Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
O processo de constituição da identidade de professoras que ensinam Matemática
Natália Raquel Brisolla Oliveira; Adair Mendes Nacarato
Natália Raquel Brisolla Oliveira; Adair Mendes Nacarato
O processo de constituição da identidade de professoras que ensinam Matemática
The process of constituting the identity of teachers who teach Mathematics
El proceso de establecimiento de la identidad de profesoras que enseñan Matemáticas
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 39, e2024036, 2024
Universidade Estadual do Paraná
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Este trabalho visa compreender, a partir da narrativa de duas professoras que ensinam Matemática, a constituição de suas identidades. Apoia-se no método (auto)biográfico e teve os dados produzidos por meio de entrevistas narrativas com as duas professoras. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e os dados, organizados em biogramas de modo a identificar, mediante incidentes críticos, as experiências de vulnerabilidade vivenciadas pelas professoras e se essas experiências contribuíram para o desenvolvimento de agência mediada. Os incidentes críticos marcam momentos de ruptura nos quais as professoras vão atribuindo sentidos às concepções sobre si mesmas e aos conhecimentos e valores sobre o ensino da matemática. Nesse movimento, acontece o processo de constituição identitária.

Palavras-Chave: Identidade pro-fissional, Método (auto)biográfico, Vulnerabilidade e agência.

Abstract: Based on the narrative of two Mathematics teachers, this work aims to understand the constitution of their identities. It is grounded on the (auto)biographical method and the data was produced through narrative interviews with two teachers. Afterwards, the interviews were transcribed and the data organized into biograms in order to identify, through critical incidents, the experiences of vulnerability lived by the teachers and whether these experiences contributed to the development of the mediated agency. The crucial incidents mark moments of rupture in which the teachers attribute meaning to their conceptions of themselves and their knowledge and values about teaching mathematics. In this movement, the process of identity constitution takes place.

Keywords: Professional identity, (Auto)biographical method, Vulnerability and agency.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo comprender, a partir de la narrativa de dos profesoras que enseñan Matemáticas, la constitución de sus identidades. Este estudio se apoya en el método (auto)biográfico y los datos fueron producidos a través de entrevistas narrativas con las dos profesoras. Posteriormente, las entrevistas fueron transcritas y los datos organizados en biogramas con el fin de identificar, a través de incidentes críticos, las experiencias de vulnerabilidad vividas por las profesoras y si estas experiencias contribuyeron al desarrollo de la agencia mediada. Los incidentes críticos marcan momentos de ruptura en los que las profesoras atribuyen sentidos a sus concepciones de sí mismas y a sus conocimientos y valores sobre la enseñanza de las matemáticas. En este movimiento, sucede el proceso de constitución identitaria.

Palabras clave: Identidad profesional, Método (auto)biográfico, Vulnerabilidad y agencia.

Carátula del artículo

Dossiê

O processo de constituição da identidade de professoras que ensinam Matemática

The process of constituting the identity of teachers who teach Mathematics

El proceso de establecimiento de la identidad de profesoras que enseñan Matemáticas

Natália Raquel Brisolla Oliveira
Universidade São Francisco, Brasil
Adair Mendes Nacarato
Universidade São Francisco, Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 16, núm. 39, e2024036, 2024
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 28 Marzo 2024

Aprobación: 03 Julio 2024

Introdução1

O campo da pesquisa biográfico-narrativa tem possibilitado compreender a maneira como os professores dão sentido ao seu trabalho e como atuam em seus contextos profissionais. Ao narrarem suas histórias de vida, eles rememoram situações passadas que influenciam o presente. Ao entrelaçar o passado e o futuro, o professor abre um caminho para uma ação reflexiva que reverbera em uma projeção de ações futuras em relação à profissão.

Os professores, em seu desenvolvimento profissional, ensinam a partir de um conjunto “particular de habilidades e conhecimentos pessoais, obtidos ao longo de sua história de vida particular. O conhecimento do professor tem, então um caráter biográfico, fruto da interação da pessoa e do contexto ao longo do tempo” (Bolívar, 2002, p. 175, grifos do autor).

O processo inconclusivo na profissão docente permeado pelo repertório de saberes que o professor adquire ao longo de sua carreira - seja por formação inicial ou continuada, seja pela vivência em sala de aula e interações com os pares - vai constituindo sua identidade profissional.

De acordo com De Paula e Cyrino (2020a, p. 6), “os reflexos dos movimentos contínuos oriundos dos contextos (pessoal, profissional e inter-relacional) nos quais o PEM [Professor que Ensina Matemática] se envolve (de natureza complexa) evidenciam que os processos de constituição” da identidade profissional de PEM estão em constante modificação, em outras palavras, “as inter-relações dos/nos contextos proporcionam transformações (metamorfoses) pessoais e profissionais”.

Escolhemos o método (auto)biográfico (Ferrarotti, 2010) como metodologia de pesquisa2, pois entendemos que a narrativa de uma professora não somente descreve sua trajetória de vida como também possibilita reflexões sobre seu desenvolvimento profissional e sua constituição identitária ao longo de sua vida.

Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho é compreender, a partir da narrativa de duas professoras que ensinam Matemática, a constituição de suas identidades. Para isso, identificamos os incidentes críticos presentes na trajetória pessoal e profissional de duas PEM. Partimos dos questionamentos: quais as percepções3 que a professora tem a respeito do ensino da matemática? Sua constituição identitária tem provocado transformações nessas percepções?

O tema identidade profissional vem se fazendo presente em diferentes estudos na área de Educação e, em especial, na Educação Matemática. Por exemplo, o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Formação de Professores que Ensinam Matemática (Gepefopem) tem se dedicado a investigar a formação e a identidade profissional de PEM (De Paula; Cyrino, 2020b). O grupo Histórias de Formação de Professores que Ensinam Matemática (Hifopem) também tem se aplicado a investigar essa temática com professores ou formadores de professores (Barbato, 2016; Kleine, 2018; Pereira, 2017; Pereira, 2023).

