Resumo: Durante seu governo, o presidente Jair Bolsonaro confrontou a política de Direitos Humanos relaciona-da ao passivo de violações praticadas pela ditadura civil-militar instituída em 1964. Exemplo dessa conduta ocorreu quando vocalizou polêmicas declara-ções sobre um episódio em que o aparato repressivo do Estado assassinou militantes da organização revolucionária Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e promoveu o desaparecimento de seus corpos. Bolsonaro negou a responsabilidade do Estado e colocou em dúvida a honradez das vítimas. O presente artigo focaliza os fatos relacionados a uma das vítimas, Eduardo Collier Filho, cujo nome ainda integra o rol dos desaparecidos políticos da ditadura. Pretende-se situar os fatos na história da APML e proceder à abordagem desse caso na evolução da pauta dos mortos e desaparecidos, no contexto da Justiça de Transição. São examina-dos os documentos produzidos pelo aparato repressivo, pelos movimentos dos Direitos Humanos e pelas agências públicas relacionadas à Justiça de Transição.
Palavras-chave: Ação Popular Marxis-ta-Leninista, Mortos e desaparecidos da ditadura, Presidente Jair Bolsonaro, Eduardo Collier Filho.
Abstract: During his government, President Jair Bolsonaro confronted the Human Rights policy regarding violations committed by the military and civil dictatorship established in 1964. One example of this conduct occurred when he made polemic declarations about an event where the repressive State killed militants who belonged to the revolutionary Ação Popular Marxista-Leninista (APML) and disappeared with their bodies. Bolsonaro denied the State’s responsibility and put the honor of the victims in check. This article focuses on facts related to one of the victims, Eduardo Collier Filho, who is still reported as one of the missing politicians of the dictatorship. The goal is to place facts in the history of APML and analyze this case in the agenda of dead and missing people in the context of the Justiça de Transição (transitional justice). Documents produced by the repressive apparatus, by the Human Rights movements, and by the public agencies related to the Justiça de Transição (transitional justice) are analyzed in this article.
Keywords: Ação Popular Marxista-Leninista, Dead and missing people during the dictatorship, President Jair Bolsonaro, Eduardo Collier Filho.
Resumen: Durante su gobierno, el presidente Jair Bolsonaro confrontó la política de Derechos Humanos relacionada a lo pasivo de las violaciones cometidas por la dictadura cívico-militar instaurada en 1964. Un ejemplo de esta conducta ocurrió cuando vocalizó controvertidas declaraciones sobre un episodio en el que el aparato represivo del Estado asesinó a militantes de la organización revolucionaria Ação Popular Marxista-Leninista (APML) y promovió la desaparición de sus cuerpos. Además de negar la responsabilidad del Estado, Bolsonaro puso en duda la integridad de las víctimas. Este artículo se centra en los hechos relacionados con una de las víctimas, Eduardo Collier Filho, cuyo nombre aún figura en la lista de desapariciones políticas de la dictadura. Se pretende situar los hechos en la historia de APML y proceder al abordaje de ese caso en el proceso evolutivo de la agenda de muertos y desaparecidos, en el contexto de la Justicia de Transición. Se examinan documentos producidos por el aparato represivo, movimientos de los Derechos Humanos y organismos públicos relacionados con la Justicia de Transición.
Palavras-chave: Ação Popular Marxista-Leninista, Muertos y desaparecidos de la dictadura, El presidente Jair Bolsonaro, Eduardo Collier Filho.
Dossiê
Onde está Eduardo Collier Filho? Contribuição ao debate sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos
Where is Eduardo Collier Filho? Contribution to the debate about the National Programme on Human Rights
¿Dónde está Eduardo Collier Filho? Contribución al debate sobre el Programa Nacional de Derechos Humanos
Recepción: 18 Octubre 2023
Aprobación: 30 Marzo 2024
No final de julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro vocalizou uma polêmica declaração pública a respeito do paradeiro de Fernando de Santa Cruz, um militante da organização revolucionária Ação Popular Marxista-Leninista (APML) que havia sido assassinado pelo aparato repressivo da ditadura civil-militar em fevereiro de 1974 e que, a partir de então, foi considerado como “desaparecido político”.
Desde que iniciara na vida parlamentar como titular de mandato na Câmara Federal, Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, pautava a sua atuação pela defesa incondicional da ditadura civil-militar que comandou o país de 1964 a 1985. Em mais de uma ocasião, entrou em litígio com os movimentos de familiares dos opositores assassinados pela ditadura, incluindo a família de Fernando de Santa Cruz.
Assumindo uma postura negacionista diante dos crimes que o Estado brasileiro cometeu durante a ditadura de 1964, o presidente Bolsonaro afirmou que Fernando de Santa Cruz teria sido eliminado por seus próprios companheiros de organização política (Folha de S. Paulo, 2019). Em outras palavras, nos termos de sua versão, os dirigentes da APML teriam cometido o que se convencionou chamar de “justiçamento”, a execução de um militante que perdera a confiança dos demais e era visto como traidor.
Na época, a declaração do presidente da República ganhou enorme repercussão negativa, provocando reações indignadas de ex-militantes da APML, de entidades e movimentos organizados em favor dos Direitos Humanos e de líderes políticos nacionais de diferentes matizes partidários (Folha de S. Paulo, 2019). Por um lado, negava os crimes do Estado brasileiro, quando a Lei Federal n. 9.140/95 e outros instrumentos de Justiça de Transição, como o relatório da Comissão Nacional da Verdade, já haviam consignado oficialmente a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de um leque de opositores políticos; por outro lado, sem o menor amparo nos fatos, a infame versão assacava contra a honra do opositor assassinado.
Como o presidente da República focalizou o nome de Fernando de Santa Cruz, motivado por uma contenda pública com o seu filho, o advogado Felipe de Santa Cruz, que era o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), não recebeu a mesma divulgação e os mesmos holofotes o caso de Eduardo Collier Filho, o outro militante da Ação Popular Marxista-Leninista que foi assassinado no curso da mesma operação das forças de repressão do Estado brasileiro. Os dois casos estão tão interligados que as publicações elaboradas pelos movimentos dos Direitos Humanos costumam abordá-los em conjunto, como episódios conectados de um mesmo evento.
O objetivo do presente texto é escrutinar o caso envolvendo Eduardo Collier Filho, que é igualmente relevante, e ampliar o olhar sobre a gravidade das manifestações vocalizadas pelo presidente Bolsonaro. Pretende-se situar os fatos na história da APML e proceder à abordagem desse caso na evolução da pauta dos mortos e desaparecidos, no contexto da Justiça de Transição.
Eduardo Collier Filho, nascido em Recife (PE), em 05 de dezembro de 1948, ingressou no movimento estudantil quando era aluno de graduação em Direito, na Universidade Federal da Bahia. Conforme os dados do verbete que lhe é dedicado no livro “Direito à memória e à verdade”, organizado pela Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos, “havia sido indiciado em inquérito policial pelo DOPS/SP, em 12/10/1968, por ter participado do 30º. Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Em 1969, foi expulso da universidade pelo Decreto 477” (Brasil, 2007, p. 372). Integrante da organização revolucionária Ação Popular Marxista-Leninista, foi indiciado em dois processos que tramitaram sob a tutela do Superior Tribunal Militar, vertidos, na codificação do projeto “Brasil: nunca mais”, como BNM 072 e BNM 421.
