Temática livre
Recepción: 27 Septiembre 2022
Aprobación: 24 Abril 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2024.16.38.7059
Resumo: O presente trabalho teve por objetivo verificar se profissionais da saúde vivenciam sofrimento decorrente da pandemia de Covid-19 e, se afirmativo, como esse processo se manifesta. Os profissionais da saúde desempenham uma importante função nessa luta, sendo expostos a situações de risco que desencadeiam imensuráveis sentimentos frente à possibilidade de contágio pessoal e das pessoas ao seu redor. Usou-se de entrevista semiestruturada, de forma on-line, com nove profissionais dos serviços de saúde, sendo a maioria da rede de atenção básica, com dois a dezesseis anos de atuação, que estão na linha de frente da pandemia desde março de 2020. A discussão consistiu na análise do discurso, evidenciando como a lógica de produção tem influência nos modos de sofrimento e nos demais atravessamentos desse. Ainda, identificou-se o desenvolvimento de um cuidado de si frente ao trabalho em saúde e a importância da correlação deles, demonstrando a necessidade da atuação da psicologia nesses ambientes.
Palavras-Chave: Atenção Básica, Sofrimento psíquico, Pandemia, Psicologia.
Abstract: The present study aimed to verify whether health professionals are suffering from working during the COVID-19 pandemic and, if so, how this process manifests itself. Health professionals play an important role in the pandemic struggle, being exposed to risky situations that trigger fathomless feelings in the face of the possibility of personal infection and the people around them. An online semi-structured interview was done with 9 healthcare professionals, most of them from the primary care network, ranging from 2 to 16 years of experience and having been on the front line of the pandemic since March 2020. The discussion consisted of a discourse analysis, showing how the logic of production influences the way people suffer and other possible consequences. Also, the development of self-care due to working in health care and the importance of their correlation were identified, highlighting the need for psychological action in these environments.
Keywords: Basic care, Psychological suffering, Pandemic, Psychology.
Resumen: Este trabajo tuvo como objetivo verificar si los profesionales de la salud experimentan sufrimiento derivado de la pandemia Covid-19 y, de ser así, cómo se manifiesta este proceso. Los profesionales de la salud juegan un papel importante en esta lucha, al estar expuestos a situaciones de riesgo que desencadenan sentimientos inconmensurables ante la posibilidad de contagio personal y de quienes los rodean. Para ello, se utilizó una entrevista online semiestructurada con 9 profesionales de los servicios de salud, la mayoría de la red de atención primaria, con 2 a 16 años de experiencia, que estuvieron en la primera línea de la pandemia desde marzo de 2020. La discusión consistió en el análisis del discurso, mostrando cómo la lógica de producción influye en los modos de sufrimiento y otros cruces del mismo. Aún así, se identificó el desarrollo del autocuidado en el trabajo de la salud y la importancia de su correlación, destacando la necesidad del trabajo de la psicología en estos entornos.
Palabras clave: Cuidados básicos, Sufri-miento psíquico, Pandemia, Psicología.
Introdução
O estudo em voga pretendeu investigar o sofrimento psíquico de profissionais da saúde, sobretudo da Rede de Atenção Básica, no período de pandemia do Coronavírus. É necessário considerar que os profissionais de saúde na área da Atenção Básica desempenham uma função importante, especialmente, durante a emergência de saúde pública para a Covid-19, por meio da identificação precoce dos sinais e sintomas mas também no monitoramento e informação da população, assume importância ímpar para o Sistema Único de Saúde (SUS) no combate ao avanço da contaminação: responsabilidades que colocam estes profissionais em situação de risco, desencadeando sentimentos de medo, angústia, ansiedade e preocupações constantes do contágio de si e seus familiares.
Levando isso em conta, o objetivo deste trabalho foi verificar se os profissionais da saúde vivenciam sofrimento em decorrência do período pandêmico e, em caso afirmativo, como se dá esse processo, assim como investigar de que forma como lidam com tais questões e quais recursos são agenciados no trabalho cotidiano que potencializam sofrimentos e/ou saúde mental. Para tanto, foram entrevistados profissionais dos serviços de saúde, principalmente da rede de Atenção Básica.
A partir das entrevistas, foi possível analisar qual o impacto da pandemia na saúde mental destes agentes do cuidado, descrever os elementos que desencadeiam e que compõem o sofrimento psíquico vivenciado, quais as formas pelas quais essa condição se manifesta e, assim, visibilizar possibilidades de intervenção psicológica para os profissionais de saúde.
A relevância desse tipo de estudo qualitativo justifica-se pela capacidade de proporcionar uma compreensão mais profunda sobre como os segmentos selecionados para a entrevista podem compor a relação com o sistema de saúde e, diante disso, pensar em possibilidade para a psicologia e demais serviços, bem como melhorar a atenção à saúde desses profissionais, garantindo o direito à saúde.
Fundamentando a Psicologia na saúde
O Sistema Único de Saúde (SUS) constitui uma importante conquista da população brasileira, sendo construído com base na contribuição de vários movimentos populares, instaurando uma compreensão de saúde enquanto direito de todos e todas e dever do estado. A descentralização dessa política pública possibilita que se tenha a participação da comunidade, que se dá em decorrência de conferências e conselhos (Paim, 2018). Assim, o SUS é regido e se baseia em três princípios: na universalização, que garante o direito à saúde a todos, como um dever do estado, independentemente do sexo, raça, religião ou qualquer outra característica pessoal; na equidade, que visa à diminuição das desigualdades, investindo mais onde há maior carência de cuidado; e, por fim, na integralidade, que considera a pessoa como um todo, articulando a saúde com outras políticas públicas ao promover a intersetorialidade (Brasil, 2017b).