O interesse em investigar a identidade do PEM se deu pelo fato de as autoras deste trabalho também fazerem parte de um grupo de pesquisa que se dedica a compreender o processo de formação de PEM. Para realização da pesquisa foram entrevistadas duas PEM: uma pedagoga e uma professora especialista, ambas atuando na mesma escola municipal em uma cidade do sul de Minas Gerais. Os dados foram produzidos por meio de Entrevistas Narrativas (EN).

O artigo está organizado em quatro seções, além desta introdução. Na sequência, apresentamos o referencial teórico que escolhemos para discutir a identidade profissional; e a abordagem metodológica da pesquisa, com destaque para os biogramas das professoras entrevistadas. Na terceira seção, analisamos os incidentes críticos (Bolívar, 2002) identificados nas narrativas das professoras e concluímos com algumas considerações sobre os resultados da análise.

A identidade profissional do professor

Por nos aproximarmos do método (auto)biográfico, um dos autores de referência para nossa discussão é Antonio Bolívar, visto que ele se apoia em abordagens biográfico-narrativas para discutir a constituição da identidade do professor.

O autor afirma que a biografia profissional designa o desenvolvimento profissional que

o sujeito formula narrativamente, reconstruindo o curso de sua vida. Nessa história autobiográfica entram fatos, situações e vivências com o significado pessoal implícito. Para tanto, focaliza-se na percepção subjetiva de seu próprio desenvolvimento, no modo como os professores reconstroem retrospectivamente suas experiências num relato, partindo do fato de terem um quadro interpretativo pessoal que vai mudando durante sua carreira, mas vai deixando um sedimento mental de suas experiências na profissão (Bolívar, 2002, p. 184).

O autor apresenta dois grandes componentes que fazem parte dessa perspectiva: (a) identidade profissional - concepções sobre si mesmo e como o professor se vê nas interações do contexto escolar; e (b) teoria pedagógica subjetiva - opiniões, conhecimentos e valores de um professor sobre o ensino e a educação. As histórias de vida narram o percurso profissional do professor e fornecem indícios de como se deu, ao longo da profissão, seu desenvolvimento profissional por meio de suas interações dinâmicas e significativas - entre o professor como indivíduo e seu ambiente profissional -, que culminou na sua constituição identitária.

Na perspectiva biográfico-narrativa, as histórias de vida configuram elementos para entendermos a constituição identitária do PEM. A identidade profissional do PEM, de acordo com Cyrino (2016, p. 168), pode ser compreendida como um processo contínuo e complexo que leva em consideração um conjunto “de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político”.

Lasky (2005) considera a agência como prática mediada, em que a ação individual está relacionada aos contextos sociais e às ferramentas culturais e molda o desenvolvimento das crenças, os valores e os modos de agir humanos - visto que o desenvolvimento humano acontece nas relações sociais. Nesse sentido, o professor não é visto apenas como um sujeito que “recebe passivamente as mudanças oriundas de fora da escola, mas também promove mudanças” (Nacarato, 2023, p. 174).

A agência profissional mediada do PEM é manifestada quando os docentes, em “interação mútua com estruturas sociais, exercem influência, fazem escolhas e tomam decisões que afetam seu trabalho e revelam seu compromisso profissional e ético, por meio de ideias, motivações, interesses e objetivos” (Oliveira; Cyrino, 2019, p. 517).

A agência possui caráter relacional, temporal e subjetivo que se manifesta no presente a partir de influências das experiências passadas e expectativas futuras “de possibilidades e restrições do contexto, no e por meio do engajamento dos professores em práticas profissionais que lhes são relevantes” (Oliveira; Cyrino, 2019, p. 517).

Já a vulnerabilidade é uma experiência emocional que o professor pode sentir em vários contextos no ambiente escolar:

É um estado fluido de ser que pode ser influenciado pela maneira como as pessoas percebem sua situação atual, conforme ela interage com sua identidade, crenças, valores e sentido de competência. É um estado de ser flutuante, com incidentes críticos agindo como gatilhos para intensificar ou alterar de outras formas o estado de vulnerabilidade existente de uma pessoa (Lasky, 2005, p. 901, tradução nossa).

No contexto apresentado pela autora, a vulnerabilidade é um estado no qual o professor pode se sentir em um ambiente de segurança e abertura para agir de maneira reflexiva sobre suas concepções, experiências profissionais e os significados produzidos por elas (Oliveira; Cyrino, 2019). Ou a vulnerabilidade pode gerar sentimento de impotência e traição - e o professor pode desenvolver uma postura fechada, de modo a inibir a construção de um processo de reflexão e aprendizado (Lasky, 2005).

É nos momentos de vulnerabilidade, em um ambiente seguro, que o professor tem a oportunidade de desenvolver sua agência profissional mediada, refletir sobre suas ações e tomar decisões que afetam seu trabalho e o compromisso ético com a profissão.

Os momentos de vulnerabilidade que o professor vive podem ser identificados pelos incidentes críticos. Bolívar (2002) utiliza o conceito para analisar a identidade profissional do professor. Os incidentes críticos revelam eventos na vida individual, que aconteceram em um contexto institucional ou social, e são selecionados devido ao impacto gerado na vida particular do indivíduo - em nosso contexto de pesquisa, da professora. Os incidentes críticos revelam mudanças significativas na vida dos professores, pois estabelecem rumos e decisões em determinadas direções.

Bolívar (2002, p. 62) destaca o papel que os incidentes críticos exercem no desenvolvimento e na identidade profissional: reúnem fatos individuais que marcam a identidade, acontecimentos críticos que são geradores de mudança nessa identidade e “resultados de acontecimentos que reafirmam uma parte da identidade original e repelem a outra”.

Um acontecimento assumir um caráter crítico não depende do pesquisador, e, sim, de que o próprio sujeito (o professor-colaborador) lhe dê esse caráter. Ou seja, “é a ênfase que o entrevistado confere a tais acontecimentos, pelo impacto que tenham tido em sua própria identidade ou ação profissional, que faz com que tenham esse caráter crítico” (Bolívar, 2002, p. 191). Por último, os acontecimentos críticos podem ser positivos, geradores de mudança na profissão; ou negativos, que tiveram consequências regressivas na trajetória profissional do professor (Bolívar, 2002).