De acordo com as evidências disponíveis, incorporadas aos relatórios dos movimentos pelos Direitos Humanos desde a década de 1970 e aos documentos oficiais do Estado brasileiro em fase mais recente, Eduardo Collier Filho, juntamente com Fernando de Santa Cruz, foi sequestrado pelos órgãos de segurança em 23 fevereiro de 1974, na cidade do Rio de Janeiro, um fato que culminaria no assassinato de ambos, sob tortura, e no desaparecimento dos corpos.
Em face desses acontecimentos, as famílias deram início, instantaneamente, à busca do paradeiro de Fernando de Santa Cruz e de Eduardo Collier Filho. Um primeiro vestígio documentado deu-se em 18 de março de 1974, quando a Sra. Risoleta Collier, frustrada com diligências que empreendera por conta própria nos dias anteriores, dirigiu uma correspondência ao advogado Augusto Sussekind de Moraes Rego, a fim de constituí-lo como representante legal para requerer informações sobre o seu filho, Eduardo Collier (Brasil,1996).
Na parte inicial do pedido de habeas corpus impetrado pelo advogado Augusto Sussekind Moraes Rego, em julho daquele ano, dirigido ao Superior Tribunal Militar, há um relato a esse respeito. Referindo-se a Eduardo Collier como “paciente”, termo técnico do campo jurídico, narrou o documento:
No último dia 23 de fevereiro, tomando conhecimento de que um seu conterrâneo1 teria vindo para o Rio de Janeiro, a fim de passar os feriados de Carnaval, (Eduardo) procurou o contato com o mesmo e marcou um encontro com esse seu amigo, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, encontro esse que se realizaria na rua Prado Junior, no bairro de Copacabana. O amigo do Paciente, sabedor que o mesmo respondia a processo na Justiça Militar e, portanto, sabedor dos riscos que lhe poderiam advir com tal encontro, procurou deixar claro perante sua família que, caso não retornasse até as 18 horas, é porque havia sido preso. De fato, o amigo do Paciente não retornou a sua residência, o que fez com que sua família procurasse averiguar se o mesmo tinha sido detido e, para tanto, dirigiu-se ao prédio onde estava residindo o ora Paciente, a fim de obter informações e lá ficou sabendo que elementos pertencentes aos Órgãos de Segurança Nacional teriam estado no apartamento e saído com livros de cunho ideológico, deixando assim claro que se tratava de uma diligência consequente da prisão política de seu morador (Brasil, 1996, s./p.).
O causídico informa que, no dia 14 de março de 1974, a Sra. Risoleta Collier estivera nas dependências do D.O.I.2 de São Paulo, em companhia da Sra. Márcia de Santa Cruz Freitas3, pois elas haviam recebido informações de que Eduardo e Fernando encontravam-se detidos naquela unidade. O primeiro contato pareceu promissor, pois o agente de segurança que as recebeu, após averiguações, identificou os nomes, mas as informou que não era dia de visitas. Aceitou, contudo, uma sacola com alimentos e produtos de uso pessoal que as mães prepararam para seus filhos. A frustração não tardou. Três dias depois, foram notificadas de que havia ocorrido um equívoco e que Eduardo e Fernando não estavam naquela unidade. As sacolas também foram devolvidas. O agente público que as recebeu e foi porta-voz dessa comunicação também declarou que apenas no II Exército poderiam obter informações sobre os presos políticos. No dia seguinte, a sua cliente dirigiu-se ao II Exército, onde foi recepcionada por um coronel, que lhe pediu para indicar endereço e telefone para que ele entrasse em contato, caso obtivesse alguma informação, ressaltando que não constava que Eduardo estivesse ali.
Foi com esse relato prévio que Augusto Sussekind de Moraes Rego deu início aos procedimentos jurídicos. No documento de pedido de habeas corpus localizado pela presente pesquisa, datado de julho de 1974, lê-se que o eminente advogado já havia requerido outra ordem de habeas corpus, indicando como autoridades coatoras o comandante das Forças Armadas da Guanabara e demais autoridades policiais. Na ocasião, teve como resposta que o Paciente não se encontrava à disposição daquelas autoridades.
Em face da declaração de que informações só poderiam ser obtidas no II Exército, requeria nova ordem de habeas corpus, indicando como autoridades coatoras os responsáveis pelos órgãos de segurança de São Paulo. Desde a decretação do Ato Institucional n. 5, houve revogação do direito ao habeas corpus aos chamados crimes contra a Segurança Nacional, mas os advogados acionavam esse instrumento como forma de resistência e para pôr a nu o caráter discricionário do Estado brasileiro.
Em 27 de maio de 1974, documento assinado conjuntamente pelas duas mães, Risoleta Collier e Elzita Santa Cruz, foi remetido ao ministro chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva.
Nessa peça, ao rememorarem os passos que haviam encetados, adicionaram, aos episódios já citados, que haviam mantido contatos com a Cruz Vermelha. No final de abril daquele ano, essa instituição as informou que seus filhos, visitados por um oficial do Exército a seu pedido, estavam vivos e gozando de boa saúde, embora Fernando houvesse precisado de cuidados médicos um mês atrás. Não foram informadas, contudo, do local da detenção. Indagando o motivo de a Cruz Vermelha não fazer a visita diretamente por meio de um de seus membros, ouviram que a instituição não tinha autorização para tal. A Cruz Vermelha comprometeu-se a intermediar a entrega de correspondência aos dois filhos e das respostas que eles emitissem. Não houve, contudo, o retorno das mensagens enviadas. Pior foi a comunicação, veiculada em maio daquele ano, de que a Cruz Vermelha “já não conseguia mais notícia de nossos filhos, cessando todas as informações de que dispúnhamos, o que perdura até a presente data”. Requerem do ministro, em suma, “ajuda para a localização de Fernando Augusto e Eduardo, apontando o local onde os mesmos se encontram detidos, bem como a autoridade responsável pelos mesmos” (Brasil, 1996).
Nas frestas da política institucional, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a legenda partidária que atuava legalmente como oposição consentida, ampliou a ressonância das denúncias dos familiares. Em abril de 1974, o senador Franco Montoro (MDB-SP)4, por meio da tribuna parlamentar, denunciou “o desaparecimento dos militantes políticos Fernando de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho” (Brasil, 2010, p. 60). Em 29 de junho de 1974, o MDB publicou uma nota no periódico “Diário de Brasília”, denunciando “as prisões arbitrárias e os maus tratos sofridos pelos presos políticos e reiterou junto às autoridades, notadamente ao ministro da Justiça, pedido de esclarecimentos sobre as detenções e o paradeiro de vários oposicionistas desaparecidos” (Comissão de Familiares, 2009, p. 548).
Em 15 de junho de 1974, foi acionada a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), mediante solicitação para investigar o desaparecimento de Fernando de Santa Cruz e Eduardo Collier. A demanda foi consignada como “caso 1.844” (Comissão de Familiares, 2009, p. 526). Desde o final da década de 1960, a CIDH recepcionava denúncias relacionadas às violações aos Direitos Humanos praticadas pela ditadura brasileira. Além de obstruir investigações, o comportamento do governo federal, tanto na presidência do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) quanto na gestão do general Ernesto Geisel (1974-1979), transitava entre o evasivo e o negacionismo, procurando deslegitimar as denúncias como inverídicas (Comissão de Familiares, 2009).