Isso posto, o SUS se desenvolve em níveis de complexidade na saúde, a Atenção Primária ou Atenção Básica, Atenção Secundária e Atenção Terciária. A Atenção Básica em Saúde é a porta de entrada no acesso à saúde, com ações que visam tanto ao individual, quanto ao coletivo na promoção, proteção e prevenção da saúde, disponibilizando, dessa forma, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção, considerando o sujeito como um ser sociocultural complexo e singular (Brasil, 2017a).
A partir desta demanda, a Psicologia da Saúde tem sua atuação voltada a estudar e compreender o processo de saúde e de adoecimento (Pires; Braga, 2009). Sendo assim, frente às modificações do produzir saúde, Almeida e Malagris (2011) apontam que a atuação da Psicologia na Saúde vem se expandindo ao longo dos anos, de forma que está inserida presentemente na Atenção Básica, de média e alta complexidade, operando em um tripé composto por pacientes, familiares e profissionais de saúde, atuando em uma abordagem multidisciplinar, focando na promoção de saúde e prevenção de doenças, tendo como objetivos principais “o bem estar de indivíduos, da comunidade e da população” (Pires; Braga, 2009, p. 153).
Além disso, a referida atuação contribui para a identificação de demandas das trabalhadoras e trabalhadores da saúde, intervindo sobre estas realidades e estimulando a realização de pesquisas e estudos científicos que investiguem tais necessidades, as quais são singulares e compõem territórios geográficos, econômicos, políticos e sociais. Assim, o olhar da Psicologia no âmbito da Saúde Coletiva volta-se também à influência que os riscos dos trabalhos destas e destes profissionais possuem em suas vidas, de que maneira lidam com suas questões subjetivas e como agem em cada esfera micropolítica, bem como, direciona-se à forma com que são constituídos os processos de trabalho e de que modo afetam a saúde física e mental dessas pessoas (Sato; Lacaz; Bernardo, 2006).
O cuidado em saúde se configura, grosso modo, como uma prática profissional singular, entre várias características, devido ao contato direto com a dor, o sofrimento e a finitude da vida. Em contraposição à cultura ocidental que busca negar e distanciar-se da morte, os profissionais da saúde encaram, de forma cotidiana, esses temas (Lago, 2013), de modo que enfrentam desafios diários, tanto em relação ao sofrimento dos pacientes e suas famílias, quanto no que se refere às suas próprias emoções e à constante pressão por resultados positivos, mesmo diante de limitações materiais.
No estudo realizado por Lago (2013), a propósito, o autor identificou a falta de condições físicas, de materiais e equipamentos, como agravante na condição de angústia dos profissionais, por se verem impossibilitados de auxiliar de forma adequada. Ainda, ressaltou o quanto a realização de um processo empático no encontro com as usuárias e usuários, em uma prática humanizada, pode gerar certo custo emocional, vez que, frente à existência de uma lacuna no que diz respeito a como lidar com tais questões, por vezes, realizam-se tentativas de neutralidade ou distanciamento, não constituindo estratégias viáveis na efetivação do cuidado para com o outro e consigo mesmo.
O contexto da pandemia do Coronavírus e seus impactos no trabalho em saúde
O trabalho em saúde passou a ter maiores especificidades a partir de dezembro de 2019, em que se identificou na China uma pandemia, a qual vem tendo fortes impactos a nível mundial. Esta diz respeito à Covid-19, doença de caráter infeccioso, provocada pelo vírus denominado Coronavírus, sendo que foi classificada como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados do acometimento pelo vírus podem ser acompanhados em site da OMS, em que disponibiliza a situação global existente e a conjuntura de cada continente e país (Organização Mundial da Saúde, 2020a, 2020b).
Rezende (1998) define pandemia como uma doença de grande difusão, uma epidemia que alcança considerável proporção ao se espalhar por vários países. No contexto brasileiro, a disseminação da Covid-19 alcançou níveis elevados de infectados, bem como o de mortos em pouco tempo. Destarte, adotou-se medidas como o isolamento, não apenas das pessoas que estivessem com a suspeita, mas de todos que são ou têm pessoas próximas que se enquadram nos grupos de risco, o que acabou por incluir uma grande parcela da população. Para que essas medidas de segurança fossem efetivas, fechou-se as instituições de ensino e o comércio e aconselhou-se o distanciamento social, com o intuito de reduzir a superlotação dos hospitais, seus equipamentos e o esgotamento dos profissionais da saúde (Schmidt et al., 2020).
Entretanto, a rede de Atenção Básica não cessou seu funcionamento, pois ela é essencial para o momento. Nessas condições, há um antagonismo a respeito das orientações frente ao cuidado e prevenção da contaminação e transmissão do vírus, pois, enquanto solicita-se que as pessoas realizem o isolamento social, restringindo as atividades exteriores, as e os profissionais da saúde, em sua maioria, necessitam permanecer com suas práticas, de forma ainda mais acentuada, como apontam Ornell et al. (2020). O trabalho em saúde requer uma árdua e cuidadosa atuação por parte dos profissionais, que se deparam com altas demandas, exigências e complexidade diante da produção do cuidado. Tais condições influenciam prejudicialmente a saúde física e mental dos profissionais inseridos nesse contexto, no entanto, esses impactos se intensificam em situações como a crise da Covid-19 vivenciada atualmente (Ornell et al., 2020).
Além disso, durante este período de pandemia, os profissionais da saúde têm mais chances de contrair essa infecção, provocando muitos profissionais afastados e mortes nas equipes de atendimento (Medeiros, 2020). Também é inegável fatores que apontam que essas equipes de saúde “mostram exaustão física e mental, dificuldades na tomada de decisão e ansiedade pela dor de perder pacientes e colegas, além do risco de infecção e a possibilidade de transmitir para familiares” (The Lancet, 2020 apud Medeiros, 2020, p. 2).
