro ano do mandato presidencial de Jair Bolsonaro (2018-2022), governo que foi marcado por constantes ataques à democracia e enaltecimento às ditaduras, sobretudo a ditadura civil-militar, de 1964. Então, trazer à tona uma canção de enfrentamento nesse contexto de ameaça à democracia é anunciar que o passado não pode ser esquecido, pois o fascismo está sempre à espreita.
Dessa maneira, “Pequena memória para um tempo sem memória” não é somente a reivindicação da reminiscência negada, a memória instruída analisada por Ricoeur, mas é também a contestação de que aquele passado de silenciamento e violências não pode ser obliterado, sob o risco de que se repita.
Em seu último disco, intitulado “No tempo da intolerância”, Elza traz a canção “Coragem”, que questiona a memória instruída que circunda a história das pessoas pretas:
Quem me vê forte
Não sabe que eu já fui fraca
Quem me vê sorrindo
Não sabe que eu já chorei
Eu nasci pobre, preta, da cor da noite
Acostumada a ver meus ancestrais
Sofrerem no açoite
Se quem cala consente
A minha boca vai continuar
Sendo uma arma letal
Contra o abuso de poder
Pra gente sair
Da página policial
Se você é preto
Não se iluda, meu bem
Entre eles e nós
A lei protege quem?
Fuente: (Soares, 2023).
A abertura da canção se dá a partir de um instrumental que convida à dança. Logo, se apenas o ritmo fosse considerado, poder-se-ia pensar tratar-se de uma canção alegre. Entretanto, o discurso que segue traz à tona um passado marcado pela dor e a antítese, que opõe letra e música, pode ser notada também na escolha vocabular feita pela artista - “forte/fraca”, “sorrindo/ chorei”.
Em “Caymmi: uma utopia de lugar”, Antônio Risério (1993) sugere que, por vezes, a ideia de felicidade está contida no arranjo da canção embora não se faça notar em sua letra. Em “Coragem”, é possível perceber a proposição feita por Risério: ainda que a letra possa traduzir uma realidade profundamente triste, a felicidade se faz presente para além do que é dito e convida a dançar, conclamando o que está por vir.
A canção propõe que essa memória seja superada e que, por meio da busca por narrativas não hegemônicas, seja possível repensar a história da população preta e permitir um futuro em que essas pessoas não figurem quase, exclusivamente, como subalternas.
Para tanto, a letra exige coragem de seu interlocutor: coragem para se descobrir preto em um país racista, coragem para usar a voz como arma de combate aos desmandos das classes dominantes, coragem para se libertar dos grilhões que, ainda hoje, aprisionam as pessoas pretas no Brasil e, enfim, coragem para ser feliz.
Considerações finais
É notável que, em seus últimos quatro discos, Elza canta a busca pela felicidade de uma parcela da população para a qual a sorte parece ser uma quimera. Em constante diálogo com a filosofia e Paul Ricouer, as canções problematizam o papel do esquecimento e da memória instruída enquanto contrariedades que impedem a realização.
O discurso da artista não ressoa, porém, como um desalento, mas como um desejo e uma crença verdadeira na possibilidade de construir um “País do Sonho”1, um lugar de uma existência mais feliz, ação que, como sugerem as músicas, só é possível a partir da autoconsciência e da reescrita da história.
Fonte
SOARES, Elza. Maria da Vila Matilde. In: SOARES, Elza. A mulher do fim do mundo. São Paulo: Circus: 2015, faixa 3.
SOARES, Elza. O que se cala. In: SOARES, Elza. Deus é mulher. Rio de Janeiro: Deck: 2018, faixa 1.
SOARES, Elza. Pequena memória para um tempo sem memória. In: SOARES, Elza. Planeta fome. Rio de Janeiro: Deck: 2019, faixa 10.
SOARES, Elza. Coragem. In: SOARES, Elza. No tempo da intolerância. Rio de Janeiro: Deck: 2023, faixa 4.
Referências
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
IPEA. Atlas 2003: violência contra a mulher. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 2023. Disponível em: bit.ly/4bgzMl9. Acesso em: 13 maio 2024.
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
RICOEUR, Paul. Historia y narratividad. Barcelona: Paidós, 1999.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2003.
SHIMIDT, Rita Terezinha. Cânone, valor e a história da literatura: pensando a autoria feminina como sítio de resistência e intervenção. El hilo de la fabula, v. 12, n. 10, p. 59-72, 2012.
RISÉRIO, Antônio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva, 1993.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Notas