Em 07 de agosto de 1974, mediante a abertura de canais de interlocução com o governo federal, o Cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns5, liderou uma comitiva de familiares em uma audiência com o ministro chefe da Casa Civil, da qual participaram as mães de Eduardo Collier Filho e Fernando de Santa Cruz. Golbery do Couto e Silva6 “ouviu caso a caso as histórias, recebeu, um a um, seus dossiês, que relatavam os dados obtidos sobre as prisões e os sequestros de 22 desaparecidos” (Comissão de Familiares, 2009, p. 628). No final, assumiu o compromisso de fornecer uma resposta em 20 dias, mas isso não ocorreu. Em contrapartida, “quando expirou o prazo, D. Paulo convocou a imprensa e denunciou a promessa não cumprida por Golbery” (Comissão de Familiares, 2009, p. 628).
Por intermédio do ministro da Justiça, Armando Falcão, o governo federal fez um pronunciamento público em 06 de fevereiro de 1975, quando emitiu uma nota oficial, que foi divulgada pela grande imprensa. A introdução do texto demonstra que a nota governamental era provocada pelas denúncias realizadas, no Brasil e no exterior, pelos familiares e por instituições sociais:
O ministro da Justiça, em face das notícias recentemente divulgadas pela imprensa, inclusive no estrangeiro, e de apelos dirigidos às autoridades para a localização de pessoas apontadas como desaparecidas, na sua quase totalidade vinculadas à subversão, torna públicos, a respeito, os seguintes dados constantes dos registros dos órgãos de segurança e internações (Folha de S. Paulo, 1975, p. 3).
Em seu cabeçalho, a nota oficial procura desqualificar os personagens elencados, como se não fossem sujeitos portadores de direitos, ao salientar que a “quase totalidade” estava “vinculada à subversão”. Esquematicamente, o corpo da nota informa qual seria a situação de 27 personagens listados, usando os dados dos arquivos oficiais. A maioria dos nomes constava da relação que os familiares entregaram ao ministro chefe da Casa Civil, quando mantiveram a audiência intermediada pelo Cardeal Arns. Os casos pertencentes à APML estão focalizados no excerto abaixo:
EDUARDO COLLIER FILHO - [...] elemento de cúpula da organização, encontra-se foragido, existindo mandado de prisão contra o mesmo, da 1ª. Auditoria da 2ª. C.J.M.; FERNANDO AUGUSTO DE SANTA CRUZ OLIVEIRA - [...] é procurado pelos órgãos de segurança e encontra-se na clandestinidade; HONESTINO MONTEIRO GUIMARÃES - [...] vasto registro de atividades subversivas. Foi condenado pela auditoria da 12ª. CJM a dois anos de reclusão, em 1972. Encontra-se foragido; HUMBERTO ALBUQUERQUE CÂMARA NETO - [...] encontra-se na clandestinidade; [...] PAULO STUART WRIGHT, militante da Ação Popular Marxista-Leninista - APML, com curso de guerrilha em Cuba e capacitação política na Academia Militar de Pequim, China. Condenado pela Justiça Militar, encontra-se foragido, existindo mandado de prisão expedido pela 1ª auditora da 2ª CJM, em 13 de março de 1974 (Folha de S. Paulo, 1975, p. 3).
Pautada em dados que o ministério alega constar dos arquivos oficiais, a abordagem de cada caso é evasiva e traduz a lógica e o léxico das políticas de Segurança Nacional do Estado brasileiro. De ponta a ponta, a nota tipifica como “foragidas” as pessoas tidas como desaparecidas, um padrão que somente seria revisto oficialmente com a edição da Lei n. 9.140/95, uma década após o fim da ditadura. Evocando a peculiar legalidade instituída pela ditadura, sublinha que alguns dos citados tinham sentença judicial e ordem de prisão determinada pelas autoridades.
Nos casos relacionados à APML, todos os nomes citados naquela nota oficial ainda são mantidos na lista dos desaparecidos políticos, ou seja, seus restos mortais nunca foram localizados para que os familiares promovessem sepultamento digno e fechassem o processo de luto. Além de encobrir a responsabilidade do Estado sobre a morte e desaparecimento dos opositores elencados, a nota cometeu um equívoco conveniente em relação a Fernando de Santa Cruz, que não havia sido indiciado em nenhum processo judicial e, portanto, mantinha vida legal, atividade profissional e endereço fixo (Assis, 2011).
A posição do Estado brasileiro está claramente instruída por um relatório emitido pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE), por meio do qual interpreta a campanha de denúncias que emergia na sociedade civil em rearticulação: “Está perfeitamente caracterizada no Brasil e no exterior uma fase da GPA (Guerra Psicológica Adversa) através da ‘Campanha dos Desaparecidos’. A intensificação das ações planejadas e conduzidas pelo MCI, e seu satélite o PCB, contra a REVOLUÇÃO DE 31 DE MARÇO 64, vem utilizando os meios de comunicação de massa, principalmente a diária” (Brasil, 1975, p. 1).
O desenvolvimento da campanha foi descrito nos seguintes termos:
A participação de políticos, jornalistas, parentes, religiosos de esquerda subversiva clerical, associações de classe, organizações no exterior e no país, na divulgação de notícias referentes a “presos políticos desaparecidos” caracteriza o emprego da propaganda nos campos político e psicossocial com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos contra a consecução dos objetivos nacionais, entre os quais se pode destacar a PAZ INTERNA (Brasil, 1975, p. 1).
Em resumo, orientada pela Doutrina da Segurança Nacional7, a interpretação do Estado brasileiro era de que as manifestações, tipificadas como Guerra Psicológica Adversa, faziam parte da conspiração dos subversivos contra a Pátria brasileira.
A AP foi fundada oficialmente em fevereiro de 1963, em congresso realizado em Salvador (BA). Entre as organizações da esquerda brasileira que foram constituídas na década de 1960, sua origem foi a mais singular. Com efeito, sua formação foi impulsionada por iniciativa de cristãos de esquerda (católicos e de alguns ramos evangélicos) e de segmentos de esquerda não alinhados com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Não reivindicava, assim, uma filiação diretamente marxista. Inspirada em referências da esquerda cristã, do marxismo e do existencialismo, preconizava a elaboração de uma ideologia própria, uma nova síntese política, cuja primeira tradução foi a resolução de seu congresso de fundação, intitulada “Documento-base” (AP, 1963). Com essas balizas, o conceito-chave de seu projeto político, comprometido com a revolução brasileira, era o “socialismo como humanismo”.
Quanto à concepção estratégica, a resolução do congresso afirmou que não cabia à AP antecipar como ocorreria o processo revolucionário. O avanço desse projeto estava relacionado com o que o Documento-base chamou de “processo de preparação revolucionária”, definido como “mobilização do povo, na base do desenvolvimento de seus níveis de consciência e organização” (AP, 1963, p. 13). Reconheceu, porém, que “a história não registra quebra de estruturas sem a violência gerada por essas mesmas estruturas, que produzem, em última análise, essa consequência” (AP, 1963, p. 10). Depreende-se que a violência revolucionária teria um sentido de autodefesa.
Concretamente, a práxis da AP, no período que antecedeu o golpe de Estado de 1964, foi pautada pelas mobilizações em favor das reformas de base, por meio da liderança que passou a exercer na União Nacional dos Estudantes (UNE) e de seu engajamento em outras frentes de atuação, como o sindicalismo rural. Para otimizar o avanço de seu programa, não descartou participar de cargos de assessoria em estruturas governamentais durante a gestão do presidente João Goulart, ao qual manifestava apoio crítico.