Todo esse cenário implica um manejo diferente frente à organização e o fazer em saúde, acarretando para além de sintomas como ansiedade, estresse, esgotamento, desamparo, desespero e uma maior propensão ao desenvolvimento de transtornos. Como visto em episódios, como o surto de síndrome respiratória aguda grave (SARS), em 2003; o mesmo, ocorrido por coronavírus em 2015, no Oriente Médio, e o evento de epidemia em 2016, na Coreia, provocada por coronavírus, de especificidade distinta do vivenciado no contexto atual. Nestes eventos, averiguou-se que, durante e após, os profissionais desenvolveram sofrimento psíquico em diferentes graus e transtornos, como o constatado no sucedido apontado do Oriente Médio, onde profissionais da linha de frente desenvolveram transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que indica que estes apresentam maior vulnerabilidade para tal (Ornell et al., 2020).
Uma visão esquizoanalítica acerca do sofrimento humano
Hur (2013) menciona a Esquizoanálise como um campo de saber amplo, construído pelo filósofo Gilles Deleuze juntamente com o até então psicanalista e militante Félix Guattari, possuindo influência em campos, como o político, de movimentos sociais, saúde pública, entre outros. Assim, para Hur (2013), a Esquizoanálise está inserida no âmbito da ciência psicológica como um meio de crítica, reflexão e criação, a partindo da compreensão do desejo enquanto criador de realidade, realizando análises sobre as relações políticas, sociais, institucionais e clínicas, afastando-se da relação família-neurose pensada pela Psicanálise, e considerando uma nova relação entre Capitalismo e Esquizofrenia, na qual:
Temos uma gama ampla de outros conceitos, concepções e práticas, que transcendem o freudo-marxismo. Dessa nova relação desdobra-se uma nova concepção sobre o inconsciente, enquanto usina intensiva e não como teatro representativo, o desejo, como produção e não como falta, conceitos novos como a micropolítica, o rizoma, o corpo sem órgãos, a máquina de guerra, o aparelho de captura, a transversalidade, as linhas molares, moleculares e de fuga, etc., e um novo paradigma: o ético-estético-político (Hur, 2013, p. 266).
Dessa forma, a visão esquizoanalítica nos lança reflexões sobre as forças e os modos de afecção que permeiam a vivência humana e caracterizam os modos de vida. Deleuze e Guattari inspiram-se em Nietzsche e Spinoza, ao construir saberes esquizoanalíticos, considerando as forças ativas de criação e produção, e forças reativas de caráter negativo e de subtração. Nesse sentido, a vitória das forças reativas evidencia o niilismo, expresso pelo ressentimento, manifestação do negativo em relação ao mundo externo, a má consciência em que o negativo é internalizado e pelo ideal ascético, que diz respeito à prevalência da negação da vontade de potência. Ainda, consideram a potência para ação, a qual existe na mesma medida em que a capacidade de afecção, onde paixões alegres, ou bons afetos, constituem composição e potência, e paixões tristes, ou afetos que diminuem o potencial dos corpos, produzem decomposição e impotência (Hur, 2019).
Spinoza (2008) define os afetos como forças que atingem as pessoas, a marca que resulta do encontro. Franco (2015) explica que estes afetos são sentidos pelo corpo, que recebe tudo o que vivenciamos e uma pessoa que foca apenas nesses afetos externos torna-se servo, “pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso” (Spinoza, 2008, p. 78). Contudo, passa a ser livre a pessoa que “age por agenciamento de suas próprias forças, que nascem de si mesma, de sua potência: a ação” (Franco, 2015, p. 109).
Tal entendimento acerca dos encontros que geram afetos e produzem efeitos no potencial de desejar e agir dos sujeitos, pode ser pensado também no contexto do trabalho em saúde, tendo em vista que o cuidado em sua forma mais potente é permeado por toda a subjetividade dos profissionais, sendo criado a partir do encontro entre os mesmos e em relação com os usuários do serviço, através das múltiplas conexões agenciadas. Dessa forma, se faz presente de forma significante nesse âmbito os processos de subjetivação dos atores envolvidos, constituindo campos de forças que operam na micropolítica existente nesses contextos (Franco; Merhy, 2012).
Método
Os colaboradores e colaboradoras da pesquisa foram selecionados por adesão e manifestação de interesse a partir de contato através da rede social WhatsApp. Dessa forma, o convite foi direcionado a trabalhadores da rede de serviços em saúde de dois municípios, conforme autorização das secretarias municipais de saúde. A escolha do método de aplicação das entrevistas, como uso do recurso Google Meet através da internet, bem como através de linguagem verbal: escrita e oral, através do WhatsApp, se deve às medidas de prevenção à pandemia Covid-19, sobretudo no que se refere ao isolamento social.
Foi esclarecido às colaboradoras e colaboradores da pesquisa as questões de sigilo, referente ao cuidado com as informações compartilhadas, bem como à utilização dos dados para a pesquisa a partir de pseudônimos, de forma que todos assinaram o Termo de Consentimento. As transcrições das entrevistas foram realizadas e enviadas para que pudessem analisar, editar ou confirmar a versão transcrita. O projeto da presente pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Parecer n. 4.429.172).
A metodologia utilizada teve como base o entendimento pós estruturalista sobre pesquisa, que se fundamenta em dois principais aspectos, o primeiro diz respeito à recusa de dicotomias, da afirmação de uma neutralidade científica, na qual há a separação entre a realidade empírica e as significações do papel da pessoa pesquisadora e a produção de conhecimentos. O segundo refere-se à compreensão da atividade de pesquisa como constituinte dos espaços sociopolíticos habitados e, com isso, a possibilidade de problematização de tais construções. Dessa forma, os pesquisadores e as pesquisadoras ocupam lugares políticos, que devem ser objeto de discussões e reflexões no âmbito da pesquisa (Guareschi; Scarparo, 2008).