Os incidentes críticos, caracterizados por Bolívar (2002), revelam situações que aconteceram e marcaram o percurso profissional no qual o professor passou por uma experiência de vulnerabilidade devido à situação vivenciada (Lasky, 2005).

Para Oliveira e Cyrino (2019), a agência mediada pode ser desenvolvida por meio das experiências de vulnerabilidade. E, para Bolívar (2002), os incidentes críticos relacionam-se a uma ruptura, algo que marcou e significou, uma crise que deu lugar a mudanças no curso da vida e quebra de percepções. Incidentes críticos ou experiências de vulnerabilidade são momentos vivenciados que afetam diretamente a constituição identitária do PEM. Sob essa perspectiva, acreditamos que a identificação de incidentes críticos nas narrativas das professoras dará suporte analítico para buscarmos pistas de desenvolvimento da agência mediada. Pretendemos, também, analisar quais os momentos que causaram uma ruptura, uma mudança de percepção sobre si mesmo na profissão ou sobre o ensino da matemática e como a professora lidou com essas situações. E, nesse movimento, acontece o processo de constituição identitária.

Para a organização dos dados deste trabalho, utilizamos os biogramas profissionais. Seguindo a abordagem proposta por Bolívar (2002), utilizaremos os incidentes críticos como ponto de partida para a análise dos dados.

Caminhos metodológicos da pesquisa

A pesquisa é de abordagem qualitativa e caracteriza-se como biográfico-narrativa. Delory-Momberger (2012, p. 524) afirma que a pesquisa biográfica visa explorar os processos de gênese e de movimento dos indivíduos em seu espaço social - o modo como eles configuram suas experiências e dão significado aos acontecimentos de sua existência -; em suma, “o objeto visado pela pesquisa biográfica, mediante esses processos de gênese socioindividual, seria o estudo dos modos de constituição do indivíduo enquanto ser social e singular”. Em outras palavras, todo indivíduo é um ser singular com concepções próprias que são intermediadas pelo espaço social e cultural e produzidas por sua realidade histórica.

Coerentemente com a abordagem escolhida, para a produção de dados, utilizamos a Entrevista Narrativa (EN). Trata-se de uma modalidade de entrevista com técnica específica que utiliza as narrativas como fonte de dados. Ela foi idealizada e sistematizada por Fritz Schütze como “um dispositivo para compreender os contextos em que as biografias são construídas e os fatores que produzem mudanças e motivam as ações dos portadores da biografia” (Nacarato, 2018, p. 339). De maneira semelhante, Delory-Momberger (2014, p. 54) diz que a narrativa (auto)biográfica pode ser compreendida como um “sistema de interpretação e de construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como elementos organizados no interior de um todo”.

As EN foram realizadas com a participação de seis professores, porém, para este artigo, selecionamos duas entrevistas, cujas narrativas apresentam elementos que possibilitam explorar a temática. Como afirma Ferrarotti (2010, p. 44, grifos do autor), “se nós somos, se todo o indivíduo é a reapropriação singular do universo social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma práxis individual”. Assim, ao selecionarmos essas duas entrevistas, sem a pretensão de estabelecer comparação entre as histórias narradas, mas mantendo a singularidade de cada uma, avaliamos ter elementos que possibilitam compreender as trajetórias e a constituição de identidades.

As professoras são Denise, que atua nos anos iniciais do Ensino Fundamental; e Luciana, professora de matemática dos anos finais do Ensino Fundamental4. As participantes são docentes de uma escola municipal de Ensino Fundamental situada no sul de Minas Gerais. As EN foram registradas por meio de videogravações, como a própria metodologia sugere. Devido à situação pandêmica que enfrentamos nos anos de 2020 e 2021, as entrevistas foram conduzidas virtualmente pela ferramenta Google Meet, no período de outubro a dezembro de 2021, e, em seguida, transcritas. As transcrições foram devolvidas às depoentes para que pudessem fazer alterações se as julgassem necessárias e, com o seu posterior consentimento, tornaram-se objeto de análise. Para a realização das em, elaboramos um roteiro de questões abertas - iniciadas com o convite “conte-me...” -, nas quais colocávamos as professoras no movimento de rememorar as experiências vividas e que foram determinantes para a constituição profissional. Cada entrevista durou, em média, uma hora - nelas, as professoras narraram suas trajetórias desde o início da escolarização até aquele momento.

Como metodologia para a organização dos dados a serem analisados, construímos biogramas. O biograma é uma representação gráfica da biografia do entrevistado, que “organiza” a trajetória de vida em um cronograma personalizado dos fatos e incidentes que marcaram a vida da pessoa e sua interpretação (Segovia; Martos; Martos Titos, 2017).

Os biogramas viabilizam a organização dos dados na forma de resumos esquemáticos dos acontecimentos das histórias narradas. Com eles pode-se estabelecer um quadro em ordem cronológica dos fatos que marcaram a trajetória profissional do professor. São também uma maneira de atribuir uma aproximação aos significados trazidos com as histórias biográfico-profissionais (Segovia; Martos; Martos Titos, 2017).

Nos biogramas, organizamos na primeira coluna, em ordem cronológica, os dados dos fatos que marcaram a vida profissional das professoras entrevistadas - início da carreira, como se deu a escolha da profissão e por que decidiu seguir a carreira docente - e um momento que marcou sua vida profissional; e, na segunda coluna, registramos se esse fato tem caráter de incidente crítico.

Na sequência, apresentamos, no quadro 1 e no quadro 2, os biogramas das professoras participantes da pesquisa.

Quadro 1:
Biograma de trajetória profissional - Professora Luciana

Fonte: Dados da pesquisa.

Quadro 2:
Biograma de trajetória profissional - Professora Denise

Fonte: Dados da pesquisa.

Com os biogramas organizados, a seguir, apresentamos a identificação dos incidentes críticos em excertos das entrevistas narrativas das professoras; e excertos sobre as percepções das professoras sobre o ensino da matemática.

As experiências de vulnerabilidade como possibilidades de desenvolvimento da agência profissional mediada das PEM

Ao concederem as EN, as professoras colaboradoras reconstruíram acontecimentos de sua trajetória que, em sua perspectiva atual, contribuíram para configurar sua vida pessoal e profissional (Bolívar, 2002).