Depois do golpe de Estado de 1964, na repercussão da derrota sofrida pelas organizações e movimentos de esquerda, a AP redefiniu progressivamente a sua identidade e o seu projeto. Em 1965, após uma fase de desarticulação provocada pela repressão encetada pelo golpe de Estado de 1964, aderiu ao objetivo de derrotar a ditadura por meio da luta armada. Na sequência, deflagrou um processo para assumir uma identidade diretamente marxista-leninista. Em uma primeira fase, sofreu influência tanto da Revolução Cubana quanto da Revolução Chinesa, mas a sua estratégia definiu-se, em 1968, pela linha maoísta da guerra popular prolongada (AP, 1968). Essa adesão acarretou uma cisão e a expulsão de outra ala, próxima da influência da Revolução Cubana. Em 1971, sinal de sua transformação ideológica, passou a se denominar Ação Popular Marxista-Leninista (APML).
Esse processo de mudança, regido pela adesão ao marxismo-leninismo, implicava não apenas a redefinição da linha política, mas a autotransformação orgânica para a constituição do partido de vanguarda da revolução brasileira (APML,1971). A exemplo de outras organizações de sua geração, a AP compreendia que o PCB, o partido comunista histórico, havia degenerado no reformismo. Desde que aderiu ao maoísmo, em 1968, a AP buscou aproximação com outras organizações, com as quais mantinha afinidade de linha política, visando à construção desse partido de vanguarda, do qual ela própria seria um núcleo. O principal interlocutor foi o Partido Comunista do Brasil, o PC do B, que então mantinha relações privilegiadas com a China de Mao Tsé-Tung.
Na definição da estratégia revolucionária e de sua transformação em um partido regido pelos princípios do marxismo-leninismo, a APML viveu novas fases de luta interna e outra cisão. Em 1973, em face das convergências doutrinárias e estratégicas, a maioria dos dirigentes e militantes da APML se incorporou ao PC do B, reconhecendo-o como o partido de vanguarda do proletariado brasileiro (APML, 1973)8.
Não houve fusão de organizações, mas o ingresso de militantes e dirigentes da APML no PC do B. Aos que seguiram esse caminho, houve a extinção da APML e o fim de seu ciclo histórico. Em contraposição, havia uma corrente minoritária que recusou a incorporação ao PC do B e procurou preservar e reconstruir a APML a partir da perspectiva estratégica que defendia (AMPL, 1972). Por um período, contudo, os dois segmentos reivindicaram o uso da sigla.
Aos que persistiram no objetivo de reconstrução da APML, havia o desafio de enfrentar a crise orgânica decorrente da cisão e o impacto da ação repressiva do Estado, que abateu sete de seus expoentes entre setembro de 1973 e fevereiro de 1974. Perseverando nesse esforço, os dirigentes remanescentes consideraram a APML reestruturada em 1977. Nesse novo contexto, a APML interagiu com os movimentos sociais e sindicais que emergiram na cena política nacional e atualizou a sua pauta. Crítica do militarismo que tomara conta da esquerda revolucionária no auge da ditadura, caracterizado pelo primado das ações armadas como fator de mobilização das massas, a APML elaborou pautas de intervenção conjuntural e interagiu com os processos eleitorais, apoiando e apresentando candidatos pela legenda legal do MDB, mas sem abrir mão dos objetivos revolucionários (Dias, 2021).
No plano estratégico, investiu na formação da Tendência Proletária (TP) com outras organizações que também promoviam a crítica e a autocrítica do militarismo do período anterior9. A TP seria o embrião do partido de vanguarda do proletariado. Preservado tal objetivo, no período da abertura política, a APML também propôs, no plano tático, a formação de um partido legalizado, que promovesse a convergência da vanguarda ideológica, representada pelas organizações da esquerda revolucionária, com a vanguarda social forjada pelos novos movimentos políticos. Com esse propósito, integrou-se ao movimento de criação do Partido dos Trabalhadores, dentro do qual, vivendo uma crise orgânica e de perspectivas, veio a diluir-se em 1981 (Dias, 2021).
Desde o início da ditadura, em razão da resistência política que patrocinou, a Ação Popular foi uma das organizações políticas mais alvejadas pelo aparato repressivo do Estado.
Um parâmetro pode ser extraído dos dados tabulados pelo projeto “Brasil: nunca mais”, relativos aos processos judiciais que o Estado ditatorial brasileiro moveu contra as alegadas infrações à legislação de Segurança Nacional. Sistematizando as informações reunidas pelo projeto “Brasil: nunca mais”, o livro “O perfil dos atingidos” mensurou: “Entre os processos estudados, 49 eram voltados para as atividades da AP, que se situa, assim, em terceiro lugar no rol das organizações clandestinas mais atingidas quanto ao número de processos” (Arquidiocese de São Paulo, 1987, p. 37).
Pela natureza dos processos, a acusação genérica era de violação à legislação de Segurança Nacional. Quando a ditadura se iniciou, vigorava a Lei n. 1.802/53, mas houve sucessivas atualizações em um curto intervalo de tempo.
Por causa do período em que ocorreu a formalização, a maioria dos processos relacionados aos militantes e dirigentes da AP foi instruída pelos ditames do Decreto-Lei n. 898/69.
Constata-se que que as ações penais que efetivamente envolveram a AP não tinham o desencadeamento imediato de ações armadas como objeto. Com maior incidência, foram evocados os artigos 14 e 43 do DL 898/6910. Embora houvesse aderido à perspectiva de promover a luta armada para derrotar a ditadura e desencadear o processo de revolução social, a AP não se caracterizou pela militarização imediata de suas ações políticas. Na sua estratégia, a luta armada seria o ápice de um processo de radicalização política que alinhavava os objetivos militares com a arregimentação de forças populares. No jargão da época, era uma organização “massista”, em contraposição a outras que eram “militaristas”.
Outro parâmetro é o fato de o aparato repressivo do Estado ter provocado 10 casos de morte e desaparecimento de militantes e dirigentes da AP. Eis o rol dos nomes documentados, assinalada a data do desaparecimento ou da morte:

Não é excessivo esclarecer a clivagem que o léxico dos movimentos de Direitos Humanos estabeleceu, naquela época, para distinguir os casos, conforme explicou a segunda edição do “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos”. Por um lado,
o termo “morto oficial” significa que a morte das pessoas presas foi reconhecida oficialmente pelos órgãos repressivos. No entanto, muitas vezes, é necessário ainda localizar os restos mortais que foram enterrados com nomes falsos - num flagrante ato de ocultação de cadáveres, já que as autoridades sabiam a verdadeira identidade dos mortos. Na maioria das vezes, a versão policial da morte é totalmente falsa (Comissão de Familiares, 1995, p. 28).
Por outro lado,
o termo desaparecido é usado para definir a condição daquelas pessoas que, apesar de terem sido sequestradas, torturadas e assassinadas pelos órgãos de repressão, as autoridades governamentais jamais assumiram suas prisões e mortes. São até hoje consideradas pessoas foragidas pelos órgãos oficiais. Neste caso, as famílias buscam esclarecer as circunstâncias da morte e a localização dos corpos (Comissão de Familiares, 1995, p. 28).