Com a desnaturalização da realidade e o entendimento de contextos amplos pelos quais as pessoas são atravessadas, coloca-se em voga na construção do conhecimento científico o discurso e a linguagem, sempre relacionados às práticas culturais e construções coletivas. Além disso, evidencia-se que a produção científica compõe jogos de linguagem, saber e poder (Guareschi; Scarparo, 2008).
Então, a pesquisa utilizou a técnica qualitativa, ao se pensar os “aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais” (Silveira; Córdova, 2009, p. 32). Assim, voltou-se para a área da saúde, tendo como base as teorias da esquizoanálise.
Para Marconi e Lakatos (2007), a entrevista é uma conversa profissional entre duas pessoas que visa a obtenção de conhecimento de determinado assunto, sendo então, uma investigação social em prol da resolução de impasses, assim sendo, a entrevista semiestruturada permite manusear as perguntas pré-estabelecidas em uma direção que se faça necessário, podendo ser respondidas em uma conversação informal.
Partindo dessas entrevistas, então, usou-se o método de análise do discurso, caracterizado como um campo de investigação em que, diante da fluidez contextualizada no uso da linguagem, busca-se um melhor entendimento dos modos linguísticos sociais, dessa forma, “ela examina o modo como as pessoas usam a linguagem para construir versões de seu mundo e o que é obtido a partir dessas construções” (Breakwell et al., 2010, p. 365). Os autores ainda apontam que os discursos são formados e reproduzidos através dos contextos sociais amplamente definidos, dessa forma, “diferentes discursos podem ser invocados para a construção de qualquer objeto, pessoas, evento ou situação, e de diferentes modos” (Breakwell et al., 2010, p. 366).
Resultados e discussão
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas on-line com 9 profissionais dos serviços de saúde, atribuídos nomes fictícios a eles e elas, sendo 1 Secretária de saúde (Jaci, 2020); 3 Técnicas de enfermagem (Nadir, 2020; Paula, 2020; Rosemar, 2020); 2 Enfermeiras (Ariel, 2020; Darci, 2020); 1 Médico (Pedro, 2020); 1 Dentista (Gael, 2020) e 1 Auxiliar de consultório dentário (Amélie, 2020). Todas as entrevistas foram concedidas de forma online, por meio de chamada de vídeo, considerando a situação de pandemia vivenciada, exceto por Darci (2020) e Rosemar (2020) que responderam as questões da entrevista por escrito e posteriormente enviaram. Todos os serviços estão localizados no Sudoeste do Paraná, em sua maioria são trabalhadoras e trabalhadores da Atenção Básica em Saúde, havendo também a colaboração de profissionais da Atenção Hospitalar, tendo entre 2 e 16 anos de atuação na saúde, e estão desde março de 2020 na linha de frente da pandemia.
Foi possível identificar com a pesquisa formas de sofrimento expressas pelos profissionais que estão relacionadas aos seus processos de subjetivação e o contexto em que estão inseridos. Os relatos foram tanto no sentido de não conseguir manter uma produtividade em função das modificações nos processos de trabalho trazidas pela pandemia, quanto referindo-se às afecções geradas naquele contexto da pandemia, manifestam-se em âmbito físico e psíquico. Contudo, também houve um movimento para o cuidado de si, priorizando a segurança da própria saúde no cuidado com as ações diárias. Com isso, a discussão foi organizada a partir de três categorizações, quais sejam, o sofrimento atravessado pelo capitalismo e pela lógica de produção, o contexto da pandemia no trabalho em saúde e os processos de sofrimento, bem como o cuidado de si e possibilidades de cuidado em Psicologia, que serão desenvolvidas a seguir.
O sofrimento atravessado pelo capitalismo e pela lógica de produção
Com a pandemia, os colaboradores da pesquisa apontaram que houve alterações na rotina, como a diminuição nos fluxos de trabalho, em prol da segurança de usuárias e usuários, bem como trabalhadoras e trabalhadores, visando ao contato com um menor número de pessoas e tempo disponível para a higienização dos locais a cada atendimento. Foi possível perceber na presente pesquisa o impacto que isso gerou na dinâmica dos serviços, pois, como relata a entrevistada Amélie (Entrevista, 2020):
Antes nós chegávamos para trabalhar, a recepção estava cheia, estava lotada e hoje são só três pacientes por período, com um intervalo de uma hora cada. Então, eu, particularmente, acho um certo absurdo, sabe? Que a regional não nos libera para fazer o nosso trabalho. Até porque a gente tem todos os EPIs necessários.
Essa necessidade de produtividade é mencionada por Hur (2019) dentro dos pressupostos da Esquizoanálise, enquanto uma modulação da subjetividade através da axiomática do capital, a qual diz respeito às formas contemporâneas de dominação capitalista, que transpassam a questão da disciplinarização dos corpos através das instituições, efetivando-se de forma mais discreta, mas não menos eficiente. Assim, o sentimento de potencializar o rendimento parte do próprio indivíduo, “logo, não é mais necessário confiná-lo dentro dos muros institucionais, pois opera indefinidamente na estratégia neoliberal: ele está programado para atuar nesse funcionamento, que não tem fronteiras e limites” (Hur, 2019, p. 197-198).
A lógica capitalista incide sobre a subjetividade, que pelo diagrama disciplinar, retratado por Hur (2019), direciona os afetos, desejos, forças e o desempenho do pensamento a movimentos de produção e rendimento, o sujeito deseja render não só financeiramente, mas produtivamente também, os seus investimentos são direcionados com intensidade no que exerce, visando sempre ao máximo que pode fazer. Tal necessidade de produção é fortificada a partir da mídia e dos equipamentos coletivos que gerem nossa realidade no mundo atual, impondo modos de agir e pensar que atendem às exigências desse mundo capitalista e garantem que seja aceito de bom grado (Peres; Borsonello; Peres, 2000).
