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Entre o urbano e o rural: o Plano Diretor como ferramenta na delimitação do espaço do povoado da Capela do Rio do Peixe, no município de Pirenópolis (GO)
Janes Socorro da Luz; Leiliane Alves Trindade
Janes Socorro da Luz; Leiliane Alves Trindade
Entre o urbano e o rural: o Plano Diretor como ferramenta na delimitação do espaço do povoado da Capela do Rio do Peixe, no município de Pirenópolis (GO)
Between the urban and the rural: the master plan as a tool in delimitating space of the Village of Capela do Rio do Peixe, in the municipality of Pirenópolis - Goiás
Entre lo urbano y lo rural: el plan director como herramienta en la delimitación espacial del pueblo de la Capela do Rio do Peixe, en el municipio de Pirenópolis - Goiás
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 38, e2024032, 2024
Universidade Estadual do Paraná
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Resumo: O presente trabalho tem o intuito de demonstrar como a criação de uma lei pode estabelecer os espaços territoriais dentro de um município, com a análise do povoado da Capela do Rio do Peixe e sua relação com o Plano Diretor do Município de Pirenópolis (GO), que o delimitou como pertencente à zona rural do município e onde, atualmente, percebe-se um crescente processo de urbanização. Essa fronteira, que delimita o espaço urbano e rural, estabelecida pelo Plano Diretor de um município, interfere diretamente nas normas que devem ser aplicadas em relação ao parcelamento do solo e, por estar em uma área considerada rural, favorece que os novos imóveis não tenham a regularização que a legislação determina, mostrando-nos que a lei nem sempre acompanha a evolução social.

Palavras-chave: Urbanização, Plano Diretor, Legislação, Zoneamento.

Abstract: This work intends to demonstrate how the creation of a law can establish the territorial spaces within a municipality, analyzing the Village of Capela do Rio do Peixe and its relation with the Master Plan of the Municipality of Pirenópolis - Goiás, which delimited the village and designated it as a part of the rural area of the municipality where a growing process of urbanization is currently perceived. The border that delimits the urban and rural space established by the Master Plan of a municipality directly interferes with the rules that must be applied in relation to the subdivision of the land, and for being in an area considered rural, it favors that the new properties do not have the regularization that legislation determines, showing us that legislation does not always accompany social evolution.

Keywords: Urbanization, Master plan, Legislation, Zoning.

Resumo: El presente trabajo tiene como objetivo demostrar cómo la creación de una ley puede establecer espacios territoriales dentro de un municipio, con el análisis de la aldea de Capela do Rio do Peixe y su relación con el Plan Director del Municipio de Pirenópolis - Goiás, que la delimitó dentro de la zona rural del municipio y, actualmente, se aprecia un creciente proceso de urbanización. Esta frontera que delimita el espacio urbano y el rural, establecida por el Plan Director del municipio, interfiere directamente con las normas que se deben aplicar en relación con las subdivisiones del suelo, y, por tratarse de una zona considerada rural, favorece que las nuevas propiedades no tengan la regularización que la legislación determina, mostrándonos que la ley no siempre sigue la evolución social.

Palavras-chave: Urbanización, Plan Director, Legislación, Zonificación.

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Entre o urbano e o rural: o Plano Diretor como ferramenta na delimitação do espaço do povoado da Capela do Rio do Peixe, no município de Pirenópolis (GO)

Between the urban and the rural: the master plan as a tool in delimitating space of the Village of Capela do Rio do Peixe, in the municipality of Pirenópolis - Goiás

Entre lo urbano y lo rural: el plan director como herramienta en la delimitación espacial del pueblo de la Capela do Rio do Peixe, en el municipio de Pirenópolis - Goiás

Janes Socorro da Luz
Universidade Estadual de Goiás, Brasil
Leiliane Alves Trindade
Universidade Estadual de Goiás, Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 38, e2024032, 2024
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 12 Febrero 2023

Aprobación: 20 Mayo 2023

Introdução

Desde o início dos tempos, de certa forma, o direito faz parte do convívio social, sendo que as normas foram sendo criadas com o intuito impositivo de estabelecer regras que vão desde garantir o convívio das pessoas até atender interesses de governos ou de grupos que estão em posição superior aos demais, indo além de controle social para inúmeras outras áreas da sociedade, incluindo preceitos religiosos e morais.