Dos 10 nomes que mantinham vínculos com a Ação Popular, seis permanecem como desaparecidos políticos ainda hoje: os cinco que constaram da nota do ministro da Justiça no início de 1975 e Jorge Leal Gonçalves Pereira, assassinado em 1970. A situação dos outros quatro casos também é aviltante. Gildo Macedo Lacerda e Luiz Hirata não foram considerados desaparecidos pelos critérios indicados acima, pois suas mortes foram anunciadas quando ocorreram. Seus restos mortais, porém, nunca foram devolvidos aos familiares. José Carlos da Mata Machado havia sido sepultado como indigente em Recife. Localizados por uma advogada, seus restos mortais foram devolvidos à família, mas sob rígida condição: a urna funerária viria lacrada e não poderia ser aberta (Brasil, 2007). O corpo de Raimundo Eduardo da Silva foi sepultado como indigente no cemitério de Perus, em São Paulo. Exumados e identificados três anos depois, seus restos mortais foram sepultados em local escolhido pela família (Comissão de Familiares, 2009).
Os fatos relacionados à morte e ao desaparecimento de Eduardo Collier Filho e Fernando de Santa Cruz, datados de fevereiro de 1974, são os últimos da série iniciada em setembro do ano anterior, que provocou a eliminação de sete membros da APML. A nova onda de eliminação de militantes e dirigentes ocorreu depois do desenlace da luta interna que cindiu a organização e atingiu os membros da ala minoritária que havia resistido à política de incorporação ao PC do B e mantinha o objetivo de reorganizar a APML.
Antes da cisão, os serviços de segurança já haviam arquitetado uma operação para a eliminação de dirigentes e aniquilação da APML. Essa escalada de violência insere-se na chamada “Operação Cacau” (Brasil, 1973), promovida “por agentes do regime militar na Bahia, em articulação com ações desenvolvidas em São Paulo e Pernambuco com o objetivo de desmontar a APML através de sequestros, prisões, transferências clandestinas de prisioneiros e assassinatos” (Pernambuco, 2017, p. 385).
A operação de extermínio não se atinha às circunstâncias das alas internas da APML, ou seja, o objetivo era atingir, indistintamente, militantes e dirigentes e desmantelar a organização. O fato de ter atingido preferencialmente a ala minoritária que não se incorporou ao PC do B decorre de dois motivos. Primeiro, por causa da fragilidade organizativa vivida em uma fase em que o objetivo era a reestruturação. Segundo, o aparato repressivo contou com a colaboração de um informante, chamado de “cachorro” na linguagem policial. No caso, era Gilberto Prata11, cunhado de José Carlos da Mata Machado, um dos sete atingidos. Presumivelmente, as informações que detinha se relacionavam com o coletivo a que se ligava Mata Machado.
Vistos em conjunto, independentemente dos fatos que singularizam cada caso, os 10 militantes da Ação Popular que compõem a lista dos mortos e desaparecidos da ditadura foram alvejados por práticas de terror de Estado. Desde 1969, a legislação de Segurança Nacional havia incorporado a pena de morte, mas nenhum dos militantes e dirigentes da AP foi executado por determinação de sentença judicial.
Durante a ditadura de 1964, o Estado brasileiro manteve uma fachada de legalidade, instituída por mecanismos discricionários, como se o país vivesse sob um Estado Democrático de Direito. Por meio de denso estudo, o cientista político Anthony Pereira (2010) demonstrou que a ditadura brasileira, na comparação com as suas congêneres argentina e chilena, foi que a que teve o patamar mais elevado de institucionalização dos procedimentos jurídicos nos casos relacionados com a chamada Segurança Nacional.
Tal apontamento não leva a inferir, obviamente, que o sistema judiciário brasileiro obedecia ao regramento do Estado Democrático de Direito. Em primeiro lugar, considere-se que tais processos tramitavam sob a tutela do Superior Tribunal Militar. Em segundo lugar, as práticas do sistema judiciário mantinham conectividade com os porões da ditadura e com a face terrorista do Estado.
Apesar de a documentação judicial ser elaborada com filtros, de forma a não incorporar fatos que não podiam ser narrados em processos oficiais, é possível identificar a prática de tortura na fase de instrução, como, aliás, fez a sistematização do projeto “Brasil: nunca mais”. O mais grave era o fato de que nem todos os oposicionistas detidos sobreviviam para virar réus que podiam mobilizar alguma forma de assistência jurídica. De resto, quando os processos atingiam a face mais institucionalizada, as sentenças obedeciam à lógica da Ideologia da Segurança Nacional. De acordo com a avaliação de uma advogada que atuou como defensora de presos políticos, a violação às normas caracterizava todas as fases do processo (Carvalho, 1997).
Escrutinando os processos reunidos pelo projeto “Brasil: nunca mais”, a situação judicial dos militantes e dirigentes da Ação Popular que foram mortos pela repressão pode ser assim descrita: Raimundo Eduardo da Silva, Luiz Hirata, Umberto de Albuquerque Câmara Neto e Fernando de Santa Cruz não haviam sido indiciados em processos judiciais; José Carlos da Mata Machado havia sido indiciado e absolvido (BNM 688); Honestino Monteiro Guimarães (BNM 018) e Gildo Macedo Lacerda (BNM 177 e BNM 096) haviam sido sentenciados a penas de reclusão; Eduardo Collier Filho (BNM 072 e BNM 421) e Paulo Stuart Wright (BNM 096 e BNM 684) haviam sido condenados a cumprir penas de reclusão e voltaram a receber sentenças similares depois de mortos; Jorge Leal Gonçalves Pereira (BNM 205) foi julgado e absolvido depois de morto. Em todos os casos, os julgamentos ocorreram à revelia.
Abstraindo as circunstâncias excepcionais em que ocorriam os julgamentos, havendo uma sentença de reclusão, os opositores deveriam ser detidos para cumprir a pena, e não executados. Além disso, constata-se que o sistema jurídico era regido por uma lógica que transitava entre o cinismo e a morbidez, pois absolvia ou sentenciava a penas mais leves militantes que já haviam sido eliminados pelo aparato repressivo. Eram tratados como revéis, como se estivessem vivos.
Nos dois processos movidos contra Eduardo Collier, tais situações estão expostas. Indiciado na Ação Penal 703/72, ele foi condenado a dois anos de detenção, incurso no art. 14 do DL 898/69. Tal sentença foi complementada por uma ordem judicial de prisão. Em fevereiro de 1974, quando foi sequestrado pelo aparato repressivo, o sistema judiciário, se quisesse seguir a formalidade de suas decisões, deveria impor-lhe o cumprimento daquela sentença.
Como havia outro indiciamento, contido na Ação Penal 421/73, deveria ser julgado na condição de réu que estava sob a tutela do Estado. Em vez disso, foi executado logo depois do sequestro, em condições que até hoje não foram suficientemente esclarecidas. Meses depois, apesar de estar morto, foi julgado, uma vez mais, como revel. Em 15 de outubro de 1974, a Justiça Militar lhe imputou outras penalidades. Segundo o texto da sentença, foi julgada “procedente em parte a denúncia, para condenar, como incurso no art. 43 do DL 898/69, por maioria de 4 x 1 votos [...], à pena de 3 anos de reclusão e a acessória de 7 anos de suspensão dos direitos políticos” (Brasil, 1973, fl. 639).