Para Foucault (1975), cada cultura irá considerar doença aquilo que não é bem-visto por ela, sendo assim, como o capitalismo e a necessidade de produção e “prosperidade” rege a sociedade contemporânea, não estar apto a trabalhar ou não querer tal coisa é visto como doença, fazendo com que seja reprimido todo e qualquer pensamento e sentimento que não priorize tais atividades.
Fica evidente essa necessidade demasiada de produzir no discurso de Gael (Entrevista, 2020), ao relatar que “aproveita o ócio para produzir, o ócio criativo” e na fala de Amélie (Entrevista, 2020): “como e sou uma pessoa proativa, e eu não gosto de ficar com o meu tempo ocioso. [...] Eu quero estar sempre ocupada”. Em ambos os discursos o descanso e a folga não são considerados como necessários, é posto em jogo em face à potencialização do seu rendimento.
O desejar de estar ocupada e ocupado, mantendo a lógica de produção a qualquer custo, implica para além da intensidade que mobiliza suas forças na direção da produção, assim como na percepção que se tem do outro. Diante de pessoas que não utilizam o ócio para render, ambos os colaboradores mencionados acima dizem, Amélie (Entrevista, 2020) aponta: “isso me gera um certo incômodo”, compartilhando o sentimento com Gael (Entrevista, 2020): “isso que me incomoda”. A retratação desse desconforto, implica em um entendimento desses colaboradores sobre o não produzir de alguns profissionais da equipe como uma conduta inadequada, tendo em vista a axiomática do capital, que não visa a moldar/adaptar o sujeito à norma, mas instigá-lo ao suprassumo da produção (Hur, 2019).
Outra colaboradora também trouxe à tona a dificuldade que diz respeito ao sofrimento por ter que interferir em processos de trabalho no âmbito comercial, tendo em vista a necessidade de solicitar a estabelecimentos que reduzam ou cessem suas atividades, como menciona Nadir (Entrevista, 2020): “então é o momento, assim sabe, que você tem que fazer a tua parte como prevenção, mas ao mesmo tempo você faz com o coração apertado, porque você sabe que ali é o ganha-pão daquele comerciante”.
Com isso, percebe-se o quanto essa lógica capitalista permeia toda a subjetividade humana e gera sofrimento quando confrontada com eventos como a incidência da pandemia, que impõe que os ritmos de trabalho sejam diminuídos, visto que “a subjetividade é dominada pelos dispositivos de poder e saber, que fazem com que as inovações culturais, científicas, técnicas e artísticas sejam meras ferramentas a serviço das classes dominantes” (Peres; Borsonello; Peres, 2000, p. 39). Nesse contexto, de acordo com Guattari (1981, p. 205), “é no funcionamento de base dos comportamentos perceptivos, sensitivos, afetivos, cognitivos, linguísticos, etc., que se engasta a maquinaria capitalística”.
Isso também se mostra explícito na fala de Gael (Entrevista, 2020): “Todos nós estamos em restrição de atividades, isso gera, acho, um estresse generalizado né. Então tem a questão interpessoal, tem a questão da demanda, tem os pacientes que vem forçar atendimento”. Tais aspectos evidenciam o quanto ter que restringir as atividades de trabalho acabou gerando aos profissionais, de diferentes formas, algum tipo de dificuldade em seu cotidiano, perpassando desde a esfera subjetiva de cada um, até as relações entre a equipe e com os usuários e usuárias do serviço.
Em relação à percepção sobre o papel da Psicologia nesse âmbito, Nadir (Entrevista, 2020) relata que “a gente está até conversando com a psicóloga para a gente fazer um trabalhinho com os funcionários, fazer uma manhã assim de motivação para eles”. Isto aparece também na visão de Ariel (Entrevista, 2020), a qual menciona a importância da Psicologia “para trabalhar as questões motivacionais e psicológicas enfrentadas”. Nesse sentido, é possível pensar em como seria esse papel motivador, considerando que a Psicologia historicamente já esteve ligada a processos de disciplinarização dos corpos, tendo como foco as necessidades capitalistas como o ajustamento ao trabalho (Zurba, 2012).
O contexto da pandemia no trabalho em saúde e os processos de sofrimento
No que diz respeito às formas de sofrimento vivenciadas, estas ficam muito explícitas nos relatos das pessoas que participaram da pesquisa, tanto através de sinais e sintomas psicológicos quanto físicos. Jaci (Entrevista, 2020) relata: “estou me sentindo confusa; preocupada; ansiosa para que termine a pandemia [...] me sinto triste, fragilizada com tudo que ‘tá’ acontecendo”. Ainda menciona a questão do distanciamento social, acrescentando:
As pessoas estão mais sensíveis, os meus colegas estão mais sensíveis e irritados, mais preocupados, a preocupação gera doença física e mental. [...] Todo mundo engordou aqui no nosso setor de trabalho, difícil quem não engordou e quem não tem às vezes dor de cabeça e uma tontura. A gente viu que a felicidade diminui muito, os risos, e eu sinto que falta aquele calor humano.
Nesse sentido, em revisão de literatura, Bezerra et al. (2020) mencionam os principais efeitos sintomatológicos provenientes do contexto de pandemia que incidem sobre a saúde mental dos profissionais que atuam na área da saúde, entre estes, encontram-se a depressão, ansiedade, angústia, insônia, exaustão, baixa satisfação no trabalho, transtorno obsessivo compulsivo, síndrome de burnout e distúrbios do sono.