Assim, é através de algumas normas que se materializa o direito no convívio social e até na criação de fronteiras entre os espaços e a sociedade e, nesse contexto da Lei, como forma de divisão dos espaços, vemos no Plano Diretor, que é uma legislação criada pelos municípios e atua diretamente na delimitação das zonas urbanas e rurais.

Dessa forma, podermos entender que “o Plano Diretor tem o fito de indicar a forma de desenvolvimento do município, fixando as regras e as estratégias de planejamento, para que se alcance o efetivo desenvolvimento econômico, social e físico de seu território” (Ferrareze Filho; Decarli, 2008, p. 38), ou seja, a positivação do direito através da criação de uma Lei ajustaria e regularia o desenvolvimento urbano dos espaços em um município.

O Plano Diretor segue o que foi estabelecido pelo Estatuto da Cidade, por meio da Lei n. 10.257/2001, que teve a intenção de regularizar os artigos n. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, com o intuito de possibilitar a criação e o desenvolvimento de uma política urbana de planejamento das cidades, e essa organização seria possível através da criação do Plano Diretor, que se tornaria o grande responsável de estruturar o planejamento territorial de um município.

No município de Pirenópolis, o Plano Diretor foi criado no ano de 2002, através da Lei Complementar Municipal n. 02/2002 (Pirenópolis, 2002), e determinou que o povoado da Capela do Rio do Peixe fosse considerado como área rural do município. Essa delimitação em urbano e rural altera toda a forma de organização e, principalmente, a forma que o parcelamento do solo deve ocorrer, sendo que todo terreno que se localize na área rural deve seguir as normativas estabelecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o menor tamanho de um terreno deverá ser de 2,0 hectares ou vinte mil metros quadrados.

O Plano Diretor, de 2002, encontra-se em processo de revisão, porém, a discussão junto à Câmara Municipal passa por inúmeros problemas. Em fevereiro de 2023, uma decisão judicial suspendeu os trabalhos e a tramitação da revisão do Plano Diretor, sob o argumento de que os estudos técnicos eram insuficientes e incompletos. Diante do impasse gerado, vereadores da oposição e aliados conseguiram suspender os trabalhos. Contudo, apesar da pertinência das críticas, houve a expansão de 22,97 km para 43,24 km da área urbana, ou seja, uma ampliação de 66% das áreas passíveis de zoneamento. As decisões judiciais favoráveis à suspensão da tramitação do novo plano não perduraram. Em abril de 2023, a Câmara Municipal aprovou por nove votos contra dois, o projeto de revisão do Plano Diretor, que deverá passar por nova votação até maio do corrente ano.

Essa questão demonstra a existência de conflitos tanto legais como políticos nesse processo. A questão da ampliação da área urbana é um dos pontos mais sensíveis, pois a entrada de novos agentes produtores do espaço urbano (empreendedores e incorporadores imobiliários), e empresas que procuram explorar as potencialidades do turismo local (patrimônio histórico-cultural e natureza), conflitam com os interesses econômicos e políticos já estabelecidos no munícipio. O conflito existe pela preocupação dos empresários e moradores locais com a entrada de empreendimentos que venham a estabelecer um turismo de massa, que é incompatível com o perfil do município ligado ao ecoturismo. Ademais, questiona-se a capacidade de adaptação e atendimento às novas demandas da rede de infraestrutura e serviços disponíveis, pois a decisão judicial que autorizou que o plano voltasse ao tramite de votação, não analisou a adequação dos estudos técnicos à realidade local.

Outra questão diz respeito ao parcelamento do solo que altera drasticamente a estrutura dos espaços, pois o mínimo que se pode parcelar um solo urbano é feito com base no que o Plano Diretor determina e segue a ideia de um mínimo para que se faça uma moradia, obedecendo princípios, como a dignidade da pessoa humana e da função social do imóvel. O parcelamento de imóvel rural já segue o que é determinado pelo INCRA em módulos e cada módulo deve ser o suficiente para uma família produzir o mínimo para sua subsistência. Dessa forma, o parcelamento urbano é feito seguindo o que será útil para zona urbana e o parcelamento rural segue o que será útil para a zona rural, sempre com intuito ligado à produção agropecuária.