Os incidentes críticos podem ser vistos como uma prática reflexiva e formativa, pois situações vivenciadas no passado podem explicar as práticas de ensino vivenciadas no presente. Optamos por analisar a trajetória de cada docente e, ao final, entrecruzamos as histórias, sem perder a singularidade de cada uma.

Professora Luciana

eu prometi para mim que eu nunca mais iria passar por isso (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021).

A seguir apresentamos excertos - referentes à escolha profissional - da EN concedida pela Professora Luciana em 15 de dezembro de 2021:

Eu optei pelo magistério, eu vou fazer o magistério. Só que eu tinha duas irmãs que falavam assim: “imagina, não faça magistério, professor não ganha bem, professor não é valorizado, faça contabilidade e aí você segue nesse ramo”. E eu optei pelo magistério, só que como a gente escuta os mais velhos, eu fui para a contabilidade. Fiz técnico em contabilidade, depois eu fui para a faculdade e fiz administração de empresas (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021).

A Professora Luciana tinha escolhido seguir a profissão docente, porém, influenciada pela família, muda de opinião. Ela narra como as mudanças profissionais tiveram início:

Eu estou na educação desde 2005, iniciei no telecurso. Eu queria uma nova renda para concluir minha casa. [...] Eu trabalhava durante o dia na agência e vinha para o telecurso à noite. Só que eu trabalhei dois anos assim e eu não estava aguentando mais. Eu tinha que decidir ou eu ficava no telecurso ou eu ficava na agência. Aí escolhi a educação (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021).

A professora vê a educação como uma oportunidade de ampliar sua renda financeira, mas o cansaço faz com que ela faça uma escolha. E ela escolhe a educação. Ela passa por um momento de ruptura, uma tomada de decisão importante e significativa que gerou mudanças de rota no curso de sua vida profissional e se caracteriza como um incidente crítico, um acontecimento biográfico (Bolívar, 2002).

A partir dessa ruptura, Luciana (re)constrói sua identidade (Bolívar, 2002) e assume-se como professora, trazendo consigo um conjunto de crenças e concepções sobre a profissão docente. Portanto, a Professora Luciana precisou conceber uma nova definição de si, agora, definitivamente, como docente, e relacioná-la à sua prática profissional. Em outras palavras, “trata-se de uma identidade específica, que resulta da socialização profissional; é uma construção singular, ligada à história pessoal de cada sujeito em suas múltiplas interações” (Nacarato, 2020, p. 148).

Em um primeiro momento de sua vida, ela permite que familiares interfiram em sua escolha profissional. Após um período de 20 anos, tem a possibilidade de mudança profissional por escolha própria e não por circunstâncias da vida: “Eu não sou aquele caso que não deu certo, eu estava super bem como gerente, ganhava super bem, porque a gente sabe que tem essa fala - não deu certo vai procurar a educação” (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021). Sua escolha foi mediada pelos contextos sociais vividos à época. Em um sentido mais amplo de agência, não especificamente a do professor, Lasky (2005, p. 900, tradução nossa) diz que “uma abordagem sociocultural da agência necessita examinar a ação individual de tal forma que a prioridade seja dada aos contextos sociais e às ferramentas culturais que moldam o desenvolvimento das crenças, valores e modos de agir humanos”.

Em sua primeira escolha profissional, Luciana foi influenciada por suas irmãs, que tinham construído culturalmente uma imagem negativa da profissão docente, o que interferiu na sua opção. Quando ela passa por um incidente crítico no qual se vê obrigada a tomar uma decisão, mostra indícios de desenvolvimento de agência. A agência “começa com a crença de que os seres humanos têm a capacidade de influenciar suas vidas e o meio ambiente, embora também sejam moldados por fatores sociais e individuais” (Lasky, 2005, p. 900, tradução nossa).

No excerto a seguir, Luciana conta por que escolheu cursar Licenciatura em Matemática:

Em 2009 eu fui fazer a complementação em matemática. Eu escolhi a matemática, porque eu fiz administração de empresas e para fazer essa complementação você tem que ter uma carga horária no seu histórico. O que dava para eu fazer na época era, e que eu tinha carga horária e até passava, era matemática. A minha faculdade de administração me proporcionou estudar matemática (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021).

Luciana iniciou sua carreira docente dando aulas no Telecurso 2000, ou seja, ela passou por todos os componentes curriculares dos anos finais do Ensino Fundamental. A escolha de Luciana foi a profissão docente, a Matemática foi somente o modo como ela conseguiu tornar-se professora e aproveitar a graduação anterior. A complementação pedagógica foi a possibilidade de Luciana reafirmar a sua identidade como professora.

Na narrativa de Luciana também identificamos pistas de como ela exerce a agência profissional:

Em 2009, eu também consegui contrato no município já em Matemática. Quando chegou 2012 teve o concurso [...] eu prestei e passei e me efetivei. Em 2013, um aluno reprovou comigo e com a professora de Língua Portuguesa. Eu, inocente na época, não tinha muita experiência. Eu fui corrigir a prova dele no conselho. A professora de Língua Portuguesa viu a nota e falou: “ficou comigo e com você, pronto reprovou”. Eu falei: Então, meio ponto, não dá para a gente rever? E disseram não. [...] três anos depois eu encontrei o mesmo aluno, quando dei aula na EJA [Educação para Jovens e Adultos] no 9° ano. E eu entrei na sala e ele falou: “é dona eu reprovei com a senhora por meio ponto”. Veio aquele mal-estar em mim. [...] Eu falei “ai meu Deus! eu preciso resgatar esse aluno. [...] ele vai lembrar para o resto da vida que ele reprovou comigo por meio ponto. [...] eu preciso fazer alguma coisa pelo aluno”. Um belo dia ele falou: “Ah, eu vou fazer prova do Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], eu não sei nada”. Eu pensei: “é agora que eu vou resgatar esse aluno”. [...] “então vem para cá, a partir de hoje vocês5 não vão fazer a minha matéria, nós vamos fazer Senai, nós vamos nos preparar para a prova do Senai”. Enfim, resumindo, ele não fez a minha matéria, ele só estudou para a prova do Senai e ele passou. Os dois passaram na época. E aí ele veio e me agradeceu: “obrigado, se não fosse você eu não teria conseguido”. Mas o que foi a minha satisfação, eu acho que eu consegui melhorar a minha situação com ele (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021).