Além disso, mencionando a pressão vivenciada, Nadir (Entrevista, 2020) comenta que: “Nesse período de pandemia, a gente está vivenciando momentos sufocantes, porque a gente vive sobre pressão todos os dias porque você tem que sair para trabalhar, você trabalha com o risco o dia todo”. Gael (Entrevista, 2020) complementa esse pensamento ao expor: “acaba que a saúde mental da gente vai para o buraco né? Que a gente está sempre pressionado”. Em estudo realizado por Bezerra et al. (2020), foi possível identificar a enorme pressão que incide sobre os profissionais da saúde, sobretudo em períodos pandêmicos, sendo um dos fatores que acarretam inúmeros danos à saúde destas pessoas.
O medo e a insegurança são aspectos que se fazem presentes no cotidiano. Rosemar (Entrevista, 2020) destaca esta questão: “o medo é de contrair uma doença e transmitir aos familiares”, assim como Gael (Entrevista, 2020): “eu tenho muito medo sabe, eu tenho pais com condição crônica grave, que são fatores debilitantes, fatores agravantes para a Covid”. Paula (Entrevista, 2020), que foi contaminada pela Covid-19, juntamente com sua família, ressalta: “Nunca tive medo de pegar, o medo era trazer pra casa, para os filhos, marido [...] fui contaminada eu e a minha família, marido e filhos. Quando soube que tinha me contaminado, meu maior medo era de acontecer algo com meus filhos”. Nos três relatos percebe-se a intensidade dos sentimentos de medo, no que diz respeito à contaminação de si e/ou da família. De acordo com a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP, 2020), o impacto gerado pela pandemia pode ser percebido na vida dos profissionais da saúde, que mesmo utilizando os equipamentos necessários têm experienciado o medo de serem contaminados pelo vírus, bem como de transmiti-lo às suas famílias, levando a sentimentos como ansiedade e desespero.
Nadir (Entrevista, 2020) comenta sobre o cansaço frente à dinâmica de trabalho instaurada pela pandemia: “eu estou cansada, eu estou com meu corpo, eu estou com meu psicológico cansado, por mais que eu me exercite, que eu faça atividade física, que eu tome meus antidepressivos, eu sinto que estou cansada, mas é devido a esse momento”. Nessa perspectiva, a exaustão psíquica e física foi mencionada por Bezerra et al. (2020) como um dos agravantes à saúde mental das trabalhadoras e trabalhadores de saúde, juntamente às grandes cargas horárias de trabalho e grandes índices de contaminação de profissionais e pacientes.
Além disso, para Franco (2015), liberdade nas formas de trabalho está relacionada à possibilidade de existir um cuidado a partir do encontro e dos afetos que o permeiam, envolvendo, assim, as questões subjetivas de ambos os atores deste processo. Tendo em vista as condições peculiares frente à pandemia, é possível refletir sobre a incidência dos seus efeitos sobre as vivências subjetivas desses profissionais, bem como sobre toda a dinâmica do cuidado. A fala de Rosemar (Entrevista, 2020) evidencia essa interferência do contexto de pandemia na relação entre profissionais, usuários e usuárias: “as situações de medo eram recíprocas, o paciente me olha com medo nos olhos e eu olho para o paciente com medo nos meus olhos”. Expondo que “ser livre é algo para além do livre arbítrio, mas se refere a um regime de vida em que a produção de si e do mundo se confundem, quando o trabalhador realiza sua própria natureza no ato de cuidar” (Franco, 2015, p. 105).
Os diversos aspectos pelos quais os profissionais são submetidos nas práticas em Atenção Básica, trazidos pelo período de pandemia, produzem diferentes níveis de pressão psicológica e física, dentre eles podem estar presentes “sentimentos de solidão e desamparo, ou uma série de estados emocionais disfóricos, como estresse, irritabilidade, fadiga física e mental” (Ornell et al., 2020, p. 35). Os achados dos referidos autores corroboram o sofrimento vivenciado pelos colaboradores dessa pesquisa, especificamente no discurso de Nadir, percebemos as afecções experimentadas pelo corpo, que apesar de receber algumas condições que podem gerar bem-estar, mantém-se em um estado de fadiga constante.
O desafio de enfrentar um vírus antes desconhecido também fica explícito, como menciona Jaci (Entrevista, 2020): “foi muito difícil para todos nós profissionais de saúde, [...] estamos enfrentando uma coisa desconhecida, [...] nós não estávamos tão preparados para passar por uma pandemia, então eu acho que os desafios são muitos”. A partir disso, é possível mencionar essa incerteza enquanto produtora de inseguranças, que abrangem o contexto econômico, político e social, mostrando a seriedade com que as formas de enfrentamento ao vírus precisam ser pensadas e repensadas, configurando um desafio cotidiano (SBP, 2020).
O cuidado de si e possibilidades de cuidado em Psicologia
Situações extremas deflagram movimentos de parar e pensar o que está acontecendo e considerar variáveis que, como não eram vistas como importantes, não se pensava sobre. Dessa forma, essa situação pode acabar sendo motriz para uma outra subjetividade, uma subjetividade de cuidado. A literatura traz esse movimento como atos de criação que resultam em possibilidades “por ‘linhas de fuga’, ou seja, trata-se de algo que ressignifica o problema, a necessidade, o cuidado, no contexto da relação do trabalhador” (Franco, 2015, p. 104). A pandemia da Covid-19 desempenhou um papel fulcral na nova subjetividade de cuidado dos profissionais em saúde, como Jaci (Entrevista, 2020) comenta:
E aquela coisa de se cuidar mais também [...], a gente vai ter um pouquinho mais de cuidado com o nosso corpo, com a nossas mãos e cuidado com a gente, eu acho que vai ter um pouco mais também, da nossa vida, com a nossa família, das coisas da gente, até de chegar em casa e tirar o calçado, trocar roupa para não entrar com a roupa do trabalho em casa, isso vai mudar bastante.