Com esse zoneamento municipal considerando o povoado como área rural do município, o legislador municipal não levou em consideração o núcleo habitado que ali já se encontrava e proporcionou que a irregularidade dos imóveis continuasse, e o costume da transmissão de imóveis, através de documentos particulares, permanecesse até os dias atuais, e quem adquire o imóvel adquire apenas a posse.

Considerando que o objeto do estudo é um núcleo habitado no município de Pirenópolis e, assim, o denominamos pelo fato de o mesmo não estar inserido dentro do espaço considerado urbano pelo município, partimos da análise documental para identificar quem seria o real proprietário do imóvel, para, então, entender a irregularidade imobiliária que podemos identificar na povoação.

A metodologia utilizada para elaboração do trabalho será a qualitativa, que para Gerhardt e Silveira (2009, p. 32), a pesquisa qualitativa se preocupa em demonstrar “aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais”, diferente da pesquisa quantitativa, uma vez que ela não poderá ter seus resultados quantificados, pois irá mostrar os problemas reais devido à falta de legislação que regule a situação de urbanização atual.

O povoado da Capela do Rio do Peixe

O povoado da Capela do Rio do Peixe tem sua fundação em período semelhante ao da cidade de Pirenópolis, iniciando sua povoação no século XVIII, devido à mineração que ocorria às margens do Rio do Peixe, um dos rios que banham o povoado, junto com outros dois rios: Caxiri e Mata-mata. Ao contrário de muitos outros lugares, com o fim da mineração, o povoamento não caiu no esquecimento e se manteve como um núcleo urbano até os dias atuais.

O povoado se localiza a 38 km, sentido norte da cidade de Pirenópolis (GO) e, atualmente, a maioria do acesso é feito pela rodovia GO-338. O município de Pirenópolis fica a cerca de 120 km da cidade de Goiânia, que é a Capital do Estado de Goiás e, aproximadamente, a 150 km de Brasília, Capital Federal.

O povoado da Capela do Rio do Peixe, segundo Lôbo (2011), é contemporâneo a Meia Ponte (Pirenópolis) e surgiu em função da descoberta de jazidas de ouro na proximidade do Rio do Peixe. Com a descoberta do metal, que, como de costume, atraía inúmeros aventureiros pela nova mina na busca por fortuna, ali se estabeleciam e, assim, iam surgindo as povoações, mesmo que sem conforto, em casas de pau a pique, onde os mineiros fizeram sua morada.

Em sua obra, Curado (2011) demonstra que o desenvolvimento da rede urbana em Goiás e em Tocantins são fatores históricos e geográficos ligados a garimpagem de ouro no período colonial do século XVIII. Em Pirenópolis, essa realidade não foi diferente e a busca pelo ouro se expandiu para toda a região até chegar ao Rio do Peixe, e o povoado da Capela do Rio do Peixe foi criado.

Com o esgotamento das minas, muitas povoações caíram no esquecimento e hoje se tornaram ruínas ou memórias. Nucada (2010) também afirma que a ocupação do Estado de Goiás se deu no início do século XVIII, com a mineração, que, com a estagnação após o fim da prospecção aurífera, os aglomerados urbanos que se formaram, em sua maioria, foram desaparecendo e deixando apenas as ruínas como prova de que um dia o local outrora foi habitado.

Em Pirenópolis, essa decadência não acarretou no desaparecimento dos núcleos urbanos que foram formados, pois são presentes na estrutura geográfica do município até os dias atuais, como é o caso do povoado da Capela do Rio do Peixe, que, mesmo após o período aurífero, se manteve pela agricultura e, nos dias de hoje, aos poucos, vai se tornando um destino turístico.

Segundo Lôbo (2011, p. 46), “o povoamento provavelmente atingiu seu ápice nas últimas décadas do século XVIII”, quando há relatos de que o arraial de Meia Ponte era considerado cabeça de julgado e, também, narrativas de que o povoado do Rio do Peixe era como um arraial menor, pertencente a Meia Ponte.