O excerto anterior descreve duas experiências de vulnerabilidade vivenciadas pela professora: a primeira, quando se viu em uma situação em que não conseguiu se posicionar frente à reprovação de um aluno, e a segunda, quando encontra o aluno novamente e tem a oportunidade de mudar sua relação com ele e as lembranças que ele carregaria não somente da professora como da disciplina de matemática. As experiências vivenciadas por Luciana e a ênfase que ela dá a esse acontecimento mostram o seu caráter crítico.

Ao analisarmos o excerto apresentado, elaboramos algumas reflexões sobre o papel do professor. Pudemos observar que os professores não têm controle total em suas condições de trabalho, seu controle é limitado; nesse caso em específico, Luciana estava sujeita a decisões e normas estabelecidas por outros indivíduos - o conselho de classe e a coordenadora pedagógica. A experiência de vulnerabilidade vivenciada naquela ocasião pode ser vista como capaz de “provocar sentimentos negativos de desamparo, impotência e insegurança nos professores, paralisando ou fragilizando-os” (Oliveira; Garcia, 2020, p. 99).

Luciana, ao narrar sua experiência, dá pistas de como aquela situação a marcou e trouxe um sentimento de impotência. Ao final da entrevista, volta a falar dessa experiência: “é isso mesmo, é a inexperiência, e a gente aprende. Porque eu prometi para mim que eu nunca mais iria passar por isso, porque não dá” (Professora Luciana, Entrevista, 15 dez. 2021).

Na perspectiva de Bolívar (2002), a Professora Luciana passou por um incidente crítico, no qual pôde refletir sobre sua ação e determinar um novo rumo - posicionar-se criticamente frente à reprovação dos alunos. Observamos essa mudança quando ela diz que nunca mais passaria por aquela situação.

Já a segunda experiência de vulnerabilidade foi o momento em que Luciana pôde colocar em xeque suas crenças e concepções pedagógicas e refletir sobre sua prática, sobre a parcialidade dos conhecimentos adquiridos, suas convicções, suas experiências profissionais e os significados atribuídos a elas (Oliveira; Garcia, 2020). Todas essas características são oportunidades que possibilitam o desenvolvimento da agência profissional do professor.

Felizmente, como Luciana disse, ela teve uma segunda chance para se “redimir” com esse aluno. Porém, a situação vivenciada pela reprovação fez com que ela mudasse a maneira como se posicionava na escola, questionasse a cultura de reprovação e se fizesse presente nas decisões em conselhos de classe. Podemos inferir que, como professora que ensina Matemática, sua percepção é de que sua disciplina não é única e não pode ser fator decisivo na reprovação de um aluno - ela enxerga esse aluno como um conjunto de saberes e não como um saber compartimentalizado.

Ao reencontrar o aluno, três anos depois, ela tem a oportunidade de mudar a situação vivenciada no passado. A professora escolhe preparar o aluno para uma avaliação externa, do Senai, e abre mão de ensinar os conteúdos previstos no currículo escolar.

Freire (2013, p. 43) responde à inquietação da professora e seu gesto de olhar para esse aluno de maneira singular: “Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à assunção do educando por si mesmo”.

Em vários momentos, a Professora Luciana reflete sobre o quanto, para ela, era importante “resgatar esse aluno”. Luciana não gostaria de ser a professora que marcou a vida do aluno de maneira negativa. Ela pôde, por meio do seu gesto, contribuir como “força formadora” de seu aluno: “obrigado, se não fosse você eu não teria conseguido”.

Pensando na situação vivenciada por Luciana, voltamos ao conceito de Cyrino (2016, p. 168) sobre a identidade profissional de PEM: ela é entendida como um movimento que se dá “tendo vista um conjunto de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político”.

Nessa experiência relatada por Luciana, podemos observar esses movimentos descritos por Cyrino (2016). A professora revê suas crenças e concepções sobre o ensino em relação tanto à reprovação quanto à necessidade de seu aluno naquele momento. Ela coloca em segundo plano as prescrições (o currículo) e ensina ao aluno o que ele precisava para ser aprovado em uma avaliação tão importante em sua vida como estudante. Identificamos a agência profissional mediada por uma situação no contexto escolar da professora. Quando ela decide por ensinar ao aluno os conteúdos cobrados na avaliação externa em detrimento de um currículo comum, mostra-se agindo com autonomia e com compromisso ético para com seu aluno.

Essas idas e vindas em sua carreira profissional mostram o movimento da constituição identitária da PEM, que faz parte de seu desenvolvimento profissional. A professora vai adquirindo elementos que dão suporte ao desenvolvimento de agência profissional.

No que se refere às percepções sobre o ensino da matemática, a Professora Luciana (Entrevista, 15 dez. 2021) afirma que quem define como será o Ensino da Matemática é o perfil da sua turma: “cada ano é uma turma, cada ano é um desafio”. Ela prossegue:

uma vez eu fiz um trabalho que eu gostei muito: Era uma turma que eu separei a sala em grupos. Era uma turma indisciplinada, sabe? Eu dividi a turma em 5 grupos. E eu peguei o conteúdo daquele bimestre e dividi nesses 5 grupos [...]. Foi um 7° ano. Um grupo ficou com potência, outro ficou com raiz, cada grupo ficou com um conteúdo. Eu fiz isso por causa da indisciplina, eu precisava arrumar aquela sala porque estava demais. Então, eles liam aquele conteúdo, discutiam aquilo que eles liam, e eu ficava só intermediando os grupos. Depois eles vinham no quadro para fazer a correção do exercício. Eu deixava à vontade, vinha todo mundo, ou vinha um só. Nossa deu super certo. E foi só essa turma, já tentei em outras, mas não deu certo. Eu entrava na sala e parecia que eu nem precisava estar ali.