O cuidado de si é um conceito pensado pelo filósofo Michel Foucault, que, de acordo com Brandão (2015), está relacionado à possibilidade de vida livre e autônoma, pois, sendo um cuidado realizado sobre si mesmo, não se efetiva com vistas em interesses como riqueza, privilégios ou poder, constituindo um exercício filosófico. Esse exercício mostrou-se no relato de Jaci, bem como na fala de Ariel (Entrevista, 2020):
Com a chegada dessa situação desconhecida, ao adentrar no ambiente de trabalho, primeiramente precisamos não seguir o nosso instinto de correr para atender o paciente e sim passar a pensar na nossa própria proteção [...]. Diante disso, precisamos voltar essa visão para nós profissionais, de que preciso me cuidar para conseguir cuidar de mais pessoas.
Gael (Entrevista, 2020) também teve o encontro com o cuidado de si, reiterando “uma coisa que eu vou levar para dentro de mim com essa pandemia daqui para frente é que a paramentação, a sua autoproteção é o que você tem de mais precioso”. Com isso, foi possível identificar que a pandemia, mesmo tendo gerado várias formas de sofrimento e dificuldades, também estimulou, com a questão da paramentação dos profissionais, um olhar para si mesmos nessa relação de cuidado.
Tendo em vista a substancial importância que a produção do cuidado tem sobre a saúde mental dos profissionais, é necessário que esse ato aconteça do sujeito para com ele mesmo e por meio de intervenções psicológicas, considerando os desdobramentos do sofrimento em tais condições, uma vez que, não compartilhados e mediados podem intensificar-se, e gerar um colapso emocional e/ou transtornos psiquiátricos (Ornell et al., 2020).
Jaci (Entrevista, 2020) descreve as ações voltadas a intervenções de caráter psicológico, desenvolvidas na rede em que atua:
em relação a promoção de saúde mental, nós colocamos uma psicóloga para atender os nossos profissionais, promovendo uma melhor saúde mental, como eu já falei, para passar as dificuldades do dia a dia, as incertezas, os questionamentos que os nossos profissionais estiveram e que nós mesmos tivemos, nossos medos e aflições, então, a gente colocou um profissional à disposição da secretaria e do atendimento dos profissionais.
A Sociedade Brasileira de Psicologia (2020) esclarece que a atuação do psicólogo e da psicóloga nesse contexto deve direcionar-se ao caráter psicoeducacional, que visa esclarecer aos envolvidos e envolvidas sobre as especificidades da situação, tornando-os informados, inclusive, de sentimentos mais comuns entre os e as demais profissionais. Ainda, é possível auxiliar no conhecimento e busca de serviços e suportes da rede disponíveis.
O compartilhamento de experiências e sentimentos mobiliza os profissionais e as profissionais a desenvolver e potencializar a comunicação entre equipe, além de proporcionar um senso de coletividade e acolhimento ao ouvir e perceber que o colega também vivencia situações que o esgota emocionalmente. O uso da capacidade empática tende a ser mais frequente, produzindo melhorias no convívio entre o grupo (Ornell et al., 2020). Conforme sugere Ariel (Entrevista, 2020):
Acredito ser muito interessante os profissionais terem acompanhamento por um profissional capacitado, com alguns encontros mensais direcionados à equipe (pois na nossa área de atuação é fundamental o trabalho em equipe), [...] procurar maneiras de promover um ambiente saudável, na medida do possível harmônico, que possibilite ao profissional se sentirem confiantes na sua atuação.
Posto isto, ressalta-se a valia das intervenções psicológicas com os profissionais da Atenção Básica, atendendo a demanda de saúde mental que se encontra resultante dos impactos da pandemia, que intenciona produzir sensação de bem-estar, desenvolver acolhimento e intervir na redução de sofrimento por meio do encorajamento de recursos pessoais de cada profissional (SBP, 2020).
Considerações finais
Diante do exposto, a situação de pandemia expôs os profissionais da saúde à experimentações de afecções as quais ninguém esperava, gerando, sim, um aumento de sentimentos estressores em nível pessoal e profissional, com a equipe e suas formas de atuação, uma vez que a situação atípica e de grande proporção passou a exigir muito mais dos profissionais, que se depararam com o descaso dos governantes, a propagação de falsas notícias e discursos negligentes, ao mesmo tempo que se cobrava um trabalho de excelência e agilidade em ambientes de alto risco.
Diante disso, alguns recursos utilizados foram os de reuniões mais frequentes, em que se possibilitou espaço para que estes profissionais refletissem sobre as técnicas que até então eram automáticas e que precisavam ser reinventadas, abrindo espaço para uma visão de cuidar de si para cuidar do outro. Desta forma, este trabalho se faz importante para analisarmos essa necessidade de produção de saúde tanto em períodos corriqueiros quanto em períodos de caráter extraordinário, pensar o porquê se precisou que uma pandemia fizesse aflorar sentimentos tão diversos, para que os profissionais passassem a perceber que é necessário cuidar de sua saúde física e mental para suportar cuidar do outro, considerando que a exposição ao risco é uma constante no trabalho desses profissionais.
Nota-se que a sociedade contemporânea está tão habituada em simplesmente produzir e render que a situação em que o mundo se encontra faz notar os perigos dessa cultura de produção e os modos de afetação subjetivos e materializados na vida. Ampliar a compreensão dos processos vividos é um campo de resistência necessário, para que seja possível criar formas de viver e de se relacionar com os múltiplos aspectos da vida, construindo outras linhas de força que perpassam a via da criticidade, liberdade e criatividade.
Realizar pesquisas no âmbito de pandemia e pós-pandemia se faz fulcral, então, para tentar entender se os hábitos frutos do capitalismo irão voltar ao que era antes, ou se passará a se pensar mais a respeito das relações de trabalho e afetos. Consequentemente, é possível propor estratégias de intervenção em psicologia e outras áreas, a partir da compreensão do sistema de saúde e impactos gerados nestes períodos específicos, para o enfrentamento dos impasses decorrentes da pandemia.