Dentro desse contexto, é possível perceber que a pequena povoação foi se consolidando, de pouco a pouco, seguindo o padrão de formação de qualquer outra cidade do período da mineração, e que se firmou, construindo igrejas, cemitérios e adquirindo uma dinâmica própria, mesmo que afastada das rotas comerciais na época.

Lôbo (2011, p. 55) afirma que:

Com base no que se resgatou em instituições de memórias e no que “socávamos” nas memórias dos moradores e visitantes, afirmamos que, do início da mineração até os dias de hoje, poucas foram as alterações na expansão da malha urbana da aglomeração, mas a composição orgânica do espaço, proporcionada pelo desenvolvimento das atividades ligadas à agricultura, coloca novas condições ao lugar. As modificações fazem-se sentir na consolidação das casas e das ruas que vêm surgindo fora da centralidade configurada pela igreja, seguindo os caminhos que levam às fazendas da região e à estrada que liga ao povoado de Placas, no entroncamento para o Distrito de Lagolândia, povoado de Goianópolis e cidade de Pirenópolis.

A referida autora atribui parte da mudança da malha urbana do povoado também aos romeiros de Nossa Senhora Sant’Ana que, no mês de julho, procuram a povoação para a festa em devoção à Santa, festa essa que também é conhecida popularmente como a Festa da Capela. Tais romeiros se organizam em acampamentos, alguns em quintais que são alugados, outros em terrenos ao redor da Igreja, que são nomeados como de propriedade da “Santa”, e, aos poucos, muitos romeiros foram adquirindo terrenos, construindo uma infraestrutura básica composta de cozinha e banheiros e, de pouco a pouco, se tornam pequenas casas, que, nos dias de hoje, não são frequentadas apenas no mês de julho, já que todo o acesso pela GO-338 é asfaltado e, por essa facilidade, tais residências têm a presença de seus moradores em outras épocas do ano.


Imagem 1:
Nossa Senhora Sant’Ana exposta no altar da Igreja no Povoado da Capela do Rio do Peixe
Fonte: Acervo da pesquisa (2023).


Imagem 2:
Igreja de Nossa Senhora Sant’Ana no Povoado da Capela do Rio do Peixe
Fonte: Acervo da pesquisa (2023).

Lôbo (2011), em sua obra, relata a espacialidade da festa em louvor a Nossa Senhora Sant’Ana, no povoado da Capela do Rio do Peixe, que não é apenas no mês de julho, pois esse mês seria o ápice festivo, sendo os preparativos e o fluxo de pessoas iniciado um mês antes da festa, em junho, que é quando “o envolvimento com o lugar da festa ocorre desde o período de preparação e organização dos acampamentos, um mês antes, em junho, quando os promotores estão confeccionando os doces, biscoitos e verônicas, e arrecadando donativos para a festa” (Lôbo, 2011, p. 34).

Além de louvar Nossa Senhora Sant’Ana, também se tem devoção nos festejos por São Sebastião e Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Ano após ano, as celebrações ocorrem e sempre é perceptível o aumento gradual dos participantes, e o pequeno núcleo urbano se vê cheio de pessoas que ali se instalam pela devoção aos Santos homenageados ou outras pessoas, que ficam alheias às celebrações religiosas, mas se alojam neste espaço durante esse período, seja pela festa nos acampamentos ou pela festa nos ranchões, que são boates improvisadas nos dias dos festejos do povoado da Capela do Rio do Peixe.

A festa em louvor a Nossa Senhora Sant’Ana, conhecida popularmente como Festa da Capela, ano após ano, atrai inúmeras pessoas, como qualquer outra festa de romaria. Muitos indivíduos se dirigem ao povoado no mês de julho e passam, em média, 15 dias ali acampados, e para ter essa disponibilidade, alguns utilizam o período de férias, o que pode ser caracterizado como uma forma de turismo religioso.

Processo de urbanização no povoado da Capela do Rio do Peixe

O desenvolvimento industrial impulsionou a urbanização, no sentido de aumento da população que vive nas cidades, e o que, gradativamente, ocasionou a diminuição da população que vivia na zona rural. É importante ressaltar que, desde o início, as cidades surgiam nas localidades onde existia produção, que iria além da necessidade de subsistência de sua população e com uma ligação direta com o capitalismo, sendo que a urbanização é o processo e a cidade a forma que esse processo se materializa.