Para ela, o Ensino da Matemática é muito mais amplo que o ensino de conteúdos curriculares, ela acredita ser importante entender sua sala de aula, como seus alunos aprendem. Luciana estava vivenciando uma situação corriqueira em sala de aula e que é motivo de desmotivação de muitos professores - a indisciplina recorrente de determinadas turmas. Ela tinha duas escolhas: o desânimo e cumprir seu “papel” em sala de aula; ou o caminho que ela escolheu, ou seja, promover mudança da situação vivenciada em sala.

D’Ambrosio e Lopes (2015, p. 5) advertem que, “em razão da complexidade e da diversidade da sala de aula em qualquer nível de ensino, o professor necessita tomar decisões rapidamente em suas ações pedagógicas”. Por isso, para as autoras, diante dessa realidade, faz-se importante questionar os processos educacionais e considerar nossas experiências e saberes profissionais, “pois produzimos conhecimento não somente intelectual e socialmente, mas também de forma emotiva e moral, por meio de nossas vivências”.

Luciana termina seu relato dizendo que foi uma experiência que deu certo, mas somente para aquela turma; ela tentou a mesma experiência com outras turmas, mas as coisas não se passaram da mesma forma. O excerto anterior fornece pistas de desenvolvimento de agência profissional da professora diante de uma experiência de vulnerabilidade - uma sala indisciplinada. Ela lida com a situação de maneira positiva e busca recursos para mudar a situação que vivia com aquela turma.

Professora Denise

Opa! É isso que eu quero. É isso que eu gostei (Professora Denise, Entrevista, 16 dez. 2021).

Na EN concedida em 16 de dezembro de 2021, da qual mostramos a seguir alguns excertos, Denise, uma professora que atua nos anos iniciais, assim narrou sua escolha profissional:

nunca passou pela minha cabeça ser professora. Eu fazia faxina e era uma coisa assim, como dizem: “A gente precisa trabalhar, precisa ganhar a vida e vamos correr atrás”. A minha filha era pequena surgiu o magistério e eu falei: “Não! Vamos mudar de vida”. Quando eu fui ao Magistério, muita gente desistiu porque falou: “Isso não é para mim”. Acabou que eu falei: “E agora? Eu já comecei! Eu não vou largar as coisas no meio”. No final do segundo ano a gente já iniciou os estágios [...] E eu falei: “Opa! É isso que eu quero. É isso que eu gostei” (Professora Denise, Entrevista, 16 dez. 2021).

Denise escolheu a profissão docente como uma forma de mudar o curso da sua vida, sentiu uma estranheza ao iniciar o magistério, porém não desistiu. Ao iniciar os estágios supervisionados, identificou-se com a escolha profissional. Podemos dizer que ela inicia a construção de sua identidade como professora. Após o magistério, Denise continuou estudando - cursou Licenciatura em Letras e Pedagogia. Em sua entrevista, a professora contou que lecionou para todos os anos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, porém identificou-se com os alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental: “foi dada a opção de eu estar conciliando PEB [Professor de Educação Básica] 1 e PEB2, mas eu sempre fiz a opção de não requerer o segundo cargo, porque eu não quis” (Professora Denise, Entrevista, 16 dez. 2021).

A formação de Denise deu-lhe a opção de escolher qualquer segmento da Educação Básica. Ao passar por todos eles, optou por ficar somente com os anos iniciais do Ensino Fundamental. Uma escolha mediada pelo contexto - em outras palavras, ela fez uma escolha com base nas experiências vivenciadas.

Quanto às percepções sobre o ensino da matemática, ela narrou:

Eles têm que ter uma base: quatro operações, multiplicação, divisão, mas é um negócio trabalhado assim, passo a passo, bem devagar. [...] eu priorizo as quatro operações, mas quando a gente chega no segundo semestre, ali por agosto, a gente já começa multiplicação e divisão assim, com mais vontade que a criança aprenda, porque eles já vão se preparar para o 6º ano (Professora Denise, Entrevista, 16 dez. 2021).

A Professora Denise enfatizou que a sua prioridade ao ensinar matemática são “as quatro” operações. Por lecionar no 5° ano, ela acredita que a maneira como prioriza o conteúdo citado preparará seus alunos para o 6° ano.

Ela contou sobre a dificuldade de ensinar determinados conteúdos devido à maneira como aprendeu:

O que que eu aprendi de fração no 5º ano? Eu aprendi que um inteiro é dividido em partes iguais, que o denominador é a parte de baixo e que o numerador é a parte de cima. Foi assim que a minha professora explicou que eu tenho um número fracionário. [...] eu acredito que houve uma falha, que eu não aprendi então, para eu poder passar isto para o aluno eu tive que estudar, correr atrás para que ele também não levasse esta dificuldade para frente (Professora Denise, Entrevista, 16 dez. 2021).

Denise passou por uma experiência de vulnerabilidade na profissão, na qual ela percebe que a maneira como aprendeu fração não daria ferramentas necessárias para ensinar seu aluno “de hoje” - por isso, ela relatou que precisou estudar muito para ensinar seu aluno.

A experiência de vulnerabilidade vivida mostra que uma mudança foi necessária na maneira de ensinar; a professora “quebra” o ciclo de ensinar como aprendeu, algo muito recorrente na profissão docente, principalmente no início da carreira. Denise, em seu desenvolvimento profissional, reflete sobre a necessidade de autoformação, ou seja, ela busca recursos que possibilitam mudanças em sua maneira de ensinar Matemática.

A narrativa da Professora Denise revela outra questão importante: a formação inicial do professor no curso de Pedagogia. Nacarato e Marques (2021) ressaltam a necessidade de discutir a formação em Educação Matemática oferecida nos cursos de pedagogia. As autoras pontuam que o curso tem uma “formação generalista e a carga horária destinada ao campo da Educação Matemática, geralmente, é reduzida, o que nem sempre contempla a adequada formação do professor polivalente para o ensino de matemática para crianças” (Nacarato; Marques, 2021, p. 88).

A questão levantada por Denise é uma realidade vivenciada nacionalmente: os professores no início de carreira, muitas vezes, enfrentam experiências de vulnerabilidade na profissão devido a lacunas em sua formação inicial. Oliveira e Garcia (2020, p. 98) dizem que, em geral, a “vulnerabilidade vivenciada no trabalho docente provoca sentimentos negativos e muitos professores tendem a experimentar sentimento de frustração, impotência, desânimo e ansiedade”. Por isso, acreditamos que as experiências de vulnerabilidade ocasionadas devido a lacunas na formação do professor podem interferir na constituição identitária do PEM, principalmente em situação na qual a formação continuada não é valorizada.