Os autos demonstram que houve divergências entre os cinco membros do conselho de sentença, expostas na descrição de votos vencidos. O terceiro julgador a assinar a sentença arguiu que a pena principal deveria ser de quatro anos de reclusão e que a pena acessória deveria ser de 10 anos de suspensão dos direitos políticos. O quarto julgador propôs a mesma dosimetria para a pena acessória. Por sua vez, o quinto julgador votou para que a pena principal fosse de duração mínima (dois anos) e para que a acessória fosse de cinco anos.
Não se trata de cotejar os argumentos para verificar quem foi mais correto na dosimetria das penas, mas de reiterar que o julgamento punia uma pessoa morta, assassinada pelo aparato repressivo do Estado. Não se pode dizer que os membros da corte não tivessem informações sobre esses acontecimentos. As denúncias sobre o sequestro e o desaparecimento de Eduardo Collier Filho e Fernando de Santa Cruz eram públicas e tiveram repercussão na imprensa, na tribuna do Congresso Nacional e na Corte Interamericana dos Direitos Humanos. Os membros da corte brasileira dedicaram-se ao requinte de debater, às minúcias, dosimetrias diferentes para convalidar a ideia de que havia um aparato judiciário em funcionamento. Silente e conivente, o sistema judiciário se locupletava com a face terrorista do Estado.
No mesmo diapasão, em 12 de fevereiro de 1979, cerca de cinco anos após o assassinato de Eduardo Collier Filho, essa sentença foi reformada, em decorrência da atualização da legislação de Segurança Nacional. Com a edição da Lei n. 6.620/78, as autoridades reexaminaram a matéria e a pena principal foi reduzida a um ano e seis meses de reclusão. Por sua vez, a pena acessória foi extinta, visto que a nova lei não estabelecia essa previsão (Brasil, 1973, fl. 701).
Esse, no entanto, não foi o último ato. Em 07 de março de 1979, após cotejar a sentença com os dispositivos da nova legislação de Segurança Nacional, o juiz auditor declarou “extinta a punibilidade, pela prescrição da condenação, determinando, em consequência, que seja recolhido o Mandato de prisão expedido contra Eduardo Collier Filho” (Brasil, 1973, fl. 708).
Para além da ficção jurídica patrocinada pelos Tribunais Militares, ao longo da segunda metade década de 1970, adensaram-se movimentações relacionadas à questão dos mortos e desaparecidos. Impulsionado pela organização de grupos de familiares, esse engajamento foi reforçado pela Comissão de Justiça e Paz da Igreja Católica e pela constituição do Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Políticas e dos Comitês Brasileiros pela Anistia, ramificados em diferentes estados. A narrativa do livro “Desaparecidos políticos”, editado com a chancela do Comitê Brasileiro pela Anistia, é informativa:
Com o crescimento do movimento pela Anistia ampla, geral e irrestrita em escala nacional e sobretudo a partir da realização do Congresso Nacional pela Anistia, a luta pela elucidação da situação dos desaparecidos transcendeu o âmbito dos esforços dos familiares e converteu-se numa campanha nacional, coordenada por uma Comissão Nacional pelos Mortos e Desaparecidos criada pelos movimentos de Anistia. E nessa campanha nacional pelos desaparecidos e mortos estão definidos os seguintes objetivos: exigir esclarecimentos ao governo sobre os desaparecimentos; exigir que sejam apuradas as responsabilidades de tais desaparecimentos e mortes; encetar uma campanha específica pelos mortos do Araguaia, para saber onde estão os corpos e a relação de nomes dos mortos. Esta é a luta dos movimentos de anistia, que prosseguirá até a realização de seus objetivos sem que se possa esquecer que, “pessoalmente os mortos e desaparecidos não podem ser beneficiados pela Anistia. Apenas sua honra e sua memória podem ser recuperadas pela medida, com o reconhecimento de que esses companheiros foram assassinados por fazerem oposição ao regime de arbítrio. Além disso, suas famílias ainda precisam de anistia para suas angústias, sofrimentos e incertezas. Precisam de anistia para que outros não passem pelo que passaram tantos companheiros” (Carta da Comissão de Trabalho Sobre Mortos e Desaparecidos - Congresso Nacional pela Anistia) (Cabral; Lapa,1979, p. 21-22).
A Lei n. 6.683, datada de 28 de agosto de 1979, não contemplou esse conjunto de reivindicações e ensejou novos capítulos nessa luta. De acordo com os movimentos organizados em torno dessa bandeira, tal como a lei veio ao mundo, “a anistia política representou, na verdade, uma auto-anistia para os envolvidos nas ações repressivas após o golpe de 1964” (Comissão de Familiares, 1995, p. 28). Se, por um lado, trouxe “de volta os presos políticos, exilados e clandestinos para o convívio social e político”, por outro lado, “muitos mortos e desaparecidos não voltaram sequer na forma de um atestado de óbito”. Portanto, tratou-se de uma “anistia onde foi incluída a humilhante proposição de se dar um atestado de paradeiro ignorado ou de morte presumida, aos desaparecidos, pretendendo assim eximir a ditadura de suas responsabilidades, e impedir a elucidação das reais circunstâncias dos crimes cometidos” (Comissão de Familiares, 1995, p. 28).
Celina D’Araújo salientou que a lei, ao beneficiar as vítimas e os opressores, “funcionou como um escudo de proteção contra crimes praticados pelo governo” e que, desde então, “tem sido entendida como o encerramento de todas as pendências relativas ao período militar” (D’Araújo, 2012, p. 578).
Evidência da dissonância entre o descaso do Estado e a mobilização da sociedade civil, em novembro de 1979, “logo após a Anistia, os familiares entregaram um dossiê relatando de maneira sucinta os casos dos mortos e desaparecidos ao senador Teotônio Vilela, então presidente da Comissão Mista Sobre a Anistia, no Congresso Nacional” (Comissão de Familiares, 1995, p. 29). Esse dossiê, “elaborado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos do Comitê Brasileiro pela Anistia-CBA, foi editado, em 1984, com o apoio do CBA/RS - o único que ainda atuava na época no país -, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul” (Comissão de Familiares, 1995, p. 29). Atualizado e reeditado, subsidiou o avanço da luta política, da legislação e dos direitos relacionados.
Em suas páginas introdutórias, o “Dossiê dos mortos e desaparecidos” explica as limitações da abordagem, resultantes da falta de acesso aos documentos e da política de opacidade dos órgãos públicos: “este trabalho não está completo, bem o sabemos. Muitos são os casos de que se tem apenas um nome, não se tendo as circunstâncias da morte ou ‘desaparecimento’” (Comissão de Familiares, 1984, p. 14).
No texto dessa edição do “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos”, o verbete dedicado a Eduardo Collier Filho recebeu a seguinte redação: “Militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Estudante da Faculdade de Direito da Bahia, cassado pelo artigo (Decreto) 477. Preso no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974, juntamente com Fernando de Santa Cruz de Oliveira, por agentes do DOI-CODI-RJ” (Comissão de Familiares, 1984, p. 99). Excetuando a identificação singular de cada um, é o mesmo texto do verbete de Fernando de Santa Cruz de Oliveira, inserido em seguida.