Igualmente, é significativo que pesquisas futuras se proponham a tratar sobre o entendimento que os profissionais da rede de saúde possuem sobre o trabalho da Psicologia, a fim de se contrapor ao estigma sobre o fazer da psicologia, notado no estudo em evidência como uma prática inclinada à motivação, mantendo a dinâmica da produção, que compactua com o modelo capitalista e controle dos corpos, sendo que, em contrapartida a isto, a Psicologia pode vislumbrar diversas possibilidades de atuação nesse campo, como psicoeducação, acolhimento, análise institucional, intervenções com a equipe multidisciplinar visando a potencializar as relações, entre outros aspectos, compondo uma multiplicidade de perspectivas possíveis.
Fontes
AMELIE. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
ARIEL. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
DARCI. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
GAEL. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
JACI. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
NADIR. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
PAULA. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
PEDRO. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
ROSEMA. Entrevista concedida à Larissa Iez Wessling, Samara dos Santos e Jaqueline Giraldi. Francisco Beltrão, 2020.
Referências
ALMEIDA, Raquel Ayres de; MALAGRIS, Lucia Emmanoel Novaes. A prática da psicologia da saúde. Revista da SBPH, v. 14, n. 2, p. 183-202, 2011.
BRANDÃO, Ramon. Foucault e o cuidado de si: os caminhos prováveis de uma subjetividade contemporânea autônoma. Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Anais..., São Carlos, 2015, p. 279-291.
BEZERRA, Gabriela Duarte et al. O impacto da pandemia por Covid-19 na saúde mental dos profissionais de saúde: revisão integrativa. Revista Enfermagem Atual In Derme, v. 93, n. esp., e-020012, 2020.
BREAKWELL, Glynis Marie et al. Método de pesquisa em Psicologia. Porto Alegre: Artmed, 2010.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
FRANCO, Túlio Batista. Trabalho criativo e cuidado em saúde: um debate a partir dos conceitos de servidão e liberdade. Saúde e Sociedade, v. 24, n. esp., p. 102-114, 2015.
FRANCO, Túlio Batista; MERHY, Emerson Elias. Cartografias do trabalho e cuidado em Saúde. Tempus Actas de Saúde Coletiva, v. 6, n. 2, p. 151-163, 2012.
GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; SCARPARO, Helena. Refletindo sobre pesquisa e produção do conhecimento. In: SCARPARO, Helena (Org.). Psicologia e pesquisa: perspectivas metodológicas. Porto Alegre: Sulina, 2008, p. 17-26.
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
HUR, Domenico Uhng. Esquizoanálise e política: proposições para a Psicologia Crítica no Brasil. Teoría y Crítica de la Psicología, v. 3, p. 264-280, 2013.
HUR, Domenico Uhng. Psicologia, política e esquizoanálise. São Paulo: Alínea, 2019.
LAGO, Kennyston Costa. Compaixão e trabalho: como sofrem os profissionais de saúde. 188f. Doutorado em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Técnicas de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2007.
MEDEIROS, Eduardo Alexandrino Servolo. A luta dos profissionais de saúde no enfrentamento da Covid-19. Acta Paulista de Enfermagem, v. 33, n. 3, p. 1-4, 2020.
BRASIL. Atenção Primária de Saúde. Ministério da Educação. 2017a. Disponível em: https://bit.ly/3V5dcqH. Acesso em: 06 mar. 2024.
BRASIL. Institucional. Ministério da Educação. 2017b. Disponível em: https://bit.ly/3wI0dRs. Acesso em: 06 mar. 2024.
OMS. Folha informativa COVID-19. Organização Pan-Americana da Saúde. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3P9MzNz. Acesso em: 06 mar. 2024.
OMS. WHO COVID-19 dashboard. WHO Data. 2020. Disponível em: https://bit.ly/43lEqLT. Acesso em: 06 mar. 2024.
ORNELL, Felipe et al. O impacto da pandemia de COVID-19 na saúde mental dos profissionais de saúde. Caderno de Saúde Pública, v. 36, n. 4, e-00036520, 2020.
PAIM, Jairnilson Silva. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1.723-1.728, 2018.
PERES, Rodrigo Sanches; BORSONELLO, Elizabethe Cristina; PERES, Wiliam Siqueira. A esquizoanálise e a produção da subjetividade: considerações práticas e teóricas. Psicologia em Estudo, v. 5, n. 1, p. 35-43, 2000.
PIRES, Ana Cláudia Tolentino; BRAGA, Tânia Moron Saes. O psicólogo na saúde pública: formação e inserção profissional. Temas em Psicologia, v. 17, n. 1, p. 151-162, 2009.
REZENDE, Joffre Marcondes de. Epidemia, endemia, pandemia, epidemiologia. Revista de Patologia Tropical, v. 27, n. 1, p. 153-155, jan./jun. 1998.
SATO, Leny; LACAZ, Francisco Antonio de Castro; BERNARDO, Márcia Hespanhol. Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na Saúde Pública de São Paulo. Estudos de Psicologia, v. 11, n. 3, p. 281-288, 2006.
SILVEIRA, Denise Tolfo; CÓRDOVA Fernanda Peixoto. A pesquisa científica. In: GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (Orgs.). Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009, p. 31-42.
SBP. Tópico 1: Orientações técnicas para o trabalho de psicólogos e psicólogos no contexto da crise COVID-19. Sociedade Brasileira de Psicologia. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3TcHiGe. Acesso em: 06 mar. 2024.
SCHMIDT, Beatriz et al. Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estudos de Psicologia, v. 37, e200063, 2020.
SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.