Nesse sentido, o professor tem dois caminhos a seguir: (a) ele vê essas lacunas de formação como algo que deve ser sanado para que possa ofertar ao seu aluno uma Educação Matemática diferente da que ele recebeu; ou (b) os sentimentos de frustração e desânimo fazem com que ele tenha receio de ensinar alguns conceitos matemáticos. Como consequência, segue-se com o ciclo de defasagem na Educação Matemática. Denise dá pistas de que escolheu o primeiro caminho.

Histórias que se entrecruzam

Luciana abriu mão do sonho de ser professora depois de alguns anos do seu início na docência, por contingências econômicas e familiares. Identifica-se com a docência e cursa Licenciatura em Matemática. Sua trajetória é marcada pelo incidente crítico vivido com um aluno. Denise, por sua vez, opta pelo magistério em função do desejo de mudar sua condição de vida e deixar de ser faxineira. O estágio encanta-a e ela se encontra na profissão; cursa Letras e Pedagogia, mas reconhece que não tem os saberes matemáticos necessários à docência - foi preciso estudar muito para ensinar seus alunos.

Para as duas professoras, a docência foi, em um primeiro momento, uma oportunidade de mudança de condições financeiras. Luciana queria uma segunda renda e Denise ascensão financeira. As duas encantam-se com a profissão em momentos distintos da vida, porém, para ambas, esse “encantamento” tem reverberado em sua constituição profissional docente.

Na identificação dos incidentes críticos, pudemos evidenciar pistas de desenvolvimento da agência mediada das PEM. As experiências de vulnerabilidade vivenciadas pelas professoras foram situações nas quais puderam: (1) refletir sobre lacunas em sua formação inicial, o que envolve percepções sobre o Ensino da Matemática (Denise); e (2) assumir posição após a reprovação de um aluno, o que mostra percepção sobre si mesmo na profissão (Luciana). Essas experiências de vulnerabilidade foram precursoras de mudanças no desenvolvimento profissional das professoras, e é nesse movimento que percebemos o processo de constituição da identidade das PEM.

Bolívar (2002, p. 184) evidencia que a biografia profissional denomina o desenvolvimento profissional que o “sujeito formula narrativamente, reconstruindo o curso de sua vida”. De acordo com o autor, esse quadro pode ser dividido em dois grandes componentes, como vimos anteriormente. O primeiro é a identidade profissional, que envolve as concepções que o professor tem de si e o modo como se vê nas interações do contexto escolar; e o segundo é a teoria pedagógica subjetiva, que são os conhecimentos e valores de um professor sobre o ensino. Pudemos evidenciar esses dois movimentos no desenvolvimento profissional das PEM.

Por fim, vimos que as PEM trazem suas marcas de acordo com o segmento em que lecionam. Luciana, em nenhum momento da entrevista, mostrou dificuldades com os saberes matemáticos, e sim com a maneira como ela se desenvolvia pedagogicamente. Já Denise, em nenhum momento da entrevista, mostrou dificuldades em relação ao desenvolvimento pedagógico em sala de aula, e sim em relação aos saberes matemáticos. A nós, cabe refletir sobre essas questões e a formação inicial dos professores, seja no curso de Pedagogia, seja na Licenciatura em Matemática.

Para concluir...

Neste texto, propusemo-nos a compreender o processo de constituição da identidade de duas PEM. Para isso, defendemos que a identificação de incidentes críticos por meio da construção dos biogramas é um caminho analítico possível para compreender e/ou identificar os momentos de vulnerabilidade e agência mediada vividos pelas professoras.

Como anunciado anteriormente, pudemos evidenciar, por meio da identificação dos incidentes críticos, indícios de desenvolvimento da agência mediada das PEM. Nas experiências de vulnerabilidade narradas pelas professoras (Lasky, 2005), identificamos indícios de que se sentiram em um ambiente seguro - que gerou segurança e abertura para agirem de maneira reflexiva sobre suas concepções, experiências profissionais e os significados produzidos por elas - ao rememorar suas experiências e compartilhá-las por meio das EN (Oliveira; Cyrino, 2019).

Ao utilizarmos as entrevistas narrativas como metodologia para a produção de dados, não temos a intenção de generalizar as histórias aqui analisadas, mas de refletir sobre como essa abordagem analítica tem potencialidades para discutir os processos de constituição da identidade de PEM. Os incidentes críticos (Bolívar, 2002) selecionados para este trabalho, independentemente de terem caráter pessoal ou profissional, reverberam nas identidades das professoras.

Incidentes críticos como influências familiares nas escolhas profissionais; relacionamento com alunos ou atores da escola; vivência nos estágios; socialização profissional, dentre outros, são fatores presentes na constituição da identidade - não apenas dessas duas professoras, mas de tantos outros docentes que atuam na educação básica. Identificar os incidentes críticos nas trajetórias das duas professoras mostrou-se potente para identificarmos os momentos de (re)construção das identidades.

No caso das duas professoras, podemos dizer que suas identidades profissionais começaram a ser constituídas antes do ingresso na profissão. Luciana identificou-se como professora na sua atuação no Telecurso 2000, o que reacendeu seu sonho de docência, que havia abandonado por influência familiar. Denise, por sua vez, identificou-se com a profissão ao realizar o estágio no curso de magistério. Ao ingressarem na docência, suas identidades foram sendo (re)construídas. A escolarização básica deixa marcas, conforme apontado na literatura utilizada, e a formação inicial pode deixar lacunas conceituais, como no caso de Denise, uma pedagoga, que narrou as lacunas na formação Matemática (Nacarato; Marques, 2021); no caso de Luciana, uma professora de Matemática, em momento algum da entrevista, relatou dificuldades em conteúdos matemáticos.