Em 1985, cerca de um ano depois da publicação da primeira edição do “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos”, a pauta dos Direitos Humanos foi avivada pela divulgação do livro “Brasil: nunca mais” (Arquidiocese de São Paulo, 1985), elaborado nas frestas do processo de abertura política. Impactando a opinião pública, o “Brasil: nunca mais” pôs a nu a omissão do Estado brasileiro no desenvolvimento de uma política de Direitos Humanos que enfrentasse o passivo legado pela ditadura: “Na ausência de uma comissão da verdade e justiça, a obra acabaria por se tornar a única versão ‘oficial’ dos fatos, embora tenha sido elaborada à revelia do governo e trate apenas de episódios registrados em processos do Superior Tribunal Militar” (Mezarobba, 2009, p. 376).
Depois da Lei da Anistia, a primeira iniciativa legislativa importante para o avanço da Justiça de Transição aconteceu em 1995, com a promulgação da Lei n. 9.140. No início daquela década, o debate sobre os mortos e desaparecidos havia sido impulsionado com a descoberta da Vala de Perus, no cemitério Dom Bosco, no município de São Paulo, onde havia ossadas de presos políticos. No final de 1991, no âmbito da Câmara Federal, houve a formação da Comissão de Representação Externa de Busca de Mortos e Desaparecidos Políticos. Após tratativas frustradas com o governo Itamar Franco, o movimento de familiares lançou, no curso das eleições de 1994, uma carta compromisso aos candidatos à presidência da República, reivindicando a elaboração de um projeto de lei com vistas ao reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de opositores políticos e outras providências.
Em 1995, após debates e cobranças públicas, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso abriu a agenda. Com muitas mediações e divergências sobre o encaminhamento e o teor do texto, o resultado foi a Lei n. 9.140/95, cujo rito de aprovação, conduzido em ritmo de urgência urgentíssima e sem a incorporação de emendas, foi criticado pelos movimentos que a pautaram (Comissão de Familiares, 2009).
Em seu artigo 1º, a Lei n. 9.140/95 estabeleceu:
São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas relacionadas no Anexo I desta Lei, por terem participado, ou terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, desde então, desaparecidas, sem que delas haja notícias.
Do anexo I, constaram 136 nomes de pessoas desaparecidas. Em seu artigo 4º., a Lei n. 9.140 instituiu:
Fica criada Comissão Especial que, face à situação política mencionada no art. 1º. e, em conformidade com este, tem as seguintes atribuições:
I - proceder ao reconhecimento de pessoas:
a) desaparecidas, não relacionadas no Anexo I desta Lei;
b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, tenham falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas;
II - envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados; e
III - emitir parecer sobre os requerimentos relativos à indenização que venham a ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta Lei.
Apesar de não terem conseguido ampliar o projeto, os familiares decidiram participar do processo e indicaram sua representação na comissão então criada, enfatizando que a sua demanda não se encerrava com a edição da lei (Comissão de Familiares, 2009, p. 34). Eis um resumo das principais críticas apontadas pelos familiares à Lei n. 9.140/95:
1) Eximiu o estado da obrigação de identificar e responsabilizar os agentes que estiveram ilegalmente envolvidos com as práticas de tortura, morte e desaparecimento de opositores ao regime ditatorial, pois a impunidade relacionada aos crimes cometidos no passado em nome do Estado é um passaporte para a impunidade no presente; 2) Não responsabilizou o Estado pela apuração das circunstâncias de mortes e desaparecimentos, cabendo aos familiares o ônus da comprovação das denúncias apresentadas. Os atestados emitidos sobre os desaparecidos, portanto, são vagos, não contendo data, local, ou causa mortis, apenas declaram que o desaparecido morreu no ano mencionado no anexo I da lei 9.140/95; 3) Não obrigou o Estado a proceder à localização dos corpos dos desaparecidos, somente agiria com base nos indícios apresentados pelos familiares. Ao assumir a responsabilidade pela morte dessas pessoas e indenizar os familiares, o Estado deveria localizar, identificar e entregar seus restos mortais, direito e principal reivindicação dos familiares. Bastaria, para isso, que os principais arquivos da repressão política - principalmente os do Exército, Marinha, Aeronáutica, SNI e Polícia Federal - fossem abertos (Comissão de Familiares, 2009, p. 33-34).
Em larga medida, os trabalhos iniciais da Comissão Especial instituída pela Lei n. 9.140/95 foram pautados pela segunda edição do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos, organizado pelo movimento dos familiares, que foi divulgado em 1995. A própria lista dos opositores assassinados por responsabilidade do Estado foi elaborada com base nos levantamentos realizados pelos movimentos de familiares. Composta em ordem alfabética, a lista incorpora os nomes de Eduardo Collier Filho (n. 34) e Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira (n. 41).
Em 18 de janeiro de 1996, a Sra. Risoleta Collier subscreveu requerimento ao presidente da Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos reivindicando os benefícios da Lei n. 9.140/95, a saber, a indenização prevista e localização dos restos normais. A demanda tramitou por meio do Processo 081/96. Em junho de 1996, a Comissão Especial deferiu parcialmente o requerimento da família Collier, arbitrando a indenização prevista nos artigos 10 e 11 da Lei n. 9.140/95. Em 15 de outubro de 1996, por meio do Decreto n. 2.038/96, a presidência da República deu consequência à decisão da Comissão Especial. O principal ponto do requerimento, a localização dos restos mortais, ficou pendente. A indenização material não era o objetivo da família. Seja como for, quando a Comissão deferiu favoravelmente a indenização, reiterou e deu consequência à responsabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de Eduardo Collier Filho (Brasil, 1996).
Em 2009, o movimento de familiares publicou a terceira edição do “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos”, agora intitulado “Dossiê Ditadura”, incorporando e problematizando o resultado da Comissão Especial instituída pela Lei n. 9.140/95. Em sua introdução, o “Dossiê Ditadura” defendeu necessidade de instituição de uma Comissão da Verdade e Justiça. Argumentando que deveria ser regida pelos princípios da Justiça de Transição, explicou:
Comissões de verdade são importantes instrumentos para efetivar a aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos. Este atribui aos Estados a obrigação de garantir o direito à justiça, em sua concepção mais ampla e integral, incluindo a investigação dos fatos, a identificação e a sanção dos responsáveis, a reparação dos atingidos, o direito à verdade e a organização do aparato estatal de forma a assegurar a vigência dos direitos humanos. Para que a Comissão de Verdade atinja os seus objetivos, é fundamental unir à sua atuação mudanças legislativas, a utilização da justiça nacional e dos instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos, que determinam a investigação, o julgamento e a sanção dos responsáveis por crimes contra a humanidade em qualquer tempo (Comissão de Familiares, 2009, p. 51).
Trata-se da ressonância de proposta aprovada na 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em dezembro de 2008. Em dezembro de 2009, o Decreto Federal n. 7.037 divulgou a terceira edição do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), que incorporou a proposta no Eixo Orientador VI, intitulado “Direito à memória e à verdade”. A primeira ação programática da diretriz 23 estabeleceu o objetivo, o formato e o prazo para a elaboração de um projeto de lei com vistas à instituição da Comissão da Verdade (Dias, 2013).
Em 18 de novembro de 2011, foi promulgada a Lei n. 12.528, que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). No intervalo de quase dois anos, vicejaram tensões e disputas a respeito da existência, do formato, das atribuições e dos poderes da comissão. Tais polêmicas repercutiram no interior do governo federal, composto por uma heterogênea coalização política, liderada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Tudo isso contribuiu para limitar o escopo do texto do Programa Nacional dos Direitos Humanos (Dias, 2013). A lei foi formatada e promulgada no governo da presidente Dilma Rousseff.
Outro fato que circunscreveu o encaminhamento foi o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), mediante proposição do Conselho Federal da OAB, acerca da Lei da Anistia. A OAB arguiu que a legislação não poderia anistiar agentes públicos que houvessem cometido crimes de lesa-humanidade. Exarando uma decisão conservadora, o STF decidiu que a ADPF era improcedente, concluindo que a Lei da Anistia beneficiara os dois lados da relação.
Em resumo, a pressão da sociedade civil era por uma Comissão da Verdade e Justiça. As agências governamentais gestaram a proposta, desde o início, como uma Comissão da Verdade limitada pela Lei da Anistia, tendência consolidada com a decisão do STF. Seja como for, a instituição da CNV e de suas congêneres no âmbito de alguns estados da federação ensejou um importante espaço público para o debate da pauta.
Os casos de Fernando de Santa Cruz e de Eduardo Collier Filho foram investigados, tanto pela CNV quanto por comissões de âmbito estadual, notadamente pela de Pernambuco. No acervo coligido pela Comissão Estadual D. Helder Câmara, houve a disponibilização de um documento oficial, produzido pelo serviço de inteligência da Aeronáutica, que é bastante elucidativo sobre as razões da detenção de Fernando e Eduardo e fornece fortes indicadores sobre a execução a que foram submetidos. Sintomaticamente intitulado “Neutralização de Jair Ferreira de Sá”, o documento afirma o seguinte: “Desde a época das quedas em São Paulo (fins de 1973) que JAIR FERREIRA DE SÁ cortou todos os contatos com o que sobrou da APML-B. O elemento que pode dar o ‘DORI’, Jair Ferreira de Sá, é o Carlos - Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, dos serviços da AP” (Brasil, 1974, p. 1).
Esse documento também fornece uma descrição de informações sobre Eduardo Collier Filho, incluindo o seu endereço, localizado na Rua Prado Junior, Copacabana, e os “pontos que iria cobrir”.
Jair Ferreira de Sá era o principal líder da organização remanescente da APML. Era, portanto, o principal alvo do aparato repressivo entre os quadros dessa organização. Escrutinando esse documento, em maio de 2013, assim se pronunciou Cláudio Fonteles, membro da CNV: “A documentação oficial CISA (Informações n. 141 e 142), produzida por ocasião dos acontecimentos, prova que Collier e Santa Cruz foram presos, torturados e mortos no contexto da operação destinada a ‘neutralizar’ Jair Ferreira de Sá. Neutralizar, no jargão da ditadura, significava ‘matar’” (apud Carvalho, 2019, p. 204).
Infere-se que Fernando de Santa Cruz e Eduardo Collier Filho morreram porque, mesmo sob torturas e diante da iminente morte, não forneceram as informações buscadas pelo aparato repressivo.
No relatório final da CNV, o verbete dedicado a Eduardo Collier Filho, após a apresentação dos dados de identificação pessoal, detém-se nas circunstâncias de desaparecimento e morte, abordando duas hipóteses:
A primeira diz respeito à possibilidade de [Fernando e Eduardo] terem sido levados do Rio de Janeiro, onde foram capturados, para o DOI-CODI/SP. Como relatado, os familiares chegaram a receber de um funcionário chamado Marechal a informação de que os militantes estavam presos naquele órgão. A suspeita é reforçada pela reação do mesmo funcionário que ao tomar conhecimento dos nomes dos dois militantes procurados acrescentou o sobrenome “Oliveira” ao nome de Fernando, sem que a família o tivesse mencionado. Essa indicação do DOI-CODI/SP como possível órgão responsável pelo desaparecimento de Fernando e Eduardo levanta a possibilidade de os corpos dos dois militantes terem sido encaminhados para sepultamento como indigentes no Cemitério Dom Bosco, em Perus (Brasil, 2014, p. 1.596-1.597).
Mais chocante ainda,
a segunda hipótese é de Fernando e Eduardo terem sido encaminhados para a Casa da Morte, em Petrópolis, e seus corpos levados posteriormente para incineração em uma usina de açúcar. Esta hipótese é embasada, sobretudo, no depoimento prestado pelo ex-delegado do DOPS/ES, Cláudio Guerra, que afirmou que os corpos dos dois militantes teriam sido incinerados na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ) (Brasil, 2014, p. 1.597).
Nas conclusões do verbete, o relatório sistematiza as seguintes recomendações:
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Eduardo Collier Filho foi preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família. Essa ação foi cometida em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos, promovidas pela ditadura militar implantada no Brasil em abril de 1964. Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso, para a localização de seus restos mortais e identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos (Brasil, 2014, p. 1.600).
Portanto, de acordo com a conclusão do relatório da Comissão Nacional da Verdade, Eduardo Collier Filho e Fernando de Santa Cruz foram assassinados por agentes de segurança, em condições de tortura e desaparição dos restos mortais, mas as circunstâncias estão cercadas por hipóteses sugestivas e, por enquanto, não conclusivas, embora sejam repulsivas e chocantes. Implicam esquartejamento dos corpos ou até mesmo desintegração dos restos mortais como forma de apagar os vestígios materiais. Tudo muito diferente do que o então presidente da República vocalizou.
O negacionismo histórico é um fato deletério em si mesmo, qualquer que seja seu porta-voz. No caso em tela, há vários fatos agravantes. Primeiro, tratava-se de pronunciamento do presidente da República, a autoridade máxima do país. Segundo, o presidente da República não pode ignorar ou confrontar decisões já consolidadas oficialmente pelo Estado brasileiro, por meio dos mecanismos da Justiça de Transição.
Desde a edição da Lei n. 9.140/95, o Estado brasileiro havia assumido a responsabilidade pelo assassinato de um leque de opositores políticos, entre os quais Eduardo Collier Filho e Fernando de Santa Cruz Oliveira. No relatório produzido pela Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos, o Estado brasileiro havia incorporado oficialmente uma narrativa que, embora lacunar, expunha essa responsabilidade. No âmbito dessa comissão e sob a tutela da Lei n. 9.140/95, a família Collier havia recebido a indenização prevista, uma decisão que reforçava a responsabilidade do Estado.
As conclusões da CNV, divulgadas por um relatório em 2014, reiteram a responsabilidade e expande a narrativa por meio de um documento oficial do Estado brasileiro. Por fim, é extremamente grave que o então presidente da República, não satisfeito em praticar o negacionismo, ainda tenha divulgado uma versão infame, que assacava contra a honra e a dignidade de pessoas brutalmente assassinadas pelo Estado brasileiro. Ao revés da infame versão de Bolsonaro, morreram com dignidade e honra.
Não se tratava, contudo, de uma manifestação descuidada e isolada do presidente da República. Estava integrada a uma ação de governo cujo objetivo era confrontar e desmantelar a política de Direitos Humanos sedimentada, desde a redemocratização do país, pelo Estado brasileiro.
Assassinado aos 25 anos de idade, Eduardo Collier Filho não recebeu nenhuma sepultura que pudesse ser visitada como rito de luto, mas seu nome foi homenageado por meio de recursos simbólicos da toponímia urbana, ou seja, é nome de rua em Recife, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Também foi homenageado com a nomeação da Comissão da Memória e Verdade da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