Com base no entendimento de que o principal objetivo de um Plano Diretor é possibilitar a organização dos espaços e auxiliar no planejamento urbano de um município, percebemos que a realidade do município de Pirenópolis, atualmente, não está de acordo com a finalidade da norma e nota-se um grande conflito com a situação de fato e a situação de direito.

Conforme certidão de Matrícula Imobiliária expedita pelo Cartório do Oficial de Registro de Imóveis e Tabelionato 1º de Notas do Município de Pirenópolis (GO), consta uma transcrição n. 4.545, de 10 de agosto de 1943, a inscrição de Usucapião, através de sentença que a Capela de Nossa Senhora Sant’Ana adquire em processo um terreno de cultura e campos de criar com a dimensão de, aproximadamente, duas léguas de longitude por uma légua de latitude.

Por ser um terreno considerado de Nossa Senhora Sant’Ana, aos poucos foram se construindo casas e, em um levantamento realizado pela Secretaria Municipal de Saúde, através do Núcleo de Controle de Vetores do Município de Pirenópolis (GO), realizado por volta do ano de 2006, era possível identificar a construção de 141 imóveis e, na atual pesquisa, realizada em 2022/2023, a povoação já contabiliza o total de 336 imóveis, um aumento de 138% entre uma sondagem e outra.

O aumento no número de construções se torna mais nítido, ainda, se compararmos imagens aéreas de 2007 e imagens áreas de 2022, conforme se pode ver na imagem 3:


Imagem 3:
Projeção de crescimento do povoado da Capela do Rio do Peixe, entre 2007 e 2022
Fonte: Trindade (2023).

Para Maloa (2019), o processo de urbanização contemporâneo seria o modelo de urbanização da atualidade, ou seja, do nosso tempo, partindo principalmente da década de 1990.

A proximidade com a cidade de Pirenópolis (GO), que é um dos principais destinos turísticos do Estado, proporcionou que a atividade turística fosse além da área urbana da cidade, indo em direção à área rural devido aos atrativos turísticos naturais, como as cachoeiras, que hoje já possuem área de alimentação e hospedagem.

Essa nova dinâmica econômica, que foi inserida dentro de alguns atrativos turísticos da região, fez com que a mão de obra fosse necessária e a região se tornasse um atrativo para novos moradores, em razão das novas propostas de trabalho e pelo baixo custo de vida. E, atualmente, o povoado da Capela do Rio do Peixe atrai um número de pessoas no período de julho, para a Festa em louvor a Nossa Senhora Sant’Ana. Nos dias que correm, também atrai pessoas em busca de uma moradia que seja próxima às novas oportunidades de emprego que vêm surgindo.

O espaço urbano, o espaço rural e o espaço continuum

Os conceitos de urbano e rural, que permeiam no imaginário de grande maioria das pessoas, sempre é ligado a atraso em oposição ao progresso. Nesse pensamento, os espaços urbanos estariam associados à prosperidade e ao desenvolvimento, e o espaço rural visto sob uma ótica contrária, relacionado ao rústico, sendo “o polo rural visto como atrasado, apresentando a tendência de redução e desaparecimento frente à avassaladora influência do polo urbano” (Araujo; Soares, 2009, p. 202-203).

A população rural é aquela que reside nas áreas rurais, fora do perímetro urbano. O conceito geral definido pelos censos demográficos, em todos os países, faz esta separação geográfica entre urbano e rural em virtude das diferenças econômicas e de infraestrutura, que são percebidas nestes dois conjuntos espaciais: “Uma das principais características é a diferença na concentração, muito alta nas áreas urbanas e dispersa nas áreas rurais” (Silva; Barroso; Rodrigues, 2014, p. 198).

Para Kieling e Silveira (2015), a grande dificuldade da atualidade seria distinguir as linhas de delimitação de campo e cidade, do rural e do urbano, que podemos dizer que “as relações entre o rural e o urbano passam por um processo de mescla, em que as linhas divisórias entre um outro, outrora tão bem definidas, não são mais possíveis de serem percebidas, pelo menos, pelo olhar convencional” (Kieling; Silveira, 2015, p. 138).