Material suplementario
Fontes
PROFESSORA DENISE. Entrevista concedida a Natália Brisolla. Extrema, 16 dez. 2021.
PROFESSORA LUCIANA. Entrevista concedida a Natália Brisolla. Extrema, 15 dez. 2021.
Referências
BARBATO, Christiane Novo. A constituição profissional de formadores de professores de Matemática. 322f. Doutorado em Educação pela Universidade São Francisco, Itatiba, 2016.
BOLÍVAR, Antonio. Profissão professor: o itinerário profissional e a construção da escola. Bauru: EDUSC, 2002.
CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade. Mathematics teachers’ professional identity development in communities of practice: reifications of proportional reasoning teaching. Bolema, v. 30, n. 54, p. 165-187, 2016.
D’AMBROSIO, Beatriz Silva; LOPES, Celi Espasandin. Insubordinação criativa: um convite à reinvenção do educador matemático. Bolema, v. 29, n. 51, p. 1-17, 2015.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Abordagens metodológicas na pesquisa biográfica. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 51, p. 523-536, 2012.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação: figuras do indivíduo-projeto. Natal: EDUFRN, 2014.
DE PAULA, Enio Freire; CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade. Aspectos a serem considerados em investigações a respeito do movimento de constituição da Identidade Profissional de professores que ensinam Matemática. Educação, v. 45, p. 1-29, 2020a.
DE PAULA, Enio Freire; CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade. O compromisso político como elemento constitutivo da identidade profissional de professores que ensinam Matemática. In: DE PAULA, Enio Freire; CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade (Orgs.). Identidade profissional de professores que ensinam Matemática em contextos de formação. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020b, p. 16-36.
FERRAROTTI, Franco. Sobre a autonomia do método biográfico. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Orgs.). O método (auto)biográfico e a formação. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010, p. 31-57.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2013.
KLEINE, Martha Regina Egea. Atores e cenários de 20 anos de história de formação de professores de Matemática do Ensino Médio no estado de São Paulo. 233f. Doutorado em Educação pela Universidade São Francisco, Itatiba, 2018.
LASKY, Sue. A sociocultural approach to understanding teacher identity, agency and professional vulnerability in a context of secondary school reform. Teaching and Teacher Education, v. 21, p. 899-916, 2005.
NACARATO, Adair Mendes. Uma caminhada pela pesquisa (com)narrativa: a construção colaborativa de um percurso teórico e metodológico por um grupo de pesquisa. In: NACARATO, Adair Mendes (Org.). Pesquisa (com)narrativas: a produção de sentidos para experiências discentes e docentes. São Paulo: Livraria da Física, 2018, p. 331-355.
NACARATO, Adair Mendes. Narrar-se e constituir-se profissionalmente como professor que ensina matemática. In: DE PAULA, Enio Freire; CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade (Orgs.). Identidade profissional de professores que ensinam Matemática em contextos de formação. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020, p. 140-158.
NACARATO, Adair Mendes. A agência e o desenvolvimento profissionais de pesquisadoras narrativas que ensinam Matemática. Educação Matemática Pesquisa, v. 25, n. 2, p. 166-188, 2023.
NACARATO, Adair Mendes; MARQUES, Amanda Cristina Teagno Lopes. A formação inicial do professor que ensina matemática na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. In: RIBEIRO, Rogério Marques; TINTI, Douglas da Silva; TRALDI, Armando (Org.). VII Fórum Paulista de formação de professores que ensinam Matemática: discussões e encaminhamentos. São Paulo: Sbem, 2021, p. 88-111.
OLIVEIRA, Laís Maria Costa Pires; CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade. Ações de uma formadora no desenvolvimento da agência profissional de professoras em uma Comunidade de Prática. Educação Matemática Pesquisa, v. 21, n. 2, p. 513-538, 2019.
OLIVEIRA, Laís Maria Costa Pires; GARCIA, Tânia Marli Rocha. Agência profissional e uma comunidade de prática: uma experiência da professora Ana. In: DE PAULA, Enio Freire; CYRINO, Márcia Cristina Costa Trindade (Orgs.). Identidade profissional de professores que ensinam Matemática em contextos de formação. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020, p. 96-112.
PEREIRA, Carlos André Bogéa. Como nos tornamos formadores de professores: processo de constituição profissional. 209f. Doutorado em Educação pela Universidade São Francisco, Itatiba, 2017.
PEREIRA, Jefferson Tadeu de Godoi. Olhares para a trajetória docente de egressos de um curso de licenciatura em Matemática de uma instituição comunitária - narrando trajetórias, construindo histórias. 280f. Doutorado em Educação pela Universidade São Francisco, Itatiba, 2023.
POLETTINI, Altair Fátima Furigo. História de vida relacionada ao ensino da Matemática no estudo dos processos de mudança e desenvolvimento de professores. Zetetiké, v. 4, n. 5, p. 29-48, jan./jun. 1996.
SEGOVIA, Jesús Domingo; MARTOS, Lorena Domingo; MARTOS TITOS, Alberto. Los biogramas como trama y oportunidad para ubicar y comprender los procesos de desarrollo profesional e identitário. Revista del IICE/41, n. 41, p. 81-96, jan./jun. 2017.
Notas
Notas
1 Este é um dos capítulos-artigos de uma pesquisa de Doutorado elaborada no formato múltiplos artigos (multipaper). A pesquisa foi realizada pela primeira autora, orientada pela segunda.
2 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de financiamento 001. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética - CAAE: 45825021.7.0000.5514.
3 Adotaremos neste trabalho a perspectiva de percepção de Polettini (1996, p. 32), ou seja, de que as percepções “podem ser vistas como indicações (introspecções) que os professores têm atualmente via reflexão sobre suas experiências presentes e passadas”. Assim, trata-se de um conceito interligado à reconstrução de experiências passadas por meio de reflexões. Esse movimento de introspecção/reflexão possibilita darmos sentido às experiências vividas.
4 Os nomes das professoras são fictícios em respeito ao sigilo de identidade constante no parecer do Comitê de Ética.
5 Referindo-se a ele e a mais um aluno - juntos, iriam fazer a prova do Senai.
Quadro 1:
Biograma de trajetória profissional - Professora Luciana

Fonte: Dados da pesquisa.
Quadro 2:
Biograma de trajetória profissional - Professora Denise

Fonte: Dados da pesquisa.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS por Redalyc