O espaço rural e o espaço urbano são distintos entre si, com características próprias. No imaginário da grande maioria, o espaço rural é composto de espaços formados por vegetação e atividades agrícolas ou pecuárias, já o espaço urbano seria composto por prédios, ruas, praças e tudo que compõe uma cidade, sendo considerados atributos “que qualificam e identificam cada espaço, campo e cidade, e seu modo de vida. De uma forma bastante linear e parcial, portanto, simplória, mas que permite uma esquematização didática da realidade” (Batista, 2015, p. 124).

Para Rosa (2005), o marco que se deve considerar para a intensificação das relações entre o meio urbano e rural, no Brasil, seria a partir da década de 1960, que foi o período que se iniciou a modernização do campo e foi o momento em que os espaços foram se tornando mais heterogêneos e diversificados.

Por outro lado, coloca-se ainda um outro debate, cujo conteúdo tem dado ressignificação ao meio rural em função das novas formas de produção e trabalho que se desenvolvem no campo e que resultam na própria modificação da configuração espacial deste meio. Isto porque o meio rural - sempre associado à atividade agrícola - passa a comportar uma série de outras atividades que “anteriormente eram desenvolvidas apenas nos centros urbanos, como turismo, moradia, entre outras” (Rosa, 2005, p. 86).

O espaço rural também é chamado de campo e essa relação cidade-campo é algo que, atualmente, é considerado complexa, não podendo ser analisado apenas pelo espaço geográfico, mas também pelas relações que os indivíduos têm entre si e entre o espaço. Há uma relação que aproxima e integra os polos urbanos e rurais, com semelhanças e continuidades. O espaço continuum seria a urbanização do espaço rural, que “se delineia entre o polo urbano e o polo rural, que apresentam distinções, as quais intensificam o processo constante de mudança que ocorre nas relações que são estabelecidas entre eles” (Araujo; Soares, 2009, p. 203):

O conceito de continuum foi inicialmente utilizado pelo antropólogo norte-americano Robert Redfield (em meados de 1930), ao realizar estudos etnográficos em grupos específicos no México. Segundo este autor, existiriam variações e continuidades entre os aspectos culturais das populações urbanas e não urbanas. Com o aumento da heterogeneidade e complexificação dos grupos sociais, este continuum caminharia para o urbano. Assim, a urbanização enfraqueceria os laços estabelecidos pelos grupos rurais, difundindo trações próprios da vida urbana como o aumento da individualidade e a fragmentação das comunidades (Rosa, 2005, p. 90).

Desta forma, o continuum seria uma tentativa para definir a forma de vida e de trabalho no meio rural que se assemelham ao meio urbano, percebendo-se, deste modo, aspectos homogêneos no modo de vida e na organização social de determinadas localidades. Dessa maneira, a cidade espalha sua forma de vida, de consumo, organização e, também, o formato de construção residencial e, cada vez mais, o modo de vida do campo vai se assemelhando ao jeito de vida da cidade.

Para Lefebvre (2001, p. 74):

A relação cidade-campo mudou profundamente no decorrer do tempo histórico, segundo as épocas e os modos de produção; ora foi profundamente conflitante, ora mais pacífica e perto de uma associação. Mais ainda, numa mesma época manifestam-se relações bem diferentes. Assim é que, na feudalidade ocidental, o senhor territorial ameaça a cidade renascente, onde os mercadores conseguem seu ponto de encontro, seu porto de ancoragem, o lugar de sua estratégia.

Essa relação da cidade com o campo ainda continua em construção e passa por mudanças no decorrer dos anos. Atualmente, além de atividades agrícolas, algumas regiões desenvolvem atividades não agrícolas, como é o caso da atividade turística, que vem se aproximando do povoado da Capela do Rio do Peixe e contribui com as alterações da sua relação com seu espaço territorial já ocupado.

É preciso entender que os espaços são frutos de relações sociais e que, em muitos casos, é possível identificar áreas dentro de cidades que são similares com áreas rurais, e áreas consideradas rurais que têm semelhanças com espaços urbanos, como é o caso do povoado da Capela do Rio do Peixe. Dessa forma, pela teoria dicotômica do que é urbano e rural, esses locais não se enquadrariam em nenhuma das categorias.

Na concepção continuum, que leva em consideração a existência de núcleos urbanos ou assentamentos que existem em um contínuo do que seria urbano e rural, ou na urbanização do rural, não existiria essa linha divisória onde se termina o urbano se inicia o rural e, sim, há um entrelaçamento entre os dois espaços, e essa concepção traz mais sentido à análise dos espaços analisados, que, para a legislação, estariam em uma área rural, mas que possuem características urbanas.

No Brasil, o Decreto Lei n. 311, de 02 de março de 1938, associa a delimitação de zonas rurais e urbanas aos municípios através, principalmente, do Plano Diretor. Contudo, muitas vezes, as transformações econômicas e sociais alteram profundamente a configuração espacial dos municípios sem que a legislação consiga acompanhar, em tempo hábil, as novas estruturas territoriais e o processo de distribuição espacial das populações das atividades econômicas (IBGE, 2017, p. 10).

O processo contínuo de urbanização que o país passou, principalmente, após a revolução industrial, contribuiu para a mudança dos espaços e, atualmente, as atividades turísticas no município de Pirenópolis contribuem para que os espaços, até então delimitados como urbano e rural, sofressem alterações em suas dinâmicas e acentuasse o crescimento de seus núcleos habitados.

Esse encargo de definir as áreas dos municípios ficou a cargo do Plano Diretor, que, no caso do município de Pirenópolis, foi editado em 2002 e, até hoje, enfrenta um processo de revisão, e o que vemos, na atualidade, é uma norma que não acompanhou a evolução social, principalmente do povoado da Capela do Rio do Peixe, que, mesmo estando em uma área considerada rural do município, possui características que não deixam dúvidas de que ali se tem, hoje, um núcleo urbano que precisa de regularização.

Conclusão

Podemos entender que é através do Plano Diretor que se manifesta a tentativa de organização de um município, principalmente para a divisão do que é área urbana e o que é área rural em sua espacialidade e, através dessa definição, são implantadas políticas públicas de planejamento que envolvem, principalmente, o saneamento básico.

O que acontece no município de Pirenópolis (GO) é que, mesmo já existindo uma povoação ao redor da Igreja de Nossa Senhora Sant’Ana, no povoado da Capela do Rio do Peixe, ao editar a Lei do Plano Diretor, o legislador municipal não levou em consideração esse espaço como uma possibilidade de extensão urbana do município, considerando-o como área rural.

Com o passar dos anos, aumento de tecnologias e, principalmente, a facilidade de acesso através do asfalto, a festa em louvor a Nossa Senhora Sant’Ana se tornou mais conhecida e passou a atrair cada vez mais pessoas para o povoado no mês de julho, e que, de forma direta, influenciou no crescimento e urbanização da povoação.

Nos dias de hoje, vemos uma expansão sem o controle e fiscalização dos órgãos competentes, com terrenos sendo negociados através de documentação que transferem apenas a posse e um aumento, do que chamamos de irregularidade fundiária (imóveis sem a documentação considerada hábil no direito brasileiro). Outro fator é que os imóveis acabam não cumprindo a função social que é determinada pela Constituição Federal de 1988, já que, para um imóvel situado na zona rural cumprir sua função social, ele deve ser produtivo, e o imóvel que está situado na zona urbana, para cumprir sua função social, deve obedecer às diretrizes determinadas pelo Plano Diretor.

Dessa forma, os imóveis que estão situados no povoado da Capela do Rio do Peixe estão inviabilizados de cumprir sua função social, já que são divididos em lotes para a construção de residências, sendo incapazes de cumprir sua função agrícola e, ao mesmo tempo, incapazes de cumprir o que determina o Plano Diretor, já que sua situação de fato se enquadra como urbano, mas pela legislação vigente está em uma área rural.

Material suplementario
Referências
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Notas

Imagem 1:
Nossa Senhora Sant’Ana exposta no altar da Igreja no Povoado da Capela do Rio do Peixe
Fonte: Acervo da pesquisa (2023).

Imagem 2:
Igreja de Nossa Senhora Sant’Ana no Povoado da Capela do Rio do Peixe
Fonte: Acervo da pesquisa (2023).

Imagem 3:
Projeção de crescimento do povoado da Capela do Rio do Peixe, entre 2007 e 2022
Fonte: Trindade (2023